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D859 Drummond Revisitado / Organizado por Reynaldo
Darnazio. São Paulo: Unimarco Editora, 2002.
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I.

152 p.

Bibliografia

ISBN 85-86022-41-1 I
1. Literatura brasileira L Título

_______ .
CDD 869.9
J
Sumário
J~IH"~I··;Ji
S;'tOMRICO~

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Apresentação. Carlos Felipe Moisés , 5

UNIVERSIDADE SÃD MARCOS Notas à Margem da Leitura de Drummond • Tarso de Melo ; 9

CHANCELER: Olavo Drummond Melancolia "Gauche" na Vida· Sérgio Alcides l 29


REITOR: Ernani Bicudo de Paula
Drummond e a Poética da Interrupção. Eduardo Sterzi ! 49
UNIMARCO EDITORA
. . 191
Coisas Fora do Tempo: a Poética do Resíduo- Jerônimo Telxelra ,
PRESIDENTE: Luciane de Paula
EDITOR: Reynaldo Damazio Poesia e Humor- Ivone Daré Rabello ! 107
EDITOR-ASSISTENTE:Luiz Paulo Rouanet
PROJETOGRÁFICO E OIAGRAMAÇÃO: Regina Kashihara Espaço e Memória em Boitempo • Chantal Castelli 1123
CONSELHOEDITORIAL: Álvaro Cardoso Gomes, Carlos Felipe Moisés,
Fabio Magalhães, Fernando Novais, IsmaiL Xavier, Marcelo Perine,
Paulo Roberto de Almeida, Sérgio Paulo Rouanet

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a Cronos. Seu material, como o amor, "é triste como é vário,
/ e sendo vário é um SÓ"79. A brisa leva e traz o canto, mas
fica o seu resíduo de significações.
'~º-i...n uietante estranham_~2!,º-d.9s objeI().s_mai§Jamilia-
res'~,.es(;reve Agamben, "é o reç~_~le o mEal~<:ól.i~c: pag~ às
2..~!.ências ue custodiam o inacessíy.el"80. Para o fi19sot~it.êli- Ihummond e a Poética da Interrupção
I
a~o, o afã do _t~mper~ment~_saturninE_é._~~e~r ~~a~~çar ()
\ Eduardo Sterzi
ir:apr~~p.~ível" -_ con"!.~.:dormag~J~sgatar ..osgntªto ~0l;_Ul11
"obj~o .perdi49" imagLnário ejg~~liz'!.c!.2:....~~1..l!l-ªJ2.<:~~ctiya
como a bi!~~egra f~~j'.l:ye..r9a o ~nico
(i~~l9.i.a.l1~,-~.~_!!lO~g.a Urna pedra no meio do caminho
modo ~c:.apropriação. Mas, ara CJ.uemjá gastou ~s retinas·-;ão ou apenas um rastro, não importa.
fatig~d.as,.'<:..Eej~iti'-
<::omceticismo ~ ~~ ci-;-;n;is iluminador
::"aceêsp"_"ql}e poder t'<:l!!..2..."iDac~ssível"?
.Ef!1 pr~:;-mo~~-=~o 1
~n~p_reensíyelé_~p~nas o vividoLque foge'~~-sso·d~ lobo"
(~~i~ã~]~i~a Ae_~i~d~~i~.~~~~l:J~~~~~::~;:;~'p~~~~i~~·;i~). Não pretendo ser original ao observar que um mesmo
So~revé~_e~tão.2.. aradoxo: "Ganhei (J~erdi)meu dia "81. A esquema narrativo básico é encontrado em alguns dos mais
perda. ue reiter~ ..~ma .poSê.eimaginár~- é ; da ---;(,-~~~ relevantes e célebres poemas de Carlos Drummond de Andrade.
Este esquema pode ser descrito de forma simples: um sujeito
riªn_ci~_c:.~
~~~aráter tra~~~~ÚC?...c:.i~g~i_~
~!l.~bi!jz~i~~~~··
desloca-se, literal ou figurativamente, de corpo inteiro ou só
por meio do olhar ou da memória, de um ponto a outro; súbito,
seu curso é interrompido por um determinado objeto. As con-
Sérgio Alcides é poeta, autor de O ar das cidades (São Paulo: Nankin, seqüências desse encontro nel mezzo dei cammin diferem de
2000) e Nada a ver com a Lua (Rio de Janeiro: Sette Letras, 1996). poema para poema, conforme a natureza particular de cada
objeto e a caracterização singular do sujeito em cada uma de
suas aparições, embora uma certa tendência geral, que logo
mais identificaremos, possa ser discernida e mereça ser inter-
pretada. Se alguns críticos! já assinalaram, de modo explíci-
to ou alusivo, a recorrência desse esquema e dessa tendência,

79 "Estrambote melancólico". Fazendeiro do ar, p. 407.


Ver, por exemplo, Davi Arrigucci Jr., Coração partido: uma análise da
80 AGAMBEN, G. Cit., p. 34.
poesia reflexiva de Drummond (São Paulo: Cosac & Naify, 2002), p. 69 e 76.
81 "Elegia". Fazendeiro do ar, p. 410.

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I 1111. Costa Lima, a referência às "retinas tão fatigadas" possa
não se esforçaram, no entanto, para apreender seu sentido
,I lida como um momento de "ironia", pela quebra que
mais fundo e integral, não se empenharam o suficiente (11;\11
1111\>lH: à estrutura permutacional dos versos anteriores, pela
era seu escopo) para compreender, para além de cada poem.i
1111 roduçâo da nota subjetiva e emocional na seqüência quase
isolado, o porquê dessa imprevista constância, dessa correu
III.\ql1inaP, essa ironia não coincide com o cômico, e o poe-
te subterrânea que aqui e ali eclode à superfície, ao longo dI' - 4 "
1\1.\, no seu todo, resulta sério, engenhosa concreçao poetlca
uma obra de resto tão variada. Tampouco se aproximaram ;\
.l.: 1110notonia e do tédio modernos, mas também de algo
hipótese - a qual procuro desenvolver nas páginas seguintes
Ill.\is que isso. Tal seriedade, argumenta Arnaldo Saraiva, só
- de que, extrapolando o esquema narrativo mencionado,
\ Illltribuiu para a recepção polêmica do poema, desde sua
embora sempre orientando-se por seu modelo, a interrupção
11IIhlicaçãono livro Alguma poesia, em 1930: os leitores, que
pode ser entendida como princípio ético-estético, ou núcleo
111\ sua ignorância ou preconceito teriam preferido tomá-Io
significante elementar, do que há de mais próprio e intenso, l'
I'H.:osamente, foram compelidos a torná-lo a sério. Inúmeras
válido para a posteridade, na poesia de Drummond.
loram as tolices ditas e escritas sobre seus poucos versos;
Podemos iniciar nossa perquirição perguntando-nos se
t.utas amostras foram coligidas pelo próprio Drummond no
poemas tão diferentes, produzidos em épocas e contextos tão
distintos, como "No meio do caminho", "Áporo" e "A máquina
? A chave humorística não é por definição avessa ao fenômeno que
do mundo", para nos restringirmos por ora a apenas alguns dos 1" 1_. c
l'stamOs definindo como interrupção. Comprova-o outro poema
mais conhecidos, podem de fato ser reduzidos a um esquema ou
produzido na mesma época, "Cota zero" (Poesia completa. Rio de
princípio comum. Ou somos vítimas de uma ilusão de ótica?
Janeiro: Nova Aguilar, 2002. p. 28):
Para os leitores em geral (e mesmo para os não-leitores Stop.
que conhecem seus versos somente de orelhada), Drummond A vida parou
parece ser sobretudo o poeta do impasse, do bloqueio, da inter- ou foi o automóvel?
t':, certo, porém, que este é um poema bem menos rico em sugestó:s, do
rupção. "No meio do caminho" é provavelmente o principal
que "No meio do caminho", Daquele, podemos extrair toda uma etica;
responsável por esta percepção. Escrito nos últimos meses de
deste, apenas um convite a um sorriso irônico.
1924 ou nos primeiros de 1925, dentro ainda, portanto, do I LIMA, Luiz Costa. "O princípio-corrosão na poesia de Carlos
espírito irreverente e combativo da Semana de Arte Moder- Drummond de Andrade", em Lira e antilira: Mário, Drummond, Cabral,
na, não guarda, porém, senão resquícios do gosto modernis- 2" ed. revista (Rio de Janeiro: Topbooks, 1995), p. 136.
Haroldo de Campos, um dos inventores da poesia concreta, observa
ta pela sátira, pela piada", Embora, como acertadamente nota
que "No meio do caminho" "pode ~er ~isto - e_é,assi~, que,? vêem os
poetas concretos - como uma verdadeira concreçao 11l1gUlStl,Ca. Haroldo
de Campos, "Drummond, mestre de coisas", em Metalmguagem &
Ver Arnaldo Saraiva, "Apresentação", em Carlos Drummond de
1 sutras metas: ensaios de teoria e crítica literária (São Paulo: Perspectiva,
Andrade (seleção e montagem), Uma pedra 110 meio do caminho:
biografia de um poema (Rio de Janeiro: Editora do Autor , 1967) , 1992), p, 50.

