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Desde há uns anos que o tema das relações entre a sociedade Metropolitana e a
sociedade brasileira se tem vindo a libertar de algumas imagens historiográficas
translatícias, adoptando modelos de análise e pontos de vista que têm menos a ser
com os imaginários nacionalistas do que com a incorporação de perspectivas mais
modernas da historiografia geral.
Neste texto, abordo uma questão que interessa particularmente aos historiadores do
poder e das instituições e cuja compreensão necessita de alguns esclarecimentos
que a história do direito de Antigo Regime pode fornecer.
De algum modo, a tendência para andar à procura do leis especiais para o Brasil
quando se quer comprovar existência de um direito próprio é induzida pelo modo
como a historiografia espanhola tratou tradicionalmente o chamado “direito das
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Índias”. Na verdade, só muito recentemente – a partir de um livro do historiador
argentino Vítor Tau Antzoategui 1 – é que a concepção de “direito das Índias” como
complexo de leis da coroa foi substituída por uma concepção de direito construído
pela prática - eventualmente, pela prática dos tribunais – nos espaços que o direito
comum clássico deixava à regulamentação local, consuetudinária ou judicial.
É certo que a monarquia portuguesa emitiu algumas leis para o Brasil, embora em
menor quantidades do que as editadas pela monarquia espanhola para a sua
América 2 . Em todo o caso, se se procurara pelo direito do Brasil colonial, é
minimamente aí que ele se encontra. Diria mesmo que a maior parte destas
providências vindas da corte indiciam - quando não as referem expressamente -
zonas de incumprimento do direito real e, portanto, de existência de um direito
próprio.
1 Tau Anzoategui (1992), Vitor, Casuismo y sistema, Buenos Aires, Instituto de Investigaciones de
Historia del derecho, 1992.
2 O projecto ius Lusitaniae, dirigido por Pedro Cardim e Ângela Barreto Xavier, disponibilizará em
suporte electrónico, uma boa parte dessa legislação. Outra banda dispersa, até porque nem sempre
revestia a forma mais solene, a de carta de lei, consistindo frequentemente em cartas régias,
provisões, portarias, alvarás, regimentos, contendo instruções, por vezes dirigidas a uma pessoa em
concreto. De facto, para além de tudo, nunca podemos perder de vista que o actual conceito de lei
para compreende, nas práticas formulares de Antigo Regime, uma vasta pluralidade de tipologias
documentais. O próprio CCM lista uma séria importante de providências normativas, em geral
relativas aos distritos auríferos de Minas (p. 352-370.
3 Códice Costa Matoso. Colecção das notícias dos primeiros descobrimentos da Minas na América
que fez o Doutor [...] Ouvidor-Geral do Ouro Preto, que tomou posse em Fevereiro de 1749, coord.
geral de Luciano Raposo de Almeida Figueiredo e Maria Verónica Campos; estudo crítico de Luciano
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R. de Almeida Figueiredo, S. Paulo, Biblioteca Mário de Andrade, s/d [?], 2 vols.. Citações ulteriores:
CCM.
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Dou um exemplo tirado de uma decisão real (embora aqui algo simplificada), que
não é brasileiro, embora trate de um assunto com relevância para o Brasil. Se um
pai, em testamento, legou uma escrava a um filho e, à data da morte testador, desta
tinham nascido cinco filhos, estes fazem parte do legado ou devem ser considerados
como incluídos na massa da herança, a dividir pelos herdeiros ? A resposta a esta
questão depende da qualificação doutrinal que fizermos dos objectos “escrava” e
“filhos de escrava”. Se estes forem tidos como frutos da coisa legada, não entrarão
na herança, de acordo com a regra de direito comum de que os frutos seguem o
destino da coisa principal. Se forem considerados como objectos independentes da
sua mãe, não se consideram legados e entrarão, por isso, na partilha do
remanescente da herança 5 .
É certo que existia o princípio de que se devia decidir pela opinião comum,
incorrendo numa violação deontológica e até em pecado, o jurista que
As próprias leis do Reino não estão da salvo deste entendimento de que o direito
tem muitas faces, abrindo mais questões do que aquelas que fecha.
