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SÃO PAULO
2014
TROPICÁLIA: O LIXO E A LÓGICA
1
SCHWARZ, 1978: 72.
2
Verso de Tropicalea jacta est.
3
Nota sobre o uso de grafias diferentes durante o ensaio: os títulos de álbuns, canções, livros e demais
obras serão escritos, no corpo do texto, utilizando a marcação em itálico, para não poluir a leitura com um
excesso de aspas; as aspas, por sua vez, serão utilizadas em citações diretas e para termos metafóricos
cunhados por mim, sendo que nesses não haverá nota de rodapé indicando a referência, ao contrário
daqueles, acompanhados de sua respectiva nota e referência.
4
VELOSO et al., 1968.
5
SÜSSEKIND, 2007: 31.
6
__________, 2007: 37.
7
HOLLANDA, 1992a: 15-52.
8
SCHWARZ, 1978: 71.
de produção poética e de intersecção com a cultura vigente. Afinal, ainda que não
totalmente dentro da redução de Schwarz, os tropicalistas tinham certamente um grande
apelo dentro do mercado midiático e fonográfico, que era usado por eles para, no
entanto, desconstruir toda forma de legitimidade desse mesmo mercado. Segundo
Heloísa Buarque de Hollanda,
9
HOLLANDA, 1992a: 42-43.
10
Nota sobre o uso de siglas durante o ensaio: para evitar a repetição dos nomes, serão feitas siglas entre
colchetes após as obras para indicar seu(s) autor(es), sendo elas [CV] para Caetano Veloso, [GG] para
Gilberto Gil, [TZ] para Tom Zé, [TN] para Torquato Neto e [OM] para o grupo Os Mutantes; dentro dos
parênteses poderão estar separadas por barra mais de uma sigla, quando houver mais de um autor.
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SÜSSEKIND, 2007: 31.
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ZÉ, 2012.
13
VELOSO, 2008.
compositor ressignifica, explica e expõe novas facetas do que ele mesmo e seu grupo
colocaram no final dos anos 60. Uma análise apurada das retomadas pode revelar uma
série de significados subjacentes à comparação das duas obras - comparação esta
necessária, haja vista o título e as referências, explícitas ou implícitas, que enriquecem o
debate em cima da pertinência contemporânea do tropicalismo, ainda tão presente
atualmente.
Adiante, tenciono fazer uma análise que possa, de um lado, perceber e mapear
como aparecem as muitas referências no álbum de 2012 ao “momento tropicalista”, e,
de outro, entender qual conteúdo o compositor coloca sobre o tropicalismo, visando a
uma explicação - um tanto racional, um tanto lúdica - dos motivos que levaram ao
surgimento daquela confluência artística, que “se trata por Tropicália”.
...
O LIXO
O poderoso insumo do lixo lógico,
esse sim, fez a Tropicália.
Tom Zé14
17
FAVARETTO, 1979: 60.
18
Encarte de ZÉ, 2012: 5.
19
PÖPPELMANN, 2010: 131.
próxima estrofe; da mesma forma, a máxima “alea jacta est”20 (“os dados estão
lançados”), também atribuída a Júlio César, é subvertida em um trocadilho que alia o
final de “Tropicália” a “alea”, fazendo com que o título remeta a algo que foi feito e não
se pode voltar atrás, que é o próprio tropicalismo, na expressão “Tropicalea jacta est”.
De longe a referência mais complexa do álbum (e, portanto, mais difícil de se
estabelecer com segurança seu significado, ainda mais se tratando de uma obra do Tom
Zé e de uma obra que remete à Tropicália) é a referência inicial de Tropicalea jacta est
ao episódio épico sobre Baco, presente nas Metamorfoses de Ovídio, segundo o próprio
Tom Zé. A passagem de Ovídio mostra Acetes, marinheiro, contando ao rei Penteu o
que aconteceu quando ele e alguns piratas encontraram Baco, sob a forma de um rapaz
embriagado, numa praia. É contado que o deus foi sequestrado pelos piratas e levado
para um navio, sendo admoestado por eles, até o momento em que se revela um deus ao
impedir o avanço do barco no meio de seu trajeto usando seus poderes para conjurar
videiras mágicas que seguram o barco e atacam os piratas que haviam caçoado dele.
