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Olívia Aparecida Silva1


Universidade Federal do Tocantins

5HVXPR O presente estudo procura fazer uma leitura de poemas de Cora Coralina que
têm como temática os becos da cidade de Goiás. Os becos são espaços geográficos em
que sobressai uma paisagem humana e social. As imagens transitam em tempos

3DODYUDVFKDYH poesia, cidade, Cora Coralina.


distintos, alinhavados pela necessidade de reviver no presente um passado distante.


$EVWUDFW The present study tries to interpret Cora Coralina's poems, which bring as
theme the side-streets of Goias city. The side-streets are geographic spaces
on what it is excelled a human and social portrait. The images move on
specific times joined by the necessity of living presently a distant past.

.H\ZRUGV poetry, city, Cora Coralina

A cidade sempre foi considerada elemento de importância na produção poética


por vários autores no decorrer dos tempos. A Literatura procura evidenciar as tensões e
as contradições existentes no espaço urbano. As cidades sendo organizadas por grupos
sociais que representam interesses e necessidades de projetos econômicos e político-
sociais de cada momento histórico. A literatura brasileira do século XIX e XX está
repleta de imagens que mostram a cidade não como sinônimo de racionalidade,
organização e equilíbrio, mas lugar onde se desenvolvem conflitos em decorrência das
diferenças sociais.
O caminhar pelo espaço urbano da antiga capital de Goiás, observando

presente, é a tematização privilegiada nos poemas constantes em 3RHPDVGRVEHFRVGH


criticamente sua paisagem humana e social, tendo o passado como referência para o

*RLiVHHVWyULDVPDLV, da poetisa goiana, Cora Coralina.


Entre as trivialidades cotidianas, vão sendo recriadas cenas públicas e intimas de
uma mulher que, vivendo no outro lado da encosta da montanha2, muito tem a dizer, a
lembrar. Seu olhar pousa sobre as coisas e os homens cheio de ternura e amoroso.
Segundo Bergson3 é através das percepções imediatas que o passado vem à tona,
pela memória. Assim, o contato com os becos, no presente, possibilita a poetisa
revitalizar o passado pelo ato da escrita e, ao mesmo tempo, evidenciar aspectos do
presente.

1
Professora da Universidade Federal do Tocantins, Doutora em Literatura Brasileira, pela Universidade
de Brasília.
2

3RHPDVGRVEHFRVGH*RLiVHHVWyULDVPDLV, em 1965, aos 76 anos de idade.


Cora Coralina, nome literário de Ana Lins dos Guimarães Peixoto Brettas, publicou seu primeiro livro,

BERGSON, Henri. 0DWpULDH0HPyULDHQVDLRVREUHDUHODomRGRFRUSRFRPR espírito. Tradução de


3

Paulo Neves. 2.ed. São Paulo: Martins Fontes, 1999. pp.9-57.


Os becos da cidade de Goiás são mostrados como expressões nítidas da falta de
um planejamento urbano que procurasse amenizar as desigualdades entre as classes
sociais. Eles representam, quase sempre, um espaço escuso, propício ao instalar da
miséria, dramas, prostituições, tensões de ordens diversas.
Na cidade de Goiás, há becos e becos, a diferença se faz na medida em que se
transita por eles. Cora Coralina dedica o poema “Becos de Goiás” àqueles que são
suspeitos e mal-afamados, discriminados pela gente de bem, pois lá é o lugar dos
deserdados sociais.
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Esse poema aponta de forma explícita a ruptura existente na esfera geográfica. O


próprio significado da palavra beco indica estreitamento, estreitamento que se dá em
duplicidade: referencialidade geográfica e social.
Ao caminhar pelos becos, mesmo não morando neles, ela se coloca próxima e
cúmplice daqueles que lá vivem. Cora Coralina se põe em condição de equivalência
com os marginalizados socialmente e, juntamente com eles, procura emergir das
margens obscuras da história para serem sua matéria.
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4
CORALINA, Cora. 3RHPDV GRV %HFRV GH *RLiV H HVWyULDV PDLV. São Paulo: Círculo do Livro, 1989
pp.62-63. A partir desta nota, irei fazer referência a esta obra como PBGEM e o número da página.
Como objeto da enunciação, os becos são observados e amados. Em uma
linguagem de elaborada naturalidade, vai sendo exposta a vida interna dos becos. Uma
identidade sem ornamentos, pobre do beco contrasta com a beleza e leveza da
estruturação poética.
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Os três adjetivos fortes e independentes ligados à paisagem dão a ela uma


