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Vulnerabilidade Social:
O Psicodiagnóstico como
Método de Mapeamento de
Doenças Mentais
Social Vulnerability:
Psychological Assesment as a Mapping
Method of Mental Diseases
Vulnerabilidad Social:
el Psico-diagnóstico como Método de
Mapeo de Dolencias Mentales
Leila Grana
Contemporâneo
Instituto de Psicanálise e
Transdisciplinaridade
André G. Bastos
Universidade Federal do Rio
Grande do Sul /
Contemporâneo
Instituto de Psicanálise e
Transdisciplinaridade
Experiência
PSICOLOGIA
PSICOLOGIA CIÊNCIA
CIÊNCIA EE PROFISSÃO,
PROFISSÃO, 2010,
2010, 30
30 (3),
(1), 650-661
200-211
651
PSICOLOGIA
CIÊNCIA E PROFISSÃO,
Leila Grana & André G. Bastos
2010, 30 (3), 650-661
Abstract: This study demonstrates the experience of working in a Reference Center of Social Welfare of the
state of Rio Grande do Sul. A mapping of the mental illnesses of the population in social vulnerability was
carried out, through the process of psychological diagnosis, as a pilot study. Three subjects were chosen as
sample: a woman, a female teenager and a boy. The social and psychological factors were analyzed. The
pilot study showed that the inclusion of psychological diagnosis can contribute as an important diagnostic
tool of the population. However, it is necessary that public policy offers the proper health services to the
population as a strategy to the work with risk factors.
Keywords: Vulnerability. Psychological diagnosis. Mental disorders. Public policy.
Saúde da Família (PSF), que atua na mesma a identificação dos problemas de maneira
área de abrangência do CRAS, existem precoce, a avaliação de riscos e a realização
629 famílias, totalizando um número de de uma estimativa de força dos sujeitos para
2.026 sujeitos. Mensuramos 152 sujeitos o enfrentamento de situações difíceis, novas
que buscaram ou foram encaminhados ao e estressantes. Essa autora ainda acrescenta:
atendimento psicológico. No entanto, a
O psicodiagnóstico é um processo científico,
continuidade do acompanhamento se dá em
limitado no tempo, que utiliza técnicas e
muito poucos casos, em virtude da desistência testes psicológicos (input), em nível individual
do paciente (104 sujeitos desistiram do ou não, seja para entender problemas à
atendimento). luz de pressupostos teóricos, identificar
e avaliar aspectos específicos, seja para
Dentre as problemáticas existentes, depressão, classificar o caso e prever seu curso possível,
comunicando os resultados (output) na base
alcoolismo/drogadição e dificuldades de dos quais são propostas soluções, se for o
aprendizagem são as mais frequentes.
caso. (p. 26)
Diante da grande demanda, realizamos o
encaminhamento a outro profissional da rede
De acordo com Arzeno (1995), o processo
pública. Normalmente, as pessoas precisam
psicodiagnóstico inclui as entrevistas iniciais
deixar suas angústias e aflições em uma lista
com familiares, a hora de jogo e o uso de testes.
de espera sem tempo previsto para serem
No que tange aos propósitos, são de estabelecer
atendidas, uma vez que não há profissionais
em número e capacitação suficientes para o diagnóstico e, em consequência, avaliar o
realizar o trabalho no Município. A questão prognóstico e as devidas estratégias para ajudar
da doença dos nervos é abordada por Costa o sujeito frente as suas problemáticas.
(1989) como um adoecer mental espalhado
pela população de baixa renda, e isso aparece Pensando no psicodiagnóstico como um
muito nos relatos de nossos usuários. trabalho rico em informações obtidas a
partir das estratégias de instrumentalização
Apesar de o processo psicodiagnóstico não regulamentadas pelo Conselho Federal
fazer parte das atividades propostas pelo de Psicologia (CFP), podemos inferir que
Programa, percebemos uma demanda e a avaliação tem muito a contribuir com a
uma oportunidade de mapear a população questão pública. Ainda conforme Arzeno
utilizando esse processo para avaliar as (1995), através do psicodiagnóstico, pode-
doenças mentais e/ou demais dificuldades se chegar mais próximo dos motivos do
que possam estar vivenciando no âmbito sofrimento dos sujeitos.
psicológico. Essa escolha foi feita por se tratar
de método estrutural que nos permite obter
Descreveremos os casos para exemplificar
tanto dados qualitativos como quantitativos
as dificuldades psicológicas vividas por essa
dos sujeitos avaliados.
população. Cabe ressaltar que todos os
Considerando o sofrimento emocional procedimentos éticos foram seguidos, incluindo
inerente ao sofrimento socioeconômico, a assinatura do Termo de Consentimento Livre
o presente estudo-piloto buscou mapear e Esclarecido por parte dos participantes e/ou
tanto as doenças mentais como as possíveis responsáveis.
dificuldades dessa população vulnerável.
