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São Domingos de Gusmão

Autor: Fr. Marie-Humbert Vicaire, OP


Tradução: Fr. Filipe Rodrigues, OP
Revisão: Maria Torres

Lisboa, Junho de 2012


Província Portuguesa da Ordem dos Pregadores
São Domingos, fundador da Ordem dos Frades Pregadores (+1221)
Existe uma espiritualidade de São Domingos? Se queremos dizer que São Domingos
enquanto pregava aos fiéis ou formava os frades da sua Ordem, ensinava um método
original para atingir a perfeição, devemos responder que não. O mesmo aconteceu com
os seus primeiros filhos. As obras que escreveram para os noviços, por exemplo, não são
de grande relevância. Mas São Domingos fundou uma Ordem, em que a missão, os
meios de santificação, o espírito, foram, desde as origens, extremamente claros e
conscientes. A partir daqui, os Frades Pregadores nunca deixaram de conceber de uma
maneira especial a realização da sua vocação cristã. Neste estudo, será difícil, e talvez sem
interesse, separar a espiritualidade de São Domingos da dos seus primeiros frades. Não
sabemos muito da primeira parte que vai de 1215 a 1221, em que o patriarca se
preocupou em formar os Pregadores; por outro lado, tudo o que sabemos mostra
claramente que a espiritualidade destes «primeiros frades» é um eco da do seu pai. Umas
vezes conhecemo-las uma com a outra e outras uma pela outra. Basta examinar os
documentos de que o historiador dispõe para nos convencermos disto. Mas antes disso, é
necessário indicar com clareza alguns aspetos sobre a vida de São Domingos e sobre a
fundação da sua ordem, que esclarecerão a origem da sua espiritualidade. Por isso,
veremos sucessivamente: 1. A vida; 2. Documentos da espiritualidade de São Domingos;
3. Fontes e inspirações; 4. Elementos.

1. A vida de São Domingos. 1.º Fontes. Perto do fim do século XIX, a coleção das atas
notariais relativas a São Domingos (bulas dos papas, cartas das autoridades, contratos, etc
etc) enriqueceu-se bastante graças às investigações do padre Fr. Balme. O volume da
Historia Diplomática onde está hoje essa coleção traz ao historiador da vida do santo
numerosos fatos e datas indiscutíveis e, às vezes, documentos ainda mais preciosos. O
Bulário da Ordem presta o mesmo serviço para seguir a história dos Pregadores.
As fontes literárias da vida de São Domingos e da sua fundação são igualmente
numerosas. Até ao final do século XIII (data que podemos considerar que os relatos não
trazem nada de novo), contam-se cerca de vinte: lendas, crónicas, recolha de testemunhos
e histórias. Mas constatamos também que a maior parte destes opúsculos têm uma
estreita dependência. B. Altaner publicou em 1922, em Breslau, um notável estudo sobre
estas fontes literárias, Der hl. Dominikus. Undersuchungen und Texte (autores, datas,
ligações anotadas parágrafo a parágrafo, documentos originais, valor; o livro, infelizmente,

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reenvia para as edições ultrapassadas dos nossos textos, anteriores aos dos Monumenta
Ordinis Praedicatorum, onde eram discutidas algumas datas dadas por Altaner). Duas
dessas fontes são capitais, pelo seu valor próprio e porque serviram de base à literatura
posterior: Testemunhas do Processo de Canonização (1233) e o Opúsculo sobre as
Origens da Ordem dos Pregadores (1234), do sucessor de São Domingos, Jordão de
Saxónia. Podemos respigar numerosas histórias, nalguns relatos, às vezes demasiado
evoluídos, nas Lendas posteriores (recolhidas no Libellus), na Vida dos Irmãos, de
Gérard de Frachet (1260-1262) em que o contexto histórico é relativamente seguro, nos
Exemplos de Estêvão de Bourbon, de Jacques de Voragine, etc. O Livro da Vida de São
Domingos, de Thierry de Apolda (1297) agrupa e harmoniza, no fim do século, todo o
material anterior.
A essa literatura exclusivamente dominicana, só poderemos juntar alguns extratos de
crónicas independentes, mas preciosos para a pré-história da Ordem, como a História
Albigense, de Pierre des Vaux de Cernai (1218).
2º Vida e fundação da Ordem. São Domingos foi um castelhano; tinha um
temperamento heróico. Nasceu na aldeia de Caleruega, diocese de Osma, por volta do
último terço do século XII. Desde a infância, foi instruído «in usu ecclesiastico» por um
tio arcipreste. Entrou, para não mais sair, no ambiente clerical que deveria dar cor a todas
as suas atitudes de um modo muito próprio. Fez os seus estudos nas escolas de Palência,
onde se manifesta, ao mesmo tempo, o seu zelo pela Escritura, a sua caridade para com
os mais pobres. Pouco depois, entrou no cabido da catedral de Osma. Neste meio
particularmente fervoroso, onde, em 1199, a vida comum tinha sido restaurada pelo prior
Diogo de Acebes, iniciou-se na vida contemplativa e regular, que formou,
fundamentalmente, a sua atitude religiosa. Entre 1201 e 1206, teve de acompanhar, por
duas vezes, o bispo, o antigo prior Diogo, encarregado de uma missão por Afonso VIII
de Castela a uma região chamada «As Marcas». Ele era, então, subprior do cabido.
Ao longo dessas viagens, Diogo e Domingos sentem fortemente o desejo de trabalhar
pela salvação da almas. No seu segundo regresso, foram oferecer ao Papa Inocêncio III a
sua boa vontade. No final do ano de 1206, vemo-los associados aos esforços dos legados
cistercienses enviados pelo papa contra os hereges do Languedoc. Para juntar o exemplo
à palavra e arremessar aos heréticos a arma evangélica a que se agarravam, pregavam à
maneira dos Apóstolos, indo a pé, sem dinheiro, mendigando o pão. Durante algum
tempo, a missão pontifícia é muito numerosa, graças à chegada, na primavera de 1207, de
doze abades cistercienses enviados pelo papa. Depois, as partidas, a morte do bispo e dos

