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Adolescência e Conflitualidade, 2010 2(2): 01-11

A violência na sociedade brasileira.


Juventude e delinqüência como
problemas sociais1.

Sérgio Adorno 1

1. Introdução

Desde que a violência e o crime se tornaram questão


pública, nesta sociedade, são freqüentes as imagens e
representações, veiculadas pela mídia impressa e eletrônica e,
mais recentemente, pela filmografia nacional, que associam ser
jovem a ser violento. É como se houvesse uma espécie de
aderência natural entre ambos os termos desta equação. Ser
jovem aparece como uma ameaça, como uma espécie de
radicalidade incontornável, um limite epistemológico à vida
1 Professor Titular do razoável, seja lá o que isso possa ou venha significar.
Departamento de Sociologia
(FFLCH-USP). Coordenador do Como demonstrado por estudos nos domínios das
Núcleo de Estudos da Violência ciências sociais, infância, adolescência e juventude não são
(NEV-USP), Coordenador do exclusivamente etapas naturais da existência humana. Desde o
INCT-CNPq Violência, Democracia clássico estudo de Ariès, sabe-se que ser criança nas sociedades
e Segurança Cidadã e medievais difere do ser criança na sociedade moderna, o que
Coordenador da Cátedra UNESCO dirá mais de ser criança ou adolescente na contemporaneidade.
Educação para a Paz, Direitos Ariès deixou entrever, em seus estudos, que a criança nas
Humanos, Democracia e sociedades medievais pareciam não ter história, já que estavam
Tolerância, sediada na USP. completamente submersas no mundo adulto. A sociedade
moderna, ao contrário, teria autonomizado a criança e o
adolescente, concebidos como seres portadores de vontade
própria, capazes de se expressarem por linguagens singulares
seus desejos, seus prazeres, suas leituras do mundo circundante.
Ainda que a tese de Ariès venha sendo revisada por meio de
estudos recentes, não há como deixar de reconhecer as
Autor para correspondência: dimensões sociais e culturais que atravessam essas etapas da
sadorno@usp.br existência humana, inclusive distinguindo as vivências infantis
Endereço postal: Av. Professor das vivências de adolescentes e jovens adultos, estas últimas
Lúcio Martins Rodrigues.
Travessa 4 - Bloco 2 - Cidade
Universitária - CEP 05508-020
São Paulo - SP - Brasil 1
Palestra proferida como aula introdutória no programa de mestrado
profissional “Adolescente em conflito com a lei”, da Universidade
Bandeirantes (UNIBAN), em 14 de agosto de 2009. Embora autorizado para
publicação, não pôde ser revisto pelo autor até a data de publicação.

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entendidas como etapas liminares, de transição para a vida adulta.

Em nossa etapa contemporânea, essas vivências liminares ou


de transição têm sido repertoriadas nas conversas cotidianas, nos
discursos profissionais, no debate público, nas academias como
problemáticas, porque caracterizadas por uma sorte de non-sense.
Desde a invenção da modernidade, jovens foram vistos como vetores
de inovação e de transformação social, nos mais distintos campos da
existência humana, entre os quais, mercado, ciência e tecnologia,
participação social e política e sobretudo no domínio das artes em
geral. No campo da política e da cultura, as imagens dos jovens
gritando palavras de ordem contra o status quo e clamando por mais
liberdade e justiça, liderando revoluções e movimentos de libertação
nacional e de lutas contra toda sorte de opressões, inclusive culturais e
sexuais, estiveram presentes da Revolução Francesa, à resistência
contra a ocupação Nazi e contra totalitarismos de toda espécie, às
revoltas descolonizadoras da América Latina, da África e da Ásia, ao
maio de 68 na França, à oposição contra a Guerra do Vietnã, ao
Woodstook. Mesmo em Rebel Without a Cause (1955), que
imortalizou o ator James Dean na figura de um transgressor em
potencial, seu comportamento, incompreensível para os padrões de
sua época, traduzia antes de tudo uma profunda crítica ao
conservadorismo e puritanismo de que se encontrava imersa a
sociedade americana saída da vitoriosa campanha americana na
segunda grande guerra.

