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A vida se faz nas marcas – Eliane Brum

Para mim não existe vida fora da palavra escrita. Passei quatro dias
ouvindo, pensando e por último falando sobre literatura em conversas
na Casa de Cultura da FLIP (Festa Literária Internacional), em Paraty.
O debate me carregou para uma reflexão sobre as minhas marcas. E
penso que as marcas se inscrevem em nós primeiro como algo
indizível. E depois as transformamos em outra coisa que nos dá a
possibilidade de viver. Em mim, elas viram texto. Percebo então que
palavras são marcas por escrito. E lamento as vidas que não querem
ser assinaladas pela vida. Vivemos numa época que não quer ser
marcada. A maioria de nós tenta escapar das rugas, essas cicatrizes
do rosto, de todas as formas — algumas delas bem violentas. Os sinais
da passagem do tempo, da vida vivida, são interpretados como algo
alienígena, estranho a nós. Estão ali, mas não deveriam estar. É quase
uma traição. Urge então apagá-las. É tamanho o nosso medo da
velhice e da morte, que as marcas da vida vivida são decodificadas
como feias, quase repugnantes. Tanto que estamos diante de uma
novidade: as primeiras gerações de seres humanos envelhecendo e
morrendo com os sinais não da idade, mas das cirurgias plásticas. Sim,
porque estas também são cicatrizes. Não há jeito de morrer sem
marcas porque não há como viver sem ser marcado pela vida. Mesmo
os bebês, que por alguma razão morrem ao nascer, já trazem no corpo
a marca fundadora: o corte do cordão umbilical que lhes arrancou de
dentro da mãe. O umbigo é nossa primeira cicatriz, aquela que nos
unifica. Se a tecnologia conseguir inventar um ser humano sem marcas
é porque desinventou o ser humano. Podemos talvez um dia apagar
todas as marcas visíveis, tatuadas no corpo. Mas nunca haverá uma
cirurgia capaz de eliminar as marcas da alma. E esta é também uma
tentativa que temos empreendido com muito empenho. Por um
excesso de psicologês, uma leitura transtornada do pensamento de
Freud, passamos a achar que tudo é terrivelmente traumático.
Qualquer contrariedade ou vivência não programada supostamente
estigmatizaria nossos filhos e aniquilaria seu futuro. Qualquer
derrapada no script de nossos dias nos assinala como catástrofe.
Parece que viver se tornou uma experiência por demais traumática
para quase todos — e, se assim é, a única solução seria não viver.
Mas a questão não é o trauma — e sim o que cada um faz com ele. Há
algumas semanas participei de um debate no Instituto Sedes
Sapientiae, em São Paulo, sobre Sobreviventes, o pungente
documentário de Miriam Chnaiderman e Reinaldo Pinheiro. Em minha
fala, sugeri que não existem sobreviventes. Só é possível ser vivente. A
palavra sobre-vivente contém a ideia de viver apesar do vivido. E eu
acredito que só é possível viver por causa do vivido. Em mais de 20
anos contando histórias de pessoas — e também minha própria história
—, percebo que as pessoas morrem e renascem muitas vezes numa
vida só. Cada existência é uma sucessão de pequenas mortes e
renascimentos desde esse primeiro corte que nos separa de nossas
mães e dá início à nossa existência como indivíduo. Fico só
imaginando nesta época onde tudo vira trauma insuperável, o que
aconteceria se as pessoas pudessem se lembrar dessa expulsão do
paraíso uterino. Haveria uma legião de homens e mulheres incapazes
de lidar com acontecimento tão terrível. Sem perceber que é só por ele,
afinal, que começamos a viver. Até então, somos todos apenas uma
continuidade, um apêndice, do corpo materno. É verdade que,
compreendendo o trauma como algo que nos marca, que nos mata
simbolicamente para que possamos renascer de outro jeito, nossa vida
é cheia deles. O que questiono aqui é a crença de que não deveria ser
assim, a ilusão de que é possível — e o pior, que é desejável — ter
uma vida sem marcas no corpo e na alma. É claro que alguns
