Escolar Documentos
Profissional Documentos
Cultura Documentos
ISSN 2179-7374
Sérgio Nesteriuk3
Resumo
O cinema se utiliza de diversas formas de linguagem para compor a sua própria maneira de se
expressar, e o design gráfico pode ser entendido como uma dessas formas. Desde as primeiras
manifestações do “cinema mudo” pode-se identificar a presença de elementos gráficos (textos,
“cartelas” e ilustrações) inseridos na montagem. A proposta deste artigo é entender como o
design gráfico colabora para a linguagem do cinema e identificar as potencialidades que o
movimento pode acrescentar às composições gráficas. Isso será feito por meio de uma
contextualização seguida das análises dos créditos de abertura dos filmes: The man with the
golden arm (Otto Preminger, 1955) e Psycho (Alfred Hitchcock, 1960), ambos criados pelo
designer gráfico Saul Bass.
Palavras-chave: Design; design gráfico; cinema; motion design; créditos de abertura;
Saul Bass.
Abstract
The cinema uses different forms of language to compose its own way of expression, and graphic
design can be one of these ways. Since the first manifestations of the “silent cinema” it is
possible to identify the presence of graphic design elements (texts, “title cards” and illustrations)
embedded in the assembly. The purpose of this article is to understand how the graphic design
contributes to the language of cinema and recognize the motion capability to add information to
graphic compositions. This will be done through the analysis of the following movies open titles:
The man with the golden arm (Otto Preminger, 1955) and Psycho (Alfred Hitchcock, 1960), both
created by graphic designer Saul Bass.
Keywords: Design; graphic design; motion design; open titles; Saul Bass.
1. Introdução
Nas primeiras produções com imagem em movimento, a linguagem cinematográfica era
muito diferente do que entendemos por cinema hoje. Machado (1997, p. 76 - 79)
aponta que as primeiras projeções reuniam várias modalidades de espetáculos, que se
originaram das formas populares de cultura da época: circo, carnaval, mágica,
pantomima, feira de atrações, vaudevilles, etc. Até os primeiros dez anos de existência,
o cinema ainda não havia desenvolvido um conjunto de procedimentos e técnicas de
linguagem apropriado para o desenvolvimento de uma narrativa visual autônoma. Dessa
forma, muitas vezes era necessária a presença de um apresentador in loco que
“explicava” o que se passava no filme.
Aos poucos os cineastas foram desenvolvendo técnicas que foram moldando a
narrativa visual como a conhecemos hoje. Uma das tentativas de tornar a mensagem
audiovisual autônoma foram as “cartelas”, que eram composições estáticas filmadas ou
desenhadas diretamente na película e inseridas na montagem com o objetivo de
contextualizar o espectador em uma determinada situação, que somente as imagens
não conseguiam fazer, como Bernardet (1980) comenta:
O filme era uma sucessão de “quadros”, entrecortados por letreiros
que apresentavam diálogos e davam outras informações que a tosca
linguagem cinematográfica não conseguia fornecer. (BERNARDET,
1980, p.32)
Não só a “gramática audiovisual” ainda não estava consolidada, como também
seu público ainda não estava “alfabetizado”, por assim dizer. Convenções utilizadas para
deslocamentos de tempo e espaço, como fades e cortes de câmera, por exemplo, nem
sempre eram entendidas dessa forma pelo público espectador. Assim, recursos como a
presença de apresentadores ou cartelas também eram pensados pelos diretores como
uma forma de melhor garantir o entendimento do enredo – ainda que, em alguns casos,
pudesse acarretar em certa redundância (Machado, 1997).
Essas cartelas continham informações textuais de diálogos, passagens de tempo,
avisos, entre outros. Nas composições de textos feitas à mão ou impressas em offset
existia uma preocupação com o desenho das letras e com a composição dos elementos,
assim pode-se afirmar que nessas produções cinematográficas existia uma aplicação de
elementos caros ao design gráfico.
Um cineasta que pode ser considerado pioneiro no uso das cartelas foi D.W.