Nesse contexto, os jovens – particularmente adolescentes –


sofrem como que um processo de requalificação. De seres tutelados,
ganham autonomia. São capazes, por conta própria e movidos por uma
lógica social própria à sua geração, de intervir nos rumos da
contemporaneidade. Lado a lado às imagens positivas associadas ao
mercado e ao desempenho profissional – entre as quais, voracidade,
rapidez em consonância com o ritmo frenético das sociedades pós-
industriais, inteligência e sagacidade –, emergem igualmente imagens
negativas que os associam ao perigo e à insegurança, imagens
representadas pelo envolvimento passional nas causas religiosas,
étnicas e éticas; pela precocidade com que se autonomizam dos
controles tradicionais, constituem e desfazem elos afetivos e sexuais
com uma naturalidade antes desconhecida; envolvem-se com tudo
aquilo que remete ao perigo: esportes violentos, gangues, uso e tráfico
de drogas, crime violento e organizado. Não sem motivos, mudou e
vem mudando substantivamente a presença desses jovens na literatura
especializada em desvio, crime e divergência.

Essas imagens tornam-se cada vez mais acentuadas quando as


armas nas mãos de jovens não mais estão a serviço de virtudes cívicas,
porém, em sentido resolutamente contrário, se prestam à interrupção
da comunicação entre atores sociais. As imagens de jovens cada vez
mais ousados e violentos comparecem ao centro da cena, concorrendo
com as imagens de sucesso no mercado, na profissão, no consumo, na
vida amorosa e sexual. Ao que tudo indica, a violência que parece ser

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uma linguagem própria da sociedade contemporânea encontra nos


jovens seus mais fiéis porta-vozes. O que isto pode significar ainda
permanece um enigma a ser decifrado por cientistas sociais, artistas e
críticos de arte. O certo é que o comportamento transgressor não mais
é lido pela opinião pública informada com tolerância e
condescendência, porém com recriminação e forte recusa.

2. Considerações históricas

A sociedade brasileira é tributária desse movimento de


inversão das representações sociais, embora a associação entre
juventude, crime e pobreza tenha longa história nesta sociedade. A
presença de crianças trabalhando e/ou vivendo nas ruas não é recente,
como muitas vezes se possa pensar. Desde o período colonial,
registros históricos anotam hábitos cotidianos através dos quais
adultos abandonavam crianças pobres, muitas das quais órfãs de seus
pais, ou as enjeitavam nas rodas mantidas pela filantropia caritativa,
em especial as Santas Casas de Misericórdia (Adorno, 1991). A
sociedade nacional independente sob a égide do Império (1821-1989)
não parece ter alterado esse quadro. Ao longo de todo o período, são
mais ou menos freqüentes preocupações para com o destino dessas
crianças e adolescentes internadas nas instituições de benemerência e
caridade. Entre as preocupações, falava-se com insistência na
vagabundagem e mendicância como “vícios” a serem corrigidos.
Devia-se evitar o tanto quanto possível a deriva – quase certa, assim
se acreditava – para a delinqüência e para o crime.

Ao longo da primeira metade do século XX, a presença no


Brasil de importantes missões estrangeiras (norte-americanas e
européias), muitas das quais de origem religiosa, buscou, entre outros
objetivos, promover a infância pobre como celeiro de virtude moral.
Pretendia-se, seja através da difusão do bem-estar ou da difusão de
uma espécie de “socialismo filantrópico” – meios através dos quais se
cuidava de proporcionar alguma assistência e mesmo certa
distribuição de justiça social a alguns segmentos pobres e carentes das
populações urbanas que começavam a se avolumar em grandes
centros como Rio de Janeiro e São Paulo por força das rápidas
mudanças no mercado urbano de trabalho.

