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UNIVERSIDADE ESTADUAL DE PERNAMBUCO- UPE

Licenciatura em História
Disciplina: Antiguidade Clássica
Docente: Dr. José Maria Gomes
Discentes: Iranda Mariana e Yasmin Vitória

Fichamento

GRIMAL, Pierre. Virgílio ou o segundo nascimento de Roma. São Paulo:


Martins Fontes, 1992.

“[...] Quanto ao assunto da epopeia empreendida por aquela época, a Vida de


Virgílio, diz simplesmente que dizia respeito “aos feitos romanos”, res romanas,
e nós supusemos que se tratava de guerras civis.” (p. 183-184)

“Esses poemas são ‘épicos’ na medida em que contam feitos de caráter sobre-
humano, realizados por alguma das personagens pertencentes à ‘memória
coletiva’ das cidades, que estão em relação com as divindades -das quais se
originaram e pelas quais são inspiradas- e que vivem em tempos que o divino e
o humano ainda não se distinguem claramente: é o tempo dos ‘heróis’ dos
semideuses” (p. 185)

“Portanto, o termo epopeia, aplicava-se, por uma tradição que contava quase
um milênio no tempo de Virgílio, a um poema narrativo, essencialmente
caracterizado pelo ritmo descontínuo, que o distingue das outras formas
poéticas - os ‘dramas’, a tragédia ou a comédia’- e dos cantos líricos.” (p. 186)

“Vê-se que o termo epopeia abrangia, no tempo de Virgílio, muitas realidades


diversas. Contudo, havia uma ou duas características comuns, além da forma
métrica. O relato refere-se a um momento do mundo em que está em formação
um aspecto duradouro deste: alguma coisa que nasce, uma grande reviravolta,
um devir determinante.” (p. 187)
“Uma epopeia será o poema das origens [...]” (p. 187)

“Em Roma, depois da tradução de Odisseia por Lívio Andrônico, desenvolvera-


se outro gênero de epopeia, com a Guerra Púnica, de Névio [...] Como no
poema de Névio, não havia herói particular; havia só um ‘herói’: a própria
Roma, a Cidade, como ser coletivo.” (p. 188-189)

“Tais eram os elementos diante dos quais estava Virgílio para escrever, por sua
vez, um poema épico: as tradições diversas, vindas do fundo das eras (Com
Homero) ou propostas pelos ‘modelos’ alexandrinos, ou, mais recentemente,
pela obra de Ênio, que era considerado, havia mais de século e meio, o ‘Pai’ da
poesia romana [...] <Virgílio> Preferiu realizar uma síntese” (p. 189-190)

“O herói do poema será Enéias, claro, mas este se erguerá antes de Roma, no
alto de uma linhagem que, de condutor de homens e triunfador, vem dar em
Otávio.” (p. 190)

“Durante os anos em que vivem em Nápoles, no retiro, só indo a Roma


raramente, Virgílio pode, enfim, realizar sua ambição: compor uma epopeia que
explique Roma, como, outrora, sonhara [...]” (p.190-191)

“Mas, da mesma forma que a tentativa de empreender um poema ‘sobre os


feitos romanos’, por volta de 41 a.C., não tivera, futuro, também o projeto de
uma epopeia cosmogônica, concebido talvez no momento em que a redação
das Geórgicas levara-o a interessar-se mais diretamente pelos fenômenos dos
quais dependia a vida rural (além de sua vocação, afirmada já na juventude,
pela ciência ‘matemática’), nem começou a ser executado.” (p. 191)

“Convém, pois, acreditar que a Eneida tenha sido a finalização, entre outras
razões e sentimentos que levaram Virgílio, a escrever, de uma longa ambição
obstinadamente afirmada.” (p. 192)

“Nada permite acreditar que outra pessoa, além de Virgílio, tenha tido, a
primeira ideia de Eneida.” (p. 192)

“[...] quando estava <Virgílio> para terminar a obra, ele foi tomado de
escrúpulos e desejou ir aos locais da Grécia e do Oriente por onde Enéias
passara.” (p. 193)
“[...] pode ser também que os ‘estudos’ de Virgílio, empreendidos no início do
poema, dissessem respeito às ‘ciências sagradas’ [...] se for verdade, como
supusemos, que Virgílio, após o triunfo de Otávio, acabou reconhecendo a
presença do divino no mundo, deve ter sido levado a interrogar-se sobre as
suas modalidades de ação, o que levava para pesquisas ao mesmo tempo
filosóficas e religiosas. Pesquisas que encarava então como primordiais- donde
o termo ‘preferência’ que aplica; preferência porque importam ao destino
humano, tanto quanto ao destino dos impérios e da própria Roma.” (p. 193)

“[...] Entrevemos aqui um Virgílio para quem não basta mais ser poeta, abrir
caminhos novos no bosque sagrado das Musas e dar a Roma o brilho de uma
glória desconhecida até então; ele quer ser portador de uma revelação para os
homens. Esta seria a origem da imagem de que se cobrirá quando, séculos
depois, for considerado um “mago” bastante inquietante pelos prodígios que lhe
serão atribuídos, mas bastante próximo da espiritualidade cristã para que Dano
o escolha como companheiro, pelo menos em parte de sua viagem.” (p.194)

“As pesquisas de Virgílio certamente compreenderam uma iniciação nos


escritos órficos e nas diversas doutrinas escatológicas correntes naquele
tempo.” (p. 194)

“[...] elementos diversos, aqui como no resto de sua obra, foram dominados e
combinados pelo poeta, que nunca se restringiu a seguir uma só e dada
doutrina, mas inspirou-se em várias, desde o platonismo até as crenças
tipicamente romanas, sobre o destino que aguarda as almas depois da morte.”
(p. 194)

“[...] Virgílio podia dispor de múltiplos conhecimentos para apoiar seu mito da
“nova idade de ouro”: neopitagorismo, por certo, poemas sibilinos, mas talvez
também messianismo judeu, do qual pode ter sido informado pelos judeus da
diáspora que viviam em Roma e manifestaram ruidosamente sua tristeza
quando César foi assassinado.” (p. 194)

