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A Constituição e a reinvenção do

território: algumas implicações jurídicas


em face da globalização

PAULO R. RIBEIRO NALIN

SUMÁRIO

1. Introdução. 2. Quanto à globalização. 3.


Diferenças entre os blocos econômicos. 4. O
conceito de Estado e o território nacional. 5.
Conclusão.

1. Introdução
O tema proposto aborda a questão atualís-
sima do comportamento constitucional frente
aos mercados emergentes, especialmente
quanto a questão do território nacional, da sobe-
rania e, principalmente, sobre os papéis do
Estado diante da globalização.
A exposição enfrentará, em ordem meto-
dológica, os seguintes tópicos, aqui generica-
mente sugeridos: aspectos da globalização
frente ao Estado; a diferenciação entre os
diversos tipos de blocos econômicos; o conceito
de Estado e território nacional e, ao final, a
conclusão.

2. Quanto à globalização
Paulo R. Ribeiro Nalin é advogado, mestre em Superadas as questões formais, adentro ao
Direito Privado pela UFPR, professor de Direito tema da globalização, enquanto fenômeno
Civil da PUC/PR e da Faculdade de Direito de sócio-econômico com necessários reflexos para
Curitiba, professor da Escola de advocacia da OAB/ o Mundo do Direito.
PR, com aperfeiçoamento em Direito Comunitário A globalização econômica não é fato recente.
pela Harvard Law School.
Na Europa surge com a União Econômica
Aula proferida na Faculdade de Direito de Belgo-Luxemburguesa (Benelux – 1957), mas
Coimbra, na cadeira de Direito Comunitário, em com maior importância, seja no plano das
novembro de 1996, por ocasião de estudos prepara- intenções sócio-políticas, seja no plano dos
tórios para Jornadas de Coimbra “20 anos da Cons- atores envolvidos, a Comunidade Econômica
tituição de 1976”. Européia (CEE – 1957), foi o primeiro passo,
Brasília a. 34 n. 135 jul./set. 1997 37
hoje aparentemente distante, para o surgimento Desde os momentos iniciais dos blocos
de tantas outras comunidades internacionais e econômicos, pensou-se na necessidade de
mercados comuns, espalhados pelo mundo unificação legislativa, sendo dominante tal
afora1. Nesta mesma ordem, mas face ao volume entendimento, conforme palavras de Marie-
do seu mercado, cujo potencial econômico é Françoise Labouz, no seu livro Le système
respeitável, destaca-se o North-American Free communautaire européen (1986), tratando
Trade Agreement (Nafta). De minha experi- como uma necessidade vital à aproximação das
ência natal saliento o Mercado Comum do Sul, legislações nacionais, na medida do bom
identificado pela sigla Mercosul, surgido no ano funcionamento da Marcha Comunitária. E
1991, por força do Tratado de Assunção. mais, salienta a indispensável primazia que
Justificaram suas participações os países- deve ter o sistema comunitário sobre os direitos
membros dos mercados e comunidades mun- nacionais, especialmente face aos constitu-
diais, na queda de barreiras alfandegárias e cionais e legislativos que lhe sejam contrários2.
equalização de suas economias, a partir da Sob um prisma mais individualista, regras
formação de blocos comunitários, mediante trabalhistas, previdenciárias, de concorrência,
livre circulação de pessoas, serviços e capitais. societárias, de consumo e contratuais em geral
Caso recente, por exemplo, do Chile, que desde carecem de sistematização unificada.
1º de outubro do corrente aderiu à denominada Sob o enfoque da legislação constitucional,
“lista de desagravo”, com redução de 40% das torna-se a situação mais crítica, pois calcado o
taxas alfandegárias e impostos, em aproxima- Estado de Direito, dito moderno, em pilares de
damente 60% dos produtos de intercâmbio inspiração liberal-clássico, dos quais salien-
comercial entre os quatro países do Mercosul. tam-se como elemento a soberania nacional,
A partir de 1º de janeiro vindouro, a redução a idéia de Constituição (constitucionalismo),
dos impostos alfandegários atingirá a 48%, che- e o equilíbrio entre os Poderes do Estado3.