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doze legados destroem a missão, no momento em que se decide a cruzada contra os
albigenses.
Até 1205, Domingos entrega-se somente à pregação apoiando-se no mosteiro de Prouille,
perto de Fanjeaux, fundado cerca do ano de 1207 para acolher mulheres convertidas. Em
1214 é pároco de Fanjeaux, um dos principais focos da heresia. Em 1215, encontramo-lo
em Toulouse, onde o Bispo Fulco, restaurando, de certo modo, a missão de 1206-1207,
o institui pregador na sua diocese, com alguns companheiros que, unidos a ele pela
profissão, começam a sua vida religiosa. Algumas semanas mais tarde, por ocasião de um
Concilio, Domingos e Fulco pedem a Inocêncio III que confirme a Ordem e os seus
bens. Pouco tempo depois do regresso a Toulouse, a opção pela regra de Santo
Agostinho e a escolha de uma casa regular na capela de São Romão asseguram a
conformidade dessa comunidade original de clérigos regulares-pregadores com o 13º
cânone do Concílio de Latrão a cumprir melhor os desiderata do cânone 10. É então que
são redigidas a Consuetudines que regulam a vida de observância dos frades de
Domingos. Aqueles que se formam religiosamente, estudam e trabalham para a pregação
para «arrancar a perversão da heresia, reprimir os vícios, ensinar a regra da fé e incutir
nas pessoas os bons costumes». Ao pregar «a palavra da verdade evangélica» eles vivem a
pobreza de uma forma apostólica que Domingos reteve depois de 1206; mas uma renda
do bispo ajuda à vida da casa. A 22 de Dezembro de 1216, Honório III confirma
solenemente a forma de vida e os haveres dos irmãos de São Romão.
No verão de 1217, no momento em que se prepara uma revolta em Toulouse,
Domingos, num gesto refletido e irrevogável, dispersa os frades. Os Pregadores de
Toulouse serão uma ordem universal em que os dois eixos, cuidadosamente escolhidos,
serão as universidades de Bolonha e de Paris, onde se fundarão dois grandes conventos.
Mestres e estudantes, a partir daquela data, entrarão cada vez em maior número no
exército dominicano, que exercerá sobre eles uma grande atração. Será ainda melhor
quando no fim de 1218, Domingos é ajudado pelo Bem-aventurado Reginaldo de
Orléans, antigo mestre de Paris, que acaba por entrar.
Durante os três anos que lhe restam, a vida de Domingos não é mais que uma longa
viagem, entre Roma e Viterbo, Bolonha, Espanha, Paris. O seu esforço poderia resumir-
se nestas palavras: submisso ao papa e vigorosamente apoiado por ele, desenvolve, no
âmbito da cristandade, a vida dos Pregadores realizada em Toulouse em 1216.
Organização dos estudos sagrados em Paris e Bolonha, centros de recrutamento; criação
e povoamento de numerosos conventos; extensão da pregação. Em 1220, o trabalho de

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organização parece amadurecido. A 17 de Maio, um capítulo reúne em Bolonha os
delegados de todas as casas. Redigem-se as primeiras Constituições. Depois de um longo
tempo de preparação e progressivamente posta em prática, tinha chegado o momento de
praticar realmente a pobreza, submetendo a mendicância não só aos indivíduos mas às
próprias comunidades. Uma lei da Ordem renuncia a todos os bens e rendas. Domingos
rasgou uma importante carta de doação.
No capítulo de 1221 (30 de Maio), as Constituições tiveram mais um avanço: A Ordem
organiza-se em províncias. Depois da Provença, Roma e Itália, a Espanha, e a França,
Inglaterra, Escandinávia, Polónia e Alemanha recebem os pregadores. Pela Hungria, os
missionários chegam aos pagãos, realizando os desejos missionários de São Domingos.
Ele próprio, no meio das preocupações da administração, reza incessantemente, consola,
prega em qualquer ocasião, aos seus filhos, às suas filhas, que instalou em Roma, numa
casa, aos religiosos que o recebem, aos que estão de passagem, aos pecadores, aos fiéis e
aos heréticos, dando ao mesmo tempo o exemplo da vida regular mais austera, mesmo
em viagem. Está cansado e a sua obra completa. Morre em Bolonha a 6 de Agosto de
1221. Será canonizado a 3 de Julho de 1234, pelo seu amigo e protetor Gregório IX.
2. Os documentos da espiritualidade de São Domingos. – São Domingos não escreveu
obras de espiritualidade. A sua particular herança literária está limitada, hoje, a três cartas:
uma escrita a monjas, que não é mais que um pequeno bilhete; as outras duas são
formulários administrativos passados durante a luta contra a heresia. Se existem mais
cartas, talvez alguma breve disputa teológica, perderam-se, e não parece que os textos
desaparecidos fossem muito importantes.
Mas São Domingos redigiu, conjuntamente com outros frades, uma obra capital para o
nosso tema, os Costumes e Instituições (1216; 1220-1221), que os escritos da época
chamam indiferentemente de «Regra do Beato Domingos» ou «Regra dos Frades
Pregadores». Como todas as regras, este documento não tem só determinações jurídicas,
mas também notáveis observações sobre o espírito e a espiritualidade dos Pregadores.
As testemunhas do processo de canonização irão usá-la muitas vezes para lembrar alguns
traços da figura espiritual do seu fundador. Infelizmente, estas Instituições, chegaram-nos
em traços muito amplos, às vezes modificados pelas prescrições dos capítulos gerais que
se seguiram depois da morte de São Domingos e só temos as atas completas a partir de
1236. O manuscrito mais antigo que nos chegou dá-nos conta do estado das Instituições
em 1239-1241, ou seja, no momento em que São Raimundo de Penhafort se empenhou