“A tradição antiga afirma que Virgílio começou seu poema imediatamente após
a conclusão das Geórgicas, ou seja, o mais tardar, em 28, talvez já no fim do
ano 29. Dois anos (ou um ano e meio) depois dessa data, ele nada tinha
escrito ainda que lhe parecesse satisfatório.” (p. 195)
“Cada canto da Eneida teria extensão semelhante à dos quarenta e oito cantos
homéricos, o que faria com que esse poema latino fosse quatro vezes menos
longo que o conjunto das duas epopeias atribuídas a Homero. Assim, desde o
princípio, Virgílio fixara, para sua obra, dimensões relativamente restritas”
(p.195)

“O centro do poema seria a descida de Enéias aos Infernos. Esta se situaria no


canto VI e com ela terminaria a primeira parte da epopeia que, no espírito do
próprio Virgílio, devia ser uma espécie de Odisseia, que narrasse as viagens de
Enéias, desde Tróade até o desembarque Lácio. Os seis cantos seguintes
eram uma Ilíada, rememorando os combates de Enéias e dos troianos contra
os povos indígenas agrupados em torno de Turno” (p. 196)

“[...] nele, o Tempo não é linear, não é o lugar de contingente, inas das causas.
[...] O futuro, em todo o universo, está incluído em uma série de ciclos. [...]
Nessa perspectiva, a marcha do tempo, na Eneida, não seria uma marcha
comum: está pontuada por marcos -a série de falsas esperanças e de
desembarques em terras que logo é preciso abandonar, na Trácia, em Delos,
em Creta, na Sicília; depois a morte de Anquises, que ocorre logo após a
chegada a Cartago: um ano se escoa durante a estada junto a Dido e é no
aniversário da morte de Anquises que Enéias volta para a Sicília, para celebrar
os jogos rituais junto ao túmulo. Todos esses acontecimentos encadeiam-se
em uma série de causas, cada um desejado pelos deuses (e pelo Destino),
mas a origem dessa série não está clara para o herói que procura [..]” (p. 197)

“Ademais, no interior desse tempo repleto de finalidade, delineia-se outro, de


duração maior: os desembarques em regiões do Egeu [...]” (p. 197)

“Em Cartago, a presença de Enéias acaba com uma maldição, e as duas


cidades -Roma e o reino de Dido- deverão, mais tarde, afrontar-se. Na Sicília, a
impregnação troiana é mias profunda. Já se adivinha que algumas de suas
cidades -precisamente aquelas em que os troianos de Enéias encontram seu
compatriota Acestes e onde a terra recobre os ossos de Anquises- prestarão
fidelidade a Roma, o que ocorreria durante a primeira guerra púnica, quando as
cidades do oeste da Sicília favorecerão as armas de Roma. À medida que o
tempo, assim estruturado, vai-se desenrolando, vemos a formação do Império
de Roma, nas brumas do futuro.” (p. 198)

“[...] sabemos que Virgílio, depois de escrever em prosa, o conjunto de Eneida,


tomava, aqui e ali, algum episódio ao sabor da fantasia, e compunha seus
versos sem se preocupar com a ordem. Era o momento da inspiração, à qual
dava livre curso.” (p. 198)

“[...] a poesia de Virgílio não repousa numa escritura minuciosa, laboriosa,


verso após verso, mas na continuidade do discurso cujo arrebatamento é
quase igual ao do orador. [...] É verdade que era muito sensível à perfeição
formal e não renunciara a ‘lamber’ por longo tempo os versos informes, como
fazia nas Geórgicas, mas o essencial não estava no ‘prazer’ da beleza, mas na
comunicação de uma verdade interior, percebida instintivamente pelo poeta.”
(p. 200)

“Sabemos, através de Ênio, citando Cícero, que os povos itálicos -e entre eles
os romanos- confundiam, na origem, poetas e adivinhos, com o termo único
vates, que os modernos traduzem por falta de coisa melhor, por duas palavras:
‘poeta inspirado’. [...] Para um romano, um vates é o porta-voz dos poderes
imanentes ao que é [...] no tempo de Augusto a palavra vates recuperou sua
significação plena: não há mais desdém; o poeta é o portador de uma
mensagem que o ultrapassa, que vem do mais profundo do seu ser” (p. 200-
201)

“[...] Poesia e filosofia unem-se então, se for verdade que o filósofo descobre a
Verdade e que o poeta a comunica naquilo que ela tem de inexprimível em
termos racionais. Virgílio está perfeitamente consciente desse caráter quase
pítico da poesia em geral, e da sua em particular.” (p. 200)

“Para Virgílio, a poesia só adquire sentido pleno quando animada pela voz do
poeta- ou do aedo. [...] Essas leituras feitas por Vorgílio logo tiveram grande
repercussão. Correu o boato, nos círculos literários, de que uma obra de
grande porte estava nascendo.” (p. 202)

“Quaisquer que possam ser suas intenções metafísicas e o efeito que dela se
possa esperar sobre as almas, uma epopeia, essencialmente, conta uma
história e, como dissemos, deve mostrar que essa história traduz um momento
do Universo. A iluminação provocada na alma de Virgílio pelo triunfo de Otávio
lhe sugerira remontar bem longe no tempo, até os princípios fundamentais do
destino romano e a dinastia dos reis troianos.” (p. 203)

“[...] desde o século V, a personagem Enéias está presente em solo italiano,


pertíssimo de Roma, na cidade etrusquizada de Veios, onde se encontraram
estatuetas arcaicas que mostram Enéias carregando nos ombros seu pai
Anquises; esses ex-votos da piedade popular demonstram simplesmente que a
lenda de Enéias, de sua partida de Tróade depois da queda de Ílio, era
conhecida por todos em terras etrucas, pelo menos em torno de 450 a.C.,
sendo certo que deve ter penetrado muito antes.” (p. 203)

“[...] a personagem Enéias pertencia às tradições, múltiplas, que ligavam os


tempos mais antigos das cidades italianas aos heróis do ciclo troiano.” (p. 203)

“Às vezes conta-se que a fundação de Roma se deve a Ulisses e a Enéias,


reconciliados. Ou então consta que a Cidade foi fundada por Enéias apenas,
que lhe dera esse nome em homenagem à filha Rhomê (que em grego significa
força).” (p. 204)