O que alguns (mas não outros) querem é, portanto, que haja um norte, uma regra
certa, nas interpretações: “Assim como o leme é o governo da embarcação assim
são os despachos para os contadores, e faltando nestes a clareza a respeito das
condenações já se põem os contadores a adivinhar, e disto nascem dúvidas
causadas das interpretações que cada um dá aos despacho, conforme lhe faz mais
Mas havia mais motivos de incerteza. É que, até aos meados do séc. XVIII, as
próprias leis reais podiam ser embargadas - ou seja, não apenas não obedecidas,
mas ainda positivamente impugnadas na sua validade). Os motivos podiam ser
vários. Os mais comuns eram, porém, ou a arguição de que o rei estava mal
informado 7 , ou da invocação de que a providencia régia lesava direitos adquiridos.
Um exemplo do último tipo foi o que aconteceu, por exemplo, em relação a várias
leis que fixaram o regime da capitação do ouro nas Minas Gerais, contestadas pelas
câmaras e pelos contratadores e embargadas por alguns destes 8 , quer com o
fundamento em que eram contra direito 9 , como ainda com base na irrevogabilidade
7 For mera falta ou por ocultamento doloso da verdade (obrepção e subrepção, respectivamente).
Arguição particularmente adaptada à situação colonial, que o rei não conhecia senão indirectamente,
por intermédio de ministros que podiam esconder informações relevantes.
8 Cf. embargo contra da lei de 3.12.1750, que fixou a oitava de ouro em 1200 reis, oposto por
contratador (CCM, I, 558).
9 Num Papel acerca de como se estabeleceu a capitação nas Minas Gerais, datado de 1749, que
assim fica-se o regime legal como contrário “a todas as disposições das leis e de direito” (CCM, I, p.
492); num outro parecer contra a capitação, de 1751, pode ler-se “da mesma sorte, se consultarmos
juristas sobre o ponto da promessa que em 24 de Março de 1734 fizeram os procuradores das
câmaras ao Conde das Galveias, prometendo fazer certo o número do cem arrobas em que se funda
a sempre venerando lei, estes hão-de de declarar que este fundamento é contrário às regras de
direito [...]” (CCM, I, 543).
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dos contratos anteriormente firmados pela coroa e que as novas leis viessem alterar.
É justamente por esta época que a admissibilidade de embargos em relação às leis
do rei começam a ser considerados como “indecentes” na Europa, nomeadamente
porque se entende que um monarca iluminado não pode emitir leis contrárias à
razão do direito. Mas, os obstáculos da distância, a distorção da informação, ou do
carácter exótico e diferente das colónias, bem poderiam, neste caso, explicar ainda a
falta de informação.
10 Porém, uma junta nomeada pelo Governador e Capitão Geral da Capitania de Minas, decide o
contrário, contra este e outros rendeiros, Ridicularizando, en passant, a decisão do procurador da
coroa local; 1751, cf. CCM, I, 604 e seguintes.
11 Cf. António Manuel Hespanha, Cultura [...], cit., cap. 6.3..
12 "Lex est sanctio sancta, sed consuetudo est sanctio sanctior, et ubi consuetudo loquitur, lex manet
sopita" [a lei é uma sanção santa, mas o costume ainda é mais santo, e onde fala o costume, cala-se
a lei] (Consuetudines amalfitenses); Hespanha, 1989, 291 ss.
13 Cf. António Manuel Hespanha, Cultura [...], ibid.
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contra o direito comum do reino enquanto manifestação de um poder político,
podiam derrogá-lo enquanto manifestação de um direito especial, válido no âmbito
da jurisdição dos corpos de que provinham. E, nessa medida, eram intocáveis. Pois
decorrendo estes corpos da natureza, a sua capacidade de autogoverno e de edição
de direito era natural e impunha-se, assim, ao próprio poder político mais eminente.
14 Ou seja, valores políticos eram transformados em valores jurídicos porque o direito permitia que
valores externos fossem recebidos em nome de conceitos genéricos [vazios, indeterminados], como
“utilidade pública”, “bem comum”; ou porque o direito reconhecia como jurídicos os valores já
admitidos pelos dados da vida social (“posse de estado”); ou ainda porque o direito incorporava os
comandos de uma razão natural acerca das relações humanas.
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Nesta constelação, cada ordem normativa (com as suas soluções ou seus princípios
gerais: instituta, dogmata, rationes) era apenas um tópico heurístico (ou perspectiva)
cuja eficiência (na construção do consenso comunitário) havia de ser posta à prova.