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divertido volume Uma pedra no meio do caminho: biogral»: o 001 \ \ J estranheza liminar e derradeira do poema, com sua dura-
de um poema. Mas, afora o pitoresco de algumas reações o 1"111':1 resistência em ser decifrado. Para começar, "No meio do
desinteligentes de primeira hora e por isso mesmo ainda vivn., o uuinho" nos impressiona pela perfeição cristalina da forma,
na lembrança, resta a repercussão invulgar que o poema desdi' I'o.\:t extraordinária economia vocabular e sintática:
sempre obteve. Como observa Saraiva, esta repercussão pode
No meio do caminho tinha uma pedra
ria justificar-se pela síntese, nele alcançada, de uma "situação tinha uma pedra no meio do caminho
limite" numa expressão memorável. Em poucos anos, o verso tinha uma pedra
"No meio do caminho tinha uma pedra" - especialmente em no meio do caminho tinha uma pedra.
sua reversão quiásmica, "Tinha uma pedra no meio do cami
Nunca me esquecerei desse acontecimento
nho", ou na abreviação "uma pedra no meio do caminho" - na vida de minhas retinas tão fatigadas.
se incorporou ao repertório coloquial do brasileiro médio, como Nunca me esquecerei que no meio do caminho
artifício retórico eficiente para a nomeação de situações de tinha uma pedra
impasse as mais diversas. E, contribuindo para a compreensão tinha uma pedra no meio do caminho
pública de Drummond como poeta par excellence do embara- no meio do caminho tinha uma pedra.'
ço, da obstância, outro verso seu, igualmente assimilado ao Não seria o caso de devassar estatisticamente a engenharia
patrimônio lingüístico comum, desempenha função semelhan- do poema, computando as ocorrências e recorrências de cad~
te, embora em formulação interrogativa: "E agora, José?". Idavra ou sintagma (algo, aliás, já feito alhures"). O poem~ e
Talvez nenhuma outra medida da pertinência de um poeta 1:10 conciso que a matemática de sua composição, por aSSIm
em relação ao povo do qual emergiu seja tão eloqüente quanto dizer, pode ser contemplada a olho nu. Destaquemos apenas os
a absorção de um ou dois versos seus à linguagem do dia-a-dia. .Icitos de construção relevantes para nossa análise.
Em momentos como este, o poeta parece retomar uma respon- De início, sublinhemos a relação especular entre os três
sabilidade primitiva - esquecida ao longo de séculos de cres- primeiros versos e os três últimos. Essa especularidade ou
cente desencantamento das relações entre o ser humano e seus <imetria convida-nos a uma leitura não-linear, em que come-
instrumentos de intervenção na realidade - quanto à criação c r.issemcs a percorrer o poema, com duas vozes simultâneas,
recriação da língua. Todavia, quanto maior o poder de comuni- :'\0 mesmo tempo do princípio para o fim e do fim para o
cação de um verso convertido em lugar-comum, quanto maior princípio. Teríamos, assim, uma coincidência absoluta en-
sua virtude empática, seu apelo sentimental para o leitor e o II'C as vozes, até chegarmos ao quarto e ao sétimo versos.
falante, menor a chance de conservar sua significação e força Os sons agora dissentem, apesar de persistir certa tendência à
originais. Mas é a elas que devemos retomar, sempre de novo.
E, nesse retorno, não é inesperado que nos surpreendamos, mais "No meio do caminho", em Alguma poesia (op. cit., p. 16).
uma vez, como certamente já nos surpreendemos no passado, Ver Arnaldo Saraiva, op. cit., p. 9.

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simetria, pela presença, em ambos os versos, do segmenn,
(., ,!llal não coincide necessariamente com o poeta-autor, em-
"no meio do caminho", ainda que em posições divergent('~. ,I
". '1';1sua imagem possa com a dele fundir-se, sobretudo na i,/
A disposição estrófica irregular - uma quadra seguida de unm i!
111 ica), também pode assaltá-lo: como elucida Northrop Frye,
sextilha - não obscurece a centralidade da seqüência "NUlll';J l
"I
,I .iuagnorisis "é não simplesmente o conhecimento pelo he- I

me esquecerei desse acontecimento / na vida de minhas reri


loi do que lhe aconteceu [...] mas o reconhecimento ~a forma
nas tão fatigadas". De um ponto de vista semântico, o pOl'
I,J1dpeJ determinada da vida que ele criou para, SI ,mes.mo,
ma poderia ser recortado em duas quadras entremeadas _
• 11111 uma implícita comparação com a vida potencial incriada
interrompidas - por um dÍstico. Essa centralidade, realçach
I illeele abandonou"? Sendo assim, o "Nunca me esquec~-
pela referida relação especular entre os versos que a anteco.
11 ..
1. •• "equivaleria a uma versão inconformada, porque ati-
dern e os que a sucedem, não é casual. No meio do caminho
v.i em sua negatividade, da anagnorisis subentendida no
de "No meio do caminho", encontra-se, paradoxalmente, ()
I ristíssimo verso de Manuel Bandeira: "A vida inteira que
que no poema não é pedra, mas declaração emocional sobre o
podia ter sido e que não foi?", "Nunca me esquecerei" tes-
deparar com a pedra. OLl seja, uma ruptura com a notação
icmunha da vida que efetivamente é (e que não pode ser de
referencial e com o tom anteriormente estabelecidos. A pro-
pósito desse paradoxo, Costa Lima, como já vimos, falou outro jeito), testemunha do compromisso ético (e trágic,o! do
poeta com o obstáculo. Afinal, os aspectos problemáticos
em "ironia"; em nossos termos, podemos dizer que estamos
diante de uma interrupção dentro da interrupção. do encontro do poeta com a realidade - o encontro com a
pedra parece ser uma metáfora desse encontro mais com-
Contudo, se a primeira interrupção, anunciada insisten-
temente desde o primeiro verso (a pedra no meio do cami- preensivo - não podem ser simplesmente elididos, ma~ a~-
nho), atingia somente o sujeito do poema, a segunda inter- res devem ser internalizados, transfundidos no cerne srgru-
rupção atinge também o leitol~ que percebe, de repente, ficante do qual promanam a autoridade (a auctoritas, o ser-
inviabilizar-se a forma de leitura programada desde o início. autor) e a voz do poeta. Só assim o poema se protege contra
Este é o momento de máxima tensão da trama poética, cor- a mentira, à qual se arrisca qualquer objeto estético por um
respondente - com todas as ressalvas devidas às diferenças vício de origem do seu processo de constituição como tal:
de gêneros literários e períodos históricos _ ao que, na des- a estetização - a ordenação dos elementos materiais de modo
crição da estrutura da tragédia clássica, designava-se a compor um objeto estético - pode facilmente redundar
anagnorisis: o momento em que o sentido das ações prece- em falsidade, ao representar (re-apresentar) em formas
dentes, e até então relativamente desconexas, se revela, para
o personagem e para o espectador (ou leitor), e o desfecho ? FRYE, Northrop. Anatomy of Criticism: Four Essays (Princeton:
aparece como conseqüência lógica, inevitável. Essa tensão Princeton University Press, 1990), p. 212.
dependendo do grau de autoconsciência do sujeito do poem; 8 BANDEIRA, Manuel. "Pneumotórax", em Libertinagem (Poesia
completa e prosa. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1996. p. 206).

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apaziguadas o que na realidade se apresenta irresolvido. E .1'. , "lIstatação de sua existência e presença - constatação que,
grandes obras de arte, como observa Adorno, "não podcui ,!.- fato, é contrária ao conhecimento, se o compreendemos

mentir" 9. Por esse viés, não será exorbitante vincular a seric , ,,1110 penetração intelectual na realidade, avançando além
dade indigitada por Arnaldo Saraiva em "No meio do cami d:1 superfície dos objetos.
nho" à seriedade - residual, mesclada à ironia cômica - do
trágico moderno, talvez a orientação estética mais afim à ver- 2
dade, a essa verdade difícil e inapreensível a que já nos acostu-
mamos, na literatura contemporânea. Basta evocarmos, em A palavra "acontecimento", com a qual Drummond
corroboração, a relevância dos procedimentos de repetição c ';c refere ao encontro com a pedra, jamais é empregada
interrupção em Kafka ou em Beckett. illgenuamente por ele. É uma palavra de uso reiterado em
A dramatização da desilusão - isto é, do processo pelo sua obra por designar com exatidão uma forma de evento
qual a verdade volta a se impor depois de um momento de muito peculiar de sua "tentativa de exploração e de inter-
(auto-)engano - é um procedimento básico do trágico. Em pretação do estar-no-mundo"lo, podendo mesmo ser en-
Drurnmond, a interrupção é inseparável da desilusão. Para o rendida quase como sinônimo do que estam os denominan-
sujeito-personagem de "No meio do caminho", aquele que do interrupção. Esta possibilidade de sinonímia já está pre-
diz "Nunca me esquecerei ... ", o dístico central tem o sentido vista etimologicamente: acontecimento deriva do verbo
primeiro de um alívio em relação ao impasse figurado sob a contingere, por meio do incoativo contingescere (ou, mais
espécie da repetição compulsiva (esse alívio talvez se reproduza precisamente, de sua variação contigescere), "tocar a, em;
no leitor). Ao pronunciar aquela frase, permite-se escapar, mes- alcançar, atingir, chegar a; encontrar, topar; suceder; re-
mo que por um instante mínimo, à constatação obsessiva da sultar de"11. O que importa ao poeta nesta palavra é que
presença do objeto - presença no passado ("tinha"), mas atu- sugere a irrupção ou instituição imprevista de uma determi-
alizada pela memória - para esboçar uma reação mental à nada versão da realidade e, por imprevista, dificilmente as-
situação em que se encontra. O alívio revela-se, porém, mo- similada, contornada ou solucionada por meio da reflexão
mentâneo e ilusório: o pensamento, ao tentar reagir, só reafir- ou da inteligência, que, se bem-sucedidas, produziriam co-
ma a impossibilidade de esquecer o "acontecimento". Mas o nhecimento. O acontecimento é uma forma imperfeita de
que é importante salientarmos agora é que o "Nunca me es- evento - pois que euentus comporta as noções de "saída,
quecerei ... " não decorre de, tampouco implica, um autêntico
conhecimento do objeto-realidade para além da mera
10 Com essa expressão, Drummond intitula uma das seções de sua
Antologia poética (Rio de Janeiro: Editora do Autor, 1962), p. 1962.