“Parece evidente que o nome Enéias é relativamente recente (talvez do século


IV a.C.) e que foi dado a uma sepultura muito mais antiga. Mas, no tempo de
Virgílio, essa atribuição era considerada perfeitamente autêntica: segundo se
acreditava, Enéias desembarcara nas praias vizinhas de Lavínio e talvez
tivesse até fundado a cidade; em todo caso, casara-se com Lavínia , filha do rei
indígena e morrera às margens do riozinho que atravessava a região, o
Numico; lá fora divinizado e seu 'túmulo’ era apenas um cenotáfio erguido em
sua memória. E Virgílio pudera ver com seus próprios olhos esse vestígio
‘manifesto’ deixado pelo herói do seu poema.” (p. 204)

“Pouco a pouco essa ideia de uma origem troiana de Roma impusera-se aos
espíritos.” (p. 205)

“No século III, [...] Timeu de Tauromênio (atual Taormina) vem visita Lavínio e o
Lácio; no local fica sabendo que Lavínio conserva os penates de Tróia, lá
depositados desde a vinda dos troianos. [...] Esses penates desempenham
papel importante na Eneida: são depositários e símbolo da ‘raça troiana’, uma
espécie de fragmento arrancado ao solo frígio, à pátria. Onde estiverem estará
a pátria. [...] Os penantes são o coração, a raiz profunda. Também são a fonte
do poder; estáveis, imortais, resistirão a todas as revoluções e a todas as
viagens.” (p. 205)

“Durante uma escala dos troianos em Creta, eles aparecem em sonho a


Enéias, para lhe dizerem que o verdadeiro lugar onde os Destinos querem que
funde a nova Tróia se encontra mais distante, a oeste, na ‘Hespéria. E
acrescentam algo muito importante: que essa terra, ‘antiga, de armas
poderosas e solo fecundo’ é a pátria original dos penates e que a viagem que
estão fazendo, nos navios de Enéias, é apenas um retorno.” (p. 205-206)

“[...] Segundo ele, Catão, o censor, chegam ao Lácio Enéias e seu pai
Anquises (segundo Virgílio, este morre na Sicília, como dissemos); ambos
fundam uma cidade, que chamam de Tróia, e o rei do país, Latinus, concede-
lhes um pequeno território e depois dá sua filha em casamento à Enéias. Mas
os troianos revelam-se saqueadores e suas depredações provocam uma
guerra, ao fim da qual Latino é morto e (seu genro?) Turno, rei dos rútulos (um
povo vizinho), deve refugiar-se junto ao rei etrusco Mezêncio. Ambos
recomeçam a guerra. Turno é morto por Enéias, que não demora a
desaparecer, afogado nas águas do Numico e, como mais tarde Rômulo é
transportado para o convívio dos deuses. Ascânio, filho de Enéias, dá
prosseguimento à luta contra Mezêncio, que é finalmente vencido. Trinta anos
depois, Ascânio abandonará Lavínio e irá fundar a cidade de Alba, mais ao
norte. Todos esses nomes, essas personagens, vão ser encontrados na
Eneida e povoar o poema como protagonistas e figurantes” (p. 206)

“No Oriente existiam vestígios que eram vinculados à migração dos troianos
conduzidos por Enéias em direção ao oeste. A eles eram atribuídas fundações
de cidades e santuários em diversas regiões.” (p. 207)

“[...] Menécrates de Xanto, que (provavelmente no século IV a.C.) adota a tese


de traição e acrescenta que Enéias tornou-se ‘um dos aqueus’ em decorrência
da ajuda que lhes dera. Tais afirmações permitem compreender melhor por que
esse troiano, inimigo dos gregos (os aqueus), é, apesar disso, considerado um
herói heleno. Virgílio fará dele um hóspede e amigo do arcadiano Evandro. Isso
também explica como os gregos puderam atribuir a Enéias fundações em
quase todas as partes do solo helênico.” (p. 208)

“Dionísio de Halicarnasso fica visivelmente incomodado com a proliferação de


lendas referentes à Enéias; esforça-se por mostrar que é natural encontrar, em
diversos lugares, vários túmulos de Enéias: uma vez que só um deles deve ter
contido o corpo do herói, não resta dúvida de que várias cidades, que lhe
deviam reconhecimento, erigiriam cenotáfios ou heroa, santuários como os
dedicados aos fundadores de cidades. Pois Enéias, era considerado, em todo o
mundo mediterrânico, um herói benfeitor.” (p. 209)

“[...] Já antes de Virgílio, ele <Enéias> é o herói ‘bondoso’ por excelência, e


dizia-se que os deuses o protegiam justamente em razão dessa virtude.” (p.
210)

“[...] No século I a.C. essa foi uma mania dos que estudavam antiguidades e
Virgílio lhes fará eco no livro V da Eneida, ao enumerar os participantes das
regatas, afirmando que do troiano Sergesto se originara a gens Sérvia; do
troiano Mnesteu, a gens Mêmia; de Cloanto, a gens Cluência. Fazia essas
correspondências apoiando-se, com muita probabilidade, em um tratado
publicado por Varrão por volta de 37 a.C., intitulado ‘Sobre as Famílias
Troianas’ (De troianis familiis).” (p. 212)

“Assim, estava traçada a linha condutora do poema: na origem, estava a


fundação de Tróia, a vinda de Dárdano, chegado de Cortona, a terras etruscas,
para ir ao Oriente, onde o rei de Tróia, Teucro, o acolheu com benevolência e
deu-lhe a mão de sua filha, Batéia. [...] Depois, a partir desse momento,
desenrolava-se a genealogia que conduzia a César [...] Genealogia
perfeitamente satisfatória para os romanos do século I a.C, que ficavam felizes
por não pertencerem a um ramo troiano que passava por Laomedonte e
Príamo (o primeiro, traidor; o segundo, infeliz); mas por Assáraco e Anquises,
que estavam livres da maldição lançada pelos deuses contra o outro ramo.” (p.
213)

