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Elmer Rice A MÁQUINA DE SOMAR Tradução Alexandre Mate PDF
Elmer Rice A MÁQUINA DE SOMAR Tradução Alexandre Mate PDF
(1922/23)1
De
Elmer Rice
Tradução e adaptação de
Alexandre Mate
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Adaptação de Alexandre Mate para montagem do Canhoto Laboratório de Artes da Representação,
2006.
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PERSONAGENS
Seu Zero
Dona Zero
O Patrão
Juíz
Guia
Mulher
Mãe
Criança
Um Homem
Shrdlu
Tenente Charles
Ted
Joe
Sun
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Cena I
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acha que Lágrimas de Mãe é o melhor filme que ela fez.
“Não perca, Dona Zero”, ela disse. “É uma beleza” ela
disse. “Só amor e decência. Maravilhoso!” ela disse, “Eu
não consegui segurar as lágrimas”. Tem uma parte onde
aparece um grandalhão inglês - um homem casado, é
claro - e ela é uma camponesinha ingênua. Ela está se
interessando por ele. Então à noite ela fecha a porta do
quarto. E é claro, quando está todo mundo dormindo,
aparece aquele inglês grandalhão. Ela não o deixa entrar,
então ele abre a porta com um pontapé. (Zero aparece de
corpo inteiro. Ela disfarça.) Por isso, Zero, não venha me
dizer que você não quer ir ao Peter Stuyvesant. Os Oito
viram no centro da cidade, no Cine Strand. Eles vão
sempre ao centro da cidade. Enquanto nós... Quem me
dera! Até adivinho que se eu for ao Peter Stuyvesant toda
a parte do chute na porta será cortada. É só a gente
gostar da cena que eles cortam, como aquela do cabaré
em O Preço de Virtude. Tiram as cenas pesadas dos
filmes, hoje em dia. “Isso não é lugar para moças” me
disse Dona Onze, outro dia. Quando este filme chegar
aqui no bairro, vão cortar metade. Mas você, não é Zero,
não vai ao centro nem arrastado por cavalos selvagens.
Você pode esperar que os filmes venham para o bairro!
Mas eu não quero esperar! Não quero ver o filme depois
que todo mundo já viu. Não venha com essa de que não
tem dinheiro. Você pode pagar, se quiser. Sei que sempre
tem dinheiro para ir no futebol. Mas quando é para mim, é
sempre assim: “Não tenho dinheiro, tenho que
economizar”. Vai economizar muito, eu é que sei! Tenho
de fazer milagres todos os meses para chegar ao fim do
mês. E hoje o senhor não vai dormir antes de eu chegar
no quarto... E não me venha com essa ladainha de estar
cansado, Zero. “Trabalho duro o dia todo e ainda pego
dois metrôs por dia, é demais para mim”. Cansado! Como
é que você se cansa? E eu? Onde eu entro? Esfregando
chão, fazendo a sua comida, lavando suas roupas sujas.
Você? Fica sentado numa cadeira o dia inteiro, somando
aqueles números e esperando chegar cinco e meia. Para
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mim não tem essa de cinco e meia. Não assino ponto.
Também não tenho férias. E pior, não recebo pagamento.
Queria saber onde você estaria se não fosse eu. O que
recebo em troca? Fui uma escrava a vida inteira para lhe
dar um lar. E o que ganho com isso? Queria saber! Mas
sei: a culpa é minha! Fui uma boba ao me casar com
você. Se tivesse algum juízo, teria entendido, desde o
início, quem você era. Queria poder voltar atrás e fazer
tudo de novo. Você dizia que tudo ia ser maravilhoso! Que
não seria contador por muito tempo. Ah, não, não você.
Não tinha nenhum trabalho na loja à sua altura. Pois bem,
eu estou esperando. Esperando você poder começar!
Tem sido uma longa espera. Vinte e cinco anos! E não vi
acontecer nada. Amanhã? Vinte e cinco anos no mesmo
trabalho. Deve estar orgulhoso, não é? Não é todo dia
que a gente perde vinte e cinco anos no mesmo trabalho!