No final da década de 1920, no bojo desse conjunto de


acontecimentos, moderniza-se o tratamento conferido à infância e à
adolescência pobres. A criança pobre é convertida em “menor”
(Correa, 1999), inscreve-se na ordem jurídica como ser tutelado,
reduzido, dependente das iniciativas da sociedade adultocêntrica no
campo do pátrio poder, da assistência filantrópica e do controle social,
princípio que viria a ser concretizado com a edição do Código de
Menores (1927). Mais do que repressão aos vícios constituídos em
torno da mendicância, da vagabundagem, dos pequenos delitos,
tratava-se agora de recuperar o “menor” para a vida adulta digna,

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fundada na aceitação de um lugar na ordem social, determinado pela


sociedade de trabalho que se edificava no Brasil. Não que se tenham
abandonado por completo políticas de contenção da delinqüência
juvenil. Ao contrário, a restrição à liberdade sempre consistiu de
recurso à mão das autoridades dispostas a empregá-lo mesmo nas
situações de menor gravidade ou de menor perigo à ordem pública.
Contudo, o princípio da restrição à liberdade estava agora integrado
em um sistema de “proteção ao menor”. Vale dizer, retirá-lo das ruas
e, portanto, da circulação pública e livre significava submetê-lo a um
“tratamento” cujos eixos principais repousavam na escolarização e
profissionalização.

Esta estratégia político-institucional parece ter surtido seus


efeitos. Entre fins da década de 1930 e início e o curso dos anos 1960,
parecem ter se arrefecido as inquietações públicas e coletivas para
com o problema do “menor”. Elas não abandonam completamente o
espaço público, porém se convertem, na maior parte das vezes, em
problemas pertinentes aos especialistas, pouco interessando públicos
mais amplos. Na imprensa periódica, vez ou outra, o assunto é
veiculado. Porém, não desperta muita atenção, não suscita grandes
alardes, é mesmo tratado como curiosidade, como um problema
particular de alguns “menores” desprovidos de família e, por
conseguinte, carentes da “boa educação” que poderia torná-los seres
aptos para o convívio social em uma sociedade socialmente percebida
como pacificada.

No final da década de 1960, no bojo das mudanças sociais que


se processavam na sociedade brasileira e da ruptura institucional
proporcionada pelo golpe de estado (1964) ao qual se seguiu a
instauração da ditadura política (1964-1985), as percepções algo
pacificadas da presença de crianças e adolescentes – o “menor” – no
mundo do crime e da violência começam a sofrer uma inflexão
considerável, culminando no início da década de 1970 com a
formulação de uma política nacional de bem-estar do menor, na
origem da qual foram construídas em praticamente todo o país as
chamadas Fundações Estaduais do Menor – FEBEMs.

Portanto, desde o início da década de 1970, ao menos nas


grandes cidades brasileiras, a existência de crianças e de adolescentes,
vagando pelas ruas, mendigando, vigiando veículos estacionados nas
ruas, vendendo balas e doces junto aos semáforos, via de regra em
troca de pequenas somas de dinheiro, vem sendo percebida como
problema social, objeto de debate público. Pouco a pouco, uma
opinião pública inquieta, certamente influenciada pelo impacto que o
rápido crescimento da criminalidade urbana violenta exerceu e vem
exercendo sobre o comportamento coletivo, passa a suspeitar de um
envolvimento crescente e inexorável desses jovens com o crime,
principalmente daqueles procedentes dos setores mais pauperizados
das classes trabalhadoras.

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O quanto estas imagens, que circulam entre distintas falas


sociais, se sustentam em fatos “objetivos” é matéria certamente
controversa. Certo ou não, mudou o modo de perceber as associações
entre os jovens e o mundo do crime e da violência. As imagens
anteriormente associadas a individualidades exacerbadas, carentes de
respeito e obediência às regras morais e sociais dominantes na
sociedade em momento determinado de sua história, cedem lugar a
associações mais abstratas com as idéias de perigo, risco e
insegurança sociais que povoam o imaginário popular de múltiplos
segmentos sociais, ainda que sob acentos muitas vezes mais
dramáticos entre uns do que entre outros.