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em actualizá-las, sem, no entanto, fazer grandes modificações. Não conseguimos chegar
ao texto de São Domingos senão pelo método das probabilidades.
É indispensável lembrar igualmente as fontes gerais da vida de São Domingos de que
falámos. Sobretudo o Libellus de Jordão de Saxónia e o processo de canonização. As
Vitae fratrum, que contêm numerosos relatos sobre os tempos primitivos da Ordem,
serão preciosos para reconstituir a sua atmosfera espiritual; lembramos, no entanto, que
foram redigidas numa época em que o espírito já terá sofrido algumas transformações;
outros relatos secundários em Estêvão de Bourbon, Tomás de Cantimpré, Estêvão de
Salanhac, etc. Finalmente, alguns relatos espirituais como Os Nove Modos de Rezar de
São Domingos que Thierry d’Appolda acrescentou à sua Lenda: é tardio, apoia-se em
certos depoimentos do processo de canonização e sobre algumas traduções conservadas
em Bolonha.
A natureza destes documentos históricos não permite, no entanto, chegar à doutrina
espiritual de São Domingos e dos seus irmãos a não ser pela sua prática quotidiana, e não
se consegue fazer qualquer distinção entre espiritualidade de São Domingos e
espiritualidade dos Pregadores. Os documentos mostram, finalmente, como o estudo
histórico desta espiritualidade depende do estudo da vida do santo; também é necessário
procurar nos meios expostos nas vidas de São Domingos anteriormente indicadas, como
nas obras especiais.
3. As fontes e as inspirações – 1º As fontes. – Os contemporâneos de assinalam três livros
particularmente amados por São Domingos: as Colações dos Padres do Deserto, de
Cassiano, o Evangelho de São Mateus e as Epístolas de São Paulo. O primeiro era, na
Idade Média, o breviário da espiritualidade monástica. Domingos tinha-o por guia, em
Osma, na sua juventude religiosa; nele procurava, diz-nos Jordão (Libellus, 13), uma
austera pureza de consciência, e um alto nível de contemplação e um sublime grau de
perfeição. Quanto aos outros dois livros, o santo trazia-os sempre com ele, estudava-os e
meditava-os ao ponto de os saber de cor.
A estes livros de cabeceira, é necessário juntar o resto da Bíblia, especialmente o Saltério,
que, no uso litúrgico, tinha habituado Domingos a meditar e a citar em qualquer ocasião.
As mesmas obras, incluindo a Vida dos Padres, estavam entre as mãos dos primeiros
Pregadores e contavam-se entre os livros «teológicos» que Domingos gostava que eles
estudassem intensamente; a Glosa tinha para eles uma importância particular.
2º As inspirações. A vida de Domingos no seu meio canonical, os seus estudos, as suas
missões eclesiásticas, os seus contatos com os meios de intensa efervescência religiosa do