Dessa forma, acreditamos que a realização do Caso A:
psicodiagnóstico seja um procedimento válido
na busca de investigar as principais demandas Paciente do sexo feminino, 44 anos, casada, 05
dos munícipes concernentes à saúde mental. filhos, ensino fundamental incompleto, do lar.
Segundo Cunha (2000), um dos objetivos Após envolver-se em mais uma briga, em que,
do psicodiagnóstico é a prevenção, isto é, de um lado, estava o esposo, e de outro, o
A paciente, há dois anos e meio, vem uma escola pública estadual, que reside com
realizando tratamento com médico psiquiatra, pai, madrasta e duas irmãs.
em um Município distante cerca de 200 km. As
consultas são marcadas em períodos de quatro Sua avaliação psicológica foi realizada devido
meses, e, normalmente, a família estende à presença de comportamentos que envolviam
esse período em virtude das dificuldades pequenos furtos, piromania, agressividade,
financeiras. mentiras e desinteresse escolar.
bem como no processo da avaliação. A sujeito está inserido. Isso significa dizer que,
mãe deixava os afazeres domésticos para a em um ambiente pobre do ponto de vista
adolescente, principalmente nos dias em que econômico, tende-se a criar/moldar sujeitos
esta tinha compromisso no CRAS. pobres de cultura, com rede afetiva precária
e com pouco diálogo, com ausência de
Os resultados da avaliação mostraram que a autonomia e baixa autoestima.
paciente se apresentava com QI total 83, isto
é, em nível médio inferior, segundo WISC Considerando que o sofrimento psíquico é
III, necessitando de avaliação complementar um fenômeno que perpassa todas as classes
a partir de exames de neuroimagem devido sociais, acreditamos, entretanto, que, em
a dificuldades no índice de organização sujeitos vulneráveis, o sofrimento psíquico tem
perceptual e de resistência à distração, maior amplitude, em virtude de se ter menor
bem como de apoio psicopedagógico e de possibilidade para melhorar suas relações
acompanhamento psicológico. familiares e sua qualidade de vida, uma vez
que estão também desprovidos de apoio e de
Particularmente, no que tange à avaliação serviços públicos satisfatórios.
dos exames de neuroimagem, estes não
puderam ser realizados pelos mesmos motivos Nossas avaliações demonstraram ampla
já mencionados no caso A. Convém ressaltar vulnerabilidade ao contexto nos três casos,
que esse fato prejudicou o andamento do cada um com a sua particularidade, mas com
trabalho. Não há expectativas de serem um fator de risco em comum: o próprio meio
devidamente resolvidas essas questões, mas ambiente onde estão inseridos. Além desse
a infeliz possibilidade de seus sintomas serem importante fator de risco, existem tantos
intensificados com o decorrer do tempo pela outros muito presentes nessa população,
ausência do tratamento adequado. que são: a violência doméstica e social, o
histórico familiar de alcoolismo/drogadição,
Discussão Teórico-clínica negligências diversas por parte dos pais e/
ou responsáveis, sintomas depressivos,
É na família que as funções de cuidado e etc. Observamos, ainda, a evasão escolar,
transmissão dos valores e das normas culturais a ausência de rede afetiva entre familiares
devem ser cumpridas, produzindo assim as e o espaço que privilegie a proteção e a
condições necessárias para a sua participação influência educativa, bem como a ausência de
nos demais grupos (Bock, 1999). Esses grupos, disponibilidade para aprender a lidar melhor
dos quais também fazemos parte, são o bairro com os filhos.
onde residimos, a escola, os programas e a
igreja que frequentamos, dentre outros. Todos
Existem inúmeros estudos que demonstram
eles, conforme seus contextos, tendem a nos
que a exposição de crianças e jovens às
moldar.