No contexto atual, convém mencionar:

a) transição democrática e luta pela afirmação de direitos. O


ECA (virtudes e o debate sobre a reforma);

b) debate a respeito da redução da maioridade penal;

c) debate sobre o “encarceramento” nas instituições de


contenção e controle social.

3. Adolescência como problema social: a construção de saberes


“científicos”

Conforme apontam inúmeras análises históricas e sociológicas,


a emergência da adolescência – seja como acontecimento no interior
dos saberes, inclusive científico, seja como acontecimento que
perturba o cotidiano das relações intersubjetivas entre pais e filhos,
entre parentes e pessoas conhecidas – resulta de complexos processos
de mudança social. Em parte tem a ver com mudanças que incidiram
na estrutura e organização da família enquanto instituição civil,
motivada sobretudo pelas novas formas de inserção de seus membros -
pai, mãe e filhos - no mundo do trabalho urbano industrial (Perrot,
1994). Em grande parte tem a ver também com a progressiva
universalização do acesso à escola básica, especialmente pública,
estimulando a criação de novos padrões de necessidades sociais
(Caron, 1996). Ademais, o acentuado desenvolvimento do
individualismo filosófico, político, religioso exerceu igualmente seu
peso e influência. Em fins da primeira metade do século XIX europeu,
esse conjunto de mudanças acabou promovendo certo isolamento da
família. Internamente, diferenciaram-se suas esferas íntima,
doméstica, privada e pública, repercutindo na proximidade e na
distância, no adensamento e na formalidade das relações
intrafamiliares (Perrot, 1997).

É também neste contexto discursivo e de fatos sociais que a


adolescência é construída como problema e, enquanto tal, fonte de
preocupações e inquietações sociais. Por um lado, enfoca-se o

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adolescente como objeto de atenção especial e especializada:


restringem-se lhes as horas de trabalho fabril; regulamenta-se a
educação compulsória; desenvolvem-se programas próprios de lazer e
ocupação do tempo livre, ao que tudo indica raiz primária das
chamadas culturas juvenis. Neste cenário, o adolescente vai
adquirindo cada vez maior autonomia, especialmente nas grandes
metrópoles industriais. Ele passa a ser reconhecido como portador de
um querer próprio que precisa ser respeitado nos mais distintos
aspectos da vida pessoal independente: escolha profissional, vestuário,
consumo, lazer, iniciação e atividade sexual. Mas, por outro lado, essa
mesma autonomia é vista como fonte de riscosi, entre os quais, talvez
o mais temido, seja o envolvimento com o mundo do crime e da
violência.

A descoberta da adolescência como problema é, portanto,


contemporânea da associação entre juventude e delinqüência. Neste
domínio, o marco teórico constitui o modelo storm and stress
("agitação e tensão"), formulado originalmente pelo psicólogo
americano Stanley Hall, para quem a adolescência era concebida
como um período de "agitação hormonal" durante o qual adolescentes
requeriam tanto liberdade para dar vazão a seu potencial explosivo
quanto reclamavam maior controle para incutir-lhes disciplina social
(Apud Newburn, 1997). Na esteira desse modelo, surgem desde as
primeiras décadas deste século, sobretudo nos Estados Unidos, várias
teorias sociológicas que tenderam a conceber a delinqüência juvenil
como resultado de um contexto social carente de autocontroles e de
controles sociais, especialmente aqueles exercidos pelos pais.
Igualmente, precárias condições de vida social eram responsabilizadas
pela pobreza de oportunidades de inserção social aos jovens,
sobretudo precária oferta de serviços de lazer e ocupação do tempo
livre de forma considerada socialmente construtiva. Acreditava-se ser
essa a razão pela qual não poucos adolescentes, imersos na pobreza
que grassava nas grandes metrópoles americanas e privados de viver
sob adequadas condições sociais de existência, se associavam às
quadrilhas e bandos locais. Socialmente percebidas como fonte de
inesgotáveis conflitos entre os jovens e suas comunidades, essas
formas de associação pareciam estar na origem da escalada da
criminalidade violenta que se observou, nos Estados Unidos desde o
início deste século e na Europa notadamente a partir do final da II
Guerra mundial.