ADORNO, Theodor W. Teoria estética, tradução de Artur Morão 11 Ver Dicionário Houaiss da língua portuguesa (Rio de Janeiro:
(Lisboa: Edições 70, s/d), p. 151. Objetiva, 2001), p. 64.

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desenlace, resoluçãov'? - a qual põe à prova, e por fim arru- ( ) verso crucial do "Poema de sete faces" - "seria uma rima,
ína, a capacidade cognitiva do poeta. Por isso, o incipit de u.io seria uma solução"16 - ilustra bem a compreensão desi-
"Procura da poesia": "Não faças versos sobre acontecimen- ludida, embora irresignada, que Drummond tinha dos po-
tos" 13. Acontecimentos e versos, a rigor, são incomunicáveis deres da poesia, limitados embora inevitáveis e mesmo im-
entre si (e logo mais voltaremos ao tema da incornunicabilidade, prescindíveis. De modo um pouco enviesado, mas com a
caro a Drummond). Por isso, também, a ainda escassamente vantagem de aqui mais uma vez recorrer-se à palavra "acon-
compreendida epígrafe de Claro enigma, extraída de Valéry: iccimento" (e já no título), essa compreensão também ani-
"Les éuénements m'ennuient" (em francês, perde-se a distin- ma "Em face dos últimos acontecimentos": "Oh! sejamos
ção que traçamos entre acontecimento e evento). O ennui, tal pornográficos", convocação em que consiste o primeiro
como encarnado neste livro, não é o sentimento da renúncia à verso, síntese do poema, pode ser lida, metaforicamente,
intervenção política (e poética) na realidade, mas sim o senti- como convite a sermos plenamente, vitalmente, poéticos.
mento da consciência de que os instrumentos costumeiros Pois ser poético - o contraste entre rima e solução leva-nos
da cognição, mobilizados por Drummond, essencialmente ;J crer - é trocar, por força do enfrentamento malogrado
poeta e não pensador, fracassam frente à complexidade e com a realidade, o dever da razão, o dever do conhecimen-
inapreensibilidade do real". Felizmente, a desistência da to, pelo investimento na materialidade da linguagem, pelo
intelecção não redunda na desistência da poesia. Pelo con- apelo aos sentidos. Davi Arrigucci Jr. observa que "o que
trário: a poesia, em Drummond, parece enraizar-se justa- está em jogo", na circularidade de "No meio do caminho",
mente na "derrocada do intelecto", para usarmos, com sen- "é sempre o princípio e o fim da criação poética: a pedra
tido um pouco diverso, uma expressão de Breton destacada será, recorrentemente, a pedra no caminho de toda criação
por Hugo Friedrich em seu estudo sobre a lírica moderna". drumrnondiana "!". Para Drummond, a criação fundar-se-
ia sempre numa "dificuldade básica", a qual "é fator
12 Idem, p. 1277. desencadeante e, simultaneamente, entrave do ato poético".
13 "Procura da poesia", em A rosa do povo (op. cit., p. 117). O problema da interpretação de Arrigucci é ter praticamen-
14 Podemos lembrar urna observação de Décio Pignatari sobre Drummond: te equiparado o ato poético com a reflexão: "A pedra é o
"Não a tantos assim cabe tão justamente a famosa tirada de Mallarmé a
que move o poeta à reflexão e à procura da poesia, que ela,
Degas: poesia não se faz com idéias, mas com palavras. Suas idéias, sobre
literatura, política, arte ou cinema, não se elevam acima do repertório
entretanto, barra, obrigando-o ao círculo infernal da busca
culto médio do intelectual brasileiro; chega até a surpreender que a sua sem fim, a retomar indefinidamente". Essa infinitude, acredi-
retórica esquiva o enleie em lugares tão cornuns. Bastou-lhe, no entanto, tamos, não é a Sda reflexão, tal como se encontra formulada
uma idéia: a do poema". Décio Pignatari, "Drurnmond: oitentação", em
Letras artes midia (São Paulo: Globo, 1995), p. 70.
15 Ver Hugo Friedrich, Estrutura da líricamoderna, tradução de Marise 16 "Poema de sete faces", em Alguma poesia (op. cit., p. 5).
M. Curioni (São Paulo: Duas Cidades, 1991), p. 143-144. 17 ARRIGUCCI JR., Davi. Op. cit., p. 72-73.

58 59
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nos fragmentos de Friedrich Schlegel e de Novalis estuda . «nverte-se em forma, poema. O poema, anuncia-o já o tí-
dos por Walter Benjamin l~, mas sim a da impossibilidade lido, torna-se, aos olhos do poeta, um acontecimento.

da reflexão, que constitui a poesia. O intervalo entre acontecimento e poesia encontra uma
"Poema que aconteceu" é o expressivo título de um po I "I'resentação mais concentrada - com a abolição do aconte-
ema que compartilha as páginas de Alguma poesia COlll . uncnto externo, ou antes a sua subsunção ao ato da criação
"No meio do caminho". Nele, poema e acontecimento Se pt>ética- em outro poema do mesmo livro:
confundem na perspectiva da interrupção: Gastei uma hora pensando um verso
Nenhum desejo neste domingo que a pena não quer escrever.
nenhum problema nesta vida No entanto ele está cá dentro
o mundo parou de repente inquieto, vivo.
os homens ficaram calados Ele está cá dentro
domingo sem fim nem começo. e não quer sair.
Mas a poesia deste momento
A mão que escreve este poema
inunda minha vida inteira."
não sabe que está escrevendo
mas é possível que se soubesse Aqui fica evidente que a interrupção é o movimento, ou,
nem ligasse." melhor, não-movimento, gerador da verdadeira poesia, cons-
riruída por versos idealmente inescritos, perpetuamente la-
O ennui preside a cena em todos os seus detalhes, a ta I
u-ntes, dos quais os versos efetivamente escritos parecem ser
ponto que a negatividade extrema - a extinção do desejo, ()
.ipcnas pálida imitação. Pode-se concluir que a aspiração mais
silêncio dos homens (e silêncio não de todo voluntário, con-
.ilra de Drummond para seus poemas é que também sejam,
forme indica sutilmente o verbo calar), a anulação do tempo
de algum modo, acontecimentos, interrupções, tanto para o
histórico ("domingo sem fim nem começo"), o mundo que
11l"<Íprio poeta como para o leitor. Só assim, poderiam fixar-
"parou de repente" - não parece afetar a sensibilidade ou ;t
·.e na memória e exigir respostas, preferencialmente em for-
razão do poeta: "nenhum problema nesta vida". Uma curi-
l11a de ação - ainda que, como se deu quanto à pedra no meio
osa inconsciência ou abstenção impregna o ato da escrita
.lo caminho, essas respostas não se desembaracem da
do poema representado na segunda estrofe. Desse modo, ()
'Icgatividade fundamental do acontecimento que lhes en-
ennui, que antes era apenas um sentimento, anterior à poesia,
I'. ·ndrou. Drummond, apesar de algumas indicações super-
liciais em contrário em sua fase mais explicitamente política,
18 ARRIGUCCI JR., Davi. "Intermezzo romântico", op. cit., p. 42-45,
IIUS não somente nesta ("Canção amiga", de Novos poemas,
Ver Walter Benjamin, O conceito de crítica de arte no romantismo alemã. >,
tradução de Márcio Seligmann-Silva (São Paulo: Iluminuras e Edusp, 1993),
19 "Poema que aconteceu", em Alguma poesia (op. cit., p. 17). '<i "Poesia", em Alguma poesia (op. cit., p. 21).

so 61
é disso exemplar"), não parece interessado em esta belecer com " pedicuro", em sua carnalidade ostensiva, não deixa mar-
o leitor um relacionamento baseado na empatia ou na ident i 1',"111 :1 dúvidas: o poema deve ser incorporado - isto é, agrega-

ficação, e sim, antes, no choque ou em alguma outra modali .1" ,10 próprio corpo - pelo leitor. Essa ênfase na corporeidade
dade mais branda de estremecimento. "Oficina irritada" é :1 II,I!) é gratuita. Drummond parece estar postulando um novo

expressão suprema desse intento: IIII:,;1r, mais corpóreo, material, para a memória e, por exten-

',:11), para o que no poeta produz poemas. Um lugar além do


Eu quero compor um soneto duro
como poeta algum ousara escrever. uuclecto e da reflexão. "Lembras-te, carne?", indaga em
Eu quero pintar um soneto escuro, '" .scada ", de Fazendeiro do ar":
seco, abafado, difícil de ler. "Oficina irritada", um soneto que se nomeia como so-
111'1'0, um soneto sobre o próprio ato de escrever o soneto
Quero que meu soneto, no futuro,
não desperte em ninguém nenhum prazer. .iuora apresentado, exprime um primado da vontade estra-
E que, no seu maligno ar imaturo, uho à poética do acontecimento e da interrupção tal como a
ao mesmo tempo saiba ser, não ser. vínhamos delimitando até aqui. O acontecimento, por defi-
uiçâo, é o que não pode ser programado, o que se dá sem
Esse meu verbo antipático e impuro
motivação racional aparente. Se compararmos "Oficina ir-
há de pungir, há de fazer sofrer,
tendão de Vênus sob o pedicuro. ritada" com "Poema que aconteceu", verificaremos uma
discrepância escandalosa entre o ímpeto das expressões
Ninguém o lembrará: tiro no muro,
voluntaristas "quero" e "há de" e a serena renúncia de "não
cão mijando no caos, enquanto Arcturo,
,:1 be" ou "nem ligasse". Mas nã o parece ha ver genuína con-
claro enigma, se deixa surpreenderY
I radição entre ambos os comportamentos, do que parece ser
"Ninguém o lembrará" é o passo irônico essencial. A mdice a pretensão desmesurada de um poema que "ao mes-
esperança de Drummond parece ser precisamente contrária: 1110 tempo saiba ser, não ser". Passarem-se quase vinte anos

que, por "difícil de ler" e incapaz de despertar o prazer do entre a composição de um poema e a de outro, algo tinha de
leitor, o poema permaneça, como permanecem as coisas in- mudar, e não seria errôneo concebê-los como duas reações
cômodas, na memória. "Ninguém o lembrará" deve, pois, .ilternativas, mas não excludentes, ao desafio da assimilação
ser relido o mais literalmente possível: o soneto não precisa- da realidade, na forma de acontecimento, ao poema - e realida-
rá, de fato, ser lembrado; só o que foi esquecido pode ser de, em ambos os casos, impressa apenas em marca d'água no
recuperado pela recordação. O símile "tendão de Vênus sob poema, o que dá a medida do desafio. E as duas reações - o
poema que aconteceu e o soneto duro - são unifica das por
21 "Canção amiga", em Novos poemas (op. cit., p. 231).