Assim, mesmo sendo essa épica e intrincada referência de difícil interpretação, é
possível supor alguns significados para essa metáfora. Há a possibilidade, dada a
sequência da canção, que o barco, de uma forma geral nessa letra, venha a significar a
cultura nacional brasileira. Assim, apesar do contexto em que já existiam como artistas
os irmãos Augusto e Haroldo de Campos, o poeta Décio Pignatari e o diretor José Celso
Martinez, de alguma forma foi bloqueado o desenvolvimento da arte brasileira -
podendo aí Baco (e a violência com que ele toma controle do barco) ser uma referência
à perseguição à classe artística feita pela ditadura, ou até mesmo um bloqueio próprio da
linguagem poético-artística que havia na época - principalmente se prestarmos atenção
às oposições que povoavam as diferentes concepções de arte da época. Além disso, a
figura báquica por si só já é uma referência ao mundo das artes teatrais, por ser esse o
deus romano patrono dessas artes - referência que se fecharia circularmente com a
referência ao diretor Zé Celso.
Mais recheada de referências ao tropicalismo, essa canção conta com a bela
montagem de alusões: os “dois que antes da cela - da ditadura/ [que] deram a vela / da
nossa aventura” são claramente Gilberto Gil e Caetano Veloso, apresentados como os
principais guias entre os artistas envolvidos com o projeto tropicalista, sendo os
responsáveis pelo “barco da Tropicália”, numa alusão ao episódio marítimo sobre Baco.
20
PÖPPELMANN, 2010: 12.
Tom Zé explora também a temática da industrialização do Brasil 21, aliado ao projeto
nacional-desenvolvimentista dos anos 50, da mesma forma que está presente em Parque
Industrial (do álbum de 1968): expondo “as contradições levantadas pelo processo de
modernização industrial”22, motivadas pela “intensificação do processo de
industrialização nos anos 50”23. Portanto, assim como, na canção, o “barqueiro meu
navegador” - continuando com a referência ao episódio ovídico envolvendo Baco -
“conjectura logo nosso primeiro computador”, está expressa a urgência de entrar no
processo da “Segunda / Revolução Industrial” “capacitados para a nova folia:/
tecnologia”, ou seja, de fazer a ponte entre uma tradição cultural de retomada agrária e
rural, presentes em movimentos culturais como os organizados pelos CPCs24, e a lógica
da modernidade que já estava presente no Brasil desde a década anterior, através,
principalmente, da “[e]xposição dos mecanismos de produção e consumo da indústria
do entretenimento”25 - exatamente o campo de ação da arte tropicalista.
Na mesma canção temo, ainda, referências diretas a outras obras do período
tropicalista na quarta, na quinta e na sexta estrofes:
21
E não somente nessa canção, mas também em O Motobói e Maria Clara.
22
HOLLANDA, 1992a: 15.
23
__________, 1992a: 16.
24
__________, 1992a: 17-37.
25
SÜSSEKIND, 2007: 40.
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Eu-lírico esse que é apresentado num conjunto, postado em uma primeira pessoa do plural, que se pode
extrair de “saímos”, corroborando um certo aspecto coral da obra do Tom Zé.
68, é dito que “o poeta desfolha a bandeira”, na de Tom Zé, coloca-se sobre Torquato a
ação: ele é o poeta tropicalista presente na canção original, segundo a interpretação da
canção de Tom Zé; e a Panis et Circencis [OM], com “os tigres e leões nos quintais”
representados por “feras” e “os panos sobre os mastros no ar”, pelas “bandeiras no
mastro”.