“A partir de Enéias tudo ficava mais claro e mais próximo. Iulus fundara Alba,
ou talvez (esta era a variante ‘cesariana’) se tivesse tornado o grande pontífice
dessa cidade, fundada por seu meio-irmão Sílvio; e a sequência de reis de Alba
se desenrolava até o nascimento de Rômulo e Remo, oriundos dos amores de
Réia (também chamada Ília) com o deus Marte.” (p. 214)

“Virgílio tirou dessa massa enorme de lendas e tradições uma obra cuja
unidade é admirável. Já começa bruscamente, depois de apenas alguns versos
preparatórios que limitavam o assunto à partida de Enéias, expulso de Tróia, e
suas aventuras até o momento em que ele encontra suas raízes no Lácio.” (p.
214-215)

“Enéias voga em mar calmo, vem da Sicília e dirige-se para Itália. A deusa
Juno vê essa frota do alto do Olimpo, e seu coração se enche de cólera, pois,
inimiga dos troianos desde que Páris lhe recusou a primazia da beleza para da-
lá a Vênus, persegue-os com seu ódio. Obtém facilmente do velho Eolo, que
guarda os ventos encerrados em uma caverna, na ilhas Líparas, que
desencadeie seu poder e provoque uma tempestade que, segundo descrição
célebre, dispersa os navios troianos, engole alguns deles e joga o resto na
costa da África. Ao perceber o desastre, Netuno restabelece a calma. Os
troianos atracam no território da cidade de Cartago, onde reina a fenícia Dido.
Vênus pergunta a Júpiter por que os troianos sofrem tantos infortúnios. O deus
a reconforta e lhe mostra os Destinos, de Enéias até César, cuja apoteose
evoca.” (p. 215)

“Entretanto, um grupo de troianos, separado de Enéias pela tempestade,


conseguiu atingir o mesmo porto de Cartago e vai apresentar-se à rainha.
Nesse ínterim, Enéias, que aportou numa pequena enseada sombreada por
uma floresta com os outros navios, explora a região. Encontra Vênus, que lhe
parece com o aspecto de jovem caçadora. [...] Vênus vem (como, aliás,
Nausícaa) dar informações ao herói sobre a região em que ele se encontra e,
dizendo-se ‘instruída na arte dos áugures’ [...] Tendo reconfortado Enéias
desse modo, ela reassume a aparência divina [...] e será sempre assim, em
todo o resto do poema: as divindades aparecem a Enéias, mas sempre em
sonho, ou sob algum disfarce, o que confere certa incerteza à sua presença.”
(p. 215-216)
“Ao deixar Enéias e Acates, Vênus tornou-os invisíveis. É desse modo que
chegam à cidade de Cartago [...] e logo vêem seus companheiros entrar
cercados de guardas; vêem-nos apresentar-se à rainha Dido e ouvem as
palavras favoráveis que ela pronuncia. As lutas travadas por Tróia contra os
gregos são conhecidas por todos e isso basta para angariarem a simpatia de
Dido. Naquele momento, a nuvem que circunda Enéias se abre e ele aprece
aos olhos da rainha, marcado pela beleza que sua mãe espargiu sobre ele.
Primeiro encontro desses dois seres que vão conhecer os tormentos do amor.”
(p. 216-217)

“Vênus que, do alto do céu, assiste a essa cena, fica preocupada: sabe que
Cartago é a cidade de Juno e teme por Enéias, se ele se demorar no domínio
da inimiga. [...] Aqui Virgílio retoma a censura tradicional que os romanos
dirigem aos cartaginenses: a má-fé, já numa alusão à violação de tratados
durante a primeira guerra púnica e sobretudo a segunda, a de Aníbal. Vênus,
para proteger o filho, recorre às armas que conhece bem: fará que Dido se
apaixone por ele [...] (p. 217)

“<Virgílio> constrói sua epopeia nos moldes de uma história [...], todavia, o
poeta não fala em anos, mas em verões [...] Verão: essa é a estação em que
se pode navegar, que vai de abril a outubro. [...] O verão é a época em que
‘acontece alguma coisa’, em que a existência quotidiana deixa de ser essencial
e dá lugar à aventura. Essas aventuras de Enéias são narradas pelo próprio
herói no banquete da rainha, na própria noite da chegada. Constituem a
matéria dos atuais livros II e III; o segundo livro trata a queda de Tróia, dos
combates e dos prodígios decorrentes e termina com a partida de Enéias [...] o
terceiro livro é das navegações, desde Tróia até a Sicília, e termina com a
recordação, em um único verso, da tempestade que empurrou a frota troiana
para as costas africanas.” (p. 217-218)

“Assim como Ulisses na Odisséia, Enéias vai, pois, contar a seus anfitriões,
durante um banquete, o que lhe aconteceu depois da tomada de Tróia.” (p.219)

“Virgílio, portanto, inspirou-se nos ‘relatos feitos de Alcínioo’, na maneira como


construiu os três primeiros livros da Eneida: uma tempestade, um naufrágio e
um retorno ao passado. Mas a imitação não vai além disso e só diz respeito à
estrutura formal.” (p. 219-220)

“Um dos problemas enfrentados por Virgílio, que não podia ser resolvido se os
detalhes da ação fossem redigidos em prosa, era o ‘caráter’ que convinha
atribuir a Enéias. [...] Seu herói não era uma daquelas personagens cujo
caráter já forra fixado por uma longa série de poetas.” (p. 220)

“Contando a última noite de Tróia, Enéias não demonstra nenhum orgulho por
ter participado da catástrofe ilustre. [...] Quando os troianos se questionam,
diante do cavalo gigantesco deixado pelos gregos na praia, e uns afirmam que
é preciso aceitar o presente e leva-lo para a cidade, enquanto outros o
consideram suspeito e querem ter certeza de que não representa nenhum
perigo, ignoramos a opinião de Enéias; [...] Mas cai a noite e, em sonho, ele vê
Heitor que lhe revela o perigo. Heitor escolheu-o por considera-lo o único capaz
de salvar o que pode ser salvo. Enéias sente-se então investido de uma
responsabilidade sagrada: levar para longe da batalha e da pilhagem os
objetos santos, em especial os penates aos quais está ligado o ser místico da
cidade.” (p. 221)