22 "Oficina irritada", em Claro enigma iop. cit., p. 261). .'1 "Escada", em Fazendeiro do ar iop, cit. p. 409),

62 63
sua disposição numa régua de gradação progressiva que V;II Ir.\nscendência, estas são de pronto rebaixadas ao chão da his-
da estudada indiferença até a afronta enfática ao leitor (' ruria, embora às vezes de forma tão sutil que leitores desaten-
seus hábitos prazenteiros. ItlS não o percebem. A compreensão mais funda de um livro
Em suma, o que estamos propondo é que Drummond arma I·,tjllivo como Claro enigma passa pelo rastreamento paciencioso
uma teia de correspondências entre o modo como autor e po· •. perspicaz dos dados da realidade histórica obscurecidos pelo
ema relacionam-se com a realidade e o esquema narrativo (.l, ';1,/,1110 sublimis adotado na maioria dos poemas. Ainda há mui-
interrupção; secundariamente, também entra nesse jogo o modo I() a fazer nesse sentido, e a tarefa é imensa: a sutileza do poeta
como ele ambiciona que o leitor se relacione com o poema. demanda uma correlativa sutileza do crítico. Sérgio Buarque

O movimento do poeta em direção à realidade é um movi dt: Holanda já ressaltava a persistência da preocupação histó-

mento essencialmente frustrado, impedido não apenas pela rica nessa fase de Drummond: "Há de iludir-se [... ] quem veja

dificuldade ou impossibilidade de apreensão do real- "o im- nesse aparente desapego ao 'acontecimento' o reverso neces-

pério do real, que não existe" _24, mas sobretudo pelo impe- s.irio de alguma noção transcendental da poesia: poesia enten-
dida como essência inefável, contraposta ao mundo das coisas
rativo ético de não escamotear essa inapreensibilidade, ou,
fugazes e finitas":". Porém, no mais das vezes, Drummond
antes, de expô-Ia às claras. Em outros termos: a interrupção
não esconde sua adesão à história - e história não somente
pode ser uma metáfora ou, mais precisamente, uma alego-
como coleção de antigualhas, ao menos não nos seus melho-
ria do modo singular de Drummond ir ao encontro da rea-
res poemas, mas como processo a desenrolar-se no presente e
lidade e anexá-Ia ao poema na forma de acontecimento.
:\0 qual o poeta, dado seu compromisso moral e político com
os "homens presentes", não pode ficar alheio. Essa adesão é
3
enunciada enfaticamente em "Mãos dadas":

A realidade com que Drummond se preocupa e ocupa é Não serei o poeta de um mundo caduco.
sempre radicalmente histórica. Com a sagacidade habitual, Também não cantarei o mundo futuro.
Antonio Candido interpreta "No meio do caminho" nos se- Estou preso à vida e olho meus companheiros.
Estão taciturnos mas nutrem grandes esperanças.
guintes termos: "a sociedade oferece obstáculos que impedem
Entre eles, considero a enorme realidade.
a plenitude dos atos e dos sentimentos'f". (Que atos e senti-
O presente é tão grande, não nos afastemos.
mentos são estes, é o que pretendemos investigar.) Mesmo
Não nos afastemos muito, vamos de mãos dadas.
quando Drummond se refere à natureza ou a alguma forma de

!(, HOLANDA, Sérgio Buarque de. "Rebelião e convenção - I", em


24 "Procura", em A vida passada a limpo (op. cit., p. 427). O espírito e a letra: estudos de crítica literária, v. 2, organização,
25 CANDIDO, Antonio. "Inquietudes na poesia de Drummond", em introdução e notas de Antonio Arnoni Prado (São Paulo: Companhia
Vários escritos (São Paulo: Duas Cidades, 1995), p. 121. das Letras, 1996), p. 502.

65
64
Não serei o cantor de uma mulher, de uma história, I irummond sublinha a perda da função comunicativa da lin- j
não direi os suspiros ao anoitecer, a paisagem vista da janela, ,·.II:lgem como sintoma de tais sentimentos e ressentimentos: .1
não distribuirei entorpecentes ou cartas de suicida ,
não fugirei para as ilhas nem serei raptado por serafins. (Na solidão de indivíduo
O tempo é a minha matéria, o tempo presente, desaprendi a linguagem
[os homens presentes, com que homens se comunicam.)"
a vida presente."
Como veremos adiante com mais clareza, essa ênfase na
Devemos destacar, neste poema, inicialmente, a decla- linguagem não é circunstancial: o insucesso da linguagem
ração peremptória de recusa ao episódico, que é também, \ omunicativa é especialmente revelador do malogro da
não sem paradoxo, devido exatamente a essa recusa, uma ,ognição e pode ser considerado o ponto de partida da ins-
declaração implícita de apego ao episódico como figura i.ruraçâo de uma linguagem outra, essencialmente intransitiva,
elementar da temporalidade histórica mais abrangente. Ou entranhadamente poética.
seja, o acontecimento só vale para o poeta em sua insuperá- Talvez seja o momento, agora, de assinalarmos as seme-
vel insuficiência, por meio da qual alude sem mentira à rea- lhanças e diferenças iluminadoras entre o esquema da inter-
lidade histórica como um todo, ou ao menos à parte do rupção na poesia de Drummond e a estrutura do sublime tal

todo acessível à sua percepção. Mas devemos sobretudo sa- corno descrita por Kant na Crítica do juizo. Para Kant, o su-

lientar a conseqüente definição da realidade do "tempo pre- l-lime produz-se "por meio do sentimento de uma suspensão

sente" como "enorme realidade". O compromisso com os momentânea das faculdades vitais, seguida imediatamente por
11m transbordamento tanto mais forte das mesmas't". Esse ;j
"homens presentes", assim convertidos em "companheiros",
xcntimento de suspensão se dá quando o sujeito depara com
i
decorre precisamente da urgência em enfrentar essa enor-
midade, demasiada para um só homem: "O presente é tão
11111objeto propício a isso, seja por sua grandeza ou por sua IIII·!

grande, não nos afastemos". Não por acaso, em outro poe-


força excepcionais. Frente a esse objeto, o espírito percebe-se I'
simultaneamente - ou alternada mente - atraído e repelido.
I
ma de Sentimento do mundo, Drummond corrige a compa-
Quando é a grandeza que impressiona o sujeito, temos o que
ração que fizera entre seu vasto coração e o vasto mundo
no "P oema d e sete f aces: ""N- ao, meu coração não é maior Kant chama "sublime matemático"; quando é a força, o "subli-
rue dinâmico". A "enorme realidade" referida por Drummond
que o mundo". Por sua vastidão ser menor que a do mun-
parece configurar uma cena da primeira modalidade de su-
do, é que ele precisa conectar-se a outros corações. No entan-
l-lime, para a qual Kant oferece uma explicação elegante.
to, a desilusão e o ennui dela resultante pungem mesmo na
hora da expressão do compromisso - e, significativamente,
's "Mundo grande", em Sentimento do mundo iop. cit., p. 87).
"/ KANT, Immanuel. Crítica dei juicio, traducción de Manuel García
27
"Mãos dadas", em Sentimento do mundo (op. cit., p. 80). rvtorente (Madrid: Espasa, 1997), p. 184.