As referências menos diretas estão espalhadas pela canção, mas é com menos
certeza que se pode afirmar uma correlação precisa, dada a complexidade de algumas
das metáforas. As “quimeras / de coca com rum” podem significar, entre outras coisas,
o contexto cultural, algo idealista demais, da esquerda nacional, visto que Coca-Cola
com rum é a bebida conhecida como Cuba libre. Isso pode se explicar se entendermos
que, no contexto do tropicalismo, “[havia] relativa hegemonia cultural da esquerda no
país”27, mas, “[f]racassada em suas pretensões revolucionárias e impedida de chegar às
classes populares [por causa da perseguição da ditadura], a produção cultural engajada
passa a realizar-se num circuito nitidamente integrado ao sistema”28 e a arte acabou por
perder seu aspecto original de ação na situação política do país, virando, assim, simples
“quimera”. Novamente remetendo a Geléia Geral, o explicativo “disco do Sinatra” é a
releitura do “LP de Sinatra” de outrora, reapresentando o fato de que toda a produção
cultural tropicalista se fazia através de uma “ocupação tática de todos os canais
possíveis de difusão de massa”29 produzindo uma “exposição consciente, dramatização
mesma dessa ocupação”30. Nesse “disco”, apresenta-se a continuidade existente entre os
Novos Baianos, grupo contemporâneo, e “outros baianos”, aqueles que contribuíram
para o tropicalismo.
Seguindo a ordem das músicas, a canção-título do álbum concentra suas
referências no começo e no final. Começa com a própria introdução de Coração
Materno (de Vicente Celestino, gravada por Caetano Veloso para o álbum) e se inicia
com referência à história de Chapeuzinho Vermelho - presente no álbum de 68 na
canção Enquanto seu Lobo não Vem [CV]. A de Tom Zé, no entanto, não trata de forma
alguma da “dominação pela violência política”31 abordada na outra; de suas questões
centrais, tratarei posteriormente. A outra referência principal à Tropicália é um conjunto
de trocadilhos ao final da música (“Caegitano entorta rocha / capinante agiu”), em que
27
SCHWARZ, 1978: 62.
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HOLLANDA, 1992a: 30.
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SÜSSEKIND, 2007: 42.
30
__________, 2007: 43.
31
FAVARETTO, 1979: 86.
mistura os nomes de Caetano Veloso, Gilberto Gil, Capinam, Os Mutantes e Gláuber
Rocha.
Fechando com uma retomada da primeira canção, Tom Zé oferece-nos
Apocalipsom B (o começo no palco do fim), cuja inversão, já no título, conecta as duas
pontas do álbum numa circularidade que aponta para a união entre opostos
temporalmente: os músicos tropicalistas miscigenados em trocadilhos com nomes dos
músicos que fizeram parte do álbum de 2012:
Caemicida malluri
Ta gil
Pelicapinarante was
[...]
É hora da Segunda Vinda
...
A LÓGICA
E assim funcionava a creche
Tom Zé33
32
SÜSSEKIND, 2007: 31.
33
Marcha-enredo da creche tropical [TZ]. In: ZÉ, 2012.
para justificar e explicar o aparecimento do tropicalismo. Assim, ainda que não diga
respeito propriamente ao momento tropicalista dos anos 60, o álbum de 2012 é parte do
campo de ação e reflexão das obras tropicalistas e estudar o diálogo que este álbum faz
com aquele momento é tão fundamental para o estudo da recepção do tropicalismo
quanto entender como os próprios artistas percebem e justificam sua própria produção
poética da época.
As peças para a montagem do quebra-cabeça multirreferencial que ele arquiteta
estão dadas nas músicas do álbum inteiro, mas fundamentalmente em três das quatro
que já foram analisadas e em mais uma canção, que estabelece precedentes, na própria
cultura brasileira, para a existência do tropicalismo como movimento dentro de um
contexto maior da arte nacional. No entanto, mesmo havendo plenitude em explicações
que situem os tropicalistas num jogo artístico, quase dialético, entre o “engajamento
cepecista”34 e o “engajamento experimentalista”35 dos concretistas, colocados todos em
referência ao clima de repressão artística e intelectual próprio da ditadura militar36, Tom
Zé prefere uma explicação que envolve, como pode ser observado nas canções que a
seguir serão destrinchadas, outra dialética: o confronto entre o pensamento aristotélico e
a mentalidade moçárabe.