Motivo de orgulho, não é? Ficar sentado durante vinte e
cinco anos na mesma cadeira, somando. O que você
acha de chegar a gerente da loja, hein? Eu sei: você
esqueceu isso, não é? E venha aqui pegar a bacia! E eu
aqui em casa olhando as mesmas quatro paredes,
trabalhando, trabalhando, esperando um milagre. Nem
lembro mais quanto tempo faz que teve o último aumento!
Se não receber um amanhã, aposto que não vai ter
coragem de pedir. Não escolhi muito, quando escolhi
você, o mundo inteiro é testemunha. Não tenho como me
orgulhar de você. A vadia da vizinha, aposto, não está
andando nua pelo apartamento esta noite... E nem nas
próximas... e nem neste prédio. Ela se afasta da janela.
Aquela vagabunda suja! Que atrevimento, que idéia a
dela, vir morar num prédio de gente bem. Eles deviam
dar-lhe seis anos, e não seis meses. Se fosse o juiz, eu
condenava a vadia à morte. Essa vagabunda gosta é
disso. Ela se aproxima da porta. Sei muito bem que
gostaria de se sentar na janela todas as noites e ficar
vendo ela andar. Como me orgulho de você! Seria bom
que não se metesse com mulheres, se é que você sabe o
que é bom para você. Posso agüentar muita coisa, mas
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isso não. Tenho sido uma escrava durante vinte e cinco
anos, fazendo sozinha disto aqui um lar. Se fosse outro
tipo de homem, teria um trabalho decente e agora eu teria
um pouco de conforto na vida. Não sou uma perfeita
escrava, lavando panelas e me consumindo no fogão?
Agüentei isto por vinte e cinco anos e acho que vai ser
assim por mais vinte e cinco. Espero que não comece a
se engraçar com mulheres… Zero! Zero! Dormindo... E
eu? 25 anos, me embelezando, me preparando para...
para ele dormir...
Cena II
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Daisy Para que a pressa? Amanhã é outro dia.
Daisy Então deixe de ser tão mandão. Ela lê. Três dólares. Dois
e sessenta e nove. Oitenta e um e cinqüenta. Quarenta
dólares. Oito e setenta e cinco. Quem você pensa que é,
para falar assim?
Daisy Quem ele pensa que é para falar assim? Fica o tempo
todo dando ordens. Não tenho que agüentar isso e não
vou.
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Os dois ficam atentos ao trabalho, não se olham. Durante o tempo todo, um
anota as cifras enquanto o outro fala.
Zero Mulheres me dão nos nervos. São todas iguais. O juiz deu
seis meses pra minha vizinha. Queria saber o que elas
fazem na penitenciária. Devem descascar batatas. Aposto
que ela está muito magoada comigo. Talvez tente me
matar quando sair da prisão. É melhor me cuidar. “Uma
jovem mata seu traidor.” “Esposa ciumenta mata rival.”
Nunca se sabe o que uma mulher pode fazer. É bom eu
me cuidar.
Zero Acho que ela não se atreveria a tanto. Talvez ela nem
mesmo saiba que fui eu que a denunciei por atentado à
moral. Eles nem anotaram meu nome no papel, os
vagabundos. Talvez ela já tenha cumprido alguma pena
antes. As vagabundas gostam de cumprir pena. Ela não
teve tempo nem para trocar de roupa. Você me dá nos
nervos. Estou enjoado de olhar sua cara.
Daisy Ah! Não vai chegar nunca a hora de sair? Você não era
assim antes. Não dá mais: bom dia... boa noite. Não fiz
nada para você. São essas mocinhas. Passando com
roupas escandalosas, curtas, transparentes...
Zero Sua cara está ficando cada vez mais amarela. Por que
não se pinta? Estava pintada daquela vez, eu vi tudo pela
janela... depois ficou andando ao redor do quarto com as
pernas nuas.
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Morar num prédio de gente bem. Ela ainda estaria lá se
minha mulher não tivesse me seguido. Malditas sejam!
Daisy Tenho medo de fazer isto. Gás. Esse cheiro me faz mal.
Zero Nada.