66 67
A imaginação dividir-se-ia em duas atividades complemen- fi. consciência do aspecto limítrofe da imaginação e, por ex-
tares: a apreensão e a compreensão. A apreensão é poten- 1l:I1São, da representação da realidade está flagrante num
cialmente infinita. Por maior ou mais numeroso que seja poema de A vida passada a limpo em que Drummond revisa
um objeto ou grupo de objetos, a intuição sensível (respou- I) que escrevera em "Mãos dadas", quase vinte anos antes:
sável pela apreensão) é capaz de percorrê-I o por inteiro,
Não cantarei amores que não tenho,
desmontá-lo em fragmentos menores e carregá-I o para os do-
e, quando tive, nunca celebrei.
mínios do espírito. A compreensão, no entanto, torna-se tão Não cantarei o riso que não rira
mais difícil quanto mais distante vá a apreensão. O sublime e que, se risse, oferta ria a pobres.
assoma quando a compreensão atingse o "máximo quaniunt Minha matéria é o nada."
estético de apreciação't ". A apreensão chega tão longe que
Proclama-se assim, de certo modo, a equivalência entre
as primeiras "representações parciais" fornecidas pela in-
o "tempo presente" e o "nada". O "nada'" pode ser entendi-
tuição começam já a apagar-se da imaginação, exigindo, por-
do , na leitura cruzada de ambos os poemas, como cifra do
tanto, que o espírito retroceda para retomar o que perdeu - o
"tempo presente" em sua impossibilidade de imaginação, !
que, mais uma vez, deixa a descoberto o que ele possuía antes I!:
reflexão, representação, ação. O silêncio, mais uma vez, é o
Ilrl
desse retorno ao passado. É então que a imaginação vê des-
horizonte do poema, e mais uma vez está vinculado ao I1
pontar uma faculdade supra-sensível, a qual, substituindo a
fracasso da cognição: "Não canto, pois não sei".
compreensão humilhada, apresenta para o espírito, a partir
Esse flerte com o nada é também um flerte com a morte, de
dos dados oferecidos pela intuição, uma idéia de infinitude.
que nada é eufemismo: "não cantarei o morto: é o próprio can-
Envaidecido com a capacidade de superar as próprias limi-
to" , diz-se no mesmo poema; "poesia, canção suicida", "poe-.
tações, o espírito sente-se invadir pelo sublime. Assim em Kant.
sia, morte secreta", reitera-se noutro. De fato, nos poemas mais
Em Drummond, a situação é mais complexa, pois a pas-
significativos de Drummond, não há recuperação exultante das
sagem do jogo entre apreensão e compreensão para o triunfo
faculdades vitais depois da suspensão inicial, como previa Kant
da imaginação é quase sempre bloqueada. Arrigucci, com acer- na descrição do sublime, mas sim anulação, ao menos retórica,
to, detecta, em "No meio do caminho", "um complexo sen- dessas faculdades e da própria vida, como se vê exemplarmente
timento de não-poder do Eu"3!. Não é uma imaginação em "O enterrado vivo" 33 • Vem daí a afinidade com o mundo
jubilosa que amarra os cacos da vida na forma da "enorme dos mortos que Drummond está sempre a confessar: aliás, a sua
realidade", mas antes uma imaginação - a serviço do conhe- família, à consideração da qual retoma em inúmeros poemas,
cimento e da ação - profundamente cônscia de seus limites. só tem cidadania em sua obra como catálogo de defuntos ou,

30 Idem, p. 192. 12 "Nudez", em A vida passada a limpo (op. cit., p. 419).


31 ARRIGUCCI JR., Davi. Op. cit., p. 71. 13 "O enterrado vivo", em Fazendeiro do ar (op. cit., p. 404).

68 69
melhor, "álbum de fotografias intoleráveis, / alto de muin» (...] no tempo e fora dele, irreversível,
metros e velho de infinitos minutos", como se lê em "( h
sinal de derrota que se vai consumindo a ponto de
converter-se em sinal de beleza no rosto de alguém
'I
mortos de sobrecasaca":". A expansão hiperbólica no esl'oI
que, precisamente, volve o rosto, e passa...36
ço e no tempo dá conta da força sublime agônica, da força di
interrupção, da imagem de sua família como figuração di Mais uma vez, o engano e a posterior desilusão: o "sinal
uma certa abordagem da realidade pelo ângulo da mitologi.. .lc derrota" transmuta-se em "sinal de beleza", mas num rosto
pessoal, da tentativa de compreensão da situação presente que, logo após responder ao olhar do poeta, "passa".
por meio de seus vínculos com o passado. É legítimo qll" "A máquina do mundo", do ponto de vista da compre-
alguns se espantem com que um poeta tão voltado par" ,I cnsâo da realidade como realidade histórica e do paralelo
recordação do passado familiar identifique o "tempo prescn com o sublime, é um poema especialmente ilustrativo. Com-
te" como sua matéria; mas não há contradição: o tempo d.1 partilha com "No meio do caminho" o esquema narrativo
memória é o presente, a partir do qual ela lança suas redes ao básico da interrupção. Entretanto, em vez de uma mera pe-
passado, para apanhar resíduos. "O Drummond autobio dra o que o sujeito-personagem encontra em seu caminho
, . "
gráfico é antes autográfico: escreve-se a si mesmo para ser", _ agora especificado como "uma estrada de Mll1~S ',~v~-
sugere Décio Pigna tari". O vértice de significação desses rc cando a paisagem mítico-familiar da terra natal - e a ma-
síduos é o hic et nunc: eles valem pelo que depõem do passa- quina do mundo", que diante dele se abre, oferece~do-lhe,
do como elucidação do presente. Como se a pedra, com que aparentemente, o conhecimento absoluto da realidade, a
se topou no meio do caminho no passado, devesse ser carrc- "total explicação da vida". A renúncia de Drummond p~-
gada como souuenir e talismã (e o é na memória), o obstáculo rante a máquina é provavelmente seu passo mais desterni-
tornando-se parte do sujeito. Em "Tarde de maio", Drummond do no rumo da negatividade cognitiva, ético-estética ou,
diz levar consigo a lembrança do momento que dá título ao numa palavra, poética:
poema, "Como esses primitivos que carregam por toda parte
o maxilar inferior de seus mortos". Porém, se "os primitivos A treva mais estrita já pousara
sobre a estrada de Minas, pedregosa,
imploram à relíquia saúde e chuva" e outros "portentos",
e a máquina do mundo, repelida,
o poeta só pede à sua tarde que continue,
se foi miudamente recompondo,
34"Os mortosde sobrecasaca",em Sentimento do mundo (op. cit., p. 73). enquanto eu, avaliando o que perdera,
-
35 PIGNATARI,Décio. "A situação atual da poesia no Brasil", em seguia vagaroso, de maos pensas. 37
Contracomunicação (São Paulo: Perspectiva, 1971), p. 100. Cf. Luiz
Costa Lima, "Carlos Drummond de Andrade: memória e ficção", em
Dispersa demanda: ensaios sobre literatura e teoria (Rio de Janeiro:
.16 "Tarde de maio", em Claro enigma (op. cit., p. 264). !I
FranciscoAlves, 1981), p. 159-175. \7 "A máquina do mundo", em Claro enigma (op. cit., p. 304).
,
i
71
70
\1
Mas falar em negatividade, a propósito deste pOCIII.!., o horizonte de pensamento tangencia a kantiana coi-
sa em si, o nôurneno, incognoscível, além daqueles fenô-
falar ainda muito pouco. Alfreclo Bosi, com razão, encoun.:
menos que são, no poema, as imagens do mundo apenas
um precedente da imagem da "máquina do mundo" 11.1
csboçadas no rosto do mistério. Ou no abismo (abyssos:
"Grande Máquina" que aparece em "Elegia 1938".
sem fundo) .'10

Amas a noite pelo poder de aniquilamento que encerra Lembremos, antes de mais nada, que as expressões frisa-
e sabes que, dormindo, os problemas te dispensam de morrer.
.I:ISpor Bosi neste poema encontram correspondência em "No
Mas o terrível despertar prova a existência da Grande Máquin.i
meio do caminho" ("retinas tão fatigadas") e em "Áporo"
e te repõe, pequenino, em face de indecifráveis palmeiras.P
(nt:xausto"), de que logo nos ocuparemos. Devemos também
Atentemos, nesta estrofe, para a representação do SII .lcstacar a preciosa expressão "angústia cognitiva", muito
jeito "pequenino" frente às "indecifráveis palmeiras" c .\ .idcquada à caracterização de "A máquina do mundo" e da
"Grande Máquina" de que elas são desdobramento, a COII poesia de Drummond como um todo. Entretanto, temos de
duzir-nos novamente às proximidades do sublime. Mas repu- ';cr cautelosos com a identificação do incognoscíve1, em
remos sobretudo no adjetivo "indecifráveis", denotativo li;\ Iirummond, com o nôumeno kantiano. O incognoscível, aqui,
incognoscibilidade do real. ~ ainda a realidade histórica, como um exame do poema dei-
A máquina, em "Elegia 1938", poderia ser entendida, xa claro, e seu lugar não coincide com o da máquina, situado
segundo Bosi, como "a figura metonímica da sociedade"!". que está além dela e de suas cavilações.
Em "A máquina do mundo", seu significado mudaria: Não podemos confundir o que a máquina oferece ao
poeta com o que é o verdadeiro objeto de sua busca. O dis-
Agora, é a própria relação do eu com o mundo exte-
curso da máquina, ao interpor-se ao caminhante, é ostensi-
rior que vem enfrentada de modo imediato e em um
discurso de tensão máxima. Sobe ao primeiro plano da
vamente falso, conversa de vendedor; atribui ao caminhante
consciência a busca de um sentido que o sujeito empreen- uma procura que não é a dele, com a intenção de fazê-lo
deu, e que forma a pré-história da sua narrativa. As pupi- mudar de rumo e meta:
las gastas e a mente exausta de mental' (o pleonasmo diz
Abriu-se em calma pura, e convidando
da intensidade do processo) são o remate de uma an-
quantos sentidos e intuições restavam
gústia cognitiva que se debateu em vão contra o muro
a quem de os ter usado os já perdera
de pedra da realidade.
e nem desejaria recobrá-los,
se em vão e para sempre repetimos
38 "El egia. 1938" ,em S'enttmento do mundo (op. cit., p. 86).
os mesmos sem roteiro tristes périplos,
39 B~SI, ~fredo. "'A máquina do mundo' entre o símbolo e a alegoria",
~m Ceu, inferno: ensaios de crítica literária e ideológica (São Paulo:
Atica, 1988), p. 88. 40 BOSI, Alfredo. Idem, p. 88.