Sejam quais forem suas efetivas razões, o certo é que desde


essa época se consolidaram alguns estilos, por assim dizer, de falar
algo sobre a delinqüência juvenil. Para terminar, indico algumas
formas de narrar a adolescência no debate acadêmico (sem a pretensão
de esgotar o assunto):

a) acentuada preocupação em cotejar mito e realidade. O


quanto existe de compatibilidade ou de descompasso entre o
sentimento geral de insegurança que, em determinados momentos e
em conjunturas determinadas parece se acentuar, e o efetivo

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movimento de registros de ocorrências criminais provocadas por


adolescentes e jovens? Afinal de contas, quem são esses personagens:
anjos ou demônios? Vítimas ou algozes? Carentes de proteção social e
legal ou carentes de sanção penal rigorosa?

Parte da literatura e do debate enveredou por esse caminho.


Baseadas em sondagens de opinião e sobretudo em observação de
notícias veiculadas na mídia cotidiana, muitas análises tenderam a
acentuar o predomínio de representações sociais que fortaleciam
verdadeiro pânico social. Associados freqüentemente às imagens de
carência emocional, de irresponsabilidade, de liberdade incontrolável,
de permissividade inclusive sexual, de negligência e imaturidade, de
vulneráveis às más influências do meio circundante (Muncie, ),
adolescentes envolvidos com o mundo do crime e da violência não
raro estimularam verdadeiras campanhas moralizatórias. Unindo
distintos agentes e agências sociais - o pedagogo e a escola, o
sociólogo e as agências de controle social, o religioso e as instituições
filantrópicas, o psicólogo e as instituições de reparação social, o
jurista e as agências de contenção repressiva do comportamento -
essas campanhas pretendiam conter a delinqüência juvenil em níveis
socialmente suportáveis, mesmo que, se necessário fosse, se devesse
recorrer a meios os mais rigorosos de restrição de liberdade
individual.

Por isso também, uma segunda tendência da literatura foi a de


concentrar estudos na observação sistemática da evolução dessa forma
de delinqüência. Com base em estatísticas oficiais, cuja confiabilidade
foi desde logo submetida à rigorosa crítica, inúmeros levantamentos
periódicos realizados por agências oficiais ou conduzidos por
pesquisadores em universidades e centros de pesquisa procuraram
examinar tendências de longa duração. Focos de interesse: tendências
da evolução da delinqüência, causas prováveis, fatores de risco e
vulnerabilidade, perfil de vítimas preferenciais e agressores,
intervenção das agências de controle social (policiais, judiciais e
sociais), com o propósito de dissolver mitos e apresentar retratos mais
fiáveis, baseados em análises científicas, capazes de reorientar
políticas públicas.

b) debate vítima versus agressores. Essa distinção é, sob o


ponto de vista sociológico, arbitrária e comporta não poucos
problemas. Certamente, quando os estudos enfocam crianças e
adolescentes como alvo de homicídios ou quando referidos àqueles
segmentos mais prejudicados pela falta ou insuficiência das políticas
sociais, não há dúvidas em classificá-los como vítimas.