conotação especial. O primeiro e o último adjetivo, “triste” e “suja”, refere-se à
condição de miséria encontrada no beco, estendida a seus moradores em sentidos

dignidade. A condição LQ H[WUHPLV do sujeito diante da vida. Ele caminha sempre em


diferentes: reforçam a condição da miséria humana, física e a que implica em perda da

direção de sua autodestruição. A miséria nunca vem só, com ela vem à dor, o
amadurecimento precoce, a doença, a humilhação e a morte. É por isso que nos becos
tem “poesia e drama”, pois ”versos não são sentimentos, mas experiências”,7
presenciadas e/ou vivenciadas. Lembranças esquecidas na memória que brotam e são
recriadas em palavras.
O segundo adjetivo, “ausente”, remete-se à temporalidade e à falta, à paisagem de
outrora que não existe mais. Inconfundível com a do presente, mas em condições
semelhantes de degradação humana, diante de uma realidade sórdida. A imagem
passada está sempre intermediada pelo presente. Um presente que transcorre dentro de
uma monotonia, dissipada de emoções palpitantes. São imagens pontuadas pelo
sombrio, constante nas quatro primeiras estrofes. As seis últimas estrofes constam cenas
de lembranças passadas, em ritmo mais acelerado, ações, acontecimentos e estórias.
O poema apresenta uma seqüência de cenas em movimento, de tensões, de
paixões e de sensações paradoxais de vida. Primeiro são as impressões visuais, um olhar
decorativo que embeleza e que ornamenta os monturos com palavras em que o escuro é
momentaneamente modificado por uma claridade dourada, fugidia e alcança uma beleza
fugaz. Esta define-se pelo ângulo daquele que a observa. O olhar contemplativo,
imprimido de sensibilidade muda não à consistência, mas a aparência da forma. A
temporalidade provoca o fazer e o desfazer da beleza: apenas ao meio-dia uma réstia de

5
PBGEM, pp. 61-62.
6
PBGEM, pp. 61-62..
7

(a arte) implica em uma experiência. In: ARRIGUCCI JÚNIOR, Davi. +XPLOGDGH SDL[mR H PRUWH D
São palavras de Rilke, citadas por Maurice Blanchot ao comentar sobre o processo de criação. A poesia

SRHVLDGH0DQXHOBandeira. São Paulo: Companhia das Letras, 1990. p.46


sol semeia polmes dourados no lixo pobre do beco. Naquele momento, o lixo adquire
um brilho especial, assim como os muros empenados ficam com outra aparência quando
surge e floresce entre suas frinchas frágeis avencas. O fio de água, que, sem pressa,
desce de quintais escusos e some por velhos canos. Há uma silenciosa harmonia de
palavras que, agrupadas, criam o sentido de delicadeza que canta a pobreza dos becos.
Em processo gradativo, o olhar enunciativo prossegue descrevendo o espaço
evocado. Sua atenção direciona-se para os burros-de-lenha, indicados próximos de si,
sua serventia e o pouco cuidado a eles destinado. O range-range de suas cangalhas faz
parte da infinidade de sons que compõem o cotidiano da pequena cidade. Depois, seu

despertando da condição de YR\HXU passa a refletir sobre a situação humana, social da


condutor, o menino lenheiro, maltrapilho “sem infância, sem idade”. Como se

criança, tão “pequeno para ser homem” e tão “forte para ser criança”. Justifica por não
poder deixar de dizer aquilo que vê de errado: “Amo e canto com ternura/ todo o errado
da minha terra”.A cidade de Goiás, em seu presente e em seu passado, carrega as
marcas de seus erros. O pronome indefinido “todo” permite o desdobramento do
presente para o passado, e como se atendesse a um chamado provocativo, o sujeito
enunciativo desliga-se do presente e se reintegra ao passado. Nomeia todos os becos que
serão objeto de seu lembrar. O poema passa a ter um ritmo mais intenso. Abandona o
processo descritivo e assume o narrativo.
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A memória dá passagem para as lembranças de cenas públicas. Longe/perto do