gando a 100%, até o ano de 2004. A adesão à Pilares esses que não suportam a estrutura do
“lista de desagravo” dos membros do Mercosul, Estado agregado a bloco econômico, mais espe-
põe o Chile no caminho, a passos largos, para cialmente no que tange à soberania externa
tornar-se o mais novo parceiro formal desse referida ao território nacional.
bloco sul-americano. Bem verdade que no Brasil a estrutura do
Não só o Chile parece voltar seus olhos para Estado de Direito, sugerida pelas ideologias do
o Mercosul, mas ainda Portugal. Conforme liberalismo, já havia perdido força, com a
visita oficial de empresários da Região do Porto edição da Carta de 1934, período histo-
ao Brasil, na primeira semana de outubro ricamente conhecido como o da “Segunda
passado próximo, deseja Portugal incrementar República” brasileira, seguida pela Constituição
em até cinco vezes suas exportações para a de 1946 (“Terceira República”) e a atual Carta
América Latina, atualmente na ordem de Us$ Constitucional, de outubro de 1988, todas
93.000.000,00, mediante a ampliação das fortemente influenciadas pela Carta de Weimar,
exportaç·es de alimentos, roupas e tecnologia, e a atual Constituição pela Lei Fundamental
utilizando-se do Brasil como porta de ingresso de Bonn, valorizativas dos direitos fundamentais
da pessoa humana, atribuindo sentido social aos
junto ao Mercosul. Oferece em troca seus
novos direitos, e superioridade da sociedade
limites alfandegários como porta de entrada do face ao Estado4-5. A propósito da influência
Brasil na Comunidade Européia.
2
O mundo, assim visto, parece ser cada vez LABOUZ, Marie-Françoise. Le système com-
menor e os povos cada vez mais próximos. munautaire. Paris : Berger-Levrault, 1986. p. 253.
3
Instituída a globalização econômica, resta FARIA, José Eduardo (org.). Direito e globali-
a jurídica, pois o Direito não passa ao largo do zação econômica: implicações e perspectivas. São
fato sócio-econômico. Paulo : Malheiros, 1996. p. 5.
4
BONAVIDES, Paulo. Curso de Direito Cons-
1
Para citar em alguns continentes: Comunidade titucional. 5. ed. São Paulo : Malheiros, 1994. p.
Européia de Energia Atômica (CEEA – 1957); 332-333.
Associação Americana do Livre Comércio (ALALC – 5
Ibidem, p. 334-335. A segunda Constituição
1960); Comunidade do Caribe (CARICOM – 1973); republicana brasileira tinha indisfarçável apego à
Comunidade Econômica da África Ocidental (CEAO Carta de Weimar, assim como a Constituição de
– 1974); A Liga dos Estados Àrabes (LEA – 1945), 1946, em que a “sociedade e o homem-pessoa – não
e tantos outros. o homem-indivíduo – são os valores supremos”. Cita
38 Revista de Informação Legislativa
alemã, passa o Estado a carregar o adjetivo de Face às ditas rupturas, entende-se que o
“Estado de Direito” (Rechtsstaat), mediante Estado Nacional perde seu poder de soberania
conquistas a garantias jurídicas e de respeito e autonomia, quando da formulação de políticas
às liberdades do homem e do cidadão6. internas 11. Quanto às externas, o Estado
Entretanto, o rompimento institucional Nacional nem ao menos pode pretender regular
flagrante com o Estado Liberal ou Burguês dos a sociedade civil de forma soberana12.