Daí que coubesse ao juiz fornecer um solução arbitrária 15 em torno da qual a
harmonia pudesse ser encontrada (interpretatio in dubio est faciendam ad evitandam
correctionem, contrarietatem, repugnantiam) 16 .
Resultava também da ideia de que o território do direito era uma espécie de “jardim
suspenso”, entre os céus e a vida quotidiana. Entre o domínio sobrenatural da
religião e o domínio das normas jurídicas terrenas.
Passava-se com o direito o que se passava com a natureza. Tal como a lei que
Deus imprimira na natureza (causae secundae [causas segundas], natura rerum
[natureza das coisas]) para os seres não humanos, também o direito positivado (nas
instituições, nos costumes, na lei, na doutrina comum) instituíra uma ordem
razoavelmente boa e justa para as coisas humanas. No entanto, acima da lei da
natureza, tal como acima do direito positivo, existia a suprema, embora
frequentemente misteriosa e inexprimível, ordem da Graça, intimamente ligada à
própria divindade (causa prima, causa incausata).
No entanto, esta passagem do mundo da Justiça para o mundo da Graça não nos
introduz num mundo de absoluta flexibilidade. Por um lado, a graça é um acto livre e
absoluto (i.e., como se diz do poder absoluto ou pleno do rei: plenitudo potestatis,
seu arbitrio, nulli necessitate subjecta, nullisque juris publicis limitata, [um poder ou
vontade absolutos, livre de qualquer necessidade, não limitado por quaisquer
vínculos do direito público], Cod. Just., 3, 34, 2). Mas, por outro lado, a graça não é
uma decisão arbitrária, pois tem que corresponder a uma causa justa e elevada
(salus & utilitas publica, necessitas, aut justitiae ratio). Nem isenta da observância da
equidade, da boa fé e da recta razão ("aequitate, recta ratio [...], pietate, honestitate,
& fidei data"), nem do dever de indemnizar por prejuízos colaterais causados a
terceiros. Em contrapartida, pode tornar-se como que “devida”, em face de actos
também gratuitos (favores, serviços) que os vassalos tenham feito ao rei, e que,
assim, forçavam os reis à atribuição de recompensas ou mercês.
Como a graça não é o puro arbítrio e antes configura um nível mais elevado da
ordem, a potestas extraordinaria dos príncipes aparece, não como uma violação da
justiça, mas antes como uma sua versão ainda mais sublime. Para Salgado de
Araújo (Ley regia de Portugal, Madrid, 1627, 46), o governo por estes meios
extraordinários da graça – ou seja, tirado fora dos mecanismos jurídico-
administrativos ordinários – representa uma forma última e eminentemente real de
realizar a justiça, sempre que esta não pudesse ser obtida pelos meios ordinários.
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Este tipo de flexibilidade correspondia, portanto, à existência de vários e sucessivos
níveis de ordem. Quanto mais elevados eles estivessem, tanto mais escondidos,
inexplicitáveis e não generalizáveis seriam. A flexibilidade era, então, a marca da
insuficiência humana para esgotar, pelo menos por meios racionais e explicáveis, o
todo da ordem da natureza e da humanidade.
18 “E pegando o secretário de Estado na lista delas [vilas e cidades do domínio real], foi nomeando
as que se ofereceram; e chegando a de São Paulo, passou por alto [...] porque, Senhor, aquelas vilas
no são de Vossa Majestade, pois se fossem, obedeceriam aos decretos que Vossa Majestade
mandou expedir para todas as partes para que corressem as patacas castelhanas a peso [...] e sendo
em todas obedecido, nesta foi desprezado” (CCM, I, 188-189).
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reage energicamente no reinado de D. José (leis contra o direito consuetudinário dos
ofícios). Na colónia, estes fenómenos parecem ser muito frequentes, tanto no
secular, como no espiritual. Segundo o ouvidor da comarca de Vila Rica (c. 1753), o
bispo de Mariana permitia todos os abusos aos seus oficiais no que respeitava à
admissão de Ordenandos, “por se admitirem todos sem escolha nem eleição, e
alguns com um escândalo do bispado, por ser público e sabido terem impedimentos
animis et corporis e só no se admitem mulatos” (CCM, I, 728). Mas, mais do que
isso, provia os ofícios cuja apresentação competiria ao rei como grão-mestre da
Ordem de Cristo, cobrando, e com demasia, as respectivas pensões (bid, I, 740).