sobradão dos Vieiras do passado, em que tudo reluzia beleza, ostentação e luxo,
encontravam-se outras formas de moradia, quarto de porta e janela. No lugar de moças
cultas e bem comportadas estão a mulher perdida, as mulheres da vida. Sem glamour,
resta-lhes o espaço da sombra, onde estão todos aqueles que vivem à margem de uma
sociedade reguladora de conceitos e regras. A mulher perdida não encontra o caminho
de volta ao convívio social com a “gente de bem”. Cada vez mais prossegue em direção
à degradação humana.

8
PBGEM, p. 62.
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As mulheres perdidas na/da vida são presas pelas armadilhas da profissão mais
antiga da sociedade: a prostituição, refugo humano que baixa nos “becos úmidos e
pecaminosos”. Castigadas, humilhadas, golfando sangue, as mulheres perdidas dividem
o mesmo espaço com “assombrações” nas “altas horas, mortas horas”. Expurgadas,
baixam em todos os níveis, perdidas não se recuperam, apenas nas lembranças de uma
velha anciã que, ao nomeá-las, fazem-nas renascer nas estórias dos becos mal-afamados
onde há lugar cativo para os bailaricos, para a sina sifilítica, engalicada, amores ilícitos,
prazeres rompidos de sensualidade, mas cheios de dramas. Os becos são lugares naturais
dos resíduos sociais e sobrenaturais que povoam o imaginário popular. Sua gente do
pote de água e pés no chão representa signos culturais de uma época. Românticos e
pecaminosos pela imaginação e mistérios que suscitam.
Para reforçar a condição de drama vivido por mulheres perdidas, e a forma de
relato enquanto lembrança, Cora Coralina utiliza-se de recorrências, acrescentando os
vários designativos a elas empregados na linguagem prosaica. A mulher da vida é a
meretriz venérea, a prostituta, mulher-dama. Elas fazem parte de uma paisagem do
passado, compondo um cenário de diferenças sociais nítidas.
Michelle Perrot ao comentar sobre as mulheres na cena pública expõe a diferença
de julgamentos entre a mulher e o homem públicos e a fragilidade da condição
feminina. “O homem público, sujeito eminente da cidade, deve encarnar a honra e a
virtude. A mulher pública constitui a vergonha, a parte escondida, dissimulada, noturna,
um vil objeto, território de passagem, apropriado, sem individualidade própria”.10
Os becos são lugares propícios para o abrigo das mulheres perdidas, pois neles
são permitidos o que é rejeitado em outra esfera social. Elas são objetos descartáveis,
suas existências têm significação enquanto o desejo não se realiza. Depois, a aplicação
do castigo merecido para a sobrevivência de uma falsa moralidade, ordem e
comportamentos comedidos. O executor, às vezes, pode ser o mesmo que há alguns
momentos antes compartilhava o mesmo espaço de prazeres ilícitos.
A última estrofe de “Becos de Goiás” surpreende o leitor por seu conteúdo
enunciado e a mudança no gênero empregado. Nas primeiras estrofes, o poema assume
uma forma descritiva, em tempo presente, depois a mudança temporal registra sua volta
ao passado e o eu-poético põe-se na condição de narradora de fatos passados. A
mudança favorece o distanciamento e um certo despojamento da subjetividade. A última
estrofe apresenta-se em forma de epílogo do último ato representado e não possibilita
nenhuma aproximação com as imagens anteriores. “Cai o pano”.O poema é um diálogo

PERROT, Michelle 0XOKHUHVS~EOLFDV. São Paulo: Fundação Editora da UNESP, 1998. p. 7.