séculos XVIII e XIX, e mesmo com o Estado Constata-se, desta forma, um Estado impo-
Social (dito Providência) do século XX, se dá, tente e ilegítimo, decorrendo sua impotência
e de forma mais acentuada, diante da queda do distanciamento entre a sua vontade (mani-
dos blocos socialistas7, a propósito da globali- festada por meio da lei) e a realidade social. Já
zação, notadamente a partir da década de 808. a situação de ilegitimidade decorre da necessi-
Sob este prisma, define J. Dunn9 (jurista inglês), dade imperiosa e irresistível de partilha do
quatro rupturas fundamentais do Estado dito poder estatal com forças que transcendem o
Moderno com a vigente ordem mundial: a nível nacional (ONU, CEE, Câmaras Arbitrais,
primeira relacionada à proteção do indivíduo etc.), mostrando-se incapaz de uma regulamen-
e a integridade territorial, atualmente modifi- tação social, pois nem ao menos pode editar
cada por força do encerramento da guerra fria;
uma lei sem consulta às determinações inter-
a segunda causa, referida à mundialização da
nacionais do Bloco, Mercado Comum ou
economia, com um regime econômico ao nível
planetário, e conseqüente impossibilidade de organização internacional a que está filiado,
aplicação de políticas keynesianas em um só concluindo-se por um Estado, conforme
país10; a terceira, a internacionalização do palavras de André-Nöel Roth, “aprisionado
Estado, diante da sua participação em inúmeras entre um nível internacional mais coativo e um
organizações internacionais (ONU, CEE, FMI, nível infranacional que procura liberar-se de
BIRD, OIT, etc.); e, por fim, a quarta, como sua tutela”13-14.
sendo o fenômeno da valorização do Direito Conclui o mesmo autor francês, pela cons-
Internacional, inclusive com mais poder atual tatação de uma busca e resgate do “aparato”
de coerção, frente a abusos individuais e ainda estatal tradicional, por forças nacionais e regio-
outros patrocinados por Estados soberanos, nais (empresas, entidades não-governamentais
passando, então, o cidadão a ter um foro para internas, sindicais e outras), visivelmente por
reclamar (por exemplo a Corte Européia dos meio de reivindicações federalistas, regiona-
Direitos do Homem). De um modo ou de outro, listas ou nacionalistas. É o caso do surgimento
todas as rupturas se relacionam ao fato da ou ressurgimento das nações da ex-União
globalização, impositiva da inadequação das Soviética15, e ainda pelo qual podem passar os
conhecidas estruturas do Estado. Estados Unitários.
o autor a natureza das conquistas sociais como: 11
subordinação do direito à propriedade ao interesse ROTH, op. cit., p. 19.
12
social e coletivo, a ordem econômica e social, a Ibidem.
instituição da Justiça do Trabalho, o salário mínimo, 13
Ibidem.
férias anuais remuneradas ao trabalhador, indeni- 14
zação pela dispensa imotivada ao trabalhador, No que tange a um notório exemplo de influ-
socorro às famílias de prole numerosa, colocação da ência internacional recente no Brasil, diz respeito
família, educação e cultura sob o manto do Estado. ao Tratado 158 da Organização Internacional do
6
Trabalho que, essencialmente, veda a demissão de
FERREIRA, Luís Pinto. Teoria geral do empregado sem justa causa absolutamente justifi-
Estado. 3. ed. São Paulo : Saraiva, 1975. p. 101. cada.
7
ROTH, André-Noël. O Direito em crise : fim O Tratado está sendo aplicado pelos tribunais
do estado moderno? p. 18. regionais brasileiros competentes, e mesmo pelo
8
FARIA, op. cit., p. 10. Tribunal Superior do Trabalho, ao arrepio das
9
normas constitucionais que tratam da recepção de
Political science, political theory and policy- tratados e convenções internacionais. E ainda,
making in an interdependent world. Governement contraria o Tratado não somente a Carta Constitu-
and Opposition, v. 28, n. 2, p. 242-260. In ROTH, cional brasileira no que tange à sua recepção, mas
op. cit., p. 18-19. ainda dispositivo constitucional autorizativo da
10
Cita como exemplo o caso da falência do demissão de empregado, mesmo que injustificada-
governo socialista francês de 1981-1983 e do governo mente (art. 7º, inc. I).
15
Clinton, com práticas protecionistas mais prudentes. Ibidem.
