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UNIVERSIDADE FEDERAL DE MATO GROSSO

INSTITUTO DE LINGUAGENS
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM
ESTUDOS DE CULTURA CONTEMPORÂNEA

AUGUSTO CEZAR BARBOSA FIGLIAGGI

NÍVEIS DE LEITURA NAS HISTÓRIAS EM QUADRINHOS:


UMA ABORDAGEM SEMIÓTICA

CUIABÁ-MT
2012

1
AUGUSTO CEZAR BARBOSA FIGLIAGGI

NÍVEIS DE LEITURA NAS HISTÓRIAS EM QUADRINHOS:


UMA ABORDAGEM SEMIÓTICA

Dissertação apresentada ao Programa de Pós-


Graduação em Estudos de Cultura
Contemporânea da Universidade Federal de
Mato Grosso como requisito para a obtenção
do título de Mestre em Estudos de Cultura
Contemporânea na Área de Concentração
Estudos Interdisciplinares de Cultura, Linha de
Pesquisa Poéticas Contemporâneas.

Orientadora: Prof(a). Dr(a). José Serafim Bertoloto

Cuiabá-MT
2012
Dados Internacionais de Catalogação na Fonte.

Ficha catalográfica elaborada automaticamente de acordo com os dados fornecidos pelo(a)


autor(a).

Permitida a reprodução parcial ou total, para fins acadêmicos,


desde que citada a fonte.
_______________________________________________________
Prof. Dr. Richard Perassi Luiz de Souza
Examinador Externo (Universidade Federal de Santa Catarina - UFSC)

___________________________________________________________
Prof. Dr. Yugi Gushiken
Examinador Interno (ECCO/UFMT)

___________________________________________________________
Prof. Dr. José Serafim Bertoloto
Orientador (ECCO/UFMT)

Cuiabá, 28 de fevereiro de 2012


Dedicatória

Esta pesquisa é dedicada à minha mulher, minha família, amigos,


orientador e a todos os quadrinistas.
Agradecimentos

Agradeço inicialmente a minha mãe, Vera Lucia,


sem o empenho dela em me educar nada disso seria
possível. A minha esposa, Elaine Cristina, pelo carinho,
amor, paciência e companheirismo em todos os
momentos deste trabalho, pela ajuda tanto como parceira
de vida, como confidente acadêmica, a quem eu ficava
perturbando falando sobre a investigação (te amo!). A
minhas irmãs e irmão, Kátia, Jussara e Julio, que também
foram mães e pai, e nunca “encrecaram” comigo por ter
comprado tantos quadrinhos na vida. A Capes, pelo apoio
e investimento fornecido em meus estudos. A meu
orientador, José Serafim Bertoloto, por ter sido paciente,
solidário e compreensivo durante o período todo de minha
incursão no mestrado. Aos Professores participantes da
banca Dr. Prof. Yugi Gushiken e o Prof. Dr. Richard
Perassi Luiz de Sousa, pela gentileza em aceitar o
convite. Aos professores e colegas do programa de
Estudos de Cultura Contemporânea da Universidade
Federal de Mato Grosso, pois sempre há uma marca
criada pelo contexto que estamos que influencia tudo o
que fazemos intelectualmente. Aos amigos todos (que se
nomear inevitavelmente esquecerei de alguém e isso será
triste). A Ricardo Leite, pelo belo trabalho que realiza em
quadrinhos, e permitiu, ainda que não saiba, que este
estudo fosse melhor exemplificado. As forças ocultas do
destino, que colaboraram para que tudo saísse próximo
ao esperado.
“With great power comes great responsibility.”
Peter Parker
RESUMO

O propósito desta pesquisa é apresentar as possibilidades de leitura de uma


obra de Histórias em Quadrinhos, entendidas sob a abordagem semiótica para,
através disso, entender recursos que influenciam na leitura de um manifesto
dessa linguagem. O objeto que serve para estudo de caso é parte da produção
do quadrinista cuiabano Ricardo Leite e, através de sua obra e de um
ferramental metodológico retirado das correntes semióticas, são apresentados
três níveis de leitura, sendo eles o Nível Fundamental, o Narrativo e o
Discursivo, cada um permitindo enquadrar mais profundamente certas
características dessa linguagem, mas todos eles sendo fenômenos passíveis
da leitura de todo espectador. Observar esses níveis e o seu funcionamento é
uma maneira de ampliar e aprofundar o diálogo acadêmico sobre essa
linguagem artística.
PALAVRAS-CHAVE:
História em Quadrinhos, leitura, semiótica, Ricardo leite

ABSTRACT

The purpose of this research is to present the possibilities of reading a work of


comic books, understood in the semiotic approach, thereby, understand
resources that influence the reading of a manifesto that language. The object
used for case study is part of the production from the cuiabano artist Ricardo
Leite, and through his work and taken a methodological tool of semiotic chains,
there are three levels of reading, they being the Foundation Level, the Narrative
and Discourse, each frame allowing more deeply certain features of this
language, but they all phenomena capable of being read every spectator.
Watching these levels and their operation is a way to broaden and deepen the
academic dialogue on this artistic language.

KEYWORDS:
Comics, reading, semiotics, Ricardo Leite
Sumário

INTRODUÇÃO ....................................................................................................................... 8
CAPÍTULO 1 UM QUADRO GERAL DOS QUADRINHOS – HISTÓRICO E
LINGUAGEM ........................................................................................................................ 13
1.1 PERCURSO HISTÓRICO – A LEGITIMAÇÃO A PARTIR DE RELAÇÕES
ARTÍSTICAS .................................................................................................................... 18
1.1.1 Referências provindas de momentos distantes ............................................... 20
1.1.2 Referências recentes.......................................................................................... 26
1.2 LINGUAGEM SINCRÉTICA - CONCEITO CABÍVEL AOS QUADRINHOS ........ 31
1.2.1 Elementos Composicionais ...................................................................... 42
1.2.1.1 Narrativa ..................................................................................................... 44
1.2.1.2 Visualidade................................................................................................. 46
1.2.1.3 Diagramação - Quadros, calhas e páginas ................................................... 47
1.2.1.4 Legendas, Balões e onomatopeias ................................................................ 51
1.2.1.5 Metáforas Visuais e linhas cinéticas .............................................................. 52
CAPÍULO 2 SEMIÓTICA: FERRAMENTA DE PERCEPÇÃO DAS PERCEPÇÕES .. 55
2.1 TRIADE PEIRCEANA: OBJETO, SIGNIFICANTE E SIGNIFICADO .................... 60
2.2 PROCESSO DE SEMIOSE: PRIMEIRIDADE, SECUNDIDADE E
TERCEIRIDADE............................................................................................................... 64
2.3 PRIMEIRA TRICOTOMIA: SIGNO CONSIGO MESMO ........................................ 70
2.4 SEGUNDA TRICOTOMIA: SIGNO EM RELAÇAO AO SEU OBJETO. ............... 73
2.5 UMA SUBSTITUIÇÃO TRICOTÔMICA ................................................................... 78
2.5.1 Nível Fundamental .............................................................................................. 79
2.5.2 Nível Narrativo..................................................................................................... 82
2.5.3 Nível Discursivo .................................................................................................. 85
CAPÍTULO 3 NÍVEIS NA PRÁTICA ................................................................................. 92
3.1 CONTEXTUALIZAÇÃO DO AUTOR E SUA OBRA ............................................... 95
3.2 AS AMOSTRAS ARTÍSTICAS OBSERVADAS ...................................................... 99
CONSIDERAÇÕES FINAIS .............................................................................................. 112
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ................................................................................. 115
INTRODUÇÃO

8
Hibrido. Vislumbrar as naturezas diversas de um só objeto, atitude ou
qualquer manifestação humana sobre a ótica da hibridação tem sido uma
corrente em voga nas discussões contemporâneas sobre cultura desde a
segunda metade do século XX, contudo, inserir esse conceito a uma linguagem
artística não é o mesmo que explaná-la. Não que explicações sejam
necessárias, pois caminhos pós-modernistas de pensamento dentro das
Ciências Humanas chegam até mesmo a negligenciar a necessidade de
explicar algo, para não incorrer no risco de serem positivistas1. Mas, toda essa
amplitude pode oferecer um perigo nocivo ao estatuto acadêmico, a de
considerar tudo sem se refletir sobre nada. Por isso, por mais que na prática
tudo seja movente, líquido, mutante, transitório; essa pesquisa trata de
observar uma linguagem artística na intenção de analisar seus potenciais
modos de leitura. A atenção será dirigida ao processo, terá como foco a prática
da leitura de Histórias em Quadrinhos, é essa a linguagem artística em
questão. Para essa ponderação, certas etapas do modo como obras dessa
linguagem produzem sentido serão fixadas temporariamente para análise,
como se colocássemos em uma lâmina laboratorial as possíveis leituras
permitidas pelas obras, para então olharmos com um microscópio
metodológico. As práticas culturais são fluídas, mestiças e efêmeras, mas as
análises acadêmicas sobre elas não; ainda que se discuta o movimento dos
fenômenos da cultura, tornar essa discussão fixa em um documento acadêmico
(como uma dissertação) congela uma parte desse movimento, o conceitua; se
a pesquisa não agir fiscalizando a si mesma e pretensamente acreditar que
encerra alguma discussão, irá aprisionar esse fenômeno. Tais colocações
estão sendo realizadas logo no início do texto dessa pesquisa para que se
traga conscientemente a ideia de que as discussões que aqui se apresentam
são incompletas, pois não há possibilidade de afirmar que as ideias
apresentadas são decisivas e conclusivas sobre os processos que aqui se

1
Tendo aqui o pensamento de que “positivismo” se embrenha com dados concretos e objetivos,
conforme a proposta de Augusto Comte (ARANA, 2007).

9
apresentam, elas são apenas parte da complexa ação de se refletir sobre a
fruição de obras artísticas.
O objeto é, então, a linguagem artística da História em Quadrinhos e a
intenção do estudo com ele é perceber como ocorre a produção de sentido em
níveis de leitura. Tendo o pensamento de que entender como ocorre a leitura
dessa linguagem permite observar sua complexidade
poética/artística/comunicacional.
O entendimento que se partilha nessa investigação é de que, apesar de
ser uma linguagem artística que mescla qualidades existentes em outras
poéticas, tal como a Lieteratura ou as Artes Visuais, as Histórias em
Quadrinhos possuem um modo próprio de se manifestar a seus espectadores.
Para realizar as análises foi feito um processo de leitura de imagens que
defende a semiótica como ferramental metodológico adequado para esse tipo
de entendimento, e, promovendo a ideia de que as diferentes doutrinas
semióticas se complementam, há uma predominância dos conceitos e
discussões propostos por Peirce e por Greimas. Por um lado o viés peirceano
revela os aspectos mais fundamentais do processo de significação, revela cada
etapa da semiose; por outro o entendimento greimasiano leva ao entendimento
da colcha cultural/semântica da produção de sentido. Ambas convivem
conjuntamente neste estudo.
O primeiro capítulo deste estudo, intitulado “Um quadro geral dos
quadrinhos – Histórico e Linguagem”, inicia em uma abordagem que discute as
denominações da poética, que também é chamada pela sigla de HQ, de Arte
Sequencial, Banda Desenhada, entre outros; passando por um percurso
histórico que localiza ações que influenciaram a existência de elementos que
existem na manifestação, passando desde ações que demonstram um passado
remoto, mas condizente com as características existentes em uma HQ;
chegando a observar a história recente desse manifesto. Essa apresentação de
um trajeto histórico legitima o manifesto, contribui para que se veja
historicamente as HQ’s como poética artística. Após isso passa-se a uma
discussão sobre a questão: em que se constitui uma linguagem? Nesse
momento rompe-se uma série de considerações que delineiam certos limiares
para a compreensão do que é um texto, uma linguagem, um plano de conteúdo
e de expressão. Descoberto os conceitos que cabem mais adequadamente