Griffith, que no filme Intolerance (1916) as usou como componentes significantes na
história. As cartelas continham uma composição de letras brancas em fundo preto ou
eram até mesmo aplicadas diretamente sobre as imagens filmadas – na época eram
utilizados dezesseis fotogramas para o registro e posterior reprodução de um segundo
de imagens em movimento (Figura 1, 2 e 3).
337
ISSN 2179-7374
Ano 2015 – V. 19 – No. 03
Figura 1: Fotograma com Textos Inseridos em Fundo Preto com o Nome do Filme, Diretor e
Produtora.
Figura 3: Fotograma com Textos Inseridos em Fundo Desfocado com Descrição da Cena
Também com Letras Brancas.
339
ISSN 2179-7374
Ano 2015 – V. 19 – No. 03
4 The mechanics of reading written and printed texts function according to the recognition of word to which
meanings have been applied by cultural convention. This level of perception goes beyond simply recognizing
the shape generated through the succession of single, two-dimensional letterform. One is related to the
idea represented by the word itself, constructed from a string of letters – the word-image – and other from
its holistic visual manifestation – the typographic image.
340
ISSN 2179-7374
Ano 2015 – V. 19 – No. 03
Figura 5: Fotograma com a Frase Too Much T.V. Projetada No Casal De Personagens Mickey e
Mallory.
341
ISSN 2179-7374
Ano 2015 – V. 19 – No. 03
Figura 7: Fotograma dos créditos de abertura do filme The thing from another world
Fonte: The thing from another world, 1951, direção: Christian Nyby e Howard Hawks
Dessa forma, podemos entender que o cinema não é uma linguagem pura, pois
da mesma forma que se beneficia de outras linguagens e formas expressivas da
contemporaneidade, acaba também por influenciar e mesmo ser incorporado por estas
– em uma relação dialógica com a cultura, a sociedade e seu espírito de época. A
animação, a música, a literatura e o design, por exemplo, influenciaram (e ainda
influenciam) muito o cinema, mas também se transformaram por influência do cinema.
342
ISSN 2179-7374
Ano 2015 – V. 19 – No. 03
tendo como professor Gyorgy Kepes, um dos fundadores da Bauhaus. Aos vinte e seis
anos mudou-se para Los Angeles, onde começou a trabalhar com publicidade para
entretenimento. Em 1954, Bass criou a abertura do filme Carmen, de Otto Preminger,
seu primeiro projeto para o cinema5.
Já em seu próprio escritório, aberto em 1955, Bass criou um de seus trabalhos
mais famosos, o pôster e a abertura do filme The man with the golden arm (1955), do
diretor Otto Preminger (figura 8). Junto com Preminger, Bass realizou um total de onze
aberturas para seus filmes.
Figura 8: Poster do Filme The Man With The Golden Arm (1955)
5Nesta, assim como em outras obras, Bass também foi responsável pelos pôsteres de divulgação dos filmes.
Essa produção gráfica representou uma mudança no paradigma dos pôsteres usados até então no cinema,
que normalmente enfatizavam os atores ou uma cena do próprio filme. Ao trabalhar com a simplificação e a
abstração de elementos-chave da obra, Bass mantinha a coerência e articulação com a identidade visual do
projeto. Entre os trabalhos mais conhecidos podemos citar: The man with the golden arm, (Otto Preminger,
1955), Vertigo (Alfred Hitchcock, 1958), Shinning (Stanley Kubrick, 1980) e Schindler´s list (Steven Spilberg,
1993), além da 63º festa de entrega do Oscar, em 1991. Todavia, esta produção de pôsteres encontra-se
além do escopo do presente artigo.
343
ISSN 2179-7374
Ano 2015 – V. 19 – No. 03
6 A palavra em inglês “title”, nesse contexto, se refere ao trecho inicial de uma produção cinematográfica
em que são inseridos o título do filme e os nomes dos profissionais envolvidos. Em português será utilizado
o termo “crédito de abertura”.
7 [...] I began thinking about what to do at the beginning of a film. Obviously, the point of any title is to
support the film. [...] My initial thoughts about what a title could do was to set mood and to prime the
underlying core of the film's story; to express the story in some metaphorical way. I saw the title as a way of
conditioning the audience, so that when the film actually began, viewers would already have an emotional
resonance with it.