Brasília a. 34 n. 135 jul./set. 1997 39
Nesse passo, a globalização sugere uma Comércio, o Mercado Comum e a Comunidade
situação paradoxal. Encontra-se o Estado Econômica ou União.
moderno premido entre sua agenda interna- A primeira das modalidades, tipicamente
cional e as exigências das forças intestinas, exemplificada pelo Nafta, em que os objetivos
conforme anteriormente dito. são estritamente comerciais de integração
Portugal, por exemplo, enquanto Estado econômica, sem qualquer apelo ao intercâmbio
Unitário, conforme o art. 6º, nº 1, de sua Carta cultural, social e solidário entre os povos
Constitucional, encontra-se nessa passível envolvidos, estabelecendo somente algum
condição de sofrer pressões intestinas de índole esforço mínimo na eliminação das barreiras
regionalista e/ou federalista. É notório o esforço comerciais. Curiosamente, a posição do México,
português de enquadramento na Comunidade enquanto parceiro do referido bloco, sempre foi
Européia, desde o seu ingresso em 1986, face contrária à criação de ao menos um Mercado
aos dados econômicos e tecnológicos desfavo- Comum, pois, segundo Saxe Fernández16 (autor
ráveis diante dos demais membros do bloco, mexicano), a integração proposta pelo então
abrindo brechas internas de discussão acerca Presidente Bush, em meados de 1991-1992,
da eficácia do Estado em resolver as questões teria natureza de subordinação econômica, pois
nacionais. o parceiro, no caso os Estados Unidos da
Sobre o Estado-Providência, diante do fato América, é detentor da maior economia
da globalização, torna-se clara sua derrocada mundial. Tornou-se arredio o México, portanto,
enquanto gerente da atividade econômica a uma forma mais evoluída de integração regio-
privada, e não somente pública, vez que o prin- nal, pelo receio de esmagamento de sua econo-
cípio isonômico entre empresas e profissionais, mia terceiro-mundista pelos demais parceiros
em virtude da movimentação imprescindível de ricos.
capitais, serviços e trabalhadores do bloco A segunda das modalidades, a do mercado
econômico, alcança dimensões para além da comum, é o típico caso do Mercosul.
fronteira do Estado-membro, de modo a atingir
todas as empresas e trabalhadores de um Surgiu o bloco ora enfocado com o escopo
determinado mercado ou comunidade. Encon- de inserção precisa nas economias mais
tra-se mitigada a vocação natural do Estado- centrais17. Entretanto, a frustrada experiência
Providência em socorrer seus administrados, anterior latino-americana da Alalc (Tratado de
sob pena de ser taxado de protecionista ou cons- Montevidéu de 1960), antecessora da atual
trutor de reservas econômicas, nestes tempos Aladi, que não previa o escopo integrativo entre
de neo-liberalismo marcante. os povos daquele continente18, indicou como
O Estado, sob esta ótica, deve abandonar melhor caminho a fundação de um mercado
sua postura paternalista de socorro às empresas comum, com olhos voltados a uma possível e
nacionais públicas e privadas, pois, do contrá- futura comunidade econômica.
rio, estará quebrando a harmonia comunitária. Assim para adiante do que uma zona de
O interesse econômico do Estado, assim, passa livre comércio, estabeleceu o art. 4º do Tratado
a ter um escopo que transpõe as fronteiras de Assunção que os
nacionais, devendo as regras de competição ser “(...) Estados-partes assegurarão
rigorosamente observadas. condições eqüitativas de comércio... e...
16
LIPOVETZKY, Jaime César, LIPOVETZKY,
3. Diferenças entre os blocos econômicos Daniel Andrés. Mercosul : estratégias para a inte-
O Brasil, enquanto membro do Mercosul, e gração. São Paulo : LTr, 1994. p. 41.
17
por enquanto, no plano externo do território, Ibidem, p. 40.
18
não vive a crise presenciada pela Comunidade Discutiam-se políticas conjuntas entre Brasil,
Européia. Argentina e Chile, todos então com regime militar
Tal situação brasileira, diga-se rapidamente, autoritário, enquanto os generais argentinos prepa-
ravam, hipoteticamente, modelos de defesa de uma
momentânea, de maior comodidade, se dá em eventual invasão brasileira naquele território. Fatica-
virtude da natureza mais restrita do tipo de mente, e na mesma época, um conflito militar de
bloco regional em que está incurso o Brasil, no grandes dimensões quase ocorreu entre Argentina e
caso, um Mercado Comum. Chile, na disputa dos territórios ao sul de ambos os
Genericamente, são conhecidas três moda- países. Não havia, em suma, vontade política inte-
lidades de bloco regional: a Zona de Livre grativa.