“Pouco a pouco Enéias vai compreendendo as dimensões e as razões da


catástrofe: são os deuses que estão destruindo Tróia. [...] se Enéias é
escolhido para garantir a sobrevida da cidade [...] é porque pertence a outra
estirpe, de Assácro.” (p. 222)

“Condutor de um povo à procura de uma terra, Enéias é o intermediário


escolhido pelos deuses e pelo povo para estabelecer a comunicação
necessária entre o divino e o humano. Desempenha o papel que mais tarde
pertencerá aos imperatores da República; é, ele que, como estes, consulta os
deuses e toma os auspícios.” (p. 223)

“Enéias, ao penetrar na cidade erigida por Heleno à imagem de Tróia, é


tomado por forte emoção e abraça a soleira da porta, num reflexo de romano:
uma soleira, seja ela da porta de uma cidade ou de uma casa, é lugar sagrado,
que possui divindades protetoras. Enéias reencontra, diante da porta da cidade
de Heleno, o equivalente dos deuses de Tróia que durante tanto tempo
proibiram aos gregos de transpô-la [...] Enéias, em virtude da própria missão
que lhe foi confiada ou, melhor, imposta, prefere os deuses como
companheiros.” (p. 224)

“Mas o longo relato termina, Dido sente uma ferida secreta: fiel até então á
memória do marido Siqueu, não pensara em casar-se de novo” (p. 224)

“Começa então a cena que dá impressão de ter sido retirada de uma tragédia
[...]” (p.224)

“[...] a irmã de Dido, Ana, é sua confidente, e naturalmente como fazem as


confidentes do teatro, suscita tentações. Representa os movimentos da
natureza em face dos juramentos que Dido faz a si mesma, e seu discurso é
digno do retórico mais consumado: por que sacrificar a cinzas inanimadas
juventude e a esperança de ter filhos? Ela já afastou muitos pretendentes, mas
não sentia atração por eles.” (p.224)

“Foi um deus que enviou os troianos e Enéias para garantir a segurança e


futura glória de Cartago” (p.224)

“Ficamos sabendo incidentalmente que a estação da navegação está


terminada naquele ano: circunstância favorável na qual Ana insiste,
comportando-se, assim como uma ama de teatro.” (p.225)

“Isso indica que Virgílio fora atraído, inicialmente, por três dos assuntos de que
devia tratar: a última noite de Tróia, assunto muito patético e pitoresco, muitas
vezes retomado pelos poetas trágicos, tanto na Grécia quanto em Roma; o
romance de Dido; e finalmente, o canto da descida aos infernos. Dessa forma
a peça ia progredindo e o poeta ia sendo obrigado, à medida que Enéias ia
sendo colocado em condições diferentes, a definir sua personagem e suas
relações” (p.225)

“[...] Enéias e Dido, surpreendidos por uma tempestade de granizo, se refugiam


sem escolta numa gruta. Lá, Juno (divindade do casamento) age de tal maneira
que eles se unem em núpcias presididas pelas grandes forças da Natureza:
Tellus, a Terra [...]” (p.225)

“Dido, porém, não se preocupa com o presságio; entrega-se totalmente á


felicidade[...]” (p.226)
“O casamento romano em nada era um “sacramento”; consistia essencialmente
em uma promessa mútua [...]” (p.226)

“Ora Dido não obteve esse compromisso de Enéias; ela não está “casada” de
verdade; sua união é resultado de um arrebatamento dos sentidos. Além disso,
a rainha não cumpriu o juramento de continuar fiel a Siqueu, seu primeiro e
único marido.” (p.226)

“Quando Júpiter, informado do que se passa lá, envia Mercúrio, seu


mensageiro, para lembrar a Enéias que se os Destinos não lhe permitem ficar
em Cartago [...] Abandonará Dido para obedecer ás ordens do deus” (p.226)

“[...] Dido profere contra Enéias e sua raça imprecações que se realizaram.
Invoca um vingador desconhecido – e todos pensam em Aníbal; desejam que
Enéias morra prematuramente e fique sem sepultura” (p.227)

“Dido, abandonada pelo troiano[...] transpassa-se com a espada que


pertencera a Enéias e morre sobre a pira que ela mesma prepara no alto do
palácio” (p.227)

“Saindo de Cartago, os troianos aportam na Sicília. É o dia do aniversario da


morte de Anquises. Virgílio tem o cuidado de nos dar essa indicação
cronológica. Da mesma forma que as oferendas do tumulo (vazio) de Heitor
anunciavam os Lemuria de maio, também os jogos fúnebres celebrados em
homenagem a Anquises [...] Do mesmo modo Enéias consagra nove dias a
honrar o pai, antes do começo dos jogos. (p.228)

“ [...] “livros de Anquises”. Neles, Enéias vai descobrindo progressivamente o


caráter divino de seu pai” (p.228)

“Anquises, na tradição anterior á Eneida, não morria antes de os troianos


atingirem o objetivo da viagem; consta que, se Virgílio o faz morrer na Sicília, é
por motivo de convivência, pois teria sido indecente a aventura amorosa de
Enéias desenrolar-se sob seus olhos” (p.228)

“Então chega o momento de içar as velas uma alegria deliciosa percorre a alma
Enéias. A frota voga em mar calmo, tão calmo que o piloto do navio de Enéias,
Palinuro, deixa-se enganar pelo sono e cai na água, Enéias percebe depressa
a ausência do piloto e toma o comando do leme; logo chega sem outro
acidente as costas de Cumas” (p.230)

“Por que essa morte de Palinuro? [...] Mas por que Virgílio teria achado
necessário fazer isso? [...] Assim Palinuro será sacrificado pela salvação da
frota, vítima expiatória. Palinuro é inocente.” (p.230)

“Já vimos que a estada de Enéias na Sicília começa a 12 de fevereiro, véspera


dos Parantalia. Veremos também que o seu desembarque em Palanteu (no
local da futura Roma) coincide com a festa do Grande Altar (Ara Maxima)
consagrada a Hercules.” (p.230)