344
ISSN 2179-7374
Ano 2015 – V. 19 – No. 03
uma tela preta, que só tinham uma ligação com o filme de maneira informativa. Já as
aberturas de Bass também tinham uma ligação visual e narrativa com o filme. A partir
daí os textos deixaram de ter a única função de nomear pessoas ou coisas e, somados à
música e outros elementos gráficos, ganharam movimento, diagramações originais e
passaram a assumir outros significados.
Com essas inovações, Bass mudou o modo de se perceber a abertura de um
filme. Os créditos do início deixaram de ser simples textos sem importância para a
trama, pois nesse novo formato os créditos são apresentados como parte integrante da
narrativa. Os textos são organizados no quadro de forma a transmitir uma mensagem
não só informativa, mas visualmente elaborada.
Foram aqui selecionadas duas aberturas de filmes feitas por Bass que dialogam
visualmente e que são mais recorrentes em textos sobre o designer: The man witn the
golden arm (Otto Preminger, 1955) e Psycho (Alfred Hitchcok, 1960).
O objetivo da análise destas aberturas não é identificar o significado das
composições, muito menos descobrir as possíveis intenções do designer no momento da
criação. A proposta é identificar como o design gráfico colabora para a construção da
mensagem audiovisual e identificar as potencialidades que o movimento pode
acrescentar às composições gráficas, além de buscar possíveis relações com outras
produções de design gráfico contemporâneas aos filmes analisados. Para melhor
entendimento desta análise, recomenda-se assistir às aberturas na íntegra por meio dos
links disponibilizados nas referências deste artigo.
345
ISSN 2179-7374
Ano 2015 – V. 19 – No. 03
347
ISSN 2179-7374
Ano 2015 – V. 19 – No. 03
A ligação entre uma composição e outra durante toda a abertura é feita pela
permanência de um dos retângulos no quadro ou pelo movimento dele (“cortina”). Logo
no início surgem quatro retângulos que entram pela parte superior do quadro, junto
com o nome dos atores principais que surgem em “fade in”9, formando a primeira
composição da abertura. Depois, três dos retângulos saem em “fade out”8, sendo que
um deles permanece em quadro para fazer parte da próxima composição com outros
três novos retângulos que entram cada um de um lado do quadro. Novamente, um dos
retângulos permanece e em seguida se move para formar outra composição. E assim
sucessivamente até o final da abertura, quando quatro retângulos se unem e formam
um braço estilizado, imagem essa que faz referencia à personagem principal, pois se
trata de um viciado em heroína (droga normalmente injetada na veia dos braços) e que
toca bateria (instrumento musical tocado majoritariamente com os mesmos braços).
Figura 10: Fotogramas da Abertura do Filme The Man With The Golden Arm.
Fonte: The man with the golden arm, 1955, direção Otto Preminger
349
ISSN 2179-7374
Ano 2015 – V. 19 – No. 03
O contraste dos elementos gráficos nesta abertura é obtido por três formas
distintas, mas complementares: primeiro, pelas cores dos elementos brancos, cinza e
preto (luminância); segundo, pela forma e posicionamento dos elementos gráficos no
quadro; e terceiro, pelo movimento deles.
O movimento, assim como na abertura de The man with the golden arm, serve
como elemento de transição entre uma composição e outra. Os retângulos cinza ora
cruzam o quadro “trazendo” um novo texto, ora surgem do meio do quadro, como se
separassem o texto que está escrito. Esses movimentos dos elementos gráficos, na
maioria das vezes, possuem sentido e direção contrários uns aos outros, ou seja, são
contrastantes. Os retângulos ora surgem todos do mesmo lado do quadro, ora alguns de
um lado e outros do outro, apresentando também movimentos contrários. E mesmo
quando surgem do mesmo lado, eles não estão alinhados. Além disso, os retângulos
apresentam sempre alguma irregularidade, como tamanhos diferentes, por exemplo.
Outra característica interessante do movimento dos elementos é a velocidade,
representada por uma distância percorrida em um determinado intervalo de tempo.
Alguns retângulos cruzam o quadro e revelam o próximo texto em menos de três
segundos, configurando assim uma passagem rápida pelo quadro – enquanto outros
levam um intervalo de tempo perceptivelmente maior.