40 Revista de Informação Legislativa
paralelamente coordenarão suas respec- que se submetem as partes do conflito, conforme
tivas políticas nacionais, com o objeti- o Tratado de Assunção, é provisório, havendo
vo de elaborar normas comuns sobre sugestão doutrinária no sentido de que a expe-
competência comercial”. riência da Comunidade Européia seja levada
O art. 1º do Tratado toma como escopo da em conta, para a definição do sistema defini-
proteção de mercado, e garantia eqüitativa de tivo25. A propósito, em meados de setembro
concorrência, a coordenação de políticas eco- passado próximo, reuniram-se no Brasil estu-
nômicas globais e setoriais. O art. 5º, inciso diosos dos países-membros do Mercosul, para
“b”, por sua vez, indica a coordenação de polí- tratarem da criação mais célere do dito Tribunal
ticas macroeconômicas, ao passo que pelo Jurisdicional26.
inciso “c”, a fixação conjunta de tarifa externa Ao menos no que se refere ao Estado brasi-
comum, visando afastar prejuízo aos interesses leiro, encontram amparo constitucional seus
dos Estados-Membros ou aos objetivos do interlocutores junto ao Mercosul, para ampliar
Mercado Comum19. É notória, destarte, que a as instituições supranacionais, conforme o
natureza do Tratado de Assunção é de consti- parágrafo único do art. 4º da Carta Magna, que
tuição de um mercado, face às instituições assim determina:
supranacionais que desenvolve, sendo, portanto,
um projeto latino-americano de integração, mas “A República Federativa do Brasil
sem a mera conotação de agreement to agree buscará a integração econômica, política,
in the future20. social e cultural dos povos da América
De qualquer modo, caminha o Mercosul Latina, visando a formação de uma
para a ampliação de suas tarefas suprana- comunidade latino-americana de nações”
cionais, o que sugere um ingresso antecipado (grifo nosso).
no modelo da Comunidade Econômica. Fato Destaca-se estar insculpido tal comando cons-
evidente dessa nova realidade é a preocupação titucional dentre os princípios fundamentais da
dos países-membros com a criação de um Constituição brasileira, não sendo sem propó-
Tribunal Jurisdicional Supranacional. É que o sito o emprego da expressão “comunidade” em
Mercosul conta para a solução de seus litígios, seu texto.
e em última instância (art. 21 do Protocolo de Após aquele estágio do Mercado Comum,
Brasília), com um Tribunal Arbitral, de reco- surge a perspectiva da União ou Comunidade
nhecida competência e soberania pelos Estados- Econômica. Atinge-se essa fase, conforme
Membros, conforme o art. 8º daquele mesmo afirmam Jaime e Daniel Lipovetzky27 (renomados
protocolo (17 de dezembro de 1991). O sistema juristas argentinos), mediante a
arbitral21-22-23, e o voluntário anterior a este24, a “(...) coordenação afinada de setores da
19
LIPOVETZKY, LIPOVETZKY, op. cit., p. 43. exposição da controvérsia, recomendações para
20
SAMTLEBEN, Jürgen, SALOMÃO FILHO, solucioná-las (arts. 5º e 6º do Protocolo).
Calixto. Contratos internacionais. 2. ed. São Paulo : O Grupo do Mercado Comum é órgão executivo
Revista dos Tribunais, 1995. 303 p. p. 276: O mer- do Mercosul, coordenado pelos ministros das
cado comum sul- americano : uma análise jurídica relações exteriores do países-membros (art. 13, inc.
do Mercosul. I, do Tratado de Assunção).
21
O Tribunal Arbitral, para ser invocado, no 25
FERREIRA, Aldo Leão. Mercosul: comentá-
âmbito do Mercosul, prescinde de cláusula ou acordo rios sobre o Tratado de Assunção e o Protocolo de
arbitral anterior entre os litigantes (art. 8º do Proto- Brasília. Porto Alegre : Livraria do Advogado, 1994.
colo). p. 47.