Zero Seu cabelo está ficando grisalho. Você não usa mais
roupa apertada. Quando você se agachava para pegar
alguma coisa...
Zero Queria ficar um dia com você. Por que não fui naquela
noite em que minha mulher foi ao Brooklyn? Ela nunca
teria descoberto.
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Daisy Pauline Frederick fez isso num filme. Mas onde eu
poderia conseguir um revólver?
Daisy Aposto que você ficaria arrependido de ter sido tão mau
comigo.
Daisy Ora, por que não tenho direito de viver? Sou tão boa
quanto qualquer outra pessoa. Sou muito refinada, eu sei.
Isso tem lá o seu charme.
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Daisy Éramos bons amigos quando vim para cá. Na época, você
falava comigo.
Zero Talvez ela morra logo. Notei que ela estava tossindo
nesta manhã.
Zero Então poderia fazer o que mais tenho vontade. Ah, cara!
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Daisy Sei que não tenho mais idade para ser mãe. Eles dizem
que é perigoso depois dos trinta e bem pouquinh... Eu me
pergunto, se quisesse ter filhos, uma criança. Não haveria
um jeito?
Daisy Ah, fique quieto. Ela lê. Dois e quarenta e cinco. Um dólar
e vinte. Um dólar e cinqüenta. Noventa centavos.
Sessenta e três centavos.
Zero Ah, me casar com você! Não, de jeito nenhum! Você seria
uma mulher tão ruim quanto a minha. Que bobo fui ao me
casar. Que chance tem um homem com uma mulher
agarrada ao seu pescoço?
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Daisy E na volta para casa à noite... você se sentou ao meu
lado no trem.
Zero Se ele não vier aqui falar comigo, vou dizer umas
verdades a ele.
Daisy Não suporto o cheiro de gás. Me faz mal. Você podia ter
me beijado se quisesse.
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Zero Vou continuar a subir depois. Vou mostrar para todos eles
quem eu sou.
Daisy põe o chapéu e se vira para Zero como se fosse falar com ele, que não
presta nenhuma atenção nela. Ela suspira e sai.
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Chefe Seeeuuu...
Zero Zero.
Chefe Isso, Seu Zero. Eu quero ter uma conversa com o senhor.
Chefe O quê?
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Zero Máquinas de somar?
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Cena III
Sala com banquinhos. Dona Zero usa um avental por cima de seu melhor
vestido. Depois de alguns momentos, Zero entra pela porta da rua e senta-se,
seus movimentos são calmos e discretos.
Dona Zero Muito bem: acho que devo ficar agradecida por você ter
voltado para casa. Você só está uma hora atrasado, o que
não é muito. A janta não esfria muito em uma hora. É
verdade que hoje à noite receberemos muitas visitas, mas
não tem importância. Você não tinha um bom motivo para
chegar na hora certa? Não avisei que íamos receber
muitas visitas à noite? Você não soube que estão vindo
os Um? Os Dois? Os Três? Os Quatro? Os Cinco? E os
Seis? Não falei para você chegar na hora certa? É a
mesma coisa que falar com uma porta. Ele come em
silêncio. Acho que deve ter tido negócios importantes para
tratar: ir ver o resultado do futebol. Apartar duas crianças
brigando. Negócios para tratar. O espantoso é você ter
tempo de voltar para casa. Tem uma vida dura, claro que
tem. Entrar, pendurar o chapéu e meter a cara na comida.
E eu me assando na cozinha quente todo o dia para
preparar sua janta e esperar por você... Claro, e esperar
que seja bonzinho e se digne a voltar para casa!. Talvez o
chefe tenha segurado você esta noite até mais tarde.
Dizendo que você é um elemento fundamental na loja,
que os negócios já teriam fracassado se não tivesse
passado os últimos vinte e cinco anos conferindo com a
sua caneta os números de vendas. Onde está a medalha
de ouro que ele pôs em seu peito? Deu a alguma velha
ceguinha ou deixou no assento da limusine do chefe,
quando ele trouxe você para casa? Aposto que ele deu a
você um grande aumento, não foi? Ou então foi
promovido... do terceiro para o quarto andar. Aumento?