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Sul de França, tudo isso atuou livremente na sua alma generosa e no seu espírito aberto; a
sua espiritualidade, nestas condições, não podia deixar de ser complexa. No entanto, com
uma relativa facilidade, é possível encontrar as inspirações e as notas dominantes que
permitem percebê-lo. É interessante assinalá-las desde já e, sobretudo, examinar comos
elas se compões e se hierarquizam para fazer nascer uma espiritualidade única, original e
equilibrada.
1) Espiritualidade clerical. – O primeiro traço da espiritualidade de Domingos é ser
clerical. É a nota fundamental e, por dizer assim, natural. Domingos e os seus
companheiros não são clérigos, pela sua origem, formação, estudos, missão na Igreja e
apostolado? A sua Ordem é a única do século XIII que é assim, desde a fundação,
propriamente clerical, mesmo que os irmãos conversos se associem para as tarefas
laterais. Do mesmo modo, Domingos concebeu a procura da perfeição, para ele e para
os seus filhos, como um esforço de fidelidade à vocação de clérigo e daí receber das suas
riquezas. Daí a sua admirável devoção na celebração da Missa, o seu zelo pela confissão e
pela recitação do Ofício eclesiástico, o seu culto de verdade de fé – que ele procura
assimilar, recuperar ou defender –, o seu amor muito generoso para com as almas, a sua
preocupação para com a «missão canónica», enfim, a sua dedicação à Igreja e,
especialmente, ao seu chefe, o senhor papa. São Domingos não fez outra coisa senão
renovar com muita sensibilidade a espiritualidade essencial e permanente do clero, o que
foi uma verdadeira originalidade numa época que tanto o necessitava. Mas a tónica nova
e decisiva que ele deu ao amor pela verdade, procurada num contato assíduo com o
Antigo e o Novo Testamento, e o zelo devorador que manifesta pela salvação e perfeição
do próximo fazem desta espiritualidade clerical uma espiritualidade muito própria: a
espiritualidade do Pregador.
2) Espiritualidade regular. – Uma espiritualidade regular completa, de algum modo, a
clerical. A vida de observância na qual Domingos alimentou a sua vocação clerical, ele a
quis para os seus frades. Para dizer a verdade, a vida regular, aos seus olhos, não é mais
do que uma preparação. Ela corresponde a uma verdadeira vocação de penitência, em
que o desejo do martírio, explícito nalguns deles, é uma espécie de coroamento. Mas a
espiritualidade penitencial, por sua parte, está muito ligada à espiritualidade clerical. A
procura da perfeição, pela lenta formação moral do capítulo de culpas, da pobreza
pessoal, as observâncias regulares e pelos exercícios da vida contemplativa, unem-se
estreitamente, nos Pregadores, alcançando a beleza sacerdotal. A sua harmonia não se
consegue sem dificuldade. Os cónegos regulares procuraram dolorosamente a solução. A

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espiritualidade monástica, preocupada com a salvação pessoal, não se consegue sem
esforço e espírito de ardente proselitismo e dedicação à sociedade cristã que anima o
padre Pregador.
3) – Espiritualidade apostólica.
Uma terceira inspiração vem, felizmente, ajudar à união das duas primeiras. Chamamos-
lhe a espiritualidade evangélica ou apostólica de São Domingos. Está em relação neste
ponto, com o movimento pietista que nasceu e desenvolveu-se nos séculos XII e XIII,
nos leigos, em caminhos notoriamente separados dos caminhos clericais e tradicionais,
que se inspiraram numa leitura muito literal do Evangelho. Viam a perfeição cristã como
uma imitação escrupulosa e até material de certos personagens evangélicos, em especial
os apóstolos.
Na verdade, há muito tempo atrás, os monges e os cónegos viam na sua vida uma
repetição da vida dos doze no Cenáculo ou na primeira comunidade de Jerusalém. Mas,
em geral, e diferentemente dos «apostólicos» dos séculos XII e XIII, eles não tinham em
conta o ir dois a dois pelo caminho, nem levar consigo nem ouro nem prata, pregar o
reino de Deus e mendigar o seu pão, segundo as prescrições de Jesus aos Apóstolos,
estabelecendo assim o programa da vida perfeita. Por seu lado, São Domingos, ao decidir
«imitar os Apóstolos», não pretende só reforçar a eficácia da sua pregação por uma
atitude apologética, nem procurar viver à sua maneira de modo atrativo uma espécie de
vida evangélica. Os seus motivos são mais simples e mais profundos. Ele vê nesta
imitação um valor espiritual direto: o melhor meio de estar em contato com a história e o
espírito de Cristo que ele prega.
A inspiração evangélica não traz só consigo práticas novas, como a pobreza mendicante.
Ela renova também nos Pregadores o sentido cristão. Pentra intimamente nos outros
elementos da espiritualidade dominicana ao reconduzi-los à sua fonte viva, onde esses
elementos se misturam. É assim que o espírito da vida clerical e da vida religiosa aparece
incarnada, a São Domingos e aos seus companheiros, numa figura tão simples, que fala
ao coração e à imaginação cristã, a de Jesus e dos seus Apóstolos, continuada na
pregação, na oração ritual e na penitência descritas nos Evangelhos. Ao ler os primeiros
escritos da vida dominicana, temos, de uma forma contínua, o testemunho desta vida e
desta clara espiritualidade.
É verdade que há graus diversos, também os encontramos naquela época. Mas o que é
fundamental e próprio da Ordem dos Pregadores, é que na sua atmosfera de
simplicidade evangélica, Domingos e os seus irmãos conservam, quando renovam, tudo o

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que sob o pretexto de vida apostólica, um Valdés ou, mais tarde, um Gérard Segarelli
retomam, ao ignorarem os outros: as riquezas cristãs da espiritualidade clerical,
sacramental e regular. Sob essa inspiração, as espiritualidades tradicionais são levadas ao
mais alto grau do poder apostólico.

4. Os elementos. – Existe, nas primeiras Constituições, um admirável resumo da


espiritualidade dos Pregadores. São Domingos, - as testemunhas do processo de
canonização atribuem-lhe expressamente essas frases (Processo, 37, 38, 41, 47) –, coloca-
se no momento privilegiado onde os Pregadores saem do meio conventual para irem ao
encontro das almas:

Os que têm de sair para pregar, receberão do prior o companheiro que, pela sua conduta
e instrução, os acompanharão, os quais, tendo recebido a bênção, irão a todos os lados,
como homens que desejam obter a sua salvação e a salvação dos outros, portar-se-ão
honesta e religiosamente como homens evangélicos, seguindo as pegadas do seu
Salvador, falando com Deus ou de Deus, com eles próprios ou ao próximo, e evitarão
qualquer familiaridade com companhias duvidosas. Uma vez que vão desempenhar o
dito ofício da pregação, ou viajar por outros motivos, não levarão nem aceitarão nem
ouro nem prata, nem dinheiro ou outras prendas, exceto a comida, o que levam vestido,
a roupa necessária e os livros (II, 31).