“E, quando Enéias chega a Cumas, ouve da Sibila que, tão logo terminem os
trabalhos, sejam prestadas honras fúnebres ao trombeta Miseno, que acaba de
matar o deus marinho Tritão, que invejava seu talento” (p.231)

“Assim pouco a pouca, somos conduzidos, para a descida de Enéias aos


Infernos, a uma data muito próxima daquela em que, todos os séculos,
deveriam ser celebrado os Jogos Seculares, no último dia do mês, na noite de
31 de maio para 1 de junho, cuja intenção era marcar o fim de um ciclo, de um
saeculum, e o começo de outro, em que se esperava a renovação do mundo.”
(p.231)

“É dessa forma que, fazer Enéias chegar ao sitio de Roma em 12 de agosto,


Virgílio revela intenções que não podiam passar despercebidas a seu público:
aquele dia véspera da data em que, em 29, Augusto começara a celebração de
seu triplo triunfo” (p.232)

“[...] da maneira como Virgílio compôs seu poema, isso só acarreta


consequências bastante importantes. Pois, como o conjunto foi inicialmente
escrito em prosa em sua estrutura geral e, evidentemente, com os episódios
que vinham, aqui ou ali, inserir-se no plano do conjunto, era preciso que
Virgílio, desde a origem (ou seja, desde 29), tivesse previsto tudo isso e
dominasse suas intenções e alusões, pelo menos as que dizem respeito à
organização do poema” (p.233)

“Certas correspondências eram fáceis de estabelecer, como as maldições de


Dido, realizadas pela guerra de Aníbal; a celebração dos jogos Solenes em
Áccio por Enéias que prefiguravam os que deviam ser instituídos por Augusto
no mesmo local após a vitória; a fundação de Segesto por Enéias, que
explicava a antiga aliança entre Roma e essa cidade; tudo isso pertencia ao
domínio público e podia ser previsto desde a versão prosa.” (p.233)

“[...] Virgílio mostra que está a par dos desígnios de Otávio, da maneira como
ele entende situar-se em relação às divindades.” (p.233)

“[...] aquele momento, vira, sentira e compreendera o presente de Roma, ao


situá-lo no conjunto do futuro. Essa era, como sabemos, a própria essência da
visão épica” (p.234)

“Graças a Virgílio e através dele, os romanos tomavam consciência de seu


lugar no universo e da missão que lhes fora confiada pela Providência [...]”
(p.234)

“Virgílio deu, nesses três versos célebres a fórmula do Império, tal qual
Augusto acaba de fundar novamente: o imperialismo de Roma [...]” (p.234)

“Mas eis que Enéias, filho modelo, que enfrenta os terrores do além para
reencontrar o pai e propor aos romanos o exemplo da pietas, esse amante
dorido, que nunca esqueceu Dido, que a encontra nos Infernos e chora diante
da vontade cruel dos deuses que os separaram [...]” (p.235)

“[...] diz-se que Enéias passou a ter esse espírito decidido depois da revelação
explicita feita por Anquises nos infernos, ficando a partir daí seguro de si e de
seu destino.” (p.235)

“Enéias teria mesmo mudado, de uma metade á outra do poema? É verdade


que ele não hesita mais diante dos desejos divinos que antes discernia mal.
Sabe para onde vai. Mas comporta-se como Imperator que tomou os auspícios
e os achou favorável” (p.235)

“Na segunda metade do poema, depois de definir a missão civilizadora e


filosófica de sua pátria, Virgílio encontrou o outro rosto de Roma o da violência
e da guerra.” (p.235)

Esse é um problema de que os romanos tiveram consciência desde a origem.


Para eles a guerra é um outro mundo, que tem suas leis próprias, bem
diferentes das leis da paz; um mundo onde se entra com ritos e de onde só se
pode sair outros ritos” (p.236)

“Essa diferença entre os dois domínios – o da paz e o da guerra –


materializada pelas portas do templo onde residia Jano. Se a porta estivesse
aberta, roma estava em estado de guerra [...] Se estivessem fechadas, eram as
leis e as virtudes do tempo de paz que regiam a cidade” (p236)

“Na medida em que Enéias personifica e simboliza a cidade romana, deve


conhecer esse aspecto duplo, sem que isso comprometa, no que quer que
seja, seu “caráter”, que continua imutável” (p.237)

“[...] Virgílio propôs uma imagem da maneira como um ser, até então tranquilo
e sensato, pode ser repentinamente tomado pelo furor [...] (p237)

“A guerra iniciada por Turno é apenas o tumulto de uma cólera na qual a razão
não desempenha papel algum. Não é de forma alguma, uma guerra “justa”.
(p237)

“Os camponeses dos arredores, os lenhadores da floresta acorrem com armas


improvisadas. A cólera e o sentimento de fúria apoderam-se deles” (p.238)

“E eles marcham contra o campo de troianos[...]e a batalha se inicia” (p.238)

“Virgilio [...] o poeta explica que, em Roma, a abertura das portas e, por
conseguinte, o início de uma guerra são cercados por um cerimonial que exclui
a cólera e os arrebatamentos passionais.” (p.238)

“[...] contrariamente aos Destinos e á vontade de júpiter, tem início uma guerra
sacrílega” (p.238)

“Até então Enéias sonhava com Roma, percebera seu fantasma nos Infernos;
agora, vai começar a construi-la [...]” (p.239)

“Outra surpresa é a escolha de Érato, que preside a poesia amorosa [...] Érato
ou outra Musa, é a mesma coisa” (p.339)

“Compreende-se, nestas condições, a escolha de Érato para presidir a esses


cantos. O destino do Lácio e do mundo depende, em última análise, desse
casamento: Turno foi escolhido por Amata, senão por Latino (os oráculos
incomodam-no) para ser esposo de Lavinia” (p.340)

“Mas a resistência de Latino e a contemplação de Lavinia despertam nele


outros sentimentos além da ambição. Vai combater Enéias como ao rival que
tenta arrebatar-lhe o objeto amado, e a invocação a Érato é perfeitamente
justificada.” (p.240)

“O destino do mundo não poderia ser regido dessa maneira, depender de um


arrebatamento e, finalmente, do acaso. Estamos aqui em situação oposta ao
romance de Dido [...]” (p.240)