Que chances tem de conseguir um aumento? Todos os
que procuram emprego põem um anúncio no jornal. Tem
uns dez mil iguais a você no olho da rua. Você vai é estar
fazendo o mesmo trabalho daqui a outros vinte e cinco
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anos. Isso, se nesse meio tempo não esquecer como se
soma.
Dona Zero Conduzindo a primeira mulher pela mão. Como vai, Dona
Um?
Dona Zero repete esta fórmula com cada mulher. Zero faz o mesmo com os
homens, mas se mantém silencioso ao longo dos comprimentos. As filas se
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separam. Cada homem se senta em uma cadeira da parede direita e cada
mulher em uma da parede esquerda. Cada sexo forma um círculo com as
cadeiras muito juntas. Os homens - todos menos ZERO - fumam charutos. As
mulheres comem chocolates.
Dois É, a gente pode ver por esse lado. Mas a chuva está
pesada.
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Dona Zero Bom, eu acho que é questão de gosto.
Dona Um Acompanhante?
Dona Dois Sei... É o que todos dizem, mas tudo bem! Eu tenho
certeza que a Dona Um sabe de tudo.
Dona Um Por mim ele pode fazer o que quiser, desde que se
comporte.
Dois Você tem sorte, Um. Não tenho a menor chance de sair
sem minha mulher, nem com minha irmã.
Dona Dois Você devia estar contente, tem uma boa esposa para
cuidar de você.
Dona Zero Tudo bem, mas já vi os dois, de mãos dadas bem firmes,
no cinema.
Riso Geral.
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Dona Zero Eles sim, são um casal apaixonado.
Dona Um Pior.
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Dois Essa você acertou na mosca.
Dona Um E porcos.
Dona Dois Minha irmã está esperando para o mês que vem.
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Dona Um O primo do meu marido tem erisipela.
Um Agitadores estrangeiros.
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Risos. As mulheres tagarelam ruidosamente. Ouve-se a campainha.
Zero Zero.
Policial Venha!
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Zero Virando-se para a Dona Zero. Preciso ir com ele. Vai ter
que enxugar os pratos sozinha.
Dona Zero Correndo para a frente. Estão prendendo você, por quê?
Cena IV
Um tribunal. Zero, com o rosto coberto pelas mãos. Não há nenhuma mobília.
Juíz Os advogados!
Zero Eles me dão muita dor de cabeça, isso sim. A maior parte
do tempo, não entendo essa merda que eles falam.
Objeção concedida...
Juíz Os advogados!
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Zero Tinta vermelha, coisa nenhuma! Era sangue, ouviram?
Vocês têm que entender isso. Matei o cara, ouviram?
Enterrei o espeto de contas no coração dele, está bom?
Vocês têm que entender isso, cada um de vocês. Um,
dois, três, quatro, cinco, seis, sete, oito, nove, dez, onze,
doze. Eu já fiz essas contas muitas vezes. Seis e seis,
doze. E cinco, dezessete. E oito, vinte e cinco. E três,
vinte e oito. Oito e vão dois. Ai! Não agüento mais!
Malditas cifras! Não dá pra esquecer, são vinte e cinco
anos, estão sabendo? Oito horas por dia, fora os
domingos. Em julho e agosto, sábado até meio-dia. Uma
semana de férias remuneradas. E outra semana sem
pagamento, se você quiser. Quem quer este inferno?
Ficar em casa e ouvir a mulher perguntando o tempo
inteiro por onde você andou. Não! E os feriados legais.
Quase esqueci de todos. Ano Novo, o Aniversário da
República, Dia do Soldado, Dia da Independência, Dia do
trabalho, Dia das Eleições, Natal. Sexta-feira é boa se
você quiser. E se for judeu, tem o Dia do Perdão... Estes
judeus sujos… sempre tirando leite de pedra. E quando
um feriado cai no domingo, tem a segunda-feira livre. Mas
quando o Dia da Independência cai no sábado, não
adianta nada por que o sábado já é meio expediente.
Estão vendo? Vinte e cinco anos... Vinte e cinco anos.