Começando pela primeira canção do álbum, Apocalipsom A (o fim no
palco do começo), vemos o “casamento / [da] fé e [do] conhecimento”, o “saber de
Aristóteles” misturado “com a cultura do mouro”. Aparentemente, são as forças
motrizes do processo cujo “filhote” é o resultado do diálogo entre essas duas forças: o
tropicalismo. Em princípio, essa alusão seria precipitada, mas o raciocínio se completa e
se aprofunda nas seguintes canções.
Seguindo o percurso pelo álbum, em Tropicalea jacta est tem-se a referência
direta à influência árabe na gênese do pensamento tropicalista. Usando da retomada do
“LP de Sinatra” (de Geléia Geral [GG/TN]), colocado como “disco” (e elevado à
categoria de entidade que contém saberes da origem do tropicalismo), Tom Zé indica
que “a viagem começa no século VIII, quando o zero invadiu nossos avós”. Nessa
formulação poética (ainda que dita como prosa na música, sem entoação melódica),
indica a dominação ibérica dos árabes (que, ao contrário dos romanos, prévios
34
HOLLANDA, 1992a: 17.
35
_________, 1992a: 37.
36
SCHWARZ, 1978.
dominadores da península ibérica, possuíam um sistema numérico que contemplava o
zero ― e daí a referência) ocorrida justamente no século VIII.
Em Tropicália lixo lógico, vemos a releitura de Enquanto seu Lobo não Vem: o
Lobo agora é “Seu Aristotes”37, o filósofo cujo pensamento, em oposição àquele modo
de pensar que havia dominado “nossos avós”, “não era melhor, tampouco pior” que a
“moçárabe estrutura de pensar” que “na creche dos analfatóteles regia”. A explicação se
adensa e se aprofunda exatamente nessa estrofe da música, a terceira: a mentalidade
portuguesa influenciada pelo pensamento árabe era hegemônica na cultura mais basal
dos tropicalistas. No entanto, “na escola [... eles] conhece[ram] Aristotes”, isso é,
tiveram contato com a mentalidade clássica, racional e de origem greco-romana, que
possui, em oposição à “moçárabe [...] solução”, um “grande pacote de pensar” e
“equações”. Esse choque produziu, na visão de Tom Zé, uma duplicidade de soluções
por parte dos tropicalistas que passaram, por um lado, a “resolver com [suas] armas a
questão”, mas, por outro, “não recusa[ram] suas equações”; o “resultado quase igual”
das duas, contudo, não foi homogêneo e “a diferença que restou” deu origem ao “lixo
lógico” ― a própria essência das obras tropicalistas.
Essa essência, recalcada no “hipotalo” (hipotálamo) dos artistas, deu origem à
Tropicália quando deixou seu “terreno” original no cérebro 38 e partiu para o córtex
cerebral, onde, acrescido da força das funções inteligíveis dessa parte do cérebro, tomou
forças para constituir-se como algo além de um resquício recalcado numa estrutura
primária da mente. É importante, no entanto, pontuar que essa opinião não é
hegemônica em si: Caetano Veloso aponta que é uma primazia dos tropicalistas de
contextos rurais, um fenômeno das “formas mentais sertanejas”39, compartilhado por
Gil e Tom Zé, mas que escapa às vivências dele próprio, de Maria Bethânia e de Gal
Costa, que viviam em um contexto urbano; explica, apesar disso, que são de Tom Zé
“as obras mais ambiciosas no sentido de caracteriz[ar o movimento tropicalista]”40 e
que, portanto, é fundamental a leitura que ele faz do processo, dado que suas
explicações fornecem material para explicar o “âmago” dessa estética. Tom Zé produz
37
É notável a transformação, em muitos momentos das canções, de proparoxítonas em paroxítonas,
especialmente em palavras que não são de uso popular. Parece ser um recurso de Tom Zé para aproximar
alguns de seus termos ao registro oral do português brasileiro, que reduz muitas vezes proparoxítonas a
paroxítonas.
38
O hipotálamo, no cérebro humano, é o responsável por controlar algumas funções mais basais do nosso
funcionamento, como temperatura e alguns hormônios. O córtex, por oposição, é o responsável pelas
funções superiores do intelecto.
39
VELOSO: 2008.