73
72
convidando-os a todos, em coorte, impondo seu próprio discurso, em que vai pouco a pouco nome-
a se aplicarem sobre o pasto inédito .indo os dados da realidade histórica, objetos de sua busca frus-
da natureza mítica das coisas, Irada, a partir justamente da imagem metafísica oferecida pela

assim me disse, embora voz alguma máquina, sem, ao menos de início, confrontá-Ia abertamente:
ou sopro ou eco ou simples percussão
As mais soberbas pontes e edifícios,
atestasse que alguém, sobre a montanha,
o que nas oficinas se elabora,
a outro alguém, noturno e miserável, o que pensado foi e logo atinge
em colóquio se estava dirigindo:
distância superior ao pensamento,
"O que procuraste em ti ou fora de
os recursos da terra dominados,
teu ser restrito e nunca se mostrou, e as paixões e os impulsos e os tormentos
mesmo afetando dar-se ou se rendendo,
e tudo o que define o ser terrestre
e a cada instante mais se retraindo,
ou se prolonga até nos animais
olha, repara, ausculta: essa riqueza e chega às plantas para se embeber
sobrante a toda pérola, essa ciência
no sono rancoroso dos minérios,
sublime e formidável, mas hermética,
dá volta ao mundo e torna a se engolfar
essa total explicação da vida, na estranha ordem geométrica de tudo,
esse nexo primeiro e singular,
e o absurdo original e seus enigmas,
que nem concebes mais, pois tão esquivo
suas verdades altas mais que tantos
se revelou ante a pesquisa ardente monumentos erguidos à verdade;
em que te consumiste ... vê, contempla,
e a memória dos deuses, e o solene
abre teu peito para agasalhá-lo" .41
sentimento de morte, que floresce
o último pedido da máquina é, a rigor, supérfluo; sugere-o o no caule da existência mais gloriosa,
silêncio ("embora voz alguma ... ") de seu discurso. É silencioso
tudo se apresentou nesse relance
porque provém, provavelmente, do interior do próprio poeta,
e me chamou para seu reino augusto,
como segunda voz que a sociedade, a "Grande Máquina", incul- afinal submetido à vista humana.f
cou-lhe, para refrear seus impulsos de insubmissão. Ou seja, o
que Marx designaria "ideologia". Mas o poeta, com uma mano- A "natureza mítica das coisas", "essa total explicação da

bra astuta, consegue resguardar-se dessa voz capciosa e acaba vida", "esse nexo primeiro e singular", bem poderiam conter

41 "A máquina do mundo", em Claro enigma (op. cit., p. 301-302). 42 Idem (op. cit., p. 302-303).

75
74
"o absurdo original e seus enigmas" ou "a memória dos deuses", 1\ negatividade do poema se amplia pela imagem das "mãos
mas dificilmente "o que nas oficinas se elabora" ou "os recurso', pensas", em posição decisiva no último verso da última
da terra dominados". Aqueles pomposos convites a um conhc -strofe. É preciso lê-Ia como revisão da imagem das "mãos
cimento etéreo e imaterial são, como diz o poeta mais adiante, .l.idas'' de Sentimento do mundo. Pendem, sobre a estrada de
"defumas crenças convocadas" para as quais ele já não tem ;1 Minas, mãos incomunicáveis, como a mão que, por imunda,
"fé" necessária - o que, aliás, sua obra toda atesta. Aos poucos, deve ser cortada em "A mão suja", de JOSé45,
a voz própria do poeta, que ainda encabulada começava a fazer
frente à segunda voz, a da máquina, vai-se encorajando, até () 4

ponto em que se desembaraça definitivamente dessa voz l'


Em "Opaco", de Claro enigma, Drurnmond dramatiza o
mesmo do falso ser que, na interioridade dele, ela animara:
processo de descoberta, por parte do sujeito do poema, de que
e como se outro ser, não mais aquele :\ interrupção lhe é interna, bloqueio psicológico-cognitivo,
habitante de mim há tantos anos,
c não realmente externa, como figurada a princípio:
passasse a comandar minha vontade
Noite. Certo
que, já de si solúvel, se cerrava
muitos são os astros.
semelhante a essas flores reticentes
Mas o edifício
em si mesmas abertas e fechadas" barra-me a vista.

Bosi diagnostica acídia - que define, seguindo a Summa Quis interpretá-to.


Theologica, como "torpor espiritual" a impedir a busca do Valeu? Hoje
bem e da verdade - na recusa à máquina do mundo". Pelo barra-me (há luar) a vista.

contrário, a meu ver, a recusa é expressão do desejo perseve- Nada escrito no céu,
rante da verdade (e do bem) - não da "verdade" propagandeada sei.
pela máquina, mas a verdade da realidade histórica, perdição Mas queria vê-Ia.
do poeta. Não é a esta que ele renuncia, embora de qualquer O edifício barra-me
modo não a alcance. O que importa é que a caminhada do a vista.

poeta no encalço da verdade histórica recomeça ao fim, ain- Zumbido


da que na "treva mais estrita" e ainda que só lhe reste reto- de besouro. Motor
mar os "mesmos sem roteiro tristes périplos" de sempre. arfando. O edifício barra-me
a vista.

43 Idem iop, cit., p. 303).


44 BOSI, Alfredo. Op. cit., p. 93. 1\ "A mão suja", em José iop, cit., p. 108-109).

76 77
Assim ao luar é mais humilde. rcprisá-Ia pela perspectiva da pedra. O ser humano, esfinge
Por ele é que sei do luar. mais monstruosa que a esfinge tebana, é que agora intercepta
Não, não me barra I)percurso. O homem é o obstáculo supremo do universo:
a vista. A vista se barra
a si mesma." As pedras caminhavam pela estrada. Eis que uma forma
obscura lhes barra o caminho. Elas se interrogam, e à sua
Sem a perícia formal de "No meio do caminho", usa-se experiência mais particular. Conheciam outras formas
também aqui a técnica da repetição para conotar o incômodo deambulantes, e o perigo de cada objeto em circulação na
implacável do obstáculo sempre presente. "Quis interpretá-Ia", terra. Aquele, todavia, em nada se assemelha às imagens
trituradas pela experiência, prisioneiras do hábito ou doma-
referindo-se ao edifício, é uma passagem-chave, deixando à
das pelo instinto imemorial das pedras. As pedras detêm-se.
mostra o impulso cognitivo que percorre a poesia de
No esforço de compreender, chegam a imobilizar-se de todo.
Drummond do primeiro ao último verso. É interessante veri-
E na contenção desse instante, fixam-se as pedras - para
ficar como esse impulso dirige-se idealmente ao céu, nos quais sempre - no chão, compondo montanhas colossais, ou sim-
os astros insinuam talvez uma escrita, da qual o poeta de ples e estupefatos e pobres seixos desgarrados.
pronto descrê, mas, se calha de o edifício barrar-lhe (ou pare- Mas a coisa sombria - desmesurada, por sua vez - aí
cer barrar-lhe) a vista, a vontade de conhecer detém-se nele. está, à maneira dos enigmas que zombam da tentativa de
Interpretar o obstáculo talvez seja, de fato, a melhor maneira interpretação. É mal de enigmas não se decifrarem a si
de lidar com ele, embora não o elimine; afinal, é o obstáculo, e próprios. Carecem de argúcia alheia, que os liberte de
sua confusão amaldiçoada. E repelem-na ao mesmo tem-
não o que está além dele, que simboliza a realidade histórica,
po, tal é a condição dos enigmas. Esse travou o avanço
meta da cognição. Poderíamos, agora, reler "A máquina do
das pedras, rebanho desprevenido, e amanhã fixará por
mundo" à luz dessa consideração e notar que, embora a má- igual às árvores, enquanto não chega o dia dos ventos, e
quina oferte ao poeta a visão de uma realidade mirífica e o dos pássaros, e o do ar pululante de insetos e vibrações,
abstrata, ela mesmo, máquina, confundindo sua voz com a e o de toda vida, e o da mesma capacidade universal de se
ideologia, é signo da realidade histórica no processo de corresponder e se completar, que sobrevive à consciência.
ocultamento de suas bases materiais. O enigma tende a paralisar o mundo.
No poema em prosa "O enigma", a internalização do Talvez que a enorme Coisa sofra na intimidade de suas
fibras, mas não se compadece nem de si nem daqueles
obstáculo é mais violenta do que em "Opaco", e as bases
que reduz à congelada expectação.
materiais da realidade - na forma do sofrimento da natureza
Ai! de que serve a inteligência - lastimam-se as pedras.
sob o domínio humano - não são sonegadas. Nele, Drummond Nós éramos inteligentes; contudo, pensar a ameaça não é
retoma à cena originária de "No meio do caminho", para removê-Ia; é criá-la.
Ai! de que serve a sensibilidade - choram as pedras.
46 "Opaco", em Claro enigma iop, cit., p. 261-262). Nós éramos sensíveis, e o dom de misericórdia se volta

79
78
contra nós, quando contávamos aplicá-lo a espécies me- o trecho crucial de "O enigma" consiste num breve
nos favorecidas. mas luminoso apontamento sobre pensamento e ação, ou
Anoitece, e o luar, modulado de dolenres canções que antes sobre o fracasso do pensamento frente à realidade:
preexistem aos instrumentos de música, espalha no côn- "pensar a ameaça não é removê-Ia; é criá-Ia". Um dos mais
cavo, já pleno de serras abruptas e de ignoradas jazidas,
perfeitos poemas de Drummond, "Áporo" traz no seu cerne
melancólica moleza.
significante a admissão desse fracasso e a busca de uma sa-
Mas a Coisa interceptante não se resolve. Barra o
caminho e medita, obscura."