10
para esta pesquisa, então ocorre a apresentação da Arte Sequencial como
uma linguagem sincrética, visto que utiliza características de outras estruturas
de produção de sentido, mostrando inclusive seus elementos composicionais,
que é o material sintático disponível para que se elabore as obras dessa
linguagem, para assim permitir que cada leitor elabore uma semântica, em
busca de sentidos e significações.
No segundo capítulo, sob o título “Semiótica: uma ferramenta de
percepção das percepções”, há uma apresentação sobre os mecanismos
metodológicos que observarão as possibilidades de leitura que uma HQ
permite, que, no caso, é, a já citada, metodologia semiótica. São trazidas várias
doutrinas semióticas, tendo em comum entre elas a, já citada, característica de
todas se ocuparem de entender os modos de significação e produção de
sentido, assim sendo, são pinçados de cada uma delas elementos
complementares que levem ao entendimento dos processos de significação de
uma narrativa de História em Quadrinhos. A semiótica da cultura, por exemplo,
explica o vício em predominantemente entender o processo idiomático como
linguagem, pois apresenta que a língua é o Sistema Modelizante Primário, e as
outras estruturas de significação são calcadas sobre ela. A contribuição da
semiótica peirceana ocorre no modo como encarar a semiose, a partir da
proposição do processo triádico, apresentando um objeto referente, um signo e
um interpretante2; além disso, possibilita entender que o pensamento humano
não se fixa em apenas um resultado de significação, mas pode continuar
realizando semioses, ad infinitum. A semiótica trazida pela semântica
estrutural, de Algirdas Greimas, leva a apresentação de níveis de leitura
propriamente ditos, colocando o Nível Fundamental, Narrativo e Discursivo. Em
suma, por mais que essas correntes ocorreram muitas vezes em caminhos
separados, algumas vezes convergentes, noutras divergentes, percebe-se que
se complementam quando se trata de entender a produção de sentido, por isso
não existe neste trabalho nenhum receio em uni-las como ferramentas
metodológicas. Ainda neste capítulo, ao passo em que se apresenta as teorias,
são mostrados exemplos diversos de Histórias em Quadrinhos, Literatura e

2
Em outros momentos autores pesquisadores de Peirce, e o próprio semioticista, apresentam outras
denominações implicadas no processo triádico como: objeto, representamen e interpretante; referente,
significante e significado, entre outras.

11
Artes Visuais, para que se torne mais palpável como a teoria é aplicada na
prática.
Por fim, no derradeiro capítulo, “Níveis na Prática”, é onde ocorre a
aplicabilidade de toda a discussão num estudo de caso. A discussão utiliza
como material de análise a obra do quadrinista cuiabano Ricardo leite, por isso
realiza-se neste capítulo uma apresentação sobre o contexto social do autor e
de sua obra. É neste momento da pesquisa em que é possível se checar uma
práxis do que é dialogado desde o início, e justamente por já existir toda uma
construção de discussões realizada, o capitulo flui com menos arcabouços
teóricos, em realidade eles estão presentes de modo prático. São mostradas
tiras de histórias em Quadrinhos do citado artista, e delas são feitas projeções
sobre os modos de leitura possíveis.
Apesar de toda a discussão que a pesquisa traz, sabe-se de antemão
que uma das características da conclusão é a de que não existe penas um
modo de leitura para um mesmo espectador, tudo pode ser alterado, visto
novamente, ou ainda que seja visto ao mesmo tempo, ter em si inúmeras
interpretações. Todo fruidor de alguma obra de arte, no caso da linguagem das
Histórias em Quadrinhos, pode interpretar diferentes significados para um
mesmo signo, transitando em distintos níveis de leitura. Pois, como colocado
na abertura desse texto introdutório, a prática da cultura é movente, mutante e
fluída. Contudo vale entender que o que essa pesquisa quer trazer é que, se
utilizando das compreensões que ela elucida, muitas ações práticas podem ser
refletidas, desde o modo como as Histórias em Quadrinhos tem sido tratadas
dentro do estatuto da arte, a maneira como a comunicação se apropria dessa
linguagem, ou, até mesmo, o modo como a educação encara as Histórias em
Quadrinhos.

12
CAPÍTULO 1

UM QUADRO GERAL DOS QUADRINHOS – HISTÓRICO E


LINGUAGEM

13
Para se entender as características de uma linguagem artística é válido
observar as denominações que fazem referência a ela, pois normalmente o
nome é um modo de sintetizar em poucas palavras as qualidades de um
conceito mais amplo. Tendo essa ideia como ponto de partida, faz-se aqui a
apresentação de algumas das variadas maneiras de se referir à linguagem da
História em Quadrinhos, no intento de perceber nas designações diferentes os
entendimentos sintéticos sobre a linguagem. Partindo inicialmente da síntese
para posteriormente utilizar as denominações em um processo de análise.
Essa linguagem artística, a História em Quadrinhos, é, naturalmente,
referenciada de distintas maneiras em locais diferentes, ou seja, se altera o
tratamento dado a ela de acordo com a região geográfica e grupo social. É
evidente que a variação idiomática leva a termos desiguais, e, desse modo, a
linguagem artística da “Pintura” em inglês é chamada de “Painting”, em francês
“la Peinture”, em italiano “”Pittura”, em todos esses casos, apesar de serem
palavras compostas por fonemas e grafias desiguais, trazem em si um mesmo
significado, por mais plural e amplo que ele seja. O que ocorre no caso das
Histórias em Quadrinhos é que a alteração do termo de um país ao outro não é
apenas idiomática, mas também utilizam palavras de natureza diferentes,
palavras que significam coisas distintas. Na maior parte das vezes o termo que
faz alusão ao manifesto está estabelecido a um dos elementos visuais
composicionais existentes na linguagem. Por exemplo, no Brasil está sob o
epíteto de História em Quadrinhos, fazendo referência a duas coisas: primeiro
o termo “história” faz alusão a capacidade de criar narrativas que a linguagem
permite, pois toda história é uma narrativa; em seguida há a referência aos
“quadrinhos”, que são os quadradinhos que emolduram os desenhos existentes
no modo de compor visualmente uma obra dessa natureza artística, vale
colocar que muitas vezes o termo é apenas sintetizado na sigla HQ.
(ACEVEDO, 1990)
Já em Portugal é costumeiro utilizarem Banda Desenhada, novamente
fazendo menção à aparência de composição visual das obras, visto que por lá

14
o termo “banda” é utilizado principalmente para designar listras, tiras, enfim,
áreas limitadas por retas paralelas, não sendo, como no Brasil, uma banda no
sentido de grupo musical. Os lusitanos, tal como os brasileiros, empregam no
nome da linguagem parte de suas propriedades visuais, sendo que no Brasil
aparece a ideia dos quadrinhos e em Portugal a faixa toda – banda – e os
desenhos contidos nela. (idem, 1990)
Na Itália um termo que ficou bastante conhecido para referenciar as
Histórias em Quadrinhos foi Fumetti, mais uma vez referindo-se a elementos
visuais contidos nas obras, pois o termo “fumetti” se relaciona com aquilo que
aparenta ser uma fumaça, realizando analogia aos balões das HQ, que se
assemelham com uma nuvem de fumaça (ibidem, 1990).
Até então, todos os termos aqui apresentados fazem alusão a alguma
das qualidades imagéticas contidas na linguagem, salvo parte do termo
“História em Quadrinhos”, visto que também realiza menção à propriedade de
se contar “narrativas”. Nessa descoberta acerca das denominações
empregadas para essa manifestação existe uma que, apesar de ter sido
bastante difundida, não realiza referência a elementos de composição dessa
poética e sim a um de seus gêneros, trata-se da nomenclatura norte-
americana: Comics. Esse termo existe devido ao grande envolvimento de uma
considerável parcela de HQ’s do início do século XX com o gênero cômico,
então, ao invés ser um tratamento que denuncie algo da aparência visual da
linguagem, é uma designação que reduz o pensamento dos quadrinhos a
apenas um dos gêneros que possui: o cômico. Tal relação com as qualidades
temáticas das histórias é apontada pelos pesquisadores Leila e Roberto
Ianonne:

“A palavra inglesa comic quer dizer ‘cômico’ ou ‘humorístico’. No


início o conteúdo das histórias em quadrinhos era
predominantemente humorístico. Os primeiros exemplares
conhecidos conjugavam piadas ou anedotas relacionadas a dois
temas básicos: crianças e fantasia.” (IANONNE, 1994, p. 22)

Toma-se esse breve apontamento acerca das nomenclaturas, para


perceber que os recursos visuais existentes em obras dessa linguagem
influenciaram muito sua designação, como o caso dos termos História em
Quadrinhos, Banda Desenhada e Fumetti que dizem respeito, respectivamente,

15
aos quadradinhos, as tiras e aos balões que compõem a narrativa. Por outro
lado, tornou-se bastante conhecida a classificação norte-americana comics,
fazendo menção a um dos gêneros. Por mais que até aqui se falou apenas dos
termos empregados para tratar essa linguagem, observá-los já propicia
perceber pontos para uma discussão mais analítica. Inicialmente é possível um
entendimento de elementos que fazem parte dessa poética artística que são
bastante entremeados no universo das artes plásticas, visto que se relacionam
com as propriedades visuais dos Quadrinhos; isso é percebido devido a
algumas designações - “quadrinhos”, “banda desenhada”, “fumetti” - que são
oferecidas a esse tipo de arte, pois evidenciam elementos composicionais que
participam de uma visualidade.
Outra característica que é possível reparar a partir de suas
denominações é que a visualidade não é a única propriedade que guia a
linguagem em questão, pois também existe uma narrativa que se desenrola,
assim sendo, é uma linguagem que, tal como a literatura, o teatro ou o cinema,
utiliza a intenção de apresentar enredos. Isso não quer dizer que uma obra
específica do universo das Artes Plásticas não possa conter uma história, mas
nas HQ’s esse propósito é mais explícito.
Além dessa intenção declarada em se contar histórias, uma das
denominações – “fumetti” - demonstra que há elementos que oferecem um
modo próprio de entender como as histórias são contadas dentro do universo
das HQ’s, levando assim a perceber que existem recursos dentro dessa
linguagem que lhes são quase exclusivos, no caso os balões.
Para não limitar demasiadamente o pensamento sobre a linguagem
artística em questão, várias nomenclaturas serão adotadas no decorrer do
texto, partindo do pressuposto que, como todas se referem ao mesmo
manifesto, revelam assim partes de um todo. Isto é, os vários termos, por mais
que sejam diferentes, fornecem contribuições para as defesas aqui
apresentadas.
Além das designações já comentadas, será levantada ainda outra
classificação, é o tratamento proporcionado por Will Eisner, um sujeito que
além de produzir HQ’s pesquisava a linguagem no âmbito acadêmico. Suas
ideias ofereceram contribuições inovadoras tanto do ponto de vista artístico
quanto científico para as Histórias em Quadrinhos. A nomenclatura inaugurada

16
por ele é “Arte Sequencial” (EISNER, 1999). A contribuição da visão de Eisner
para a compreensão da Banda Desenhada como uma linguagem artística é
observada pelo artista visual Edgar Franco, que coloca:

“Uma das definições mais abrangentes e usuais para tentar explicar e


enquadrar as HQs foi talhada pelo notório quadrinista e pesquisador
das HQs Will Eisner, ele criou o termo ‘Arte Sequencial’ com o intuito
de renomear as histórias em quadrinhos, nos Estados Unidos
chamadas comics. O termo criado por Eisner traz incorporada a
palavra ‘arte’, incluindo assim as histórias em quadrinhos na categoria
de arte, associando a palavra ao termo ‘sequencial’, que visa definir
toda narrativa de imagens em sequencia.” (FRANCO, 2004, p. 23)

Quando Eisner, que além de artista e pesquisador foi professor de Artes


Visuais, possibilita essa nomenclatura, revela algo da essência dessa
linguagem. Permite enxergar alicerces que condicionaram o surgimento desse
fenômeno: a sequência, ou, mais especificamente, uma sequência de imagens.
Em realidade existem outras linguagens artísticas que fazem uso da sucessão
de imagens, como, por exemplo, o cinema, que utiliza os pictogramas numa
disposição sequenciada dentro de um rolo de filme e os projeta com a
utilização da luz, mas a História em Quadrinhos apresenta certa particularidade
quanto ao modo como se serve desse recurso.
Refletindo sobre essas especificidades o quadrinista Scott McCloud
entra em pormenores quanto ao termo Arte Sequencial, e, num momento de
esforço sintético, mas ao mesmo tempo envolvido em uma precisão minuciosa,
coloca os Quadrinhos como “Imagens pictóricas e outras, justapostas em
sequência deliberada” (MCCLOUD, 1995, p. 08). É evidente que esse esforço,
apesar de propor um pouco mais de precisão sobre como são manifestadas as
HQ’s, enrijece o pensamento sobre esse universo, e corre o risco de mais
prejudicar do que contribuir.
Ainda que se apontassem inúmeras reflexões sobre os termos que
designam essa linguagem, não se poderia alcançar algum que dê conta de
todas as características dela. Isso justifica a necessidade de ocupar-se de
vários termos no decorrer desse texto quando for fazer alusão à História em
Quadrinhos; pois, assim como existem várias possibilidades de manifestos e
termos na pintura, no cinema, na dança, na música; uma grande quantidade de
manifestações e nomenclaturas possíveis não entram em detrimento dos

17
Quadrinhos como linguagem, pelo contrário, como foi colocado anteriormente,
pode revelar partes do todo, faces que completam um panorama mais
totalizado.
Independente, então, do modo de como tratar essa manifestação
artística, o que há de relevante é entendê-la como uma maneira própria de
oferecer conteúdo estético/poético/comunicacional. Essa defesa, da Arte
Sequencial como uma linguagem artística, é necessária justamente para não
cair no reducionismo que uma de suas nomenclaturas - “comics” - traz, que
restringe a ampla gama de gêneros narrativos de HQ, como produções
cômicas.

1.1 PERCURSO HISTÓRICO – A LEGITIMAÇÃO A PARTIR DE RELAÇÕES


ARTÍSTICAS

Uma relevante tarefa para se aprofundar no conhecimento acerca de um


fenômeno é entender os caminhos e o referencial histórico que cooperaram
para sua concepção. Desse modo, um levantamento conciso sobre as
condicionantes que levaram a História em Quadrinhos a ser observada como
linguagem, clareia a compreensão das características que a especifica.
São várias as maneiras de apresentar uma cronologia da Arte
Sequencial, pode-se, inclusive, observar que várias passagens históricas
aparentemente díspares, contribuem significativamente para a compreensão da
estrutura composicional das HQ. Observar esses acontecimentos permite
entender mais facilmente os elementos constituintes dessa linguagem.
Antes de tudo é importante ressaltar uma das características
constituintes sobre os Quadrinhos, que é a união de recursos que se
instauraram durante muito tempo como campos de estudo distintos, como, por
exemplo, a utilização de texto verbal e imagens gráficas. Foi elaborada uma
aliança entre a palavra e a imagem de tal modo, que quase não se nota
exemplos de obras de Arte Sequencial que não participam dessa junção. Isso é
notado por Waldomiro Vergueiro que aponta o seguinte:

18
“nota-se que as histórias em quadrinhos constituem um sistema
narrativo composto por dois códigos que atuam em constante
interação: o visual e o verbal. Cada um desses ocupa, dentro dos
quadrinhos, um papel especial, reforçando um ao outro e garantindo
que a mensagem seja entendida em plenitude. Alguns elementos da
mensagem são passados exclusivamente pelo texto, outros têm na
linguagem pictórica sua forma de transmissão. A grande maioria das
mensagens dos quadrinhos, no entanto, é percebida pelos leitores
por intermédio da interação entre os dois códigos. Assim, a análise
separada de cada um deles obedece a uma necessidade puramente
didática, pois, dentro do ambiente das HQs, eles não podem ser
pensados separadamente.” (VERGUEIRO, 2009, p. 31).

Isso não quer dizer que as obras necessariamente devam unir palavras
às imagens, mas sim que geralmente é o que ocorre. Outras características da
História em Quadrinhos têm relação com outros sistemas artísticos, contudo a
explicitação desses elementos será abordada mais adiante. O que vale frisar
aqui é que a herança da união entre as características das artes que fazem uso
da linguagem verbal (Literatura, Poesia, etc.) e as das artes do campo visual
(Desenho, Pintura, etc.) tem sua origem em diversos momentos históricos, pois
no decorrer do percurso da humanidade a habilidade de unir elementos que
contém valor verbal com elementos de valor visual sucedeu-se em distintas
sociedades. Deve-se entender que palavras escritas são imagens, pois letras
também são desenhos – podem ser mais geometrizados no caso de letras de
forma, ou orgânicos no caso de escrita cursiva e mais uma imensa variedade
de possibilidades de traços nas linhas que constroem as palavras – sendo
assim, tanto os signos verbais quanto as imagens, são representações
captadas pelos olhos, são elementos visuais. Por outro lado o cérebro tem
modos distintos de realizar sinapses de uma palavra escrita em oposição à de
uma imagem não relacionada diretamente à compreensão verbal, por isso, por
mais que ambos os modos de representação se dê na configuração de
mensagens destinadas à captação da visão, aqui será tido que signos verbais
são as palavras escritas que se relacionam com fonemas e signos visuais são
imagens que não possuem essa relação fonética.
É evidente que, assim como Waldomiro Vergueiro apontou, essa divisão
conceitual existe apenas para uma mais clara compreensão sobre o fenômeno,
mas no processo de fruição de obras dessa linguagem o expectador não
necessita ficar atento a essas distinções. Ou seja, a compreensão da narrativa
e gozo estético das Histórias em Quadrinhos não depende de entender suas

19
características de maneira separada, pelo contrário, ocorrem justamente de
modo unificado. É o tipo de compreensão necessária apenas para realizar um
estudo, pois fixará momentaneamente cada característica sob conceitos e
reflexões específicas, mas na prática da leitura tudo ocorre de modo
simultâneo.

1.1.1 Referências provindas de momentos distantes

Existem momentos que, ainda que diretamente não tenham levado à


existência da linguagem, contribuem para sua compreensão. Como no caso de
manifestos que se expressavam num misto de noções verbais e visuais. A
ocorrência de referências que realizavam essa mescla não é recente, existem
passagens bastante antigas que demonstram essa união, um exemplo disso
são os hieróglifos egípcios, que dispõem dessa combinação de signos.
A egiptóloga Margaret Bakos apresenta a manifestação hieroglífica da
seguinte maneira “A escrita hieroglífica consiste na combinação de imagens
representativas de idéias, os pictogramas, e de imagens representativas de
sons, os fonemas.” (BAKOS, 2007, p. 180). Isso denota que a prática de unir
signos visuais e verbais antecede em milênios à existência das Histórias em
Quadrinhos, que teve seu início marcado na virada do século XIX para o século
XX. Por mais que estejam distante temporalmente das revistas e livros de HQ
impressos contemporaneamente, isso permite entender que a faculdade de
produzir e observar elementos estéticos/comunicacionais com esses preceitos
visuais e fonéticos conjugados já era madura nas ações cognitivas da espécie
humana na ocasião em que as Histórias em Quadrinhos se tornaram populares
no ocidente.
Alguns pesquisadores de Arte Sequencial partilham dessa reflexão,
apontando, nessas origens remotas, o início da experiência que levou ao
surgimento dessa linguagem. Além disso, colocam outras situações que
também contribuem ao entendimento de certas características, conforme é
colocado por Zilda Augusta Anselmo:

“[...] através dos hieroglifos, mistura de letras e desenhos, os


egípcios gravaram sobre os túmulos dos reis as vidas dos faraós

20
desaparecidos. Na coluna de Trajano e em outros momentos egípcios
trazidos pelo Império Romano tem-se uma verdadeira ‘história em
quadrinhos em espiral’
Nas tentativas de busca de antecedentes remotos das HQ, é
freqüentemente mencionada a tapeçaria de Bayeux, feita, na
Inglaterra, que tem sido considerada, ao longo de seus 70 metros de
seqüência sucessiva, um relato da epopéia dos cavaleiros
normandos, a ‘maior banda desenhada do mundo’ ”(ANSELMO,
1975, p. 40)

Quando a autora evoca a Coluna de Trajano ou a tapeçaria de Bayeux


traz à tona outro elemento fundamental das HQ: a passagem de tempo.
Quando é colocado que o aspecto temporal das obras padece de uma
transição, se trata da específica intenção que elas trazem de comunicar ações
que ocorrem obedecendo a uma cronologia. Nessas obras apontadas por
Anselmo existe uma narrativa visual que coloca as figuras representadas (seja
na pedra da coluna ou nos fios da tapeçaria) em momentos diferentes, cada
instante se encadeia um com o seguinte e assim a narrativa move-se
temporalmente. É uma passagem de tempo intrínseca ao universo simulado
das obras, instantes diferentes representados no espaço. Tanto na coluna
quanto na tapeçaria, as situações são dispostas uma ao lado da outra, e esta
justaposição é que leva à impressão de passagem de tempo. O historiador da
arte Giulio Carlo Argan realiza uma descrição da coluna que permite entendê-la
como um projeto que intenciona realmente a produção de uma narrativa
histórica:

“A coluna de Trajano, dedicada em 113 d.C, e instalada no fórum de


Trajano, é um longo e preciso memorial dos empreendimentos
militares do imperador. Em uma faixa em baixo-relevo, enrolada em
espiral na haste da grande coluna celebrativa, são contados,
momento por momento, os acontecimentos da duas campanhas pela
conquista da Dácia [nome dado à região que hoje ocupa grande parte
da Europa Central] A fita desenrolada tem mais de duzentos metros
de comprimento, contém mais de 2.500 figuras. [...] O escultor
estende a narração figurada sem dividi-la em episódios, sem elevar o
tom da voz nos momentos culminantes. [...] Uma atenção mesmo que
demasiadamente pequena concedida às figuras singulares teria
interrompido o fluxo da narração; quer-se, ao contrário, que a atenção
do espectador transcorra sem pausas, capte o real sentido de um
diário de guerra: não tanto a glória do empreendimento, quanto a
sequencia interminável dos dias, cada um com seu tormento e a sua
esperança.” (ARGAN, 2003, p. 189)

A Coluna de Trajano (figura 01) possibilita entender que, no início da era


cristã, ainda na Antiguidade, existiam projetos de se contar uma narrativa a

21
partir da utilização de quadros de momentos distintos. No exemplo da coluna,
os enquadramentos de cenas não são exatamente divididos por algum
elemento artístico que torna isso claro, mas de todo modo são momentos
diferentes de uma mesma história. Cada espaço oferece um vislumbre sobre
um instante, a narrativa se movimenta temporalmente ao reparar esse tempo
decorrido entre um espaço e outro, assim sendo, a obra não só opera a partir
da construção da representação de subdivisões diferentes da batalha, mas
também dos intervalos não colocados. Isso é o tempo intrínseco e o tempo
recusado (BERTOLOTO, 2006, p. 65), a história é contada tanto pelas cenas
que estão inseridas no relevo da coluna, tanto pelas ausências; isto é, se em
um espaço do relevo há a representação de um soldado com sua lança em
mãos, e em outro uma representação deste mesmo soldado, mas já com sua
lança transpassada no corpo de um inimigo, a passagem é contada tanto pelo
que está representado – no caso a lança em mãos e a lança já varada no
oponente -, como pelo que foi negligenciado – que seria a ação de atingir o
sujeito.3

3
As implicações que o intervalo oferece como possibilidades semânticas ao expectador serão mostradas
adiante quando o texto aborda um dos elementos composicionais das Histórias em Quadrinhos: a calha.