As dúvidas aparecem quando estão em pauta crianças e


adolescentes autores de infração penal, entre os quais homicídios. As
imagens, veiculadas pela mídia eletrônica e impressa e pela
cinematografia nacional, revelam com cores muito fortes a presença,
nas metrópoles brasileiras, de crianças e adolescentes no mundo da
delinqüência, em especial no tráfico de drogas, portando armas de

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fogo, como soldados do “crime negócio” (Zaluar, 2004). Sob esta


perspectiva, parte dos formadores de opinião, possivelmente refletindo
correntes de opinião pública, tende a ter muitas dificuldades de tratá-
los como vítimas.

No âmbito dos estudos acadêmicos, esse debate repercute sob


o clássico confronto entre políticas distributivas e políticas
retributivas. Para alguns pesquisadores, a violência, inclusive a que
enreda crianças e adolescentes, é resultado da desigualdade social, que
vem se mantendo, no Brasil, há décadas, quase intocável, inclusive
por força da ausência de políticas sociais e públicas compensatórias
que efetivamente transfiram renda dos grupos mais ricos para os mais
pobres2. Sob esta perspectiva, não haveria sentido em distinguir
vítimas e agressores. Todos seriam, cada um segundo suas trajetórias
pessoais, potencialmente vítimas, pouco importando se atores passivos
ou ativos da violência.

Esse não é, entretanto, o ponto de vista daqueles que


responsabilizam a fragilidade das políticas retributivas como uma das
causas – senão a mais importante – do crescimento dos crimes e da
violência, inclusive envolvendo crianças e adolescentes. Entende-se
que o crime e a violência ganharam espaço porque as respostas do
Estado e dos governos pós-transição democrática não foram capazes
de assegurar lei e ordem, vale dizer de formular e implementar
políticas de contenção repressiva dissuasórias, mesmo que para isso
fosse necessário endurecer o tratamento penal até mesmo aplicável a
crianças e adolescentes.

Não é o caso, nos limites desta revisão de literatura


especializada, de fazer um balanço desse debate, examinando
detidamente os argumentos a favor e contrários a qualquer uma das
posições. Ainda assim, convém levantar ao menos uma questão, dada
suas implicações para o entendimento da violência contra ou
envolvendo crianças e adolescentes no Brasil contemporâneo.

Tudo indica que a maioria das crianças e adolescentes vítimas


da violência fatal não esteja envolvida, compromissada ou enraizada
no mundo da delinqüência juvenil (Castro, 1993). Muitos são pobres,
moradores de bairros onde habitam preferencialmente população de
baixa renda em condições precárias de infra-estrutura urbana.
Revelam, não raro, vínculos frágeis com as instituições que
representam a ordem por excelência, como a família, a escola básica,
o mercado formal de trabalho. Sua condição de pobreza, simbolizada
como semente do perigo e da ameaça social, as torna alvos
preferenciais de grupos de extermínio constituídos, nos bairros que
compõem a chamada periferia das regiões metropolitanas, para
2
Embora não incluído nesta bibliografia especializada, sequer no debate sobre
violência, um estudo interessante sobre as políticas distributivas pode ser encontrada
em recente estudo: Medeiros, Marcelo (2005). O que fazem os ricos ricos. São
Paulo: ANPOCS.

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execução sumária de suspeitos e aqueles estigmatizados como


potenciais perturbadores da ordem local.

Não obstante, é provável que parte dos jovens assassinados,


objeto deste relatório, esteja também imersa no mundo da
delinqüência. Esses podem ter sido justamente vítimas da guerra entre
quadrilhas e gangues inimigas que hoje parece caracterizar, em parte,
o mundo do crime entre as classes populares nas metrópoles
brasileiras e mesmo nas cidades médias (Zaluar, 2004; Spagnol,
2008). Sob esta ótica, são tênues as fronteiras que separam o mundo
da ordem das ilegalidades, de sorte que entre os jovens assassinados
seguramente há vítimas envolvidas na delinqüência como eventuais
infratores ou potenciais agressores. Daí a ênfase que vem sendo dada
ao envolvimento dos jovens com o mundo do crime organizado, em
especial do tráfico de drogas entre as classes populares das metrópoles
brasileiras.