PBGEM, p. 62.
10
de gêneros, múltiplos personagens, com “bilhetes” de passagens para o repouso
permanente. Adormecem e permanecem em linguagem criativa que encena a cena.
Cora Coralina percorre os becos da cidade de Goiás descrevendo-os, em forma de
criação poética, como espaços marcados por acontecimentos históricos. Eles são as
“Válvulas coronárias” da velha cidade. Sua preocupação está em recuperar matizes das
experiências humanas e a multiplicidade de práticas sociais de que se compõe o espaço
citadino, como costumes familiares, crendices, a constituição de uma ordenação de
espaços e normas sociais de comportamento. As vivências passadas guardadas na
memória vão sendo construídas e desenhadas por uma escrita que reflete desejos de
pontuar um tempo e fixá-lo. A intencionalidade da poética coralineana é registrar um
espaço fértil em fatos e acontecimentos que marcaram uma época, sob a égide de um
olhar que mesmo distanciado ainda está contaminado por uma emoção subjacente no
enunciado. O real é transformado em matéria subjetiva. No ato de lembrar perpassa um
universo de intenções e sensações, pois se compõe de uma imbricada e complexa
natureza. Apesar do distanciamento, as lembranças são recriadas inspiradas nas
emoções que transitam em um universo de afetividades.
Depois de descrever e narrar os becos mal-afamados, Cora dedica sua atenção ao
Beco da Vila Rica e oferece-lhe o poema, “Do Beco da Vila Rica”. É um poema que se
inicia afirmando a existência de um espaço com ruínas expostas.
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Há um acentuado caráter alegórico, no fragmento acima. As galinhas representam


aquilo que precisa ser expurgado, que afeta os sentidos, olfativo, visual e causa
desagradável horror. Elas são o que há de indesejável presente em todos os tempos:
ontem, hoje, amanhã. Algo ruim que é rejeitado dentro do universo social, visto por
todos. Não há como ignorá-las. A quem importa? A todos, o ruim, o estado de
putrefação é percebido. Faz parte do cotidiano social. Um mal que se sobressai e escapa
ao controle da ordem estabelecida. A galinha desfigurada e, subsidiariamente, o gato
morto estão expostos ao deus-dará, nenhuma providência a ser tomada. É uma galinha
de verdade, insiste, ela existe e causa o impacto da náusea. Mas é possível entre as
ruínas coletivas surgir “boninas perfumadas”. Assim, no poema, os díspares se
completam, o nefasto faz parte da existência e resiste mesmo sendo rejeitado. As
galinhas acentuam as diferenças entre a natureza viva e a morta. A vida em sua

11
PBGEM, p. 65.
condição paradoxal, seu caráter transitivo e finito; a morte sempre presente, mal
cheirosa e escandalosa.
Desdobrando-se, o poema passa a nutrir-se de circunstâncias diversas, ilustrando
costumes, casos que mais parecem lendas e que se misturam ao referencial e se
constituem em fatos acontecidos, das grandes famílias com seus escravos, etiquetas
rígidas e os burros-de-lenha.
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Um tempo antigo, uma volta às origens de Villa Boa de Goiás13.


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As imagens recriam um espaço de vivências e práticas sociais de indivíduos que


se diferenciam pelas atividades e representatividade que exercem dentro da esfera
social. A figura dos “polistas” impöe-se em uma hierarquia instituída, inicialmente pela
aparência, acessórios que os cobrem, ainda pela finalidade, determinação, destemidos,
de espírito aventureiro, em busca de riquezas que provocaram a constituição da vila e,
depois, sua transformação em cidade, centro e referência de poder na estruturação
político-econômica do estado de Goiás.
Para tanto, eram necessárias pessoas submetidas a seus mandos e cumprimento de
ordens a gastos mínimos. Surgem, então, os escravizados com suas vestimentas
inferiores e atitudes diferenciadas. Sem liberdade, cometem infrações que significam
burlar normas estabelecidas de conduta, mesmo tendo como objetivo o fortalecimento
de forças através dos cultos religiosos. Só a grandeza mística e transcendental seria
possível mudar seus destinos, pois a ordenação das leis humanas não permitiria. Com a
desordem, os escravos procuram uma outra ordem, a divina. Ao mesmo tempo, lutam
pela preservação da tradição de seus ancestrais, com seus cultos e crendices. Os
“polistas” seguem os propósitos da cultura européia, espoliadora, escravizadora
instituída de poder, dilapidando as riquezas naturais de terras não exploradas.
O poema “Do Beco da Vila Rica” compõe-se de trinta e seis estrofes com uma
grande variedade de imagens, que, em idas e vindas, vão pontuando temas diversos.
Depois de operar nos três tempos, passado, presente e futuro o eu-poético observa as
mudanças identificadas pelo olhar de agora: os muros empenados, as reformas
necessárias e não realizadas. Esse olhar que vagueia, repousa sobre a natureza orgânica
do lixo, comparando os monturos com as úlceras de Jó, em uma intertextualidade
bíblica.
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0XURVVHPUHJUDVHPSUXPRQHPDSUXPR