O movimento contrário dos retângulos também pode ser entendido como uma
representação dos desvios da mente da personagem principal da trama. Já a velocidade
deles pode indicar uma perseguição, como se estivessem sempre fugindo de alguma
coisa, outra possível relação com o enredo do filme (a vítima acaba se hospedando no
hotel do assassino, porque está fugindo de sua cidade). Outra referência que pode ser
citada é a configuração irregular dos retângulos, que evocam a silhueta de uma cidade
com seus arranha-céus, lugar onde começa a trama do filme.
Todas essas possíveis analogias são ilustrativas, pois se configuram de forma
diferente para cara espectador. Todavia, independentemente de seu caráter imaginário
ou simbólico, a utilização do movimento agregou um significado potencial além daquele
associado à forma e à cor dos elementos, sendo assim outro elemento relevante na
transmissão da mensagem.
3. Considerações Finais
Após analisar às aberturas dos filmes The man with the golden arm (1955) e Psycho
(1960), produzidas por Saul Bass, foi possível determinar que as variáveis “tempo” e
“movimento” presentes no cinema ampliaram as possibilidades interpretativas dos
elementos gráficos presentes nos créditos de abertura de um filme. Nessas aberturas,
textos e formas geométricas estimulam percepções através de suas formas, cores,
posicionamentos e tamanhos, gerando contrastes, equilíbrios e desequilíbrios. A partir
do momento que esses elementos tornam-se animados, todas essas características
compositivas são potencializadas: uma mesma composição pode variar, em alguns
segundos, entre equilibrada e desequilibrada simplesmente com a aplicação do
movimento de seus elementos e associação a determinado som ou sequência musical.
Além dessas características, foi possível também identificar uma aproximação
com produções da Bauhaus e, sobretudo, do movimento holandês De Stijl, que tem
como princípio básico a busca pela harmonia pela geometria das formas e pelo
abstracionismo responsável por libertar a imagem de uma função mimética ou da busca
350
ISSN 2179-7374
Ano 2015 – V. 19 – No. 03
Referências
BELLANTONI, Jeff & WOOLMAN, Matt. Type in Motion. New York: Rizzoli, 1999.
BERNARDET, Jean-Claude. O que é Cinema. São Paulo: Brasiliense, 1980.
CARRIÈRE, Jean-Claude. A Linguagem Secreta do Cinema. Rio de Janeiro: Nova
Fronteira, 1994.
DELEUZE, Gilles. Cinema 1 – A imagem-movimento. São Paulo: Brasiliense, 1985.
DONDIS, Donis A. Sintaxe da Linguagem Visual. São Paulo: Martins Fontes, 1997.
ECO, Umberto, A Estrutura Ausente. São Paulo: Perspectiva, 1997.
EISEINSTEIN, S. O Sentido do Filme. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2002.
FARIAS, Priscila. Tipografia digital: o impacto das novas tecnologias. 1. ed. Rio de
Janeiro: 2ab Editora, 1998. v. 1. 112p
HASKIN, Pamela, Bass Saul. “Can you make a title?”: Interview with Saul Bass. Film
Quaterly. 1996.
MACHADO, Arlindo. Pré-cinemas & pós-cinemas. Campinas, SP: Papirus, 1997.
Filmografia
Intolerance. Intolerância. dir. D. W. Griffith. Estados Unidos. 1916. (163 min).
King Kong. King Kong. dir. Merian C. Cooper e Ernest B. Schoedsack. Estados Unidos.
1933. (100 min).
Natural born killers. Assassinos por natureza. Dir. Oliver Stone. Estados Unidos. 1994.
DVD (121 min).
Psycho. Psicose. dir. Alfred Hitchcock. Estados Unidos. 1960. DVD (109 min).
The man with the golden arm. O homem do braço de ouro. dir. Otto Preminger. Estados
Unidos. 1955. DVD (119 min).
The thing from another world. O monstro do ártico. dir. Christian Nyby e Howard
Hawks. Estados Unidos. 1951. (87 min).
351
ISSN 2179-7374
Ano 2015 – V. 19 – No. 03
Internet
créditos de abertura do filme The man with the golden arm (1955)
https://www.youtube.com/watch?v=sS76whmt5Yc
352