práticas parentais inadequadas (conflitos,
violência, coerção, etc.) e baixo envolvimento
De acordo com Eizirik, Kapczinski e Bassols
familiar e socio-cultural constituem fatores de
(2001), as mudanças ocorridas na vida dos
risco para o desenvolvimento e aumentam
adultos são, hoje, um reflexo do meio social,
a vulnerabilidade de eventos ameaçadores
cultural e econômico em que vivem os
(delinquência, drogas, etc.) externos ao
sujeitos, somado a sua história transgeracional.
contexto familiar (Ferreira & Marturano, 2002;
No que tange à identidade social, esta é
Gomide, 2003; Mc Dowell & Parke, 2002;
constituída pelo conjunto de características
Marturano, 2004).
individuais reconhecida pelo meio onde o
de baixa renda, Hutz, Koller e Bandeira (1996) carência presente nos lares brasileiros,
afirmam: poderemos dedicar mais atenção e manifestar
menos preconceitos em relação aos mesmos.
Se desejarmos conduzir programas sociais
capazes de melhorar o prognóstico e a Evidenciamos que o psicodiagnóstico é um
qualidade de vida das nossas populações
instrumento que visa a ajudar no diagnóstico
pobres e marginalizadas, teremos que
produzir localmente o conhecimento dos problemas e a facilitar o planejamento
necessário para entender com clareza qual objetivo das soluções, na busca da superação
o nível de stress produzido pelos fatores da dos graves déficits de saúde mental que
vida cotidiana e que variáveis ou processos
aumentam a vulnerabilidade ou protegem
estão presentes nessas comunidades. Nesse
os indivíduos do risco produzido por esses sentido, assinalamos a importância de maior
eventos. (p. 84) número de psicólogos buscarem a capacitação
nessa área, pois ainda há muito o que
fazer, principalmente com as populações
Sendo assim, podemos utilizar o psico-
vulneráveis.
diagnóstico como método de evitar a
disseminação das problemáticas e/ou doenças
Parece-nos utopia pensar que, a partir de
mentais quando realizado adequadamente.
métodos clínicos tradicionais da Psicologia,
Esse processo se mostrou útil e de caráter
se possa curar as mazelas da sociedade e
preventivo-interventivo.
impedir o que podemos chamar de epidemia
socio-emocional. Entretanto, a Psicologia,
Considerações Finais identificando e mensurando as doenças
mentais distribuídas pela população, pode,
Este estudo revelou resultados tristes e
através do processo psicodiagnóstico, por
persistentes, porém reais, de uma parte
exemplo, contribuir com a saúde mental e/ou
do cenário social brasileiro. Acreditamos
com a promoção da saúde dos sujeitos que se
que esses resultados se repitam em outras
encontram em vulnerabilidade social.
comunidades de baixa renda de todo Brasil,
e talvez, do mundo.
Entendemos que a sociedade urge por
políticas públicas capazes de bem atender
Trabalhar com famílias de baixa renda é,
as demandas da população mais carente.
simultaneamente, satisfatório e difícil, pois,
Caberá, assim, às autoridades e aos cidadãos
de um lado, percebemos que podemos
buscar a implementação de políticas de saúde
contribuir com elas quando ofertamos nossa
mental que valorizem a dignidade humana de
compaixão e respeito, ou seja, quando as
TODOS os sujeitos. As políticas não devem ser
escutamos; por outro lado, o trabalho se
assistencialistas, e sim, devem colocá-los como
torna difícil, pois, diante da complexidade das
sujeitos ativos no processo de mudanças.
questões que cercam a miséria, parece que
pouco contribuímos. No trabalho com essa
Sem superações, o Brasil, futuramente,
população, precisamos compreender que a
continuará apresentando o retrato de uma
ajudamos a obter um nível de funcionamento
sociedade repleta de pobreza, de exclusão
mais sadio dentro de seu contexto, fazendo o
social e, em consequência, de sofrimento
que está ao nosso alcance.
psíquico como o mencionado neste artigo.
Leila Grana
Especialista em Psicodiagnóstico e Avaliação Psicológica pelo Instituto de Psicanálise e Transdisciplinaridade
(Contemporâneo – Instituto de Psicanálise e Transdisciplinaridade).
E-mail: leila.grana.psico@hotmail.com
André G. Bastos
Mestre em Psicologia Clínica pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul , Rio Grande do
Sul – RS – Brasil. (Universidade Federal do Rio Grande do Sul e Contemporâneo – Instituto de Psicanálise e
Transdisciplinaridade).
E-mail: andregbastos@terra.com.br
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