12
PBGEM, p.70.
13
A cidade de Goiás, em sua fundação, era chamada de Villa Boa de Goyás, posteriormente Goiás e com
a mudança da capital para Goiânia passou a ser denominada Goiás Velho
14
PBGEM, p. 65.
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Por ser a “baliza da cidade”, o Beco da Vila Rica se condensa de todos os


aspectos, de todas as histórias que se incorporam no cotidiano da cidade.
Contrariamente ao nome, Vila Rica, lá estão depositados os monturos, com seus objetos
em estados abjetos: os sapatos carcomidos pelo sol e pela chuva, os utensílios de lides
domésticas, etc. O lixo expõe intimidades das famílias ali residentes e que não têm mais
serventia.
As imagens do beco refletem sua história. Os muros empenados não desabam
pela solidez da construção antiga, com suas sapatas de pedras; são testemunhas de
entradas e saídas das recatadas moças da cidade, ainda conservam suas chaves que são
verdadeiras relíquias, requisitadas pelos turistas, devido seu formato diferenciado das de
hoje que mais parecem miniaturas perto dos grandes chavões de antigamente.
As recorrências dos monturos sempre entremeando outros temas, possibilitam ao
leitor a sensação de que é necessário lembrar do Beco da Vila Rica de uma forma
antitética ao nome que carrega. Identificar, de forma constante, a presença do
indesejável entre o que se considera saudável.
Em uma intertextualidade bíblica, o poema faz alusão comparativa entre os

miséria, como, forma de testar sua fé. Ao LQ H[WUHPLVda pobreza material e humana, Jó
monturos e as úlceras de Jó. Essa personagem bíblica tem sua vida transformada em

direciona-se a Deus para reclamar e clamar uma explicação para tanta expiação. Deus
reconhece a fé e devolve-lhe em proporções dobradas a riqueza material perdida e a
tranqüilidade espiritual. O estado de penúria de Jó havia se estendido a sua família,
todos foram contemplados com as graças divinas. No poema, os monturos representam
a miséria humana existente em todos os tempos e lugares, carecendo de que a mão de
Deus repouse sobre elas, mas, para isso, é necessário que o ser humano seja merecedor,
assim como Jó o foi. Enquanto isso o Beco da Vila Rica vai deixando expostos seus
monturos e também suas boninas.
Os becos são fontes inesgotáveis de recordações, janelas abertas para o passado,
por onde saltam incontáveis lembranças que percorrem, sobretudo, a infância. Ao

15
PBGEM, pp. 66-67.
dedicar poemas ao Beco da Escola está dedicando também a inesquecível mestra que
lhe possibilitou a entrada no reino das palavras para que pudesse, em um futuro
longínquo, entrar no velho reino de Goiás onde estão encravadas suas memórias. As
lembranças deslizam como as águas do rio Vermelho, escorrendo, sempre, antes com
espumas de sabão do esfrega-esfrega das velhas-novas lavadeiras do rio Vermelho,
depois, num presente próximo, águas escuras-claras com detritos que passam embaixo
da ponte. Sua memória é uma retentora de imagens que transgridem o tempo. As
imagens do presente impelem as imagens do passado que são desencadeadas pelo tempo
de recordar. O passado e o presente, a todo instante, se entrecruzam, ora
comparativamente, ora mencionado como preservação da memória e de história de
vidas públicas.
No poema “O Beco da Escola”, o diminutivo é utilizado como uma forma
carinhosa de apalpar o abstrato tempo escolar de outrora. O lúdico do universo infantil
se estampa saudosamente.
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O beco da Escola é mais um dos “vasos comunicantes” que faz parte de uma
estrutura corpórea onde pululam vidas, lugar no qual sempre transita o povo humilde. É
um beco popular, e sua medida é feita, na largura, de forma prática, no comprimento, o
metro formal. Parece que pode ser colocado na palma da mão, em forma de miniatura.
O processo descritivo utilizado perde a objetividade e adquire uma forma especial
guiada pela subjetividade da emoção e do carinho que a recordação suscita, por parte de
quem o descreve. O tom às vezes parece corresponder / assemelhar ao que está sendo
narrado. A Mestra Lili, de miudinha, sua figura vai crescendo e tomando formas finais
enérgicas e fortes. O ensino é regido por hábitos e costumes antigos e severos, como
tudo naquele tempo.