“O casamento destina-se a transmitir, de geração em geração, o “sangue” da


gens; deve garantir a perpetuação da cidade: são as “núpcias justas” “ (p.240)

“[...] nascimento de filhos teçam vínculos cada vez mais estreitos entre os
esposos. Mas essa ternura não deve ser expressa publicamente a não ser em
raras circunstâncias, como, por exemplo, quando um falecimento atinge um ser
querido ou quando a ameaça de uma pena capital justifica um apelo á piedade
dos juízes – nesses casos é permitido evocar aquilo que se chama “penhores”;
pignora; filhos, esposa, parentes próximos cuja vida será arruinada pela
desgraça do acusado.” (p.241)

“Dessa forma a união de Enéias e Lavínia ocorrerá sem que ele tenha a visto e
nem ela ao futuro esposo” (p.241)

“Grande parte da nova Ilíada desenrola-se na ausência de Enéias. Depois do


desembarque na embocadura do Tibre, ele não foi ter pessoalmente com o rei
Latino, mas despachou embaixadores; dessa forma apresentava-se como
chefe de Estado e não com exiliado ou errante” (p.241)

“E o deus continua indicando que Enéias vai encontrar, deitada na margem,


uma porca branca, cercada de trinta filhotes que acaba de parir. Isso indicara
que a aparição do Tibre não foi uma quimera” (p.242)

“Além disso, o deus do rio indica a Enéias onde encontrara aliados: na cidade
de Palanteu, que foi fundada, nas margens do Tibre, por acadianos, vindos
para a Itália sob o comando de seu rei Evandro. Assim que acorda, Enéias
sente-se na obrigação de obedecer ao deus e escolhe dois navios da sua frota,
que manda armar e deixa prontos para subir o rio.” (p.242)

“Mas eis que o prodígio anunciado pelo deus acontece: uma enorme porca
branca [...] Enéias pega-a e oferece a mãe e a ninhada em sacrifício a Juno”
(p.242)

“Virgílio, é na verdade, diz expressamente que Juno é a beneficiaria desse rito,


mas deve-se pensar que ele transpõe, para o contexto do “romance” de Enéias
[...] a concepção que Virgílio tinha da terre: ser vivo, com psicológico própria;
dessa terra viva saíram os viventes” (p.243)

“Virgílio falava nas Geórgicas, indicando precauções que deviam acompanhá-


lo” (p.243)

“De fato, essa ideia de que os seres humanos, como os animais e as plantas,
são “filhos da terra” percorre toda a obra de Virgílio, desde a sexta Bucólica até
Eneide” (p.243)

“Ao aceitar tal concepção, magnificamente desenvolvida por Lucrécio, Virgílio é


fiel ao epicurismo Lucrécio tentara imaginar como poderia ter ocorrido esse
surgimento da vida [...]” (p.244)

“Na realidade a terra não era apenas objeto de relatos míticos, na religião dos
poetas, ou de especulações eruditas por parte dos filósofos; figurava no próprio
cerne das crenças e dos ritos da religião “popular” e “política” dos romanos.
Estava ligada em especial a religião dos mortos, e como tal desempenha papel
importante na Eneida.” (p.244)

“Recentemente chamou-se atenção para a significação das cerimonias


celebradas por Enéias em honra das cinzas de Anquises e para os prodígios
que então se produziram. Está claro que o poeta se refere a um ritual funerário
do calendário romano[...]” (p.244/245)

“Ora, essas crenças, cuja, origens seguramente remontam a muito aquém dos
primórdios da História, haviam se integrado na religião da Terra, explicando
vários de seus aspectos aparentemente heterogêneos e justificando o sacrifício
da porca.” (p.245)
“Sem renegar sua “ciência epicurista”, Virgílio transfigura-se a insere-a numa
visão mística que não desagradava as suas convicções providencialistas
recentemente adquiridas. Esse sacrifício a Juno (na realidade á terra materna)
simboliza o matrimonio que logo unirá Enéias á raça de Latino (na pessoa de
Lavinia) [...]” (p.246)

“Era preciso, pois, ganhar tempo, permitir que Enéias chegasse a Palanteu,
fosse hóspede de Evandro e obtivesse um contingente de aliados e que o
poeta apresentasse, indireta e implicitamente, o futuro da Cidade que um dia
deveria substituir Palanteu.” (p.247)

“[...] ocorre um prodígio. Por mais que Turno aproxime o fogo dos navios, estes
recusam-se a incendiar-se; é quando uma voz desencarnada ressoa e convida
os navios a romper suas amarras. Então os cascos começam a movimentar-se
sozinhos, deslizam para a água, mergulham no rio e reaparecem ao largo, sob
a forma de moças [...]” (p.248)

“Turno deveria ter compreendido o sentido do prodígio que acabava de ocorrer


sob seus olhos e reconhecer a mão de uma divindade nessa extraordinária
metamorfose” (p.248)

“Enéias antes de partir para Palanteu, ordenara aos troianos que ficassem
atrás das muralhas do campo e esperassem sua volta para tentar uma ação
em campo rase, e é obedecido. O cerco começa [...]” (p.248)

“[...] Muitas vezes, ao longo dos séculos, as legiões romanas estarão assim,
em face de bárbaros presunçosos, germanos, gauleses ou outros, que foram
vencidos pela disciplina férrea dos exércitos romanos” (p.249)

“Nessa mesma época, Horácio, nas Odes Cívicas, proclamava que é “belo e
doce” morrer pela pátria. Pode-se ouvir, tanto dele quanto em Virgílio um eco
desse grande desejo de glória que é o ideal mais profundo do século de
Augusto, esse desejo que, como dissemos, animava tanto Augusto quanto
Mecenas e seus amigos.” (p.250)

“[...] Virgílio descreve a morte de Niso, uma vez vingado o amigo “Então ele,
ferido de morte, se atirou sobre o corpo do amigo inanimado e finalmente ai,
encontrou o repouso na morte que lhe trazia paz?”” (p.250)
“Enéias só voltará algumas horas depois ao campo troiano. Ignora tudo o que
passou em sua ausência, mas os navios transformados em ninfas vão
encarregar-se de informá-lo.” (p.250)