No séc. XII, Graciano ligou esta questão à da legitimidade dos privilégios, i.e.,
normas singulares que se opunham à norma geral: “Por isso, concluímos do que
antecede que a Santa Madre Igreja pode manter a alguns os seus privilégios e,
mesmo contra os decretos gerais, conceder benefícios especiais, considerada a
equidade da razão, a qual é a mãe da justiça, em nada diferindo desta. Como, por
exemplo, os privilégios concedidos por causa da religião, da necessidade, ou para
manifestar a graça, já que eles não prejudicam ninguém” (Decretum de Graciano, II,
C. 25, q. 1, c. 16).
A equidade aparece aqui como uma “justiça especial”, não geral e não igual, mas
mais perfeita do que a justiça igual (da qual a equidade seria a mãe).
No Antigo Regime, esta ideia de percepções não racionais, não discursivas e não
generalizáveis, nos níveis supremos da ordem, estavam na base de da teoria do
direito concebida como uma teoria argumentativa, da verdade jurídica como uma
verdade “aberta” e “provisória”, da teoria do poder de criação jurídica dos juízes
(arbitrium iudicis), bem como da legitimidade das decisões de equidade, baseadas
num conhecimento mais perfeito, nomeadamente dos particulares das situações.
Nada que melhor conviesse aos magistrados coloniais que tinham na sua frente
casos que, para além de serem particulares, o eram ainda em virtude das próprias
condições excepcionais da colónia.
O número seguinte aborda, justamente, o impacto que tem sobre o direito coumum a
ideia de particularismo das situações locais.
19 António Manuel Hespanha, Cultura [...], cit., cap. 6.3., e bibliografia aí citada.
20 "Plures sunt casus quam leges" (os casos da vida são mais do que as leis); "nem as leis nem os
senatusconsultos podem ser redigidos de forma a compreender todos os casos que alguma vez
ocorram; basta que contenham aqueles que ocorrem o mais das vezes", pode ler-se em D.,1,2,10.
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pela autoridade do legislador, tendo em vista alguma utilidade particular, contra o
teor da razão"). Assim, o direito comum vigoraria apenas para os casos em que um
direito particular não o tivesse afastado; ou seja, como direito subsidiário; de acordo
com um princípio segundo o qual "as regras do direito [comum] não podem ser
seguidas naqueles domínios em que foi estabelecida [por um direito particular] uma
contradição com a razão do direito", D., 1,2,15).
Assim, a teoria que o direito comum criou sobre as suas relações com os direitos
particulares não deixa de ser muito favorável a estes últimos.
Sendo, portanto, comum, o direito do reino continha, tal como o ius commune, uma
ratio iuris que vigorava no seu seio 21 e da qual se podiam extrair consequências
normativas, com o que adquiria alguma da força expansiva do direito comum
imperial. Note-se, porém, que a estreita relacionação entre o direito dos reinos e o
poder real fazia com que nas relações entre o direito real e os direitos locais
inferiores vigorassem normas que não funcionavam nas relações entre direitos
próprios e ius commune, já que a supremacia deste último não decorria da
superioridade política, mas do seu enraizamento na natureza. Assim, a supremacia
do poder real sobre os súbditos ("superioritas iurisdictionis", superioridade quanto à
21 Que, em todo o caso, não anulava a ratio iuris communis, que permanecia como critério superior
(ius naturale).
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jurisdição) traduzia-se numa máxima que não podia valer nas relações entre o ius
commune e os iura propria - a de que "a lei inferior não pode impor-se à lei superior"
("lex superior derrogat legi inferiori", a lei superior derroga a inferior; "inferior non
potest tollere legem superioris", o inferior não pode derrogar a lei do superior), tal
como o inferior não pode limitar o poder do superior. Assim, o direito do reino é,
politicamente, supra-ordenado aos direitos emanados de poderes inferiores do reino,
o que não acontecia com o ius commune em relação aos iura propria.