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 -DQHODVDEHUWDVSDUDREHFR
 6DODJUDQGH$PHVDGDPHVWUD

16
PBGEM, p.75.
%DQFRVFRPSULGRVVHPHQFRVWR
 0HVDHQRUPHGRVPHQLQRVHVFUHYHUHP
 OLo}HVGHHVFULWD17

Em posição de quem olha para descrever, o eu-lírico utiliza o demonstrativo que


assume duas atribuições ao ser mencionado: a de apontar a existência da casa velha no
passado e reforçado pelo verbo ser no tempo pretérito e a de indicar sua ausência, num
jogo de imagens e tempo. O eu-lírico, ao mesmo tempo em que se refere ao passado,
afirma “ainda hoje a casa é velha”. A imagem que se presentifica não é a casa no
presente, mas a casa da lembrança, que continua velha ainda hoje no presente de suas
recordações. Em processo idêntico ao exterior, a casa se abre por inteiro e seu interior é
percorrido pelo olhar da anciã que a viu e a freqüentou na infância e agora a revê na
velhice, refazendo um cotidiano do passado. São cenas de outrora descritas no calor da
saudade. A sabedoria popular diz que lembrar o passado é vivê-lo novamente. As
imagens tomam a aparência do agora, do instante do olhar. A plasticidade da descrição
interior vem de forma antinômica com a do exterior: pessoa e as coisas vão tomando
proporções de grandeza, desde a figura miudinha da Mestra Lili até o alongamento dos
bancos, mesa e sala.
O amor engrandece e/ou torna pequeno as pessoas ou os objetos amados.As
vozes do passado se transformam em ecos no presente, por uma escrita que finge
eternizar momentos vividos, como se o eu do presente apenas descrevesse imagens
contaminadas pela saudade do passado, mas intocáveis na aparência que suscitavam na
pequena e frágil Aninha de outrora.

'HUXDVGLVWDQWHVDJHQWHRXYLD
 TXDUWDVHViEDGRVFDQWDGDHPDOWRFRUR
 DYHOKDWDERDGD.18

A tabuada decorada, ensino antigo, castigos severos e a presença ameaçadora da


palmatória, tudo se transforma em uníssono som musical: coro. As vozes infantis
deixam de ter o som nervoso provocado pelo medo de erro da “velha taboada” e tornam
coloridas e alegres. Instalam: uma rotina: às quartas e aos sábados.
As lembranças tornam-se imagens nítidas das pessoas e das coisas ausentes, mas
há uma mudança no tom das imagens na nona estrofe.

2 %HFRGD(VFRODpXPDWUDQVLomR
 8PODSVRXUEDQtVWLFR
 (QWUHD9LOD5LFDHD5XDGR&DUPR
 7HPMDQHODV
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 /L[RSREUH
 $TXLDOLDPSDUDGDVQRPXUR
 8PDVDYHQWXUHLUDVHLQWHUHVVDQWHVIORUHVGHPRQWXUR.19

O presente surge entremeio as lembranças do passado e o beco tem a aparência


de abandono e de decadência, possibilitada pela mudança do tempo nos tempos. Ele é
mencionado como um espaço, cuja existência não foi programada. Nele há uma casinha
triste que abriga em sua história os vultos do passado e está envelhecida e carcomida. A

17
PBGEM, p. 75.
18
PBGEM, p.76.
19
PBGEM, p. 76.
única expressão de vida se encontra nas flores dos monturos. Talvez por isso ganhem os
adjetivos de aventureiras e interessantes. Entre a imagem de decadência e melancolia,
elas se espalham, saltitantes e amparadas.
O beco favorece lembrança das esquecidas mestras; o processo antinômico
ressalta a importância da escrita entre o lembrar e o esquecer. As possibilidades de
recuperação de algo que poderia se perder entre tantas outras perdas.
2 %HTXLQKRGD(VFROD
 /HPEUDPHVWUD/LOL
 /HPEUDPHVWUD,QKROD