Nunca perdi um dia, nunca cheguei nem cinco minutos
atrasado. Quem não acredita, pode olhar meus cartões de
ponto. Oito e vinte e sete, oito e trinta, oito e vinte e nove,
oito e vinte e sete, oito e trinta e dois. Oito e trinta e dois,
quarenta e... Malditas cifras! Não dá pra esquecer. São
engraçadas, essas cifras. Às vezes parecem com as
pessoas. Outras lembram outras coisas... Claro que matei
o cara. Por que ele não calou a boca? Era só calar a
boca! Mas não, ficou falando, falando, dizendo que estava
arrependido, que era gente boa. Tinha vontade de falar
pra ele: “Pára! Pelo amor de Deus, fecha essa boca!” Mas
não tive coragem, está bom? Não tive coragem de dizer
isso para o chefe, e ele continuou falando que estava
arrependido, estão entendendo? Ele estava perto de mim,
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e o casaco dele só tinha dois botões. Dois e dois dá
quatro.
Juíz Chega!
Zero Tem razão nisso. Ele leu para vocês a lei diretamente do
livro. Matar alguém não está certo. Mas tinha a vizinha,
sabem? Seis meses foi a pena dela. Foi um truque sujo
denunciar a vizinha para os policiais. Eu não devia ter
feito isso. Mas o que podia fazer? Minha mulher não me
dava sossego. Eu tinha que denunciar. Ela ficava
andando pela casa só com uma camiseta, entendem?
Mais nada. Ela só pegou seis meses. Foi a última coisa
que soube dela. Gostaria de agarrar ela, mas nunca tive
coragem... Bom é ser vendedor de sapato! Todo dia
olhando as pernas das mulheres...
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Juiz Os advogados!
Juíz Parece!
Juíz Nunca?
Juíz O quê?
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linchamento, certo? Foi na Geórgia. Eles levaram o
crioulo e amarraram numa árvore. Espalharam querosene
nele e acenderam um fogaréu por baixo. Preto nojento!
Bem que eu queria estar lá, com um revólver em cada
mão, enchendo ele de chumbo. Estava lendo sobre isso
no Metrô, entendem? Bem na Times Square quando
entrou um monte de gente. E, de repente, um negão
enorme pisa no meu pé? A sorte dele foi eu não ter um
revólver naquela hora.
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entendem? Eu sou um cara normal como qualquer outro.
Como vocês mesmos, meus amigos. Ponham-se no meu
lugar. Vocês teriam feito a mesma coisa. É assim que
devem encarar este caso. Ponham-se no meu lugar.
Juiz Culpado!
Cena V
No meio do palco, Zero está preso em uma jaula. Em sua frente está um prato
enorme de presunto e ovos, que ele come vorazmente com uma grande colher
de pau Um homem entra pela esquerda, com uniforme azul e um quepe de
Guia. Ele é seguido por um pequeno grupo de pessoas.
Criança Mamy!
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Mãe Fique quieto, Eustáquio, se não, eu levo você, agora
mesmo, para casa sem ver a execução dele!
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Criança Choramingando. Ma-my!
Mãe Fica quieto, Eustáquio, olhe que a Mamãe não deixa mais
você ver a execução e nem fazer tchica, tchicaboom.
Guia Oh, ele nem sempre come tanto. É que sempre tentamos
fazer com que eles se sintam bem no último dia. Por isso,
faltando mais ou menos uma semana de antecedência
antes da execução, eles podem pedir o que vão comer no
último dia. Podem escolher oito pratos, pode ser qualquer
coisa. Independente de quanto custe ou da dificuldade de
conseguir. Este aqui não conseguiu pensar em oito pratos
até a última noite, então, pediu oito porções de presunto e
ovos.
Criança Olhe, mamy! Ele está comendo com uma colher. Ele não
tem educação... não sabe usar faca e garfo?
Guia Não nos arriscamos a deixar que ele use faca e garfo,
filhinho. Ele poderia tentar se matar.
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e bonitas relativas ao Assassino da América do Norte.
Elas incluem uma imagem do assassino, uma imagem da
esposa do assassino, a repugnante arma manchada de
sangue, o assassino aos seis anos.