Esta prevalência dos direitos particulares dos corpos tinha um apoio no direito
romano. De facto, a “lei” Omnes populi, do Digesto (D., I,1,9) reconhecia que “todos
os povos usam de um direito que em parte lhes é próprio, em parte comum a todo o
género humano”. Apesar de a primeira geração de legistas ter sido muito prudente
em retirar daqui um argumento em favor da supremacia dos direitos comunais, o
célebre jurista tercentista Baldo degli Ubaldi encontrou justificação teórica robusta
para que a validade autónoma do direito local: “Populi sunt de iure gntium, ergo
regimen populi est de iure gentium: sed regimen non pot est esse sine legibus et
statutis, ergo eo ipso quod populus habet esse, habet per consequens regimen in
suo esse, sicut omne animal regitur a proprio spiritu et anima” 23 ("os povos existem
22 Para além de se reconhecer que todo o súbdito, mesmo integrado num corpo jurídico inferior, tinha
o direito de apelar para o rei, caso se sentisse injustiçado; mas o rei teria que decidir de acordo com o
direito corporativo desse súbdito.
23 In Dig. Vet., I, 1, de iust et iure, 9, n.4.
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por direito das gentes [i.e., natural] e o seu governo tem origem no direito das
gentes; como o governo não pode existir sem leis e estatutos [i.e., leis particulares],
o próprio facto de um povo existir tem como consequência que existe um governo
nele mesmo, tal como o animal se rege pelo seu próprio espírito e alma").
Citações judiciais não se faziam nem “nas vilas e menos a irem-nas fazer fora [...],
de mais que na América [os porteiros que deviam fazer as citações, por nunca
encontrarem as pessoas a citar] somente são pregoeiros” (cf. CCM, I, 699). Não
havendo citações, não há processo; e não havendo processo, não há direito oficial.
Os oficiais de justiça, invocando o particularismo da terra e, nomeadamente, o
trabalho que lhes dão a contumácia e rebeldia das partes recusam que se lhes
taxem os emolumentos (cf. CCM, I, 704). No eclesiástico, os habitantes, “ainda que
façam danos ou roubos, não fazem caso da excomunhão e outros não lhe chega a
notícia pelas distâncias do país” (CCM, I, 727); “os que se deixam excomungar
fogem e mudam de terras sem buscar absolvição” (CCM, I, 727). O mesmo se passa
com “os declarados que faltam ao preceito da Quaresma [...] fogem e se retiram para
outros países e não têm domicílio certo, não cuidam em absolver-se nem tirar
mandados para isso” (CCM, I, 734). A prova do estado de solteiro ou de outros
elementos para se poder casar é tão difícil, que a maior parte dos noivos pedem
esperas para prova, que acabam por nunca fazer (cf. CCM, I, 732).
Ou seja, tal como entre os rústicos europeus, o direito estrito no pode valer aqui. E,
no foi lendo o direito oficial, proliferam práticas locais, a que os magistrados reais
chama de abusos, mas que, na realidade, constitui o direito da colónia, pelo menos
nestas mais remotas paragens.
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6. Direito comum e ordem jurídica colonial.
A regra mais geral de conflitos no seio desta ordem jurídica pluralista não é, assim,
uma regra formal e sistemática que hierarquize as diversas fontes do direito, mas
antes o arbítrio do juiz na apreciação dos casos concretos ("arbitrium iudex
relinquitur quod in iure definitum non est", fica ao arbítrio do juiz aquilo que não está
definido pelo direito). É ele que, caso a caso, ponderando as consequências
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respectivas, decidirá do equilíbrio entre as várias normas disponíveis. Este arbítrio é,
no entanto, guiado. Pelos princípios gerais a que já nos referimos. Mas, sobretudo,
pelos usos do lugar ao decidir questões semelhantes (no caso de decisões judiciais,
stylus curiae), usos que, assim, se vêm a transformar num elemento decisivo de
deste direito pluralista.
Como o governar estava, nesta época, muito próximo do julgar, tudo o que se disse
sobre a teoria do juízo (iudicium) vale também para a teoria do governo (regímen),
explicando este estilo do governar - sincopado, contraditório, experimental, tantas
vezes pactício ou complacente com o abuso, que alterna as bravatas com a mais
miserável rendição - da coroa portuguesa no Brasil.
Informações bibliográficas:
HESPANHA, António Manuel. Direito comum e direito colonial. Panóptica, Vitória, ano 1, n. 3, nov.
2006, p. 95-116. Disponível em: <http:www.panoptica.org>. Acesso em:
24 Sobre a estratégia casuísta, v., Com especial referência às colónias espanholas da América, a
límpida exposição de Tau Anzoategui, Casuismo y sistema [...], cit..