(VTXHFLGDVPHVWUDVGH*RLiV
 (ODVWRGDV±GRQ]HODV
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 3DVVDYDPDPRFLGDGHHVTXHFLGDVGHFDVDPHQWR
 DWDUHIDGDVFRPFULDQoDV
 (QVLQDQGRRErDEijVJHUDo}HV.20

A intencionalidade da escrita não se resume em fixar um despertar de


lembranças, provocadas pelo referente, mas de registrar o esquecimento coletivo de
pessoas que dedicaram a existência em uma função social: educar gerações e gerações,
e, mais, o caráter do ensino concebido como um sacerdócio. Ser mestra implicava em
preservar-se dos desejos, celibatária e assexuada. A escrita assume sua função de não
deixar “... que o Tempo passe tudo a raso.”
Às mulheres do início do século XX não era permitido fazer isso e aquilo, mas
isso ou aquilo. A educação rígida preparava a mulher para o lar. Na família sempre
tinha uma mulher que deveria se abdicar de seus desejos mais íntimos para cuidar da
casa e dos pais na velhice. São exemplos os poemas.
É interessante observar que a escrita coralineana constrói e desconstrói
intenções. Por momentos, ela reconstitui imagens da infância escolar, depois registra
para a preservação da memória coletiva, ainda enquanto escrita lúdica.

2 %HTXLQKRGD(VFRODEULQFDGHUHVSRQGHU
 &RUUHGD9LOD5LFD±HVSLDDUXDGR&DUPR
 eXPGRVPDLVVLQJXODUHVHDXWrQWLFRVEHFRVGH*RLiV
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 5HFRPHQGDGR±VREUHWXGR±
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 7HPSRUW}HVYHVWLGRVGHYHOKLFH7HPEXHLUR
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 (VTXHFLGRHDEDQGRQDGR
 QRGHVWLQRUHVXPLGRGRVEHFRV
 QRGHVDPRUGDJHQWHGDFLGDGH.21

20
Ibidem.
21
PBGEM, pp.76-77.
O beco personificado, diminuto e infantil brinca como criança. No entanto, ele é
velhíssimo e traz marcas seculares. Sua cor e sua vestimenta têm aparência do tempo
que representa. O eu-lírico prescreve o beco a todos aqueles que simbolicamente
buscam o passado e o tempo: a poetas, a pintores a frei Nazareno. Explorando o valor
denotativo do vocábulo beco, alerta quanto a sua importância enquanto objeto histórico,
lugar onde foi abrigo de pessoas cujas descendências contribuíram na luta em favor da
pátria. O beco da escola é um beco legítimo e seu fim é o esperado, como o de todos os
becos, sem cuidados e no esquecimento. O tempo presente proporciona outros valores
aos homens, o beco representa “um lapso urbanístico”.
O eu-lírico inconformado com a possibilidade de esquecimento e extinção do
beco, conclama aos artistas sua transformação em objeto estético. A arte apreende o
essencial e o imperceptível aos olhares cotidianos e perdura a existência das imagens.
Seja ela representante de qualquer corrente estética, desde as que se dedicam às coisas
do espírito como aquelas que se voltam para a objetividade, havendo matéria de
inspiração para todas as sensibilidades. A arte, para Cora Coralina, deve assumir a
condição de memória e história.

3RHWDVHSLQWRUHV
 URPkQWLFRVVXUUHDOLVWDVFRQFUHWLVWDVFXELVWDV
 HXYRVFRQFODPR
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 EL]DUURVFRORULGRV
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'HQRLWHQRLWHGHTXDUWR
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'HVDSDUHFHPSHODVHVTXLQDV

5HVSRQVDPSHORVEHFRV

$OWDVYLDJHQVDVVRPEUDomR
2 GLDERQRFRUSR
Lobisomem...
Simbolismo dos velhos avatares.23

Entre elipse, arcaísmos e coloquialismo, o eu-lírico apresenta a outra face do


beco, ligada ao sobrenatural, ao místico e ao folclore. Entre os encantamentos da noite
de quarto crescente, tudo é possível de ser visto/ouvido. Os becos seculares concentram
histórias e crendices populares que fazem parte de seu universo: entre os vivos e os
mortos está o imaginário popular. O eu-lírico é a guardiã dessa memória coletiva e quer
compartilhá-la com as outras manifestações artísticas, mesmo que sejam elas de outras
formas de expressão.