Nalgumas linhas encontram-se reunidos todos os elementos da espiritualidade de São


Domingos; nós agrupá-los-emos sobre as duas ideias-chave indicadas pelo texto: Falar
com Deus; falar de Deus.
1º Cum Deo (com Deus). – 1) A conversão. – Quando se disse que a vocação dos
Pregadores se exprime também pelo termo clássico e agradável de conversão, na grande
parte dos casos, a crença no inferno, muito imaginativa e muito presente, mesmo nas
almas mais puras, se encontra o desejo explícito de fugir do mundo e de escolher uma
vida de penitência, porque têm um sentimento muito vivo da santidade de Deus e da
grandeza da vocação cristã. Sublinharemos apenas a ligação da vocação dos primeiros
Pregadores com a grande parte das vocações religiosas da Idade Média. Esta comunidade
inspirada é muito distinta. Segue a mesma linha tradicional de «converter-se», para
agradar a Deus, a Jesus ou à sua Mãe, de se tornar seu servo, de abandonar tudo por sua
causa. Mas é muito próprio dos filhos de Domingos escolher esta vida para seguir e

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imitar Jesus, pregador pobre: «Nunca li, disse um deles, que Jesus tenha sido monge
branco ou monge preto, mas pregador pobre, e que devo seguir-lhe os passos» (Étienne
de Bourbon).
Por isso, o zelo pelas almas está muito presente nas suas vocações. O que move os
Pregadores é que eles se destinam a salvar os outros ao mesmo tempo que se salvam. A
caridade ardente e ativa, que se imagina da pessoa de Jesus, faz a unidade da vocação dos
frades, como da vida de São Domingos. Assim, ela nasceu em contato com essa caridade.
As entradas na Ordem são provocadas, nalguns casos por um certo entusiasmo espiritual,
pela vida admirável dos primeiros Pregadores, pela sua generosidade na pobreza, a
penitência e o estudo, assim como pelos calorosos sermões de um Domingos, de um
Reginaldo ou de um Jordão de Saxónia.
2) A penitência. – Na sequência dos grandes religiosos medievais, Domingos e os seus
primeiros frades consideram a penitência com o fundamento da sua vocação. Às severas
observâncias adquiridas em Cîteaux por meio dos Premonstratenses, eles juntam as
humilhantes e rudes privações da mendicância efetiva; juntam penitências voluntárias, as
disciplinas quase diárias, o uso do cilício e da corrente ou lumbare (correia) de ferro.
Para quem não tem vocação, isto parece uma verdadeira morte e são muitos os noviços
que são tentados a abandonar. Mas eles vêem na penitência o meio inicial para a
salvação: ela aumenta o abismo entre a vida religiosa e as delícias do mundo, expia os
pecados do passado, repara, purifica; até os mais puros têm necessidade delas.
Domingos, no entanto, orienta os seus filhos por um outro caminho: podemos também
reparar pelos outros; ele também o fazia. Pela sua penitência, uniam-se também a Jesus
crucificado: é o fruto da sua incessante meditação do Evangelho e do crucifixo, pintado
na igreja e em cada cela, «o livro da arte do amor divino». Está tudo contido na velha
expressão cristã «é a minha penitência», pronunciada com um sorriso por Domingos,
quando magoava os pés nalguma pedra do caminho (Processo 27), na sua alegria de ser
mal servido, ultrajado, maltratado pelos heréticos e pelos malvados, no seu desejo de
sofrer o martírio.
Mas, sobretudo, como para todas as práticas dominicanas, a caridade que anima esta
penitência é orientada necessariamente para a salvação do próximo. Ela é, então, o
fundamento da pregação. Antes de mais, porque a austeridade do Pregador junta ao
testemunho da sua doutrina o testemunho da sua vida: verbo et exemplo, é o lema dos
Pregadores. Por outro lado, a penitência apoia a pregação ao conceder-lhe a «graça» de
ser fecunda. Não chega dizer que ela converte os ouvintes; a ideia de Domingos é muito