acontecimentos são devastadores — e lutamos para que não voltem a
se repetir com ninguém. Mas, mesmo nestes casos, me parece que a
vida só é possível não apagando o que é inapagável, mas fazendo algo
novo com essa marca. Transformando-a em algo que possa viver.
Recentemente, causou grande polêmica um vídeo no YouTube, onde
Adolek Kohn, de 89 anos, “sobrevivente” do holocausto judeu, dança
com sua filha e netos a música “I will survive” (“Eu sobreviverei”), de
Gloria Gaynor, em campos de concentração como o de Auschwitz.
Quem não tiver assistido pode encontrá-lo facilmente na internet. Muita
gente achou desrespeitoso com o sofrimento das vítimas do
holocausto. A mim pareceu emocionante. Concordo com a filha, a
artista australiana Jane Korman, quando diz: “Essa dança é um tributo
à tenacidade do espírito humano e uma celebração da vida”. Poder
dançar no palco em que quase foi assassinado — e onde milhões de
pessoas foram exterminadas — é fazer algo vivo em vez de fazer algo
mórbido. Especialmente poder dançar com a continuidade de você —
na companhia de todos aqueles que quase não existiram, uma
descendência inteira quase aniquilada pela morte de um. Afinal, ele
dança sobre suas antigas e brutais lembranças amparado por uma
nova memória, representada pelos seus descendentes, por aqueles
que vão recordá-lo e produzir outras histórias e sentidos para a trama
das gerações. É mais do que uma magistral vingança — é uma dança.
Isso não significa que este (sobre)vivente tenha lidado melhor com seu
trauma que todos os outros. Cada um encontra seu caminho — e a
maioria dos caminhos não aparece no YouTube. Mas acho uma
prepotência “ser contra” ou ridicularizar a tentativa de um outro de lidar
com suas marcas, dar um novo sentido àquilo que o constitui.
Transformar em algo mais que a dor o que era só dor. Pode não ser o
seu caminho, mas isso não o impede de olhar para a saída encontrada
pelo outro com o profundo respeito que ela merece. Quando as
pessoas me contam suas histórias, começam a contar pelos seus
renascimentos. Pelo momento em que morreram de um jeito, por causa
de um trauma, e renasceram de outro. É ali que identificam seu início
— ou reinício. Uma nova vida só é possível quando contém a anterior e
a sua quebra. O que atravanca nossa existência é ficar fixado no
trauma — enxergar a marca como uma morte que não renasce, como
um corte que não vira cicatriz. Por isso a palavra “sobrevivente” — e o
sentido que ela tem no senso comum — me incomoda. É como se vida
fosse o que havia antes, algo que não pudesse se quebrar, e o que
temos agora fosse algo menor que a vida, uma mera sobrevida. Me
parece, ao contrário, que a matéria da vida é justamente essa
sucessão de quebras — e viver é dar sentido a elas. Essa ideia
vendida e consumida exaustivamente, de que a vida não pode ser
marcada nem no corpo nem na alma, tem causado enorme sofrimento
às pessoas. Não o sofrimento que nos leva a criar uma vida, mas
aquele que nos leva a anestesiar uma vida. Esse equívoco tem
transformado gente que poderia viver em meros sobreviventes. Porque,
se não podemos ser marcados, se cada marca for vivida como algo
mórbido e não como parte do vivido, fixamo-nos na morte. Viramos
uma ladainha que repete sempre o momento mortífero e não consegue
seguir adiante. Ser... é ser em pedaços. O que nos impede de viver
não é o trauma, mas a ideia de que exista uma vida que possa
prescindir deles. E o que nos humaniza é a capacidade de criar algo
vivo com nossas marcas de morte. Palavra escrita, literatura, como
tanto se discutiu na festa literária de Paraty. Dança, como o
(sobre)vivente do holocausto. Jardins, bordados, doces, móveis, dribles
de futebol. Como poderia dizer a poeta Adélia Prado, “uso todos os
meus cacos para fazer um vitral”. Cada vida humana é um vitral feito
com as marcas de todas as nossas mortes. Sem os cacos, nada há.

9 de agosto de 2010

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