22
Cora Coralina tem o conto “Procissão das almas” em seu livro (VWyULDVGDFDVDYHOKDGDSRQWH. Nele
ela faz referência à procissão das almas como um acontecimento folclórico também utilizado
ficcionalmente por outros escritores goianos e dá ao seu conto um caráter de escrita de gênero fantástico.
23
PBGEM, 77.
Entre a cidade, recuperada pela memória, e a cidade, que se apresenta no
presente da escrita, há mudanças tempo deixa suas marcas através das ações humanas.
Em “Mutações” o eu-lírico observa essas mudanças sob uma perspectiva irônica.

0XLWDUXDGDFLGDGH
 PXGRXGHQRPH
 5LWLQWLQ±PXGRXGHQRPH
 5XD1RYD±PXGRXGHQRPH
 'HWUD]GD$EDGLDWDPEpP
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2XWUDVQHPQRPHWrP
 5XDGR)RJRVHDSDJRX
 QDVYLHODVQmRVHWRFD
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 'R&RWRYHORpVXVSHLWR
 5XD-RDTXLP5RGULJXHV
 YLURXGHPDLR
 SDVVRXSUD-RDTXLPGH%DVWRV
 1mRVHLRQGHYDLSDUDU
 7DQWDPXGDQoDGHQRPH.24

As modificações operadas pelo tempo indicam concepção de valores alterados.


As palavras também passam a ter outra significação. Há uma procura de modernização
dos sentidos quando se muda de “beco” para “travessa”. É interessante observar que
apesar de darem outros designativos aos becos, eles sempre serão lembrados por aquilo
que foram. Esse resgate se dá de forma oral e escrita. Haverá sempre alguém que dará
seu testemunho de como aquele lugar foi outrora. Esse é o papel que assume a escrita
coralineana, de “assinar e escrever os autos do Passado”. A cidade se constitui como
uma estrutura documentada. As alterações são justificadas administrativamente nos
relatórios públicos. Toda a vez que se modifica algo na estrutura citadina deve haver um
documento que registre o fato, pois isso implica em gastos públicos que precisam ser
justificados. A crítica aos atos público-administrativos, preocupados com a aparência,
sobressai nos versos abaixo, assim como o descaso com a pobreza do Beco da Vila
Rica.
0XGDUQRPHGHUXDpIiFLO
0XGDUMHLWRGHUXDQmR
'DUFDOoDPHQWRHOLPSH]D
e FRLVDPXLWRLPSRVVtYHO

6yQmRPXGRXQRPHHP*RLiV
2 %HFRGD9LOD5LFD
3RUVHUPXLWRSREUHHVXMR
FRQWUiULROKHDVVHQWDRQRPH
6HKiGHVHUEHFRGRVXMRSREUH
VHMDPHVPRGD9LOD5LFD
FRPWRGDDVXDSREUH]D

Difícil é dar melhores condições de sobrevivência àqueles que são menos


favorecidos, começando por ações básicas, como calçamento e limpeza. Ele atravessa o
tempo com suas ruínas, pois a pobreza que se concentra nas ruas sujas também se aloja
no interior de suas residências. O Beco da Vila Rica é o lugar do sujo pobre. A pobreza
parece estar sempre vinculada a sujeira, mesmo sendo de naturezas distintas. Com

24
VBG, p.19.
25
VBG, p.19.
apurado senso crítico, o eu-lírico aponta a ineficiência daqueles que ocupam e se
ocuparam da administração pública de Goiás em relação ao beco. Em um jogo de
palavras, verificando que o nome do beco é contraditório ao que representa, o eu-lírico
conclui que é melhor que permaneça desta forma, pois pelo menos no nome que


carrega, o beco do sujo pobre tem riqueza.

5()(5Ç1&,$6%,%/,2*5È),&$6

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