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mais profunda. Cruelmente ferido por espinhos, num dia em que ia disputar com os
heréticos: «Confiai no Senhor, disse aos seus companheiros, que a vitória será nossa; na
verdade, os nossos pecados já foram lavados com sangue» (Vitae Fratrum). Quando a
penitência vem purificar o Pregador das suas últimas imperfeições, o mal e o demónio já
não lhe podem fazer nada. Nada se pode opor à ação da graça; ele é a voz do Espírito
Santo.
3) A vida comum. – O Pregador rompe com o mundo e une-se a Deus através de uma
promessa explícita, o voto de obediência, que o faz entrar na vida comum. Pelo seu
temperamento e formação, Domingos é um homem de vida comum; é impressionante a
confiança que nela coloca. Para ele, não são nem a estrada nem a cadeira o centro
essencial dos Pregadores mas a comunidade conventual, que ele ensina aos seus filhos a
levá-la nos seus caminhos, com as suas penitências, as suas horas de oração litúrgica, os
seus silêncios e orações, os seus colóquios espirituais, e até o seu estudo. Se a dispensa
deve suavizar a regularidade comum para permitir responder a situações muito variadas,
ela não é branda. São punidos, nos primeiros Pregadores, o religioso que transgride a
regra, o que se autodispensa e o superior que dispensa sem motivo válido.
A vida comum destina-se, antes de mais, a promover a formação virtuosa do Pregador:
educação do noviciado, vida regular, formação para o exemplo, correção fraterna. Um
código notável de faltas e penitências (Constituições I, 21-25), tomadas dos
Premonstratenses, permitem o exercício quase quotidiano do capítulo de culpas, para
ajudar a um real apuramento da consciência. Graças à psicologia muito objetiva daquele
tempo, esta educação comum estende-se mais longe: as faltas contra a pureza, por
exemplo, não são excluídas.
Mais que qualquer outra virtude, o amor pelo próximo, que é a alma do apostolado dos
Pregadores, beneficia a vida comum; especialmente a caridade fraterna. Os irmãos
aprendem a partilhar os serviços materiais e as riquezas espirituais, e adquirem uma viva
afeição mútua, afeição viril e orientada, que não nasce de si própria, mas que transborda
da alegria comum dos primeiros conventos dominicanos.
A pureza dos frades recebe uma caraterística muito própria. Não é a castidade de um
eremita. A pessoa piedosa que via «nos homens barbados, de aspeto áspero e rígido,
como se viessem do deserto», era para ela um escândalo. A vida comum assegura, ao
mesmo tempo, aos frades um desapego radical das coisas da carne e um amor ardente
por Jesus Cristo e pelo próximo, exercido na caridade fraterna. Defendida e vivida, a vida

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comum dá à sua castidade este aspeto amável e luminoso que tanto impressiona em São
Domingos. Por outro lado, a vida comum é o melhor lugar para o estudo e para a oração.
4) O estudo. – O estudo é uma das principais ocupações do Pregador: «De dia, à noite,
em casa ou no caminho», diz a regra de São Domingos (Constituições I, 13). Como é que
o estudo se insere na sua espiritualidade? O motivo óbvio do estudo é, sem dúvida, o de
preparar para o ensinamento da doutrina. Mas este amor pela verdade da fé, tão
caraterístico de Domingos e dos seus frades, identifica-se profundamente, com o seu
amor de Deus. O seu estudo penetra no grande movimento de caridade que é a alma da
sua vocação.
Debruça-se sobre Deus. «Estudar sem cessar o Novo e o Antigo Testamento», escreveu
São Domingos (Processo, n. 28). Ainda que muito próximo de um fiel comentário dos
livros sagrados, o estudo teológico querido pelo patriarca insere-se sem dificuldade na
vida espiritual dos frades; antes de alimentar a sua pregação, o estudo alimenta a
contemplação. Assim o viram no seu fundador. Mais tarde, os progressos da metafísica
cristã, do seu enriquecimento, engrandecerá a teologia a partir da filosofia. Poderá
levantar-se um problema. Nos meados do século XIII, alguns Pregadores viam de bom
grado a oposição entre o interesse pela filosofia «que tinha manchado a Bíblia» (Vitae
Fratrum) e a simplicidade da fé e da oração dos primeiros frades. É o único caso em que
vemos na espiritualidade dos Pregadores um desacordo entre os elementos mais ricos da
sua vida. Desacordo superficial, porque os verdadeiros filhos de Domingos saberão
entrar na linha de seu pai, ao fazer depender do Evangelho o seu estudo e ao inspirá-lo
de um desejo ardente de conhecer Deus, para melhor O amar e fazer amar. É o que quer
dizer São Domingos quando diz que encontrou o conhecimento das Escrituras no livro
da caridade.
5) A vida contemplativa – O primeiro fruto da vida comum e do estudo dos Pregadores,
é o exercício contínuo da fé e da caridade que se abre normalmente, em São Domingos e
nos seus frades, na contemplação.
Esta contemplação é direta e objetiva. Quer pela mentalidade da época e, sobretudo, pela
teologia dos frades. As grandes realidades da fé alimentam a sua vida de oração: Deus –
no seu papel de Criador, Providência, que faz justiça –, o Salvador Jesus – a sua paixão e
história evangélica –, o céu, as almas e o seu destino. Pode-se falar de contemplação
teocêntrica, para usar uma palavra cómoda e doutrinal, o que não significa dizer
hermética. O contato com o Evangelho dá-lhe um percurso muito concreto. É um olhar
de fé, uma conversa: «pensemos no nosso Salvador», «falai com Deus» (Processo, nº 4;