ída para o impasse dele decorrente. E isso desde o título:
áporo é sinônimo de aporia, além de nomear um inseto e
Uma atmosfera de medo envolve a cena, medo decorren- uma orquídea:". A saída não passa pelo pensamento racio-
te da irrupção brutal da realidade humana - histórica - no nal, lógico, mas pelo que lhe é radicalmente outro, a poesia
seio da natureza, realidade pré-humana ("canções que em sua nudez extrema, no osso da palavra. O poema inicia-
preexistem aos instrumentos de música"). Atravessa o poe- se com uma metáfora do pensamento sob a forma de uma
ma a nostalgia dessa realidade natural cujo conhecimento -
escavação aparentemente sem fim:
sensível, não intelectual- era e, residualmente, ainda é possí-
vel, pelo menos a um observador não-humano, pela "capaci- Um inseto cava
dade universal de se corresponder e se completar, que sobre- cava sem alarme
perfurando a terra
vive à consciência". O homem põe tudo a percler: ao nomear
sem achar escape. 49
a natureza "natureza" e a peclra "pedra", já interrompe as
correspondances naturais. Se à natureza ele submete sem O que interrompe o caminho do inseto é a própria terra
piedade, o que não fará com outros homens ... que até determinado momento foi apenas seu caminho. O que
determina a conversão do caminho em obstáculo é o cansaço,
47 "O enigma", em Novos poemas (op. cit., p. 242-243). Semelhante assinalado na estrofe seguinte. Nesta, formula-se uma per-
reversão do olhar, que passa a dirigir-se do inumano para o humano, gunta, para a qual o poeta não chega propriamente a uma
encontra-se em "Um boi vê os homens", de Claro enigma (op. cit., p. resposta, mas antes a uma não-resposta, proveniente de uma
252). Ali os homens também são contemplados como enigma, mas,
região inóspita cio espírito que está simultaneamente aquém
destituídos pelo discurso bovino de sua pretensa superioridade sobre as
demais criaturas, não como ameaça, senão para si mesmos. Embora, é e além, definitivamente fora, de qualquer reflexão:
certo, seus "sons absurdos e agônicos: desejo, amor, ciúme",
despedaçando-se e tombando ao solo na forma de "pedras aflitas" (note-
·18 O texto fundamental sobre" Ãporo ", mesmo quando dele
se a ressurgência do símbolo dileto), torne difícil, ao boi, a ruminação
discordamos, é ainda o de Décio Pignatari, "Áporo: um inseto semiótico",
de sua verdade. Numa interpretação ligeira: os desejos humanos,
em Contracomunicaçáo (São Paulo: Perspectiva, 1971), p. 131-137. Ver
concretizando-se em ações, perturbam a contigüidade primitiva dos seres
naturais com sua verdade. Não será abusivo detectar alguma influência também Davi Arrigucci ]r., "Sem saída", op, cit., p. 75-105.
da doutrina do pecado original nessa consideração. -19 "Aporo", em A rosa do povo (op. cit., p. 142).

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Que fazer, exausto, 1101'dizer" 51 • Antes, corrigiríamos, do que ficou por pensar.
em país bloqueado,
I)isso podemos deduzir que a intransitividade da poesia mo-
enlace de noite,
derna e contemporânea - aqui resumida pela obra de um de
raiz e minério?
seus maiores artífices em nível universal - não é fruto de um
Eis que o labirinto mero capricho de seus inventores, mas nasce dessa epistemologia
(oh razão mistério)
desiludida implícita no ato criativo.
presto se desata:
A chave do entendimento de por que o impensável é de fato
em verde, sozinha, impensável provavelmente encontra-se no desvelamento, por
antieuclidiana, meio da interpretação e da fantasia crítica (imprescindível ante
uma orquídea forma-se. uma lírica tão enigmática), da consistência histórica concreta
A orquídea que se forma ao fim, como resposta à ques .. da figura do "país bloqueado". Teríamos de nos deixar guiar,
tão formulada, deve ser compreendida como metáfora do nessa direção, por Pignatari, que chamou a atenção para a pre-
próprio poema em formação. (Não esqueçamos que uma sença em marca d'água da realidade histórica no poema, sobre-
"flor-poema", para falarmos como Pignatari, desabrocha tudo mediante a expressão destacada: "país bloqueado" repor-
em outro poema de A rosa do povo, o conhecido" A flor l' taria, a um só tempo, ao Estado Novo brasileiro e ao nazifascismo
a náusea". Nele, a indagação que interrompe "Áporo" é europeu, ambos agonizantes naquele ano de 194552• Agonizan-
apenas pressentida: "Quarenta anos e nenhum problema / tes, porém marcados pelo poeta com o selo do "Nunca me es-
resolvido, sequer colocado vw.) O poema, como orquídea, quecerei desse acontecimento", expressão de um dever ético
é aparição sensível, palavra como matéria e como coisa, a impreterível frente à face catastrófica da história".
ganhar consistência ali mesmo onde o pensamento já não Pignatari e Arrigucci recorrem à noção de metamorfose
chega (daí "antieuclidiana"), por não achar escape em suas para definir a relação entre o inseto e a orquídea, entre o pri-
exaustivas perfurações do real. O poema nasce precisa- meiro áporo do poema e o último. Contudo, se observarmos
mente do impensável, como tropo complexo a este alusi-
vo. O impensável é refratário à representação, sem a qual 51 BARBOSA, João Alexandre. "Silêncio & palavra em Carlos
não há conhecimento; o impensável só encontra lugar na Drummond de Anclrade", em A metáfora crítica (São Paulo:
linguagem por meio da figuração, aqui concebida como Perspectiva, 1974), p. 108.

gesto suplementar à representação obstruída. João Ale- 52 PIGNATARI, Décio. "Áporo: um inseto semiótico", op, cit., p. 137.
Para Pignatari, "presto se desata" pode conter uma alusão à libertação
xandre Barbosa, a propósito de Drummond, cogita do
de Luís Carlos Prestes, complementando assim o enraizamento do poema
poema como "possibilidade de instauração do que ficou no tempo já efetuado por "país bloqueado". ii
i
5.1 Cf. Harald Weinrich, Lete: arte e crítica do esquecimento, tradução
50 "A fi ar e a nausea
'" , em. A rosa d o povo (op. cit., p. 119). de Lya Luft (Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2001).

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o poema de perto e com atenção, não identificaremos sequer IZecorrendo aos termos de outro famoso poema de Drurnmond,
um vocábulo que indique ou mesmo que apenas sugira a 111l' poderíamos dizer que, para ele, o poema pode até iniciar-se
tamorfose do inseto do início na orquídea do final. Temos, com uma luta com a realidade, mas só se encaminha para seu
na verdade, duas formas - a do inseto e a da orquídea - iso desfecho - recordemos a anagnorisis trágica - a partir de uma
ladas ("sozinha", diz-se da orquídea), ligadas apenas pelo luta com as palavras». Que essa seja "a luta mais vã" não
frágil liame da homonímia. A detenção nesse pormenor pod« subtrai o poeta - de início "lúcido e frio", mas logo "exaspe-
parecer bizantina, mas é fundamental para a justa interprern rado" - do seu caminho pedregoso e em treva. Antonio Candido
ção do poema. Poderíamos tentar desmontar a noção de me. ,."
,)
.idverte que, para Drummond, "tudo existe antes de mais nada
tamorfose por meio de uma analogia. Imaginemos qu« como paJavra".I6, Décio Pignatari, vinculando essa atitude ao.
estarnos usando uma palavra inadequada para nos referir. legado de Mallarrné, chega a proposição ainda mais cabal:
mos a determinado objeto. De repente, damo-nos conta do "tudo em Drummond é palavra "57, O que podemos acrescen-
equívoco e passamos a utilizar a palavra correta. Diremos lar é que a palavra, nessa obra, é a instância por excelência da
que o primeiro objeto rnetamorfoseou-se no segundo? Essa interrupção. Pignatari, num ensaio crítico que é uma verda-
tendência à correção do olhar ou da nomeação é freqüenr« deira tomografia sensível de "Áporo", demonstra exaustiva-
em Drummond - recorde-se o verso exemplar "O amor IH I mente como o pensamento encarna - e se interrompe - na
escuro, não, no claro", de "Não se mate"54 - e, acreditamos, palavra, constituindo percursos de letras e fonemas a replicar,
está ativa em "Aporo". Essa hesitação é só outro sintomn gráfica e sonoramente, a escavação do inseto-reflexão e a
das dificuldades do pensamento perante o real. lloraçâo da orquídea-poema. Em "Consideração do poema",
Se houvesse de fato, como querem Pignatari e Arrigucci, Drummond caracteriza as palavras como "indevassáveis":".
metamorfose, continuidade ontológica entre formas diversas, I':, em "Procura da poesia", ouvimos a palavra perguntar
o poema se apresentaria como produto resultante das investidos :10 poeta: "Trouxeste a chaver ">".
do poeta sobre a realidade, como decorrência direta do SCII Não há, pois, propriamente, em Drummond, "lira fi-
esforço para conhecê-Ia, Assim sendo, teríamos de afiançar losófica", como quer Merquior'", ou "poesia reflexiva", como
que o poema é, para Drummond, a forma final do trabalho d;1
cognição, teríamos de consentir que o poema alcança aprecn II Ver "O lutador", em José (op. cit., p. 99-101).
der uma imagem da realidade e a dá a conhecer sem maion-. Ih CANDIDO, Antonio. Op. cit., p. 139.
impedimentos ou perturbações. Todavia, se não houver rnern PIGNATARI, Décio. "A situação atual da poesia no Brasil", op,
morfose, só indiretamente, só tropicamente (de tropas, desvio), .it., p. 100.