22
4
Figura 01 – Coluna de Trajano - Fonte: SOUZA, Maria Helena R.

Outro ponto instigante é que, diferentemente de outras esculturas da


época, a coluna não dava destaque a passagens específicas da batalha, não
engrandecia uma ocasião para que ganhasse saliência na narrativa. Argan
propõe que isso foi um recurso intencional para que o espectador se embrenhe
nas dores e nas expectativas dos dias de guerra, como se a utilização de
esculpir uma história momento a momento fosse uma linguagem artística, e a
maneira como a narrativa é apresentada, com todo esse empenho em
demonstrar as características de uma campanha militar, fosse um gênero
dessa linguagem.
Além de apontar a coluna de Trajano, a pesquisadora Anselmo indica a
tapeçaria de Bayeux (figura 02) como uma “banda desenhada”, o imenso tecido
conta a história da conquista normanda da Inglaterra desde a visita do conde
Haroldo à Normandia até sua morte no campo de batalha (LOYN, 1997, p. 43).
O quadrinista Scott McCloud também coloca esse artefato artístico como
precursor das Histórias em Quadrinhos, e comenta que existiam modelos de
manifestos artísticos que realizavam narrativas a partir da justaposição de
representações de momentos distintos inclusive na América pré-colombiana
(MCCLOUD, 1995, P.11); mas de todo modo salienta as divisões que a
tapeçaria fornecia à narração da história, estabelecendo separações de cenas
por temas.

“séculos antes de Cortés começar a colecionar quadrinhos, a França


produziu um trabalho extraordinariamente semelhante, que
chamamos de Bayeux Tapestry. Essa tapeçaria de 70 metros detalha
a conquista normanda da Inglaterra que começou em 1.066. Ao ler da
esquerda pra direita, vemos os eventos da conquista em ordem
cronológica deliberada. Conforme ocorre com o códice mexicano, não
há requadros, mas claras divisões de cenas por assunto.”
(MCCLOUD, 1995, p. 12-13)

As divisões de cenas na tapeçaria é tão evidente que o Reading


Museum, um museu britânico localizado no condado de Berkshire, no sudeste
da Inglaterra, que é especializado em demonstrar a história a partir de artefatos
que permitam uma leitura sistematizada, realizou uma organização da história

4
Disponível em http://oglobo.globo.com/pais/noblat/posts/2010/05/04/arquitetura-coluna-de-trajano-
113-288661.asp, acessado em novembro de 2011.

23
que a tapeçaria conta, desenvolvendo um site de internet para demonstrar a
relação das cenas5.

Figura 02 – neste trecho a passagem de tempo é demonstrada a partir da presença do Rei


Haroldo II, que se encontra desembarcando no terceiro barco da esquerda para a direita. E no
canto direito se encontra sendo preso, pois os normandos o perseguiam e queriam derrota-lo. –
Fonte: Reading Museum Service, em http://www.bayeuxtapestry.org.uk, acessado em
novembro de 2011.

Nesses dois exemplares de manifestações artísticas, a coluna de


Trajano e a tapeçaria de Bayeux, é possível perceber o potencial de narrar a
partir da utilização de quadros justapostos de momentos que ocorrem em
sequencia; mas há um exemplar que mescla o texto à imagem de maneira
mais próxima ao modo como ocorrem nas HQ’s. Em relação a essa união de
traços referentes a fonemas e desenhos mais potencialmente pictóricos, existe
um exemplar da Idade Media que revela uma obra de intenção comunicativa
muito parecida com a existente na utilização dos balões nas Histórias em
Quadrinhos, se trata da “tábua de Protat” (figura 03). Essa placa de madeira
denuncia características que condizem bastante com o modo de produção das
primeiras histórias em quadrinhos do século XX; tanto que Zilda Anselmo
pondera que no amadurecimento das legendas enunciativas relacionadas
visualmente com desenhos figurativos, como no filactério6 da tábua de Protat, é
que existe a precursão dos “balões”; e cita que essa referência, juntamente
com as obras que colocavam quadros mostrando sequencia de momentos
distintos, culminaram no aparecimento das HQs:

“Os balões que hoje caracterizam boa parte das HQ têm seus
antecessores mais remotos num pedaço de madeira gravada em

5
Que pode ser conferido no seguinte endereço eletrônico:
http://www.bayeuxtapestry.org.uk/Index.htm, acessado em novembro de 2011.
6
Os filactérios são pergaminhos normalmente com texto sagrados do judaísmo.

24
1370, a tábua de Protat, na qual um centurião romano, diante do
Calvário, levanta um dedo em direção à cruz e declara: ‘Vere filius
Dei erat iste’ (‘Sim, na verdade este homem era filho de Deus’). De
sua boca sai um ‘filactério’, contendo a mensagem que desejava
transmitir. Vêem os estudiosos nesse filactério um precursor dos
‘balões’ das HQ. Através dos séculos, gradativamente, surgiu uma
nova forma de expressão que envolveu, por um lado, sequencias
ilustradas como as da Tapeçaria de Bayeux e por outro lado o
‘filactério’ da Tábua de Protat. Esses dois elementos básicos,
reunidos mais tarde, resultaram no aparecimento da HQ, relação
dinâmica entre a imagem e o texto.” (ANSELMO, 1975, p. 41)

Figura 03 - Detalhe da estampa feita a partir da "tábua de Protat", onde o texto “sai” da boca do
centurião – Fonte: D'OLIVEIRA, 2009, p. 28.

É impossível sustentar com precisão de que foram dessas referências


que a produção atual de Histórias em Quadrinhos herdou seu modo próprio de
composição, e de todo modo afirmar com exatidão é uma perigosa falácia
dentro de um estudo que está no campo das Ciências Humanas; mas é
instigante observar como a linguagem da Arte Sequencial se relaciona com os
manifestos apresentados. Essas obras, aparentemente díspares e de modos
de produção tão distintos - hieróglifos, gravações em madeira, esculturas e
tapeçarias -, levam a entender que o pensamento sobre unir signos verbais
com visuais e contar uma história a partir de separações de momentos não é
exatamente recente na história da humanidade. Contudo naquelas ocasiões
não eram defendidos como uma linguagem a parte, eram apenas uma das
diversas maneiras de manifestar um ofício, seja esculpindo, tecendo, etc.. Ou
seja, observar esses acontecimentos serve para examinar noções que clareiam

25
a compreensão sobre a linguagem da Arte Sequencial, mas o surgimento
consciente de que uma linguagem artística aparecia é muito posterior aos
acontecimentos apontados.

1.1.2 Referências recentes

O surgimento do termo “História em Quadrinhos” – ou qualquer outro


equivalente idiomático - se dá numa época muito posterior aos períodos
concernentes às obras levantadas até agora, e deve-se ter em mente que é a
aparição do termo que leva a perceber que a linguagem estava sendo
encarada como uma coisa à parte, distinta de textos escritos e de desenhos, ou
de qualquer outra manifestação artística até então. A denominação surge já em
um momento em que tais narrativas podiam ser reproduzidas em grande
escala devido aos processos de impressão permitidos pela Revolução
Industrial. Sendo essa inclusive uma das diferenças entre as configurações
modernas de Arte Sequencial e os manifestos que lhes antecederam, a
reprodutibilidade técnica. Isso é uma clara intenção em comunicar de maneira
popular, pois, quanto mais impressões, mais sujeitos teriam acesso às HQs,
conforme apresentado por Carlos Patati e Flávio Braga:

“Diferentemente de todas as narrativas visuais sequenciais que as


precederam e lhes deram gestação ao longo da labuta cultural
humana, das pinturas de paredes de cavernas do Paleolítico até as
gravuras fantásticas de um Goya, passando pela via-crúcis nas
igrejas católicas, as HQs são desenhos (e textos, ainda que
‘invisíveis’) sequenciais feitos para serem lidos como reprodução
impressa. Isto é, sem que seja necessário ver o original. São
produtos cujo tratamento final se dá na gráfica, uma instância
industrial de trabalho. Esse detalhe é de suma importância, não só
porque permitiu o encontro com o público, mas a interação com ele.”
(PATATI & BRAGA, 2006, p. 09)

Normalmente apareciam nos jornais, principalmente em seus


suplementos dominicais, quase com o único objetivo de entreter. Devido a
participarem de produtos provenientes dos meios de comunicação de massa,
por muito tempo as Histórias em Quadrinhos eram colocadas apenas como
manifesto competente às ciências que estudavam a Comunicação, pois no
tocante a seus valores estéticos e poéticos eram tidas como “arte aplicada”.

26
A passagem histórica mais conhecida em torno de seu surgimento, sob
a compreensão mais próxima do conceito que temos dela
contemporaneamente, aparece em meio a disputas de mercado por algumas
empresas jornalísticas norte-americanas no final do século XIX. Um início
marcado por atitudes que se preocupavam menos com as possibilidades
artísticas, e mais na quantidade de exemplares de jornais que essa nova
manifestação poderia angariar. O que pautou o surgimento dessa linguagem foi
justamente a preocupação em elaborar um elemento atrativo para os
exemplares dos jornais que circulavam no domingo. Essa disputa ocorreu entre
duas empresas, de um lado New York World, de Joseph Pulitzer; de outro a
New York Journal, de William Randolph Hearst. Esse episódio é sintetizado na
seguinte passagem apresentada por Juan Acevedo:

“Na ânsia de tornar mais atraente o seu periódico, o New York World,
Pulitzer publicou, desde 1893, um suplemento dominical com uma
pagina em cores. Nesta apareceu, em 1895, uma vinheta de autoria
do desenhista Richard Outcault, que descrevia cenas pitorescas dos
bairros populares de Nova York e que tinha como personagem
principal um garoto vestido com um camisolão amarelo. O garoto
converteu-se em personagem permanente do dito suplemento,
chegando a ficar conhecido como Yellow Kid (‘Garoto Amarelo’). Para
fazer com que seus personagens ‘falassem’, Outcault incluía textos
em cartazes, paredes, no próprio camisolão do Yellow Kid, e nessa
convenção gráfica que iria afirmando suas características: o balão,
elemento específico da história em quadrinhos.
Em 1896, Hearst conseguiu conquistar Outcault, que passou,
com seu Yellow Kid, para The New York Journal. Pulitzer, então,
encarregou o pintor George Luks de continuar desenhando, com
idêntico estilo, o mesmo personagem no New York World. O mesmo
personagem publicado, ao mesmo tempo, em dois jornais diferentes,
feito por desenhistas diferentes!
Dessa maneira, utilizada pelos magnatas da imprensa, acolhida
com entusiasmo por um vasto público, entre regateios e atos de
pirataria comercial, começou a história da história em quadrinhos.”
(ACEVEDO, 1990, p. 138)

Algumas das propostas apresentadas pela criação de Richard Outcault


se relacionam de maneira bastante contundente com o trajeto histórico aqui
apresentado. Quando Outcault colocava os enunciados das “falas” dos
personagens no camisolão do Garoto Amarelo, estava realizando algo muito
próximo do que ocorria no filactério da “Tábua de Protat”. Tanto em um caso,
como no outro, a ideia era elaborar uma maneira de fazer com que conteúdos
verbais fossem harmonizados visualmente junto das imagens representadas,

27
pois as palavras não estavam apenas colocadas em um espaço vago dentro da
composição visual figurativa, mas sim contidas dentro de elementos visuais
específicos, e tais elementos, devido à proximidade com as representações de
certos personagens, denunciavam que aquele texto verbal enunciado era
pertencente àqueles personagens. No decorrer das produções de Outcault nos
jornais, os enunciados verbais passaram a ser apresentados no interior de uma
figura geométrica com um pequeno ponteiro que indicava qual personagem
estava pronunciando as palavras, esse recurso passou a ser conhecido como
“balão”. A denominação do elemento visual que continha as palavras deve ter
sido muito provavelmente fornecida devido à semelhança com bexigas de ar
(figura 04).