22
O Tribunal Arbitral não possui sede fixa (art. 26
Reclamações de Particulares – Capítulo V do
15 do Protocolo), formando-se de maneira ad hoc, Protocolo de Brasília. Afeta a pessoas físicas ou
ou seja, não é permanente. jurídicas, por força de sanção ou aplicação, por qual-
23
O Tribunal Arbitral tem competência para quer dos Estados-Membros, de medidas legais ou
proferir decisões emergenciais – “medidas provisó- administrativas, discriminatórias ou de concorrência
rias” – para evitar danos graves e irreparáveis (art. desleal, de efeito restritivo ao Tratado de Assunção,
18 do Protocolo). dos acordos dele decorrentes, ou do Conselho do
24
Submetem-se as partes, primeiramente, às Mercado Comum (art. 25). Aplicável também no
negociações diretas. Frustradas, passa-se a questão caso de ofensa aos comandos dos art. 2º e 3º da Aladi
à análise do Grupo do Mercado Comum (art. 4º do (Ibidem, p. 53).
27
Protocolo). É sua tarefa formular, em trinta dias da LIPOVETZKY, LIPOVETZKY, op. cit., p. 56.
Brasília a. 34 n. 135 jul./set. 1997 41
economia que transcendem o tarifário, o territorial perdeu seu brilho, superada que foi
tributário, o mercantil propriamente dito, pela relação feudal de vassalagem29, empregada
para desembocar em tarefas tais como a palavra Estado para definir os estamentos do
os regimes de propriedade privada e reino, como o clero, a nobreza, a burguesia,
pública de posse de terra, monetários, etc30.
cambiais, financeiros e fiscais lato sensu.” Todavia, a concepção moderna de Estado é
Prosseguem os referidos autores, que passo uma impositiva história do poder territorial.
decisivo é a criação da moeda comum, primei- Afirma Martin Kriele que no “século XX o
ramente contábil ou escritural, e após de circu- princípio territorial é o fundamento da divisão
lação aberta. É este o atual retrato da Comuni- política do mundo”, sendo, por conseqüência,
dade Européia que, conforme entendo, e a partir todos os Estados do mundo Estados territo-
do Tratado de Masstricht (1991), está em vias riais31.
de superação da questão menor, nessa modali- Dessa maneira, verificam-se inúmeros
dade de bloco, mas indispensável dos aspectos conceitos de Estado, dos clássicos constitucio-
econômicos da unificação, em elevação do nalistas europeus, por exemplo Santi Romano,
resguardo internacional e valorização dos povos em sua obra Pricipii di Diritto Costituzionale,
envolvidos. que trata o Estado como “ordem jurídica terri-
É justamente a amplitude de abordagens torial soberana” ou, se dotado de personalidade
supranacionais do bloco que o retira da condi- jurídica, como “pessoa jurídica territorial
ção de mero mercado internacional. Acerca de soberana”. Ainda pelo entendimento italiano
tal ponto, dúvida alguma subsiste, face às clássico, a opinião de Agostino Sisto, concei-
dezessete comissões e vinte e três das mais tuando o Estado “como a organização política
variadas diretivas comunitárias que afastam do do povo vivendo em um território determinado,
aspecto econômico o núcleo da Comunidade entendendo por organização política o ordena-
Européia. mento do povo sob uma autoridade suprema”32.
Louis Le Fur, na França, conceituava o
Estado como sendo “um grupo de homens
4. O conceito de Estado estabelecidos sobre um território fixo e obede-
e o território nacional cendo a uma autoridade soberana, (...)”33.
Jellinek, na sua tradicional obra Teoria
Segundo ponto nuclear da presente expo- Geral do Estado, não foge à regra daquelas
sição, é a questão comparativa e comporta- opiniões, encarando o Estado como uma
mental do território nacional, enquanto corporação de homens sedentários dotada de
elemento fundamental do Estado, e as fronteiras um poder originário de dominação e fixada
externas, diante do fato irresistível da globa- sobre um território determinado34. Bem verdade
lização. que o clássico conceito de Jellinek encontra
Para levarmos adiante tal análise, necessária críticas, na medida em que sugere a idéia
a incursão quanto ao conceito de Estado e seu equivocada de que o território de um Estado
elemento territorial. estende-se a todo território em que se constate
O território sempre foi elemento decisivo um povo sedentário. Ou seja, privilegiaria a
para a configuração do Estado. Desde os gregos, conceituação de Jellinek uma fronteira natural,
através da concepção da polis, o Estado estava decorrente da influência cultural do povo que
relacionado e limitado ao seu enquadramento, habita certa região, em detrimento da fixação
dentro de certas extensões territoriais da política do território. Conceitos como aquele
Cidade-Estado, até a marcante concepção de conduzem a flagrantes disputas territoriais,
Maquiavel (século XVI), vista em O Príncipe, como se deu, por exemplo, na Europa, com a
ao consagrar a expressão relacionada aos 29
KRIELE, Martin. Introducción a la teoría del
domínios de império sobre o homem28. Estado. Buenos Aires : Depalma, 1980. p. 123.