Bibliografia

Adorno, Sérgio. La precoce esperienza della punizione. In: Martins, J.


de S. (org). L’infanzia negata. Omicidi, prostituzione, mallatie
e fame dei bambini brasiliani. Chieti Scalo: Vecchio Faggio,
1991

Ariès, Phillippe. L’enfant et la famille sous l’Ancien Régime. Paris:


Éditions du Seuil, 1973.

Caron, Jean-Claude. Os jovens na escola: alunos de colégios e liceus


na França e na Europa (fim do século XVIII - fim do século
XIX). In: Levi, G. e Schimitt, C. org. História dos jovens. São
Paulo: Cia. das Letras, 1996.

Castro, Myriam Mesquita Pugliese de. Assassinatos de crianças e


adolescentes no Estado de São Paulo. Revista Crítica de
Ciências Sociais. Coimbra: Centro de Estudos Sociais/CES,
1993, 36: 81-102, fev.

Correa, Mariza. As ilusões da liberdade. Bragança Paulista:


FAPESP/CDAPH-IFAN, 1998.

Medeiros, Marcelo. O que fazem os ricos ricos. São Paulo: ANPOCS.


2005

Muncie, John. Youth and Crime. A critical introdution. London: Sage,


1999.

Newburn, Taylor. Youth, crime and justice. In:. Maguire, Mike;


Morgan, Rod; Reiner, Robert., eds. 2.ed. The Oxford handbook
of crimonology . Oxford: Clarenton Press, 1998.

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Perrot, Michèle. A juventude operária. Da oficina à fábrica. In: Levi,


G. e Schimitt, C. org. História dos jovens. São Paulo: Cia. das
Letras, 1994.

Spagnol, Antonio Sérgio. Jovens perdidos. Um estudo sobre jovens


delinqüentes na cidade de S. Paulo. São Paulo: AnaBlumme.
2008.

Zaluar, Alba. Integração perversa: pobreza e tráfico de drogas. Rio


de Janeiro: Editora Fundação Getúlio Vargas. 2004

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i. O conceito de risco diz respeito hoje "a uma medida de incerteza, ele indica a possibilidade

de desvio de uma conduta ou de uma empresa, e sublinha notadamente o déficit ou a


adversidade suscetível de acontecer com um ator ou uma população que negligenciam
uma informação ou se engajam em uma ação particular. Ele aponta igualmente para
a extensão de ameaças que pesam sobre uma coletividade em virtude de
particularidades ecológicas ou a instalação de uma indústria poluente ou perigosa
para a vizinhança em caso de acidente ou de falha tecnológica. A diversidade de
sentidos do termo 'risco', passando da referência a uma probabilidade àquela de uma
ameaça ou perigo, é o sintoma de uma sociedade sequiosa por segurança e cuidadosa
em assegurar prevenção contra diferentes formas de entraves e de infelicidades
tocando a condição humana. Os êxitos a este respeito são limitados e diferem de um
ponto de aplicação a outro; o risco dificilmente se deixa dominar. Estas ações
envolvem a responsabilidade do Estado ou das coletividades locais encarregadas de
velar pela segurança das populações" (Le Breton, 23). Segundo este mesmo autor, as
formas de risco alcançam múltiplos atores e múltiplas formas de atividades. No
mundo ocidental moderno, um dos grupos mais vulneráveis ao risco social são os
jovens. Em virtude de experimentarem abruptas transformações em sua pré-entrada
no mundo adulto, costumam adotar inúmeras condutas de risco: envolvem-se
freqüentemente em acidentes de trânsito, suicídios e tentativas de suicídios, fugas do
meio familiar e afastamento das instituições de socialização primária, envolvimento
na delinqüência, alcoolismo e uso de drogas, problemas de comportamento
alimentar. O problema reside então em identificar quais situações sociais facilitam a
adoção de comportamentos de risco.

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