Figura 04 - HQ Yellow Kid, de Richardo Outcault, 1895


história com presença de balões e textos inseridos em seu camisolão

Contudo, além dessa popular versão da origem das Histórias em


Quadrinhos na Idade Moderna, vários pesquisadores da Arte Seqüencial já se
opuseram a esse trajeto histórico. Não se intenciona aqui apresentar as
diversas discussões que contradiziam a versão norte-americana de que a HQ
surgiu nos Estados Unidos a partir do Yellow Kid, mas vale expor ao menos

28
uma delas: a de que a origem da Arte Seqüencial como conhecemos é
brasileira. Sonia Luyten, pesquisadora da comunicação especializada em
Quadrinhos, apresenta a contestação da origem estadunidense, e também
complementa que um de seus precursores é o ítalo-brasileiro Ângelo Agostini:

“As aventuras de Nhô Quim – ou – impressões de uma viagem pela


corte tem data de nascimento: 30 de janeiro de 1869 continuando até
o ano de 1872. Até então glorificava-se Yellow Kid, história norte-
americana criada por Richard Outcault publicada em 5 de maio de
1895 devido a uma citação de Jerry Robinson (o criador de Robin, o
companheiro de Batman) escrita em 1974 [Robinson, 1974, p. 12]
que dizia que o garoto amarelo tinha todos os componentes para ser
considerado a primeira HQ, fato este já contestado em diversos
países do mundo. [...] Ângelo Agostini, recém chegado em São Paulo
da Itália, inaugura o mundo das imagens através da litogravura até
então ausente dos periódicos paulistanos.” (LUYTEN, 2004, p. 2004,
p. 318)

É possível observar nessa passagem de Luyten a influência


7
etnocêntrica norte-americana, visto que a colocação de que o Yellow Kid ser a
primeira manifestação de Histórias em Quadrinhos da Idade Moderna foi feita
justamente por um cidadão norte-americano, Jerry Robinson. O etnocentrismo
ocorre de modo a valorizar o que é natural de sua própria sociedade, desse
modo Robinson nem considerou a existência de outras possibilidades de
precursores, evocou a história originária de seu próprio grupo social.
Existem pesquisadores que concordam com a observação colocada por
Luyten, corroborando para a visão de que Ângelo Agostini é um dos pioneiros
na elaboração da Arte Sequencial, é o caso de Djota Carvalho que coloca “[...]
As aventuras de Nhô Quim (ou impressões de uma viagem à corte) [figura 05],
trazia todos os elementos do quadrinho moderno: os quadros em si, desenhos
e textos, sequência e muito mais.” (CARVALHO, 2006, p. 23). De qualquer
modo, defender Agostini como pioneiro seria incorrer no mesmo risco
etnocêntrico. Então vale entender que várias manifestações artísticas no final
do século XIX contribuíram significativamente para a compreensão atual das
Histórias em Quadrinhos.

7
“descreve o fato do indivíduo considerar seu grupo como ‘centro de tudo’”. (LEITE, 2007, p. 24)

29
Figura 05 - uma historieta de "As Aventuras de Nho Quim" de Angelo Agostini

O que ocorre é que, até início do século XX, este tipo de narrativa
aparecia apenas nos jornais, foi em meados da década de 1930 que
começaram a despontar as primeiras revistas com conteúdo apenas dessa
linguagem. No Brasil as primeiras HQs no formato de revista apareceram no
final dessa mesma década (1930), conforme colocado por Carvalho:

“As revistas que trariam apenas quadrinhos surgiram na década de


1930, nos Estados Unidos. Segundo relatou o cartunista e estudioso
da arte a este autor, Will Eisner, em entrevista concedida em 1996,
elas apareceram de maneira incidental: ‘O pessoal do jornal queriam
manter as prensas funcionando, então, juntaram várias tiras num
livrinho, que chamaram de comic book, e resolveram imprimir aquilo.
Acontece que, em apenas um dia, aquele livrinho vendeu um milhão
de exemplares. Estava descoberto um novo mercado e começaram
então a ser publicadas histórias com sequencia. ’
No Brasil, o jornalista Adolfo Eizen, [...] foi o responsável pela
primeira revista em quadrinhos, em 1939: O Mirim. [...] Também em
1939, Roberto Marinho lançou O Gibi, cujo sucesso foi tanto que,
ainda hoje, o nome da publicação é sinônimo de História em
Quadrinhos.” (CARVALHO, 2006, P. 26)

O suporte às HQs no formato de revista talvez seja o expoente mais


significativo da percepção dessa linguagem como campo de expressão
artística. As revistas permitiram com que os artistas experimentassem
narrativas mais longas, histórias que se desenrolariam no decorrer de várias
páginas. Essa capacidade de elaborar histórias maiores levou a uma expansão

30
criativa de gêneros e temas, alguns gêneros tiveram uma produção quantitativa
maior, mas, de qualquer modo, vários assuntos passaram a existir a partir das
revistas, tais como os quadrinhos de ação, detetivescos, aventura, erótico,
humor, terror, biográficos, entre outros. E se são tantos gêneros possíveis, não
deveria ainda persistir a redução ao cômico, como o termo comics implica.
Edgar Franco sintetiza a recente história da HQ, mencionando inclusive que
esse percurso consolidou a linguagem como arte genuína:

“Do início do século XX até a atualidade as HQs passaram por fases


diversas, se expandiram como meio de comunicação de massa e
linguagem artística, abarcaram todos os gêneros possíveis, do infantil
ao erótico, sofreram preconceito e discriminação por parte da
sociedade e da academia, sobreviveram a tudo isso e atualmente
vêm sendo largamente estudadas nos meios acadêmicos que se
curvaram à força e singularidade dessa arte centenária, nomenado-a
de ‘Nona Arte’” (FRANCO, 2004, p. 22)

Nona Arte. As referências históricas para o surgimento da linguagem


iniciam em percepções sobre artefatos e obras de arte – tapeçaria de Bayeux,
coluna de Trajano, etc -, inicia justamente em elementos que carregam um
estatuto conceitual a qual as HQs chegam ao final do século XX, o status de
“arte”. A coluna de Trajano e uma narrativa de uma revista de Quadrinhos
possuem mais semelhanças do que apenas ser uma história contada a partir
de imagens em sequencia, ambas possuem suas manifestações sobre o jugo
de ser “arte”. É necessário colocar que essa consolidação da linguagem com
uma posição artística serve apenas para entender uma face da aceitação
dessa expressão, isso levou a uma amplitude de estudos sobre as Histórias em
Quadrinhos, enxergando-a como objeto que pode ser analisado além dos
enfoques oferecidos pelo campo da comunicação. Como Franco coloca, os
meios acadêmicos voltaram sua atenção para a poética artística, observando
produtos e efeitos que essa linguagem possibilita, bem como suas reflexões e
implicações. A legitimação dessa poética como uma linguagem artística é o
que permite entender que ela possui um modo próprio de expressar ideias. Um
universo sintático e semântico específico.

1.2 LINGUAGEM SINCRÉTICA - CONCEITO CABÍVEL AOS QUADRINHOS

31
A apresentação do breve histórico de referências que ocasionaram o
surgimento das Histórias em Quadrinhos permite entrever algumas das
características próprias dessa linguagem. Contudo vale inclinar-se sobre uma
consideração: em que se constitui uma linguagem? Para então observar as
características específicas da Arte Sequencial. Isso se põe necessário visto
que observar a estrutura da linguagem possibilita entender o funcionamento
dos potenciais modos de leitura. Então, antes mesmo de dialogar sobre as
peculiares características das HQs, será elaborada uma reflexão sobre o
pensamento do conceito “linguagem”.
O processo da leitura está altamente envolvido no entendimento acerca
da produção de sentido. Lê-se, e, a partir do que foi lido, é dada uma
interpretação, uma significação. Os elementos que possibilitam leituras, isto é,
os grupos de signos de natureza variada que permitem uma denotação e uma
conotação, são os textos. Claro que, assim como a própria definição de História
em Quadrinhos, todo e qualquer conceito apresentado aqui é suscetível a uma
polissemia inerente, e como essa pesquisa trata de, entre outras atividades,
observar às possíveis leituras de obras de uma linguagem, seria contraditório
não delimitar as considerações sobre certos conceitos, para se esquivar dessa
polissemia. Desse modo, assim como ocorrerá o esmero em traçar certos
limiares para a compreensão do conceito de “linguagem”, é válido orientar que
a compreensão de “texto” colocada anteriormente diz respeito à “linguagem em
ação”, isto é, o “texto” é o modo como a linguagem age mediando universos
distintos de interlocutores variados (COIMBRA, 2009). Essa compreensão
acerca de “textos” leva ao desdobramento de que não só os códigos originários
da comunicação verbal, que são passados para diferentes suportes por meio
da escrita, sejam textos. Imagens, gestos corporais, música e mais uma
infinidade de modos de exprimir sentidos são textos; todo e qualquer grupo de
signos que permite uma leitura, independente do instrumental que utiliza para
isso, e a que aparatos sensoriais do corpo humano são destinados, são textos.
E, dependendo da natureza pela qual o texto constitui-se, se enquadra em
linguagens diferentes. Isto coloca os limiares do conceito do texto em um
sentido mais amplo, mas, ao mesmo tempo, permite uma compreensão que
solidifica a ideia do conceito, pois não incorre da redução de coloca-lo apenas

32
como composição textual-verbal. Essa compreensão mais ampla é apontada
por Lucia Santaella no seguinte:

“No seu sentido mais amplo, texto se refere às mensagens em


quaisquer códigos, de modo que podem ser chamados de textos os
mais diversos fenômenos culturais: filmes, danças, happenigns,
peças musicais, cerimônias, pinturas e até espetáculos circenses.”
(SANTAELLA, 2005, p. 277)

Esse modo de observar tal conceito desloca uma determinada ótica


sobre a ideia de linguagem, fugindo do pensamento de que ela é relativa ao
idioma, à língua. Sujeitar o conceito de “linguagem” ao idioma é uma maneira
reducionista de expor seu funcionamento conceitual, assim como a restrição de
se avaliar “texto” por esse sentido. No âmbito do entendimento de que o ser
humano pode realizar uma leitura e significação de tudo que lhe afeta os
sentidos, esse reducionismo deve ser superado; ainda conforme Santaella:

“Quando falamos em linguagem, o primeiro preconceito que deve ser


superado é o preconceito verbalista, quer dizer, aquele que restringe
o termo linguagem apenas à linguagem verbal. Esta, em particular a
oral, é, certamente, quase onipresente – apresentando, inclusive, um
forte poder de tradução, sendo capaz de traduzir, transcodificar, bem
ou mal, qualquer processo de linguagem visual, desde um sonho, um
filme, um quadro, etc. [...] Mas embora ela seja a linguagem mais à
mão, por assim dizer, uma vez que, para produzi-la, não
necessitamos de nenhuma ferramenta, meio ou suporte fora de nosso
corpo, ela não é, nem de longe, exclusiva. Há uma diferença,
portanto, que não pode ser esquecida, entre língua e linguagem.
Enquanto ‘língua’ se refere exclusivamente à linguagem verbal,
‘linguagem’ se refere a qualquer tipo possível de produção de sentido,
por mais ambíguo, vago e indefinido que seja esse sentido. É assim
que a poesia é muito mais linguagem do que língua e é assim
também que o cinema e a música, por exemplo, são linguagens sem
serem línguas.” (SANTAELLA, 1996, p. 312)

Tal afirmação demonstra que quando existe algum sentido realizado,


ainda que o sentido produzido seja vago, isso ocorre porque signos foram
operados para tal. Acontece porque o sentido intencionado foi transposto para
uma realidade sensorial, foi materializado. Mesmo que a interpretação sobre
um texto não seja com exatidão a que o produtor do signo intenciona, e
normalmente essa exatidão é improvável, ele só efetivará algum sentido se sair
da abstração mental do primeiro interlocutor e atingir o universo mental do
outra extremidade da interlocução. Para que qualquer linguagem estabeleça

33
comunicação faz-se necessária a materialização do texto, conforme proposto
ainda por Santaella:

“Embora a afirmação já se constitua num truísmo, não custa repetir


que toda linguagem precisa estar encarnada numa materialidade
qualquer para que possa ser transmitida, ou seja, para que se efetive
o processo de comunicação que ela está apta a efetuar.”
(SANTAELLA, 1996, p. 316)

A variação da natureza do sistema dos signos é que irá situá-lo a uma


determinada linguagem. Como se a linguagem fosse um sistema de
significação que obedeça a certa estrutura de paradigmas e essa estrutura
pode receber terminologias. Desse modo temos a denominação de “música”
como sendo uma linguagem que obedece a uma estruturação de signos
sonoros, a “fotografia” como uma linguagem que obedece a uma estruturação
de signos possibilitados pela captação da reflexão da luz, o “cinema” que
possibilita a partir de uma estruturação de captação da luz a impressão de
movimentos de imagens, e assim por diante, inclusive “história em quadrinhos”
sendo uma das denominações para uma estrutura de signos.
Muito provavelmente a compreensão de que “linguagem” é um modo de
se referir, quase exclusivamente, às construções de sentidos possibilitadas por
comunicações a partir da língua idiomática, provém do embate de que é sobre
o idioma que as outras estruturas são calcadas. Os mais variados sistemas
sígnicos que possibilitam a produção de sentido necessitam de alguma forma,
ou em algum momento, dos códigos verbais. A língua é uma tônica tão forte
nos processos intelectuais que por isso os quadrinhos foram, por muito tempo,
considerados um gênero literário ao invés de um manifesto específico. Essa
relevância é explanada na explicação de que os códigos verbais se configuram
como um sistema modelizante cultural primário, como se, a partir dele, todas as
outras linguagens pudessem se fazer existir. As outras estruturas que
produzem sentido são sistemas modelizantes secundários, surgem justamente
porque existe comunicação idiomática. Esse embate é o que acarreta uma
complexidade na possibilidade de entendimento de várias estruturas de signos
culturais, pois utiliza de uma linguagem base para elaborar-se. Isto é dialogado
por Lotman da seguinte maneira:

34
“Uma das particularidades distintivas e, ao mesmo tempo, uma das
dificuldades principais no estudo dos códigos culturais é o fato de
eles se apresentarem como estruturas de grande complexidade,
relativamente às línguas naturais sobre as quais os sistemas de
cultura se constroem (por isso é conveniente defini-los como
‘sistemas modelizantes secundários’). Tentemos determinar a que
está relacionado, afinal, este brusco aumento de complexidade do
código cultural quando ocorre passagem dos sistemas modelizantes
primários (língua natural) aos secundários.” (LOTMAN in
BORISCHNEIDERMAN, 1979, p. 33)

Segundo a colocação de Lotman, a complexidade em encarar as


linguagens além da língua reside justamente porque uma está colocada sobre
a outra. No caso da História em Quadrinhos não é diferente, qualquer um de
seus aspectos pode ser traduzido no intelecto de seus interlocutores – tanto os
artistas que a produzem como os leitores – por meio da língua. Irene Machado
complementa explicando que:

“Por sistemas modelizantes entendem-se as manifestações, práticas


ou processos culturais cuja organização depende da transferência de
modelos estruturais, tais como aqueles sob os quais se constrói a
linguagem natural. Carente de uma estrutura, o sistema modelizante
de segundo grau busca sua estruturalidade na língua, que somente
nesse sentido pode ser considerada sistema modelizante de primeiro
grau. Assim considerados, todos os sistemas semióticos da cultura
são modelizantes uma vez que todos podem correlacionar-se com a
língua.” (MACHADO, 2003, p.49)

Isso explica muito dos motivos que levam a localização de obras que se
utilizam fortemente de códigos verbais a serem inseridas por muito tempo em
uma estrutura que tem tais códigos em seu campo de manifestação, sendo
assim, os quadrinhos, além de vinculados às ciências da comunicação, foram
refletidos por muito tempo intelectualmente como produto das Letras e
Literatura, quase como um subgênero literário e como se não bastasse essa
limitação conceitual, pesquisadores das Letras restringiam as HQ’s como
pertencentes ao universo específico da infância e juventude, como pode ser
notado na conceituação que a crítica literária Dirce Lorimier Fernandes oferece:

“Em 1905, J. Carvalho lançou, na revista Tico-Tico, a personagem


Chiquinho, uma versão de Buster Brown, menino crítico, contestador,
criado nos Estados Unidos em 1902, pelo cartunista Outcault
(Richard Felton) que, anteriormente, em 1895, havia criado o Yellow
Kid. Estava lançado o gênero história em quadrinhos, que vem
cativando crianças a mais de um século.” (FERNANDES, 2003, P. 58)

35
É importante frisar que a defesa das Histórias em Quadrinhos como uma
linguagem específica também compreende a força atrativa que os produtos
artísticos dessa poética podem oferecer ao público infantil, mas o que se
coloca aqui é a possibilidade de entendimento de que, tal como qualquer outro
manifesto artístico, é apenas uma de suas potencialidades, sendo tão plural
quanto à própria Literatura e Artes Visuais. O que se traz aqui é a
compreensão de que as obras dessa linguagem permeiam o universo das
letras, mas também utilizam códigos de outras estruturas artísticas, tal como as
Artes Visuais, Cinema, Artes Cênicas, num sincretismo artístico, como
colocado por Antonio Vicente Pietroforte “Os sistemas sincréticos, por sua vez,
são aqueles que ‘acionam várias linguagens de manifestação’ [GREIMAS E
COURTES apud PIETROFORTE], como ocorre em um sistema verbal e um
não-verbal nas canções e nas histórias em quadrinhos.” (PIETROFORTE,
2010, p. 11); e, além disso, podem oferecer narrativas de gêneros diversos,
sendo os produtos artísticos direcionados ao público infantil tão possível quanto
aos que se voltam para outros grupos etários ou culturais.
Em relação às colocações que situam as linguagens artísticas, e outras
diversas, como sistema modelizantes, são teorias amplamente dialogadas
entre estudiosos da semiótica da cultura, corrente teórica que estuda os
processos de significação no âmbito cultural. Várias correntes de estudos
semióticos serão trazidas aqui, e a ideia de integrá-las norteará o percurso
dessa pesquisa, pois acredita-se que, como todos tratam de estudar e refletir
sobre os processos de significação, as variadas visões podem complementar
um pensamento científico acerca do processos de leitura. Dentro do campo da
semiótica da cultura, as especulações sobre os sistemas modelizantes servem
para mediar o entendimento sobre alguns dos fundamentos que levam ao
preconceito apresentado por Santaella, permitem a compreensão de como
espontaneamente o intelecto percebe inicialmente “linguagem” como “língua”, e
as várias estruturas de significação podem ser encaradas como sistemas
modelizantes, ou, no caso desta pesquisa, encaradas como linguagem.
De todo modo, o preconceito ainda poderia ser questionado ao levantar
a controvérsia acerca do seguinte: quando um indivíduo não domina os códigos
verbais (fonéticos ou escritos), seja pela pouca idade de vida ou por alguma
deficiência, ele não tem nenhuma possibilidade de se comunicar com o mundo

36
a partir de alguma linguagem? Muito provavelmente ao refletir-se sobre isso
seria percebido que outras diversas maneiras de comunicação são possíveis
de serem traçadas, e, assim sendo, isso legitima a ideia de que linguagem está
muito além de se restringir a ser um pensamento de comunicação idiomática.
Vale trazer uma compreensão evocada pela semioticista Inês Lacerda Araújo,
que oferece uma visão bastante ampla sobre o que se instaura como
linguagem:

“Os estóicos (século I a.C.) elaboraram uma teoria acerca da


linguagem relativamente bem acabada. A razão recebe as idéias
mediante as sensações, a memória e a experiência. Daí nascem os
conceitos. A representação, sendo intelecção pela qual se reconhece
a verdade das coisas, permite que haja assentimento, compreensão e
pensamento. O pensamento é enunciativo, exprime com palavras o
material recebido da representação, que são as proposições
completas em si, podendo ser verdadeiras ou falsas porque dizem
algo sobre o que foi expresso. No processo de significação, há três
elementos: o significado, o signo e a coisa, que pode ser uma
entidade física, uma ação, um acontecimento. O signo é, por
exemplo, a palavra ‘Díon’ (nome de uma pessoa); o significado é o
que vem expresso por aquela palavra e que nós compreendemos
quando é dado ao pensamento; a coisa é o que subsiste
exteriormente, neste caso, o próprio Díon.” (ARAÚJO, 2004, p. 20)

Essa proposta apresentada pelos estóicos contribui com o pensamento


sobre a linguagem como mediadora de dois universos referenciais que estão
em extremidades diferentes, uma a de quem produz o signo, outra a de quem o
ressignifica. Desse modo, partindo do processo mais essencial, linguagem é o
que estabelece produção de sentido pela transmissão de signos específicos.
Administrar a configuração desses signos de modo a operacionalizar produção
de sentido seria estabelecer a sintaxe da linguagem; uma vez o signo exposto,
o sentido que ele implica no intelecto do espectador que o ressignifica, seria o
processo semântico. Assim sendo, uma linguagem se estabelece como tal,
quando possui sintaxe e semântica própria (ECO, 1991). E assim como existe
uma sintaxe idiomática, existe uma sintaxe visual, alegado pela pesquisadora
Dondi Dondis:

“A sintaxe visual existe. Há linhas gerais para a criação de


composições. Há elementos básicos que podem ser aprendidos e
compreendidos por todos os estudiosos dos meios de comunicação
visual, sejam eles artistas ou não, e que podem ser usados, em
conjunto com técnicas manipulativas, para a criação de mensagens
visuais claras. O conhecimento de todos esses fatores pode levar a