Bem verdade que na Idade Média a questão 30
FERREIRA, P. op. cit., p. 95.
28
FERREIRA, Pinto. Teoria geral do estado. 3. 31
KRIELE, M. op. cit., p. 123.
ed. São Paulo : Saraiva, 1975. v. 3, p. 96. Pafrase- 32
FERREIRA, P. op. cit., p. 97-98.
ando Maquiavel: “Todos os Estados, todos os domí- 33
nios que tiveram e têm império sobre o homem, Ibidem.
34
foram e são ou repúblicas ou principados”. Ibidem.
42 Revista de Informação Legislativa
região da Alsacia, incorporada à Alemanha em e posteriormente do francês, após a Revolução
1871, à França em 1918, após novamente à de 1789. Tanto a propriedade privada, como
Alemanha em 1940, e finalmente retornando à bem supremo do homem, associada à sobera-
França em 1945. A iminência de conflito nia, enquanto renúncia ou antítese à liberdade,
armado em tais casos é sempre presente. da mesma forma sumo bem do homem, são
Opinião resumida de Pinto Ferreira indica conquistas do mais puro liberalismo.
a constatação moderna de Estado, quando Entretanto, e como visto a linhas passadas,
reunidos os elementos da associação humana, o Estado liberal é letra morta nos países demo-
fixada sobre um território determinado e dotada cráticos do Ocidente, tendo cedido espaço ao
de soberania35. Particularmente, pela visão Estado social após a Carta de Weimar.
clássica, seria o território um de seus elementos Não entendo possível, dessa forma, que ante
constitutivos36. Por tal razão, desde 1822, a guinada quanto a orientação ideológica do
declarando-se independente e soberano o Estado moderno, faça ele ainda uso dos mesmos
Estado brasileiro, fez-se senhor de mais de oito elementos constitutivos clássicos, quais sejam:
milhões e meio de quilômetros quadrados, território, soberania e povo.
mantendo-se assim até a presente Constituição Impositiva, dessa maneira, faz-se a mudança
da República 37. A atual Carta portuguesa de seus fundamentos, para podermos inclusive
também não deixa dúvidas quanto à impor- tê-lo enquanto Estado frente ao fenômeno da
tância que dispensa ao elemento territorial, no globalização, em que as fronteiras já não são
histórico quadro geográfico europeu e de além- tão nítidas e a soberania de relativo império.
mar, conforme art. 5º, nos 1, 2 e 4 da Cons- Sem resposta pronta para essa problemática,
tituição. pois, ao menos quanto Mercosul, somente
Nesta ordem, surgem, agregados, os ele- demos a arrancada para a formação de uma
mentos do território com o da soberania do comunidade, em que tais complicações
Estado, pois é naquele espaço “(...) dentro do fazem-se presentes, caberia aqui deixar, talvez,
qual o Estado exerce de modo efetivo e a lembrança de duas teorias que caracterizam
exclusivo o poder de império sobre pessoas e o Estado não pelos seus elementos clássicos,
bens”38, que se dá sua potestatividade de modo mas sim por outras variantes teóricas igual-
pleno e irrestrito. mente válidas. Refiro-me à escola de Viena,
A questão que atualmente me ocorre, é a de capitaneada por Hans Kelsen e seus seguidores
se saber se estariam os constitucionalistas ainda Verdross e Kunz, e mesma à escola empírica
autorizados a tomar os clássicos elementos do ou realista, de quem é adepto Leon Duguit.