',S "Consideração do poema", em A rosa do povo iop. cit., p. 115).
o poema remete ao esforço cognitivo que está em sua origem,
,., "Procura da poesia", em A rosa do povo (op. cit., p. 118).
,." MERQUIOR, José Guilherme. "Nosso clássico moderno", em
54 "N-ao se mate, "Bem rejo. das AI mas (op, at.,
. p. 58).
Critica 1964-1,989 (Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1990), p. 307.

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quer Arrigucci - embora este introduza uma importante mil
(il- Brejo das A1111as63• Essa incomunicação se estabelece, num
dl!lação ao falar de "reflexão rítmica" a propósito dI'
r.r.iu mais elevado do que entre poema e leitor, entre poema e
"Aparo" e ilumine nossa investigação quando indica "o n:lo
.calidade e, no interior desta, entre o poema que efetivamente se
saber" C01110 horizonte da reflexão em "Mineração do outro",
lorrnou e o poema que poderia ter sido, se a reflexão e a cognição
ou ainda quando, sobre o mesmo poema, conjetura acen.,
11:10 fracassassem. Como se esclarece na "Confidência do
do "caráter incognoscível extremo daquilo mesmo que nr»,
irabirano", essa incomunicabilidade pode nascer da própria per-
atrai com o fascínio do inexplicável "61, Há, sim, a impossi
sonalidade do poeta, de seu "alheamento do que na vida é
bilidade da filosofia, a ruína da reflexão, O trágico moder
porosidade e comunicação't'". Mas o que importa ressaltar é
no, em Druml11ond, aparece exatamente como a coincidên
que essa incomunicação implica também o fracasso da ação sobre
cia entre a consciência histórica e a inter1'llpção do ethos 011
:l realidade, de que a solidão do poeta, solidão ou prisão em sua
pathos reflexivo: a realidade histórica, o "tempo presente",
"classe" e em algumas "roupas", tal como figurada em tantos
revela-se, como já dissemos, impensável e incognoscível. Como
poemas, é i1ustrativa: "Para onde vai o operário? Teria vergo-
a Sua é uma poesia que incessantemente coloca a si mesma em
nha de charná-lo meu irmão"65. Vergonha, culpa e remorso são
questão, uma poesia que existe somente a partir de uma refle-
inseparáveis do ennui e da incomunicação inerentes ao poema.
xão matriz sobre o que é e o que não é poesia, sobre quais seus
Em "Procura da poesia", integrante de A rosa do povo
limites, razões e fidelidades, mais dramático se torna esse
assim como "Aporo", vê-se isso de modo exemplar, embora,
movimento pelo qual a reflexão se anula para que o poema
como em todo poema que realmente interessa, por fim, como
possa existir, A reflexão sobre a poesia já é reflexão sobre a
veremos, se supere a própria exemplaridade. O momento de
realidade histórica, que inevitavelmente a abarca, Disso de-
engajamento político mais explícito é também o da mais aguda
corre que, a rigor, o poema seja desconhecido de si mesmo
, ciência das limitações do poema em sua relação com qualquer
quanto mais do poeta, Por isso, talvez, Drummond supo-
realidade exterior ou interior. O poema se estrutura inicial-
nha que "a poesia mais rica I é um sinal de menos"62, A
mente como uma seqüência de imperativos negativos dirigidos
singularidade de Drummond consiste, em larga medida, na
pelo poeta a si mesmo. Em meio a, e, principalmente, depois de,
arte de insular na palavra poética essa negatividade, sem no
uma enumeração de dados da realidade - os "acontecimentos"
entanto romper os laços com o presumÍvel leitor. Drummond
- vedados à poesia, Drummond conclui: "O que pensas e sen-
nunca dá o salto final no silêncio ou na palavra absoluta-
tes, isso ainda não é poesia"66. Mas mais relevante ainda,
mente oclusa que nos assombra, por exemplo, num Paul
Celan. "A poesia é incomunicável", escreve ele em "Segredo",
63 "Segredo", em Brejo das Almas iop, cit. p. 59).
64 "Confidência do itabirano", em Sentimento do mundo (op. cit., p. 68).
61 ARRIGUCCI ]R., Davi. Op. cit., p. 85, 126 e 144,
65 "O operário no mar", em Sentimento do mundo (op. cit., p. 72).
62 "Poema-orelha", em A vida passada a limpo (op. cit., p. 418).
66 "Procura da poesia", em A rosa do povo (op. cit., p. 117).

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87
'.I!II
1",
I1
I

de nosso ponto de vista, é a afirmação de que a poesia "eli.lo


I'
Aqui, O "poder de silêncio" sobrepujou o "poder de pala-
sujeito e objeto". Anula-se, assim, a condição sine qua non vra" ("ermas de melodia e conceito"), mas não o suficiente, e
do conhecimento. Resta, como campo de ação (ou de batalha, as palavras persistem como fantasmas, reminiscências de uma
como no já citado "O lutador"), somente a palavra: potência abortada, e, como tal, expressões concentradas de

Penetra surdamente no reino das palavras. um desprezo absoluto, impermeável, no limite, à paráfrase
Lá estão os poemas que esperam ser escritos." ou interpretação. Na continuação do trecho citado de "O
operário no mar", Drummond escreve: "Ele sabe que não é,
Contudo, um pouco adiante, chega-se a uma formulação
nunca foi meu irmão, que não nos entenderemos nunca. E
capital, pareando palavra e silêncio na consumação do poema:
me despreza ... Ou talvez seja eu próprio que me despreze a
Convive com teus poemas, antes de escrevê-los. seus olhos "71. Contudo, seria ingênuo reduzir o desprezo de
Tem paciência, se obscuros. Calma, se te provocam. "Procura da poesia" ao desprezo do outro poema. Talvez
Espera que cada um se realize e consume apenas uma célebre sentença de Nietzsche fizesse justiça à
com seu poder de palavra
significação a bissal de "desprezo" no verso final: "Aquilo
e seu poder de silêncio."
para o que temos palavras, já o deixamos de lado. Em todo
Poderíamos evocar, em paralelo, o fecho de "Canto discurso há um grão de desprezo". Somente a total aniqui-
esponjoso": lação da poesia suplantaria esse desprezo, e Drummond não
é insensível a essa exigência:
Vontade de cantar. Mas tão absoluta
que me calo, repleto.f" Impossível compor um poema a essa altura da evolução
[da humanidade.
Mas o encerramento de "Procura da poesia" é ainda
Impossível escrever um poema - uma linha que seja - de
mais significativo:
[verdadeira poesia. 72
Repara:
Mas não tenhamos dúvida: é precisamente nessa
ermas de melodia e conceito I
abissalidade , nessa interrupção que impõe à atividade
elas se refugiaram na noite, as palavras. Ir
Ainda úmidas e impregnadas de sono,
hermenêutica e à reflexão crítica, que a poesia de Drummond II
rolam num rio difícil e se transformam em desprezo. 70
mostra-se, de modo mais inequívoco, marcada pelo tempo
<:111 que foi concebida. Continua valendo, para esses instan-
tes, o que de sua obra disse Mário Faustino: "no futuro,
67 Idem (op. cit., p. 117).
68 Idem (op. cit., p. 118).
69 "Canto esponjoso", em Novos poemas iop. cit., p. 239). 71 "O operário no mar", em Sentimento do mundo iop. cit., p. 72).
70 "Procura da poesia", em A rosa do povo iop. cit., p. 118). -2 "O sobrevivente", em Alguma poesia. (op. cit., p. 26).

88 89
quem quiser conhecer o 'Geist' brasileiro, pelo menos de entre
1930 e 1945, terá que recorrer muito mais a Drummond que a
certos historiadores, sociólogos, antropólogos e 'filósofos'
nossos .. .'>73. Que pintura mais fiel de um "país bloqueado"
podemos desejar do que uma poesia bloqueada?

Coisas Fora do Tempo: a Poética do Resíduo


--------------------l
,
I Jerônimo Teixeira
Para Jerônimo Teixeira, a quem devo ter
roubado umas tantas idéias

Carlos Drummond de Andrade é o oeta da tralha. Tudo


() que n~~Le~~a p~ra nadase transfigura emseus versos - e,
Eduardo Sterzi é poeta e crítico literário. Publicou Prosa (IELjCORAG), em contrapartida, o que julgávamos duradouro e precioso
em 2001. Mestre em Teoria da Literatura (PUCRS) com dissertação sobro revela sua iace mais frágil e contingente. Mesmo quando
Murilo Mendes, cursa doutorado em Teoria e História Literária na Unicamp. Drummond parte em direção ao vazio, ao nada mallarmeano,
Edita, com Tarso de Melo, revista de poesia Cacto e o zine Nasdaq. não deixa de carregar seus restos, as sobras do extinto mun-
do rural de Itabira e os refugos da metrópole moderna por
onde ele perambula entre melancolias e mercadorias. É o que
constatamos no final de "Campo de flores":

Para fora do tempo arrasto meus despojos


e estou vivo na luz que baixa e me confunde. I

Tomados isoladamente, mal dá para acreditar que estes


versos pertençam a um poema de amor. Não é costumeiro
associar esse sentimento a despojos de qualquer tipo - pelo

De Claro enigma. In: ANDRADE, Carlos Drummond de. Poesia e


"rosa. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1992. p. 219. Todos os poemas
73 FAUST1NO,Mário. "Poesia-experiência", em Sônia Brayner (org.), são citados a partir dessa edição. Doravante, serão indicados apenas o
Carlos Drummond de Andrade: fortuna crítica (Rio de Janeiro: número da página e, quando não constar no texto, o título do livro
Civilização Brasileira, 1978, p. 90. original a que o poema pertence.

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