40
________, 2008.
ainda, de forma notável, uma nomenclatura para aqueles que, vindos de dentro da
sociedade de mentalidade moçárabe, não tinham ainda tido contato com as ideias
clássicas-analíticas de Aristóteles: seriam os “analfatóteles”, misto de “analfabeto” com
“Aristóteles”, grupo no qual situa os tropicalistas.
Finalmente, a canção que se detém com mais propriedade e tempo sobre a
temática das origens do tropicalismo, com foco nos antecedentes que “prepararam o
campo” para a Tropicália, é Marcha-enredo da creche tropical. Não é à toa que Tom Zé
coloca esses antecessores dos tropicalistas como “preceptores-babás”: as figuras
colocadas como anteriores ao tropicalismo não só foram os anteriores numa
continuidade temporal como ofereceram subsídio e recursos poético-artísticos para o
que aconteceu em termos de produção no final dos anos 60. Assim, compartilhando o
mesmo contexto explorado acima ― a invasão muçulmana à península ibérica ―,
indica que “a tristeza daquela invasão” ao menos “valeu para nossa educação [dos
tropicalistas] paradoxal prazer e rendeu a creche tropical”, ou seja, a invasão do
pensamento moçárabe já mencionado deu origem a uma “agridoce” permanência dos
artistas da Tropicália dentro de uma cultura que já estava em movimento segundo suas
próprias regras, dando-lhes uma experiência de “primeira infância”, exploradora em
relação ao que veio antes. O contexto ao qual se refere Tom Zé quando menciona a
“creche tropical” diz respeito, principalmente, a obras que procuraram retratar o
privilégio da linguagem oral na construção social e cultural do contexto em que ele
próprio estava inserido: o Nordeste, o sertão.
Nesse sentido é que se pode encarar a referência à “testemunha, [...] um tal de
Euclides de Cunha”, autor de Os Sertões, obra de cunho jornalístico-poético em que o
jornalista mencionado descreve sua observação da Guerra de Canudos, conflito entre o
governo republicano brasileiro e uma comunidade messiânica autogerida no sertão
nordestino. A importância para a “creche” de Tom Zé é intensa: dentro de uma
linguagem privilegiada, escrita e científica, Euclides da Cunha registrou uma
comunidade claramente desprivilegiada e que pouco contato tinha com a cultura
republicana (e pretensamente “civilizada”) que a dizimou; o autor, apesar disso, mistura
uma erudição da linguagem, própria de sua formação na alta classe fluminense, com
termos regionalistas e neologismos próprios, deixando transparecer uma incursão da
linguagem oral sertaneja em sua escrita formal.
Da mesma forma, a referência a Guimarães Rosa, que produziu Grande Sertão:
Veredas, obra contada toda em primeira pessoa por um sertanejo em sua linguagem
própria. A linguagem sertaneja, então, é colocada no auge de seu privilégio na
linguagem, dentro de uma obra que mistura (assim como seria típico no tropicalismo)
elementos do passado a elementos do presente, mantendo em si um clima de “medieval
batalha”, como coloca Tom Zé.
Dessa forma, sendo tais as referências ricas aos “preceptores-babás” do
tropicalismo, Tom Zé ainda expõe sua visão sobre o processo, no sertão, de ação e de
educação através da linguagem. De acordo com ele, “naquele mundão [o sertão] o falar
da gente assegura na mansa doçura outra cosmovisão: pensar é pão”, isto é, a
manutenção da linguagem oral como base da organização social e cultural do sertão é o
que consegue manter as relações entre os ideais locais e seu próprio sustento, assim
como protagonizado pela população de Canudos. Igualmente, nos informa, no
fechamento da canção, sobre os métodos de entendimento do mundo por parte do
sertanejo, aliados mais à tradição oral (e, portanto, lúdico-musical) do que à tradição
escrita, clássica e analítica (proveniente de Aristóteles). Essa faceta da “didática”
sertaneja nos é apresentada na própria música, que incorpora o joguinho de palavras que
se ensina às crianças: “É um dia, é um dado, é um dedo/ Chapéu de dedo é dedal”. O
final da canção, então, explica tudo com clareza quando afirma que “assim funcionava a
creche: cada círculo, cada aula, iam se sucedendo, com aqueles jograis que casualmente
circulavam entre nós.”, sendo esse a principal fonte de conhecimento sertanejo, o
“tutano na cabeça dos moleques”.