“Mas aqui Virgílio está diante de uma dificuldade; certamente o mundo da


guerra implica outros modos de agir, opostos aos que são exigidos pelo mundo
da paz, mas Enéias, que o poeta, até então, só mostrou como pius, sensível
aos valores da humanistas, dificilmente pode revelar-se, de repente, cruel,
sanguinário, impiedoso.” (p.251)

“No momento que vai começar a guerra (início do décimo canto), Virgílio
introduziu um conselho dos deuses. Reunidos no Olimpo, em torno de Jupiter,
ouvem dois discursos: um de Vênus, que se queixa das intervenções de Juno;
outro, desta última, que ataca violentamente Enéias e advoga em favor dos
italianos que, segundo diz, estão com razão [...] pode-se ver nela o desejo do
poeta de transportar até o Olimpo costumes romanos e, ao mesmo tempo,
instituir um desses debates em que se advoga a favor ou contra, tão
apreciados pelos metres da retórica.” (p.252)

“Foi Juno que, ao desencadear a Fúria Aleto, deu origem a essa guerra.”
(P.252)

“Enéias por trás de uma nuvem, afastam Turno da batalha. Sua ação não é
infalível, pois não provém do Destino, mas de forças desordenas, cujo pertence
à Fortuna, ao domínio do contingente.” (p.253)

“Os troianos estão sitiados no campo, verifica Júpiter: talvez poque os Destinos
queiram a ruína dos italianos; talvez isso seja resultado de um erro dos
troianos: “conduzidos por presságios de infortúnio” [...]” (p.253)

“Enéias, portanto, “tem um mandato” do Destino para fundar Roma, mas isso
não implica que ele não deva lutar para realizar esse decreto do Fatum. Para
resolver esse problema, certos filósofos haviam imaginado aquilo que se
chamava argumento do menor esforço que dizia: se for seu destino morrer da
doença que o atinge, de nada adianta chamar o médico; se seu destino for
curar-se, isso é menos útil ainda. Nem os estóicos nem Virgílio aceitam esses
fatalismos, que não agradava ao espírito dos romanos, na medida em que
tendia a aconselhar a inação[...]” (p.254)

“[...] as divindades são concebidas por Virgílio como “demônios”, seres


intermediários, mais “sutis” que nós, mas ainda não totalmente desvencilhados
da matéria.” (p.255)

“Quando Virgílio ridiculariza – como faz no início da Eneida – a “teologia”


tradicional, que atribui as divindades paixões humanas demais, retoma as
críticas feitas pelos epicuristas aos poetas, que tornavam as divindades
criminosas ou simplesmente ridículas. [...]” (p.256)

“Mas Virgílio não se atém mais á doutrina de Epicuro, embora, no fundo, aceite
suas intuições essenciais (reconhecimento da importância da serenidade da
alma, vitalismo profundo, valores “naturais”, desprezo pelas riquezas –
demostradas pelo episódio de Evandro, aquele “rei pobre”)” (p.256)

“Essa visão do mundo é estóica? É platônico? Essa pergunta não tem mais
sentido no tempo de Virgílio, já que platonismo e estoicismo estão intimamente
misturados, desde o fim do século II a.C” (p.256)

“Compreende-se por que Virgílio, enquanto escrevia sua epopéia, pode


declarar a Augusto que devia, antes de empreender uma redação definitiva,
entregar-se a estudos “muito mais urgentes”” (p.257)

“Virgílio realizava um velho sonho. Enéias, combatendo na planície do Lácio,


diante de Turno, era ponto central em torno do qual tudo ia organizar-se.”
(p.257)

“[...] Virgílio chegou a Atenas e encontrou-se com Augusto. As notícias vindas


de Roma eram preocupantes. A designação dos cônsules para o ano seguinte
provocara distúrbios. Houvera mortes. Uma delegação fora a Atenas para
informar isso a Augusto” (p.260)

“Augusto decidiu voltar, renunciando talvez a um projeto de viagem pelo


Oriente, em campainha de Virgílio. Este decidiu segui-lo. Estava-se em pleno
verão (certamente no mês de agosto, já que as eleições consulares ocorriam
anualmente, em princípio, no mês de julho). O calor era forte. [...]” (p.260)
“Antes de sair da Itália, Virgílio pediria a Vário que, se não voltasse,
queimassem sua Eneida, inacabada e, em sua opinião, imperfeita demais.
Augusto, que talvez tenha assistido o amigo nos últimos instantes (sabemos
que ele só chegou de volta a Roma em 12 de outubro), não permitiu que se
destruísse essa obra, que ele tanto esperara e que sentia ser necessária ao
Império. Confiou sua edição a dois amigos do poeta, outrora hóspedes, como
ele, da vila de Sirão, L.” (p.261)

“Assim, graças a Augusto e á piedade dos amigos de Virgílio, a obra deste logo
apareceu em toda a sua amplitude e com toda sua significação para Roma e,
além disso, para todos os povos aliados e submetidos.” (p.261)

“Antes de Virgílio, a poesia chegava ao mundo grego aos “jovens poetas” , e ao


espirito romano só cabia papel secundário.” (p.262)

“Virgílio imaginou uma poesia que não era mais narrativa, mas que brotava as
próprias coisas [...] Graças a ele os romanos desse tempo e as gerações
sucessivas puderam pensar a pátria em sua realidade simultaneamente
material e espiritual, compreendê-la e amá-la” (p.262)

“Virgílio contribuiu muito, com cada uma de suas três grandes obras, para criar
a ideia de uma Itália eterna, unida na cidade de romana, uma Itália serena,
pura e forte naturalmente feliz na medida em que permanecesse fiel a suas
vocações” (p.262)

“Compreende-se os motivos que levaram Augusto a salvar Eneida: depois do


triplo triunfo de 29, exaltado por Virgílio, as dificuldades se acumularam para o
Príncipe.” (p.264)

“Tudo ficaria mais evidente, mais fácil, se graças a Virgílio, se descobrisse que
o destino havia preparado, de longa data, a Roma de Augusto. A Eneida foi
salva não só por ser bela, mas por ser importante para a salvação do mundo”
(p.264)

FIM

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