território e da soberania, como fundamentais Pela primeira (escola de Viena), apropria-
para a caracterização de um Estado que se diz díssima sua opinião quanto à discussão em tela,
ter superado o liberalismo clássico. pois invoca a supremacia do Direito Interna-
Explico-me. É que o território, enquanto cional Público (e é justamente disso que ora
pano de fundo para o desempenho da potesta- tratamos), sobre o Direito Constitucional,
tividade do Estado, conforme leciona Paolo di levando em conta a superioridade da ordem
Ruffia, “encontra seu exercício em direito real jurídica internacional, face à vontade de seus
de caráter público (semelhante ao direito de Estados-membros. Sustenta Kelsen tal preva-
propriedade no campo do direito privado)” 39, lência da ordem internacional, tanto na sua
ao passo que as soberanias, seja a interna, ou Teoria Geral do Estado, quanto na Teoria Pura
do governante, seja a externa, ou da nação, do Direito, seguindo na mesma ordem Kunz e
foram forjadas no berço do liberalismo inglês Verdross. Segundo tal corrente de pensamento,
o Estado assim se caracteriza pela constatação
35
Ibidem. da imediatidade de sujeição ao direito das
36
BISCARETTI DI RUFFÍA, Paolo. Derecho gentes e uma autonomia constitucional. Veri-
constitucional. 2. ed. Madrid : Tecnos, 1982. p. 109. ficados esses dois elementos, configuraria-se
37
um Estado40.
A federação veio em 1889, com a proclamação
da República. Por outro lado, o realismo ou empirismo
38
toma como parâmetro a verificação de um
SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Estado, conforme opina Radomir Lukic (lente
Constitucional positivo. 6. ed. São Paulo : Revista da Universidade de Belgrado) a reunião de duas
dos Tribunais, 1990. p. 87.
39 40
BISCARETTI DI RUFFÍA, op. cit., p. 110. FERREIRA, P. op. cit., p. 99.
Brasília a. 34 n. 135 jul./set. 1997 43
organizações profundamente distintas: a orga- O Estado, mesmo frente a toda complexi-
nização da classe dirigente e a organização dade da globalização, há de resistir, sendo tarefa
social geral. A primeira, protegida e detentora dos juristas encontrar novos parâmetros
do poder de coação física, sem o qual não fundamentais que não aqueles classicamente
poderia atingir a seus fins, e a segunda, divor- empregados
ciada de qualquer poder coativo, cuja realização O recurso a antigas e novas concepções de
se dá mediante atividade central coordenada, uma teoria geral do Estado, é somente um dos
ao nível econômico, educacional, cultural e mecanismos para se dizer que a atual relativa
outros 41 . As duas organizações estariam
umbricamente ligadas, relacionando-se por um importância de uma fronteira externa não é
liame hierárquico que seria o Estado42. Duguit sinal de desaparecimento dos Estados-membros
destaca a existência de um Estado, sempre que de um bloco econômico ou comunitário. Talvez,
verificado um poder de coação, imposto por e isso sim, o valor regional de um país e seus
uma classe de governantes sobre outra de limites territoriais, em uma escala axiológica,
governados. Enfim, o termo Estado se vincula não seja, hodiernamente, tão significativo como
à autoridade governamental, ou ao poder polí- fora outrora, devendo tal elemento constitutivo
tico de governo43. do Estado moderno ser repensado.
Percebe-se, assim, que necessariamente não
recorrem os autores, por fim citados, aos clás-
sicos elementos do Estado para defini-lo, não Encerramento
obstante ser certo que a relação de poder entre São essas as singelas palavras de um priva-
governante e governados decorrer da soberania tista, consciente de que a solidariedade entre
do primeiro. os povos não se dá mediante a discussão de um
contrato nacional ou internacional, por meio
5. Conclusão da disputa mesquinha de um punhado de terra
ou quinhão de herança, não resistindo, em
É certo que o conceito de Estado vem de última análise, à magnitude do Direito Consti-
uma evolução cambiante, sendo imprescindível tucional, na esperança de um dia encontrar um
ao estudioso enfocá-lo em relação a um parâ- mundo mais equânime e homogêneo, enfim,
metro histórico atual. um mundo mais Comunitário.

41
LUKIC, Radomir. Théorie de l’état et du droit.
Paris : Dalloz, 1974. p. 184.
42
Ibidem.
43
Ibidem.
44 Revista de Informação Legislativa

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