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Constituições II, 31), disse São Domingos. A grande confiança dos frades nas suas
respostas que as visões e os sonhos parecem levar para um outro mundo, sobretudo na
sonolência da oração privada, transforma a contemplação quase universalmente num
diálogo saboroso com o mundo sobrenatural.
O centro desta união espiritual a Deus, por Jesus Cristo, é a Missa, que Domingos,
seguido por muitos dos seus filhos, celebra quase todos os dias com muitas lágrimas e
para a qual os frades se preparam pela confissão frequente, às vezes quase diária.
Depois, o Ofício canonical, o grande Ofício e o Ofício da Virgem, com horas regulares
estabelecidas, onde, entre todos os sentimentos que a liturgia sugere, o Pregador
manifesta especialmente o seu zelo pelo louvor divino. Finalmente, apoiadas neste centro
e encaixadas neste quadro, as «orações secretas» constituem a atmosfera da vida de
oração. Domingos consagra especialmente as suas noites, durante tanto tempo que, não
dormindo, repousa a sua cabeça sobre os degraus do altar diante do qual reza. Para os
frades, o grande intervalo que existe entre as matinas e a hora de prima, particularmente
favorável às sonolências espirituais, e a tarde, por volta da hora de Completas, são os
momentos privilegiados, mas não exclusivos, para estas orações secretas. Elas são como
um prolongamento do Ofício, com todos os movimentos de adoração, de dor, de
abandono, de arrependimento, de petição e de encontro. Repetem-se os versículos dos
salmos, ou mesmo, a meia voz, murmura-se um hino ou antífona litúrgica. São
Domingos, como espanhol que é, usa também vários gestos para ajudar à sua oração. É o
momento das devoções mais pessoais e ternas para com Jesus e, sobretudo, para com
Maria. Se parece que os primeiros Pregadores não são muito dados a uma viril
contemplação do Crucificado, vemos multiplicarem-se entre eles estas devoções que, no
mundo em geral e, em especial na Alemanha, alcançam uma grande variedade.
Esta vida de oração faz da vida dos primeiros Pregadores uma vida contemplativa, ou
melhor dizendo, a contemplação pode ser considerada como o fim principal e
privilegiado do movimento da caridade que conduz ao Pregadores até Deus? Podemos
responder que sim, por causa da extensão e da natureza dessa contemplação. Por outro
lado, o enquadramento conventual que a sustém e que Domingos vai conservar intato nas
suas viagens apostólicas (Processo, n. 3, 41), é naquela época o enquadramento universal
da vida contemplativa. Mas falta dizer que esta vida contemplativa, que é o fim terreno da
vocação de Domingos e dos seus frades, inserida na sua própria natureza é um desejo e
uma necessidade de se comunicar ao outro. Entre os dons ou as graças místicas
concedidas a um frade, de acordo com os primeiros relatos dominicanos, o dom das

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lágrimas ou da «compunção», e de dor diante do pecado, é o mais frequentemente
assinalado. É entre eles um sentimento essencialmente animador e comunicativo.

2º De Deo (De Deus). – 1) O amor pelas almas. – Não há movimento mais importante,
talvez, na oração de Domingos, que a sua oração pelos pecadores. Na verdade, é central
na sua vida e na dos seus frades, o ponto onde a intensa contemplação em Jesus
crucificado se torna num ardente desejo de salvar as almas. Nessa oração, Domingos
entusiasma-se até aos «clamores» de que falam as testemunhas da sua vida: «Senhor,
tende piedade deste povo! Que será dos pecadores?» Compreende-se a importância da
pequena frase que ele quis juntar ao prólogo das Constituições.

Devemos saber que a nossa Ordem, desde o princípio, foi instituída para a pregação e
para a salvação das almas e que o nosso estudo deve tender, principalmente e com todo o
ardor, para que possamos ser úteis às almas do próximo.
Pela pregação: o empenho pela salvação continua, por assim dizer, sem interrupção, na
oração do Pregador. O estudo de Cristo no Evangelho transforma-se sem rutura, num só
movimento da alma, na contemplação e na pregação. Deus, em Jesus Cristo, é o único
objeto destas ações encadeadas. «Falar com Deus ou de Deus», disse São Domingos.
Podemos dizer que São Tomás não traiu a ideia do fundador quando diz: «transmitir o
que se contemplou» (2a 2ae q. 188, a. 7). É o que nos mostra a vida dos primeiros frades.
Por outro lado, para melhor assegurar a continuidade do espírito, é ao modo de Jesus
Cristo que os Pregadores querem salvar as almas. Três atitudes complementares se
abrem agora diante do seu ideal apostólico, em imagens vivas: o pregador-mendicante, o
soldado, o pastor.
2) Pregadores-mendicantes. – A pregação mendicante não é só para os primeiros
Pregadores a mais rude, - e a mais amada –, das observâncias. Ela é a companheira
inseparável da sua pregação evangélica. Vem desta «regra apostólica», dada por Jesus
Cristo, de que já falámos, e que compreende, entre outras coisas, ir a pé, dois a dois, sem
levar dinheiro.
Já se disse em que altura é que apareceu este programa de vida a São Domingos. Não foi
só a questão apologética. Quando o fundador submeteu todos os seus conventos ao
regime da mendicidade diária, quando ele se ajoelha emocionado para receber o pão que
lhe dão, quando fica radiante no dia em que falta a comida ou chora porque um
procurador gastou para além do limite do convento. É verdadeiramente a pobreza de

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Jesus que ele deseja com toda a sua alma, com a mesma frescura e ternura que se vê no
seu irmão São Francisco. A semelhança da pobreza dos pregadores com a dos Menores
vai manter-se até meados do século XIII, em que numerosos relatos de Gérard de
Frachet são muito parecidos aos dos Fioretti.
Contudo, Domingos não fez deste gesto evangélico o fim da sua Ordem, que continua a
ser a pregação. Também no estabelecimento da pobreza, sobretudo da mendicância
conventual, ele mostra muita flexibilidade. Podem aplicar-se às ocupações materiais para
o dia-a-dia a prescrição, muito atenuada, de São Domingos:

Todos os que estão consagrados ao ofício da pregação ou ao estudo não recebam


nenhuma ocupação ou administração temporal, para quem possam cumprir livremente e
melhor o ministério de que foram encarregues sobre as coisas espirituais, a não ser que
não haja outra pessoa que possa procurar as coisas necessárias, uma vez que as
necessidades de hoje em dia precisam de alguém que se ocupe delas. (Constituições II;
31; Processo, n. 32)

Deste modo, a dupla vontade de inspirar a pregação através de uma atitude evangélica e,
por outro lado, de não lhe colocar nenhum obstáculo notável e, sobretudo, prolongado,
animou São Domingos a considerar esta observância. Os Pregadores irão lembrar-se
sempre dela.
Se se quisesse, portanto, hierarquizar as intenções que inspiraram, realmente, a pobreza
mendicante de Domingos e dos seus frades, poderíamos dizer que ela é para eles, antes
de mais, uma pregação que ao mesmo tempo é imitação de Jesus Cristo; depois, uma
libertação da ganância e da ambição, os defeitos do clero da época; finalmente, uma
ascese e uma humilhação, muito eficaz contra o orgulho que tenta o clero e o letrado
(encontramos nas primeiras Constituições textos notáveis sobre a humildade: «Caveant
fratres nostri, ne ponentes os in caelum… scandalizent» [tenham cuidado os nossos frades
em não gritar nas suas pregações para não escandalizar] II, 33, Cf. 35; I, 13). A tudo isto
se junta que a experiência da miséria aumenta a compaixão e a generosidade dos irmãos
e fortalece a sua amizade mútua. Finalmente, a imitação plena dos Apóstolos permite-
lhes esperar (sem mérito nenhum da sua parte) a graça essencial do apostolado, a infusão
do Espírito Santo, e um certo prolongamento do Pentecostes.
3) Ágeis soldados da Igreja. – «Libertos do fardo das riquezas», os Pregadores aparecem
como ágeis soldados, expediti, ou melhor, os «defensores de Cristo», como os chama o

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Papa desde o primeiro momento. Soldados especializados num único ofício: a salvação
das almas pela pregação; desde o princípio, sofreram bastante ao lhes imporem outras
tarefas.
Cada pessoa tem o seu espírito. Antes de mais, um conjunto de virtudes viris: «Fortiter,
viri fortes» (Corajosos, homens fortes) é uma fórmula querida aos primeiros Pregadores.
Depois, um sentido de hierarquia e obediência aos superiores, ao Mestre da Ordem e,
pelo Mestre, ao Papa. É com a autoridade católica, e não com uma inspiração pessoal,
que eles contam para a «missão de pregar» e a delimitação do seu trabalho ao serviço das
almas. Exército central da Igreja, se não fazem parte do governo dos bispos, devem, ao
menos, segundo a regra de São Domingos, «visitá-los e, seguindo os seus conselhos,
trabalhar para bem do povo» (Constituições II, 32). Finalmente, um grande ardor os
anima no combate pela defesa e propagação da fé da Igreja. Contra as heresias, o
Pregador luta pela verdade. Quando se ocupa em converter as multidões, em corrigir os
hábitos, combate contra a armada dos vícios. Mas não lhe chegam estes adversários
morais; por detrás dos vícios e dos erros, ele vê quem os sustém, o diabo, contra o qual
«não deixa de combater em todo o universo». Terrível batalha, descrita nos primeiros
livros dominicanos. O filho de Domingos venceu, porque a sua penitência destruiu todos
os direitos que o demónio poderia reivindicar para ele.
4) Pastores da Igreja. – A pregação dominicana, no entanto, não se pode inspirar sempre
nesta espiritualidade bélica. A proposta positiva da doutrina e da regra dos costumes
incarna num terceiro tipo espiritual que aparece frequentemente nos primeiros
documentos dominicanos, principalmente ligado à natureza clerical do Pregador, o
pastor, que assume o ofício doutrinal excluindo a governação. Nesta espiritualidade,
Domingos e os seus frades comportam-se como clérigos preocupados com as suas
responsabilidades e desejos de se adaptarem às necessidades do povo cristão. Há,
verdadeiramente uma grande carestia de verdadeira doutrina e de edificação. Um grande
zelo a preencher as funções de padre, confessar, dirigir, falar a tempo e a contratempo,
edificar todos os que encontra, estudar para poder melhor ajudar na tarefa pastoral e
adaptar a pregação às necessidades dos ouvintes, são as grandes intenções que inspiram
esta imagem do pastor dos famintos. Do interior de Belém, a casa do pão, onde vivem
perto de Jesus, os Pregadores distribuem o pão da Palavra. Enquanto vão, levam com eles
as recomendações de Domingos que foram dadas no princípio deste parágrafo. Todos os
tipos, todas as intenções que animam a espiritualidade do Pregador não se resumem a
este texto «… como homens evangélicos, seguindo os traços do seu Salvador…»?

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5) O fim da viagem. – É desta forma que se realiza, na vocação, no estudo, na oração, no
apostolado dos Pregadores, uma estreita identificação com o Senhor Jesus. Também, à
medida que vão terminando a sua viagem, estão prontos para a união eterna. Eles
completam e dispõem-se a rezar o Credo, cantando algum versículo dos salmos,
meditando o «Cupio dissolvi» (desejo partir). Jesus Cristo vem, frequentemente, busca-lo
com sua Mãe, para o levar para o coro dos Apóstolos.

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