Muito riso, todos o seguem o Guia. Zero termina de comer e empurra para
longe o seu prato. Dona Zero, vestida de luto e carregando um grande pacote,
entra.
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Dona Zero Fico bem de preto. Estou com algumas graminhas a mais
e o preto emagrece.
Dona Zero Bom, tenho que fazer tudo direitinho. Não é todo dia que
um marido é executado. Trouxe uma coisa para você.
Dona Zero Tenho uma coisa pra contar… será que devo?
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Zero Ahn, hã....
Zero Mesmo?
Zero Pode ser que no ano que vem, nesta mesma data, você
esteja fritando ovos para outro preso.
Dona Zero Bem, se acontecer, vou ter bastante tempo para pensar.
Não me interessa procurar encrenca.
Dona Zero É! Mas fica meio solitário acordar de manhã e não ter
ninguém pra conversar...
Zero É...
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Zero Ahn, hã.
Dona Zero É. Mas bem que eu ficava enchendo você com minhas
cobranças. Não é mesmo?
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Dona Zero É...
Zero É...
Dona Zero Não tem nada que eu possa fazer por você antes que...
Dona Zero Claro que estou. Deixo na mesa da sala. Para todo
mundo ver.
Zero Bem, como tudo acaba hoje, amanhã vai ter mais. Vai dar
para completar. Você vai pegar todas as notícias, né?
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Zero Nossa, Mãe, nunca pensei que teria um álbum de recortes
só a meu respeito. Será que os magnatas do cinema vão
fazer um filme a meu respeito? De repente. Olha, tem
uma coisa que queria perguntar.
Dona Zero Bem... Não sei. Pensei em deixar de herança para minha
sobrinha Beatriz Elizabeth.
Dona Zero Bem, deve ser legal ter um álbum desses, não? A quem
mais poderia dar?
Zero Taí: não quero que dê para ela. Não quero que aquela
menininha antipática ponha as mãos sujas nele.
Dona Zero Dona Daisy Devore? E por que justo para ela?
Zero Ela vai saber cuidar dele. Quero, simplesmente, que fique
com ela.
Zero Quero.
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Dona Zero Pois bem, não vai ficar com ela! Dona Daisy Devore! Por
quê? Tenho duas irmãs e uma sobrinha?
Dona Zero Mas eu estou! E a Dona Daisy não vai ficar com o álbum.
Pode tirar o cavalinho da chuva.
Zero Mas por que você tem que decidir sobre isso? O álbum é
meu!
Zero Deveria ter dado a ela logo de uma vez. Isso sim.
Dona Zero Então, essa Dona Daisy Devore... O que aconteceu entre
vocês.
Zero Lá vém!
Dona Zero Por que não casou com essa dona Daisy?
Dona Zero Aaaaah! Isso! Assim é que se fala com a própria mulher!
Depois de tudo o que fiz para você! Seu vagabundo! Seu
vagabundo nojento! Isso eu não agüento! Não agüento!
Num ataque de fúria, histérica e chorando ela sai de cena. Estrondos atrás
dela. Zero contempla-a, pesaroso, por um momento, então encolhe os ombros
e, com um suspiro, recomeça a comer. Entram, indicado por ela dois homens,
com macacões. Tem asas nos ombros. Zero, ao vê-los grita, horrorizado.
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Zero Quem são vocês?
Zero Não está certo! Não é justo! Não fui tratado com justiça!
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Q. Galho Nisso você tem razão. Num ponto você leva vantagem
sobre a máquina - o custo de produção. Mas aprendemos
com a experiência de muitos anos, que o custo original é
irrelevante, quando comparado ao de manutenção.
Q.Galho A mesma coisa vale para você, Zero. Fica muito caro
manter esse mecanismo delicado de olho, orelha, mão e
cérebro, que, na verdade, você nunca usou direito. Não
podemos gastar para mantê-lo na ociosidade - por isso
você tem de cair fora.
Zero Mas não tenho mais idade para tentar outra coisa.
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Zero Não quero morrer! Não quero morrer! Eu quero viver!
Os dois se entreolham.
Quebra G. E aí?
FIM
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