Fora das canções, mas dentro do álbum, encontramos, finalmente, uma síntese
das ideias apresentadas por Tom Zé como sendo as fundamentais para o entendimento
do seu conceito de “lixo lógico”. As páginas 2 e 3 do encarte do álbum (imagem abaixo)
são um infográfico esquemático, anunciando, antes mesmo das letras das canções (na
sequência do encarte), uma relação entre os diversos elementos expostos nas canções e
que compõem, segundo o autor, o conjunto das referências e antecedentes da Tropicália,
bem como seus “gatilhos disparadores”, que teriam catalisado toda o contexto em que se
situava a arte nos anos 60 e produziram a faísca que deu origem ao “momento
tropicalista”.
Nesse encarte vemos a aura que recobria o “berçário dos analfatóteles” ser
invadida por elementos que a conectam com antigas referências culturais e musicais da
Idade Média e de Portugal do século XVI. Assim, são essas referências que pertencem à
produção tropicalista por conta de sua influência sertaneja: o “cantador nordestino”, a
“‘chegança’ (dança dramática)”, o “desafio do improviso” e o “cancioneiro popular
urbano” ― frutos de uma tradição europeia medieval. Na marcação, então, dos balões, à
esquerda e à direita do “berçário”, estão os traços mais primevos e mais avançados
desse processo, traços que culminarão no tropicalismo. O jogo, portanto, do “lixo
lógico” (resultado do embate “moçárabe x aristóteles”) na “creche” composta por
Caetano Veloso, Gilberto Gil, Rogério Duarte, Gal Costa, Glauber Rocha, Torquato
Neto, Capinam e ele próprio, Tom Zé, tem sua realização dada em estética artística
quando há a ação, nos “anos 60”, do “gatilho disparador”: Hélio Oiticica, Zé Celso,
Oswald de Andrade41, Agripino, o Rock internacional, Rita Lee e os Mutantes.
Assim, pode-se ver que é rico e muito bem articulado o universo de proposições
que faz Tom Zé acerca da produção tropicalista e, mais ainda, das motivações que
levaram os artistas a produzir tal estética. Cotejando, então, esse universo com as
características mais centrais do tropicalismo, vemos que essa explicação mesma é parte
da estética do momento: a justaposição de opostos clássicos e moçárabes, a explicação
do novo pelo velho e do velho pelo novo, a exaltação da cultura oral na produção
escrita, entre outros elementos do álbum, insere-se na grande produção tropicalista,
como se Tom Zé conseguisse fundir dois momentos distintos na história, separados por
quase 50 anos, em uma só “criatura [...] que sai do Spiritus Mundi”42 e, “recebida na
sala, se trata por Tropicália”43.
41
Oswald de Andrade é referência presente fortemente no tropicalismo, principalmente em função de
uma retomada de seu conceito de antropofagia.
42
Apocalipsom B (o começo no palco do fim).
43
Apocalipsom A (o fim do palco no começo).
REFERÊNCIAS
HOLLANDA, Heloísa Buarque de. “A participação engajada no calor dos anos 60”. In:
__________. Impressões de viagem (CPC, vanguarda e desbunde: 1960-70). Rio de
Janeiro: Rocco, 1992, pp. 15-52.
VELOSO, Caetano. “Lixo lógico”. O Globo, Rio de Janeiro, 5 ago. 2008. Disponível
em: <http://oglobo.globo.com/cultura/lixo-logico-5692980>. Acesso em: 15 mai. 2014.
VELOSO, Caetano; COSTA, Gal; LEÃO, Nara; GIL, Gilberto; BAPTISTA, Arnaldo;
LEE, Rita; DIAS, Sérgio; ZÉ, Tom. Tropicália ou Panis et Circencis. São Paulo:
Estúdio RGE, 1968. 1 disco sonoro (38’38”).
ZÉ, Tom. Tropicália lixo lógico. São Paulo: Passarinho Experiências Culturais, 2012. 1
disco compacto (47’54”): digital, estéreo. AMZPAC000025.