37
uma melhor compreensão das mensagens visuais.” (DONDIS, 1997,
p. 18)

É como se a linguagem fosse um campo de aparência do signo, porém,


além disso, existisse um campo de essência do signo, e essa “essência”
carrega as possibilidades conceituais e semânticas, que são imensuráveis.
Contudo entender a sintaxe da linguagem é o primeiro passo para perceber as
possibilidades semânticas.
Ainda dentro do campo semiótico, existe uma relevante contribuição
teórica para delimitar certos limiares da linguagem, se trata da teoria da
significação proposta por Algidar Julien Greimas. (PIETROFORTE, 2010).
Greimas coloca que aquilo que está para o campo da aparência do signo, seria
seu significante; e o conceito do signo seria seu significado. Desse modo a
palavra escrita “cadeira” seria o significante do conceito abstrato de “cadeira”,
que é seu significado, e carrega as potencialidades de interpretações. Pode-se,
a partir da leitura da palavra “cadeira”, imaginar um objeto elaborado com o
propósito de sentar, mas existem inúmeros objetos assim, de tamanhos, cores
e materiais diferentes, e o significante “cadeira” desacompanhado de outros
signos pode não dar conta de traçar uma precisão sobre qual objeto seja;
algum outro leitor desse signo poderia elaborar o conceito de “quadril”, e, ao
invés de interpretar o signo como um objeto, traria o sentido da “anca” de
algum ser-humano, animal, figura antropomórfica ou imaginária; ainda poderia
ser interpretado como uma disciplina ensinada em algum processo de
aprendizado formal, visto que é comum tratar uma disciplina acadêmica como
“cadeira”. O significado dessa palavra toma parte de um conceito abstrato
amplo, de várias possibilidades de interpretação, e a palavra grafada fora de
um contexto específico leva a uma indiferença sobre a qual significado
específico o significante está se relacionando. Mas outros significantes
poderiam limitar de uma maneira mais precisa, por exemplo, se ao invés de
elaborar-se a leitura da palavra “cadeira”, fosse executada a observação de
uma fotografia de uma cadeira (objeto de sentar) as possibilidades de
interpretação diminuiriam. Desse modo, o deslocamento da exposição de um
mesmo signo (cadeira) em linguagens diferentes leva a possibilidades
semânticas diferentes. A forma como um conceito é mostrado, o modo como
ele é exposto condiciona a interpretação, isto é o mesmo que colocar que a
38
forma influencia na compreensão do conteúdo, a aparência sensorial do signo
traça os limiares para sua essência conceitual. Em poucas palavras, o modo
como algum conceito é exposto altera suas possibilidades de significação. É
possível existir um mesmo conceito em diferentes linguagens, mas a linguagem
altera a percepção do conteúdo.
O linguista Antonio Pietroforte coloca que o “plano de expressão” dos
signos é o que aqui estamos tomando como linguagem; é nesse plano que os
signos aparecem materialmente. Em contraponto a ele existe o “plano de
conteúdo”, campo dos conceitos, ideias e discursos que podem ser
interpretados a partir de um manifesto em um determinado plano de expressão.
Aponta isso no seguinte:

“A semiótica estuda a significação, que é definida no conceito do


texto. O texto, por sua vez, pode ser definido como uma relação entre
um plano de expressão e um plano de conteúdo. O plano de
conteúdo refere-se ao significado do texto, ou seja, como se costuma
dizer em semiótica, ao que o texto diz e como ele faz para dizer o que
diz. O plano de expressão refere-se à manifestação desse conteúdo
em um sistema de significação verbal, não-verbal ou sincrético.”
(PIETROFORTE, 2010, p. 11)

Pensando por esse viés a linguagem seria o modo como um texto pode
ser materializado para depois ser ressignificado, e um conceito pode aparecer
de formas distintas. Um mesmo plano de conteúdo pode aparecer em
diferentes planos de expressão, claro que sofre algumas alterações em seus
percursos semânticos. Toma-se como exemplo uma fábula ocidental
tradicional, como “O Mágico de Oz” de Lyman Frank Baum, a partir da
linguagem da Literatura, seria obtido algo como o próprio texto escrito da obra
original de Baum; já se a intenção da construção do texto fosse a partir da
linguagem do cinema, surgiria algo como a versão cinematográfica dirigida por
Victor Fleming. Umberto Eco coloca que existem vários materiais que podem
ser agenciados para expor um conteúdo, e o que Greimas apresenta como
“Plano de Expressão” ele aponta de modo parecido, como “Forma da
Expressão”, denota-se no seguinte:

“Para comunicarmos, dispomos de elementos do plano da expressão:


sons, imagens, gestos, signos gráficos, materiais de todo tipo. Na sua
variedade, esses elementos constituem a Substância de Expressão.
Mas para podermos usá-los selecionamos no âmbito da substância,

39
elementos específicos e especificados, arvoramo-los em unidades
pertinentes da expressão, organizamo-los num sistema de oposições,
dispondo, assim, de uma Forma de Expressão.” (ECO, 2004, p. XII)

Se um mesmo conteúdo pode ser apresentado em diferentes Formas de


Expressão porque não imaginar uma versão de “O mágico de Oz” na
linguagem da História em Quadrinhos? Tanto é possível que foi imaginado e
materializado. Em meados de julho de 2008 a editora norte-americana Marvel
lançou uma versão quadrinizada da obra original de Baum, cujo processo de
adaptação contou com o roteirista Eric Shanower e o desenhista Skottie Young
(figura 06).

Figura 06 - página de "The Wonderful Wizard of Oz"

40
De todo modo, deve-se levar em conta que o termo denominativo para
uma linguagem pode ocorrer em um período, mas já existirem, anterior ao
surgimento da denominação, certos manifestos que padeciam de estruturas
parecidas com as convencionadas, em que, no caso da Arte Sequencial,
podemos citar a Coluna de Trajano, a tapeçaria de Bayeux ou a tábua de
Protat. Isso é como se, apesar da percepção de um sistema de signos com
paradigmas específicos existir em uma determinada época e para ele
convencionar um termo, fosse observado que, anterior àquele momento, havia
certas manifestações que se enquadrassem sob o termo que se criara. Isso
leva a um questionamento, se um hominídeo primata houvesse criado uma
melodia antes da invenção do termo “música”, ele estava criando música?
Pietroforte reflete sobre essa abordagem permitindo, inclusive, que alguns
esclarecimentos do percurso histórico da Arte Sequencial sejam emergidos,
evocando o ponto sociossemiótico:

“A definição de uma linguagem, além de suas propriedades


semióticas enquanto sistema de significação, depende das
conotações sociais, de ordem sociossemiótica, investidas nela.
Embora pareça, o trabalho de Michelangelo não é uma HQ, nenhum
historiador da arte, de bom senso, faria tal consideração. Não basta a
sequência imagens em quadros separados para caracterizar uma HQ
– como no caso da Capela Cistina – o meio social em que a
linguagem surge deve reconhecê-la como tal.” (PIETROFORTE,
2009, P. 10)

Mas, apesar da colocação sociossemiótica, estudar o que foi


apresentado na trajetória das Histórias em Quadrinhos, e colocar tais exemplos
como pertencentes à linguagem em questão, cumpre com objetivos didáticos.
De todo modo o que ocorre é que já faz mais de um século que o termo surgiu,
e nessa trajetória histórica os artistas que investiram nessa linguagem foram
investigando maneiras de comporem suas obras, pesquisando recursos visuais
e textuais que, juntos, formaram as mais variadas narrativas, com gêneros e
estéticas das mais diversas. Adiante serão apresentados alguns dos elementos
composicionais das Histórias em Quadrinhos. Fruto deste século de
experimentos.

41
1.2.1 Elementos Composicionais

As Histórias em Quadrinhos carregam em si códigos de artes distintas


reinventando-os e possibilitando uma gama de novos elementos que permitem
um modo próprio de leitura das obras dessa linguagem, isto é, quando os
Quadrinhos emprestam códigos das Artes Visuais, como os traços e pinceladas
das imagens pictóricas, e mesclam aos signos oriundos do Cinema, como os
planos de visualização das cenas, elaboram um novo modo de olhar esses
signos, que não os colocam nem como Cinema e nem como Artes Visuais, mas
sim como uma terceira coisa, signos de HQs. Isso é corroborado por Paulo
Ramos, que apresenta tal ideia na seguinte passagem:

“Quadrinhos são quadrinhos. E, como tais, gozam de uma linguagem


autônoma, que usa mecanismos próprios para representar os
elementos narrativos. Há muitos pontos comuns com a literatura,
evidentemente. Assim como há também com o cinema, o teatro e
tantas outras linguagens.” (RAMOS, 2009, p. 16)

A implicação de uma “linguagem autônoma” talvez esteja vinculada a


uma herança da necessidade de defender os quadrinhos como algo que nem
se enquadra apenas na Literatura e nem nas Artes Visuais, mas isso não quer
dizer que seja autônomo realmente, pois se utiliza de elementos provenientes
de outras linguagens, por isso a ideia de linguagem sincrética é mais
apropriada. De todo modo, apesar de virem de outras expressões artísticas,
nos quadrinhos ganhou um modo específico de ser percebido.
Para essa percepção estar do modo como atualmente é, necessitou
haver um processo de admissão do costume, precisou haver uma convenção
desses códigos8. Umberto Eco aponta que é justamente o modo como esses
elementos são combinados que levam a uma semântica própria dessa poética
artística e coloca o seguinte:

“[...] esses elementos iconográficos compõem-se numa trama de


convenções mais ampla, que passa a constituir um verdadeiro
repertório simbólico, e de tal forma que se pode falar numa
semântica da estória em quadrinhos” (ECO, 2008, p.145)

8
A convenção se estabelece como campo formador do símbolo, que é o signo que padece dessa
convenção cultural segundo C. S. Peirce.

42
Quando Umberto Eco propõe que existem certos elementos ajustados a
uma convenção dentro dessa linguagem, faz referência justamente aos
recursos sintáticos utilizados para comunicar. Dentro desses recursos, os
signos verbais são só uma das possibilidades, e estão quase
predominantemente acompanhados de elementos visuais não verbais, como os
balões de fala, por exemplo, que é um dos signos mais emblemáticos dos
Quadrinhos.
O processo de convenção é o que leva à facilidade de compreensão de
uma linguagem, quanto mais convencionado o plano de expressão, mais
natural o modo como se percebe o conteúdo que ele intenciona.
Como existem nas Histórias em Quadrinhos muitos pontos em comum
com outras várias linguagens, ela possui um cruzamento de características
dessas várias estruturas de signos, desse modo discorrer sobre seus
elementos é discorrer sobre uma parte dos elementos de outras linguagens,
mas na Arte Sequencial eles ganham um fôlego diferente do que em seu
terreno natural de manifestação. Esta é a face multifacetada da Arte
Sequencial ou, como coloca Pietroforte o aspecto sincrético de seu sistema, de
seu plano de expressão. Santaella reflete que as linguagens pertencem a três
grandes matrizes, a partir das quais se originam todo e qualquer sistema
sígnico produzido pelos seres humanos, são elas: a matriz visual, sonora e
verbal. A autora aponta que as estruturas se formam nas possibilidades de
hibridização permitidas entre as matrizes, seria o que Pietroforte coloca como
sistemas sincréticos, quase como se toda e qualquer manifestação resultasse
dessas mesclas matriciais:

“Na realidade, cada linguagem existente nasce do cruzamento de


algumas submodalidades de uma mesma matriz ou do cruzamento
entre submodalidades de duas ou três matrizes. Quanto mais
cruzamentos se processarem dentro de uma mesma linguagem, mais
híbrida ela será.
Desse modo, por exemplo, a linguagem verbal oral, a fala, apresenta
fortes traços de hibridização tanto com a linguagem sonora quanto
com a linguagem visual na gestualidade que acompanha. A
arquitetura, nos seus aspectos rítmicos e harmônicos, também se
entrelaça com a sonoridade, além de ser visual e tátil, dentre todas as
linguagens a mais visualmente tátil.” (SANTAELLA, 2005, p. 379)

Independente do quanto uma linguagem possui elementos resultantes


de misturas de matrizes, ou de sincretismos de linguagens, sempre existe uma
43
predominância em relação ao sentido pelo qual a linguagem será captada.
Música é mais predominantemente captada pela audição; o proveito de uma
pintura é mais predominantemente tido pela visão; de um texto dito oralmente,
pela audição; uma narrativa verbal escrita, pela visão; e assim por diante.
Dentro da linguagem das Histórias em Quadrinhos um único sentido
deve dar conta de todos. É confiada aos elementos visuais a responsabilidade
de que o espectador da obra escute, sinta cheiros, temperaturas, sabores. Para
isso artistas dessa poética se empenharam em convencionar certos códigos
para que o leitor pudesse ter uma experiência estética mais completa. Existe
uma cumplicidade relevante entre o realizador da obra e aquele que a
contempla, conforme proposto por Scott McCloud:

“É demais pedir que um único sentido seja responsável pela


transmissão de tantas experiências, mas nós fazemos isso acontecer
usando a força de nossas próprias experiências pra absorver o
mundo” (MCCLOUD, 1995, P.136)

Os balões, citados anteriormente, é um recurso que possibilita


compreender variadas informações que o texto verbal em si não dá conta, além
de levar a entender qual personagem está dizendo o texto, possibilita perceber
como o enunciado está sendo dito, desde o volume com que é produzido até a
emoção específica que a informação verbal pode carregar. E não são apenas
os balões que são capazes de transformar os olhos do leitor em ouvido, mas
vários elementos composicionais.

1.2.1.1 Narrativa

A narrativa dentro da linguagem da História em Quadrinhos é um dos


pontos básicos que leva à existência da linguagem, tanto que vários
quadrinistas expõem que, antes de qualquer coisa, para se realizar Quadrinhos
é necessário querer contar uma história. É claro que os caminhos
metodológicos para a existência das histórias podem provir de uma grande
variedade de técnicas, desde empíricas a processos formais. A narrativa é o
modo como essa história se desenrola, é a estrutura dramática. De modo mais
abrangente, ela contém todos os outros elementos das HQs, vale entender

44
que, antes dos demais elementos existirem, um pensamento sobre a narrativa
deve estar formado e uma das maneiras de se conseguir isso é através da
utilização de um roteiro. O roteiro seria um processo mais potencialmente
formal de se expor a narrativa. É um texto escrito que descreve como a história
vai acontecer, mas, apesar de ser texto verbal escrito, não deve ser confundido
com um texto literário.
É evidente que um roteiro partilha de características comuns à literatura,
pois a estrutura de como a história será traçada pode seguir regras que
funcionam para a literatura. Os conflitos, o perfil dos personagens, as viradas
dramáticas, todo o alicerce da história em si é comum à literatura, o que
diferencia é que, como a obra final não é um texto escrito, e sim Histórias em
Quadrinhos, ele não necessita ser contado do mesmo modo que as obras
literárias. O roteiro funciona como um mapa indicativo das características que
configuram a história, não precisa ser poético, mas sim descritivo, a poesia virá
no decorrer da realização da obra a partir da utilização dos outros elementos.
Seu aspecto é informar como a história acontecerá e quais substâncias
composicionais serão engendradas para isso. Syd Field, roteirista e
pesquisador de roteiro, aponta que se colocássemos um roteiro na parede
como uma pintura e olhássemos para ele, ele se pareceria com um diagrama,
ou seja, mais racional e menos emotivo. (FIELD, 1995). Isso que o roteiro torna
claro não é exatamente o mesmo que a obra finalizada permite ver, apesar de
ele contar a obra, o faz de modo técnico, media a narrativa entre as pessoas
que participarão do processo de realização da HQ, visto que muitas vezes a
história é idealizada por um artista, mas desenhada por outro. Santaella faz a
seguinte colocação acerca das diferenças entre a obra e o roteiro quando
reflete sobre o roteiro cinematográfico:

“cinema pressupõe roteiro. Esse nível verbal está implícito no


entrecho narrativo e que o roteiro explicita não é o mesmo verbal que
está expresso nos diálogos dos personagens, pois diálogo é fala,
linguagem verbal oral, enquanto a narrativa é uma das matrizes da
discursividade verbal escrita.” (SANTAELLA, 2005, p. 386)

O roteiro indica então como ocorrerá a narrativa, a partir daí os demais


elementos são somados ao processo, todos caminhando, ao menos em teoria,
a favor da narrativa.

45
1.2.1.2 Visualidade

A visualidade de uma História em Quadrinhos talvez seja o que mais


atraí a atenção de seus leitores, pois as HQs são predominantemente
destinadas à visão; junto com a narrativa fecha o ciclo de elementos básicos,
pois nestes dois alicerces estão contidos todos os outros restantes. Inicia-se
uma história em quadrinhos com a narrativa a ser contada, depois passa-se a
imprimir-lhe uma aparência de maneira sequenciada.
Todavia o suporte visual, tal como a narrativa, comporta um pensamento
bastante amplo sobre sua definição, pois tudo o que houver destinado à visão
faz parte dessa aparência, inclusive as palavras escritas, como apontado pelos
pesquisadores de HQ Laonte Klawa e Haron Cohen:

“De fato, a inclusão de palavras no campo imagístico implicou numa


transformação do seu uso, acrescentando conotação e algumas
vezes alterando seu significado. As palavras sofreram um tratamento
plástico; passaram a ser desenhadas; o tamanho, a cor, a forma, a
espessura, etc., tornaram-se elementos importantes para o texto.”
(KLAWA, COHEN in MOYA, 1977. p. 112)

Por possuir uma estreita relação com os preceitos que guiam as Artes
Visuais, a imagética pode assumir diferentes estilos de traços, alguns mais
expressivos, outros mais delicados e limpos, e é relevante perceber que essa
escolha sobre como se dará a plasticidade das imagens deve de algum modo
agir em favor da narrativa. Isso denota mais uma vez que o plano de expressão
se relaciona com o plano de conteúdo, a plasticidade ajuda a contar a história.
Conforme aponta Vergueiro, indicando certas tendências visuais de períodos:

“A imagem desenhada é o elemento básico das histórias em


quadrinhos. Ela se apresenta como uma sequencia de quadros que
trazem uma mensagem ao leitor, normalmente uma narrativa, seja ela
ficcional ou real. [...] A técnica de desenho utilizada nas histórias em
quadrinhos vai do objetivo de cada criador. Inicialmente,
predominavam nas HQS os desenhos caricaturais. A partir do final da
década de 1920, no entanto, com a popularização das histórias de
aventuras e de super-heróis, os quadrinhos de desenho naturalista
tornaram-se muito comuns.” (VERGUEIRO, 2009, p. 32-33)

46
Não se trata então de entender o que está desenhado, mas como são os
traços que compõem o desenho, é a impressão (e expressão) particular que
cada artista confere a imagem de sua HQ. A visualidade não é a intenção de
inserir semelhança icônica 9 à representação, mas sim de permitir que a
representação ganhe formas que dizem algo além de uma similaridade com
seus modelos referentes. Essas duas faces das imagens, figurativa e plástica,
são explicitadas pelo semioticista José Serafim Bertoloto quando comenta seu
modo de análise de imagem:

“Ao ser questionado sobre o método de análise de uma obra de arte,


procurei ser preciso ao responder que, em primeira instância (no
caso, a pintura), ela é composta de signos icônicos e plásticos,
materializados pelo artista na hora da criação, que falam por si, e, em
decorrência, são signos que estão aptos a provocar significações.”
(BERTOLOTO, 2006, p. 51)

Por possuir grande capacidade de inferir significação aos leitores, a


visualidade deve ser tratada de maneira conveniente ao bom andamento da
narrativa. Na união da narrativa e da visualidade se forma o terreno que
contém todos os outros elementos composicionais de uma História em
Quadrinhos.

1.2.1.3 Diagramação - Quadros, calhas e páginas

A diagramação é a disposição dos elementos visuais que compõem a


história em quadrinho, relaciona-se com a ideia de design1 0 , pois trata de traçar
uma harmonia (ou desarmonia) desses elementos. Dentre eles, o quadro.
Os quadros são as representações visuais de um instante congelado da
história, eles contêm as cenas que, encadeadas, levam ao desenrolar da
estrutura dramática. Recebem o nome de “quadro”, pois, normalmente as
imagens estão contidas em uma caixa que traça os limiares daquele momento
representado. Além desses limites traçados o que existe são os espaços
vazios, conhecidos como calha, e outros quadros, que contém outros

9
Aqui o termo “ícone” empregado obedece a uma compreensão da semiótica peirceana, que será
explanada mais adiante.
10
A concepção de design tida é a da estruturação e harmonização da aparência visual de produtos
utilitários

47
momentos da narrativa. As linhas que determinam os limites do quadro são
conhecidas como requadros, elas emolduram cada cena ali representada
(EISNER, 1999). Assim sendo, a disposição, tamanho e escolha da linha que
configurará o quadro poderá agir em função da história a ser narrada. Sobre a
utilização favorável do requadro temos a seguinte consideração de Edgar
Franco:

“O requadro (moldura do quadrinho) é muitas vezes usado como um


importante elemento narrativo, assim podemos ter um requadro
traçado com ponta em ângulos agudos para representar uma ação
explosiva, requadros retangulares desenhados fora do esquadro em
sequencias aleatórias para definir uma sensação de caoticidade, ou
mesmo uma ausência de requadro que pode acentuar a sensação de
liberdade de uma pessoa ou a vastidão de um cenário.” (FRANCO,
2004, p. 47)

Os quadros são dispostos de modo que o anterior diga respeito a um


acontecimento que antecede o quadro seguinte, que, espacial e
temporalmente, o sucede. Isto é, um grupo de quadros forma uma cena, sendo
cada um dos quadrinhos um momento dessa cena. Isso problematiza a
passagem de tempo na Arte Sequencial, que é resolvida na diagramação da
visualidade a partir da utilização dos quadros e de seus cortes gráficos,
conforme colocado pelo pesquisador de Quadrinhos Moacy Cirne:

“[...] a ‘banda-desenhada’ [história em quadrinhos] forma-se como um


agenciamento/desencadeamento de imagens que se estruturam e se
articulam a partir de cortes espaciais e temporais (cortes gráficos),
gerando um tempo narrativo capaz de problematizar a leitura; isto é, o
tempo narrativo – apesar de sua carga semiótica – resolve-se
formalmente no interior do tempo da leitura” (CIRNE, 1990. p. 13).

A escolha do tamanho do quadro, da quantidade de desenhos e textos


contidos nele também pode influenciar na sensação de passagem de tempo, o
tempo do percurso do olhar sob um quadrinho com muita informação é
potencialmente maior do que o de um quadrinho com menos informação.
Muitas outras estratégias de diagramação são utilizadas para influenciar a
sensação de passagem de tempo da narrativa, repetições, ordenações de
balões, entre outras (MCCLOUD, 1995). É, mais uma vez, um fruto da relação
espaço x tempo, apontado por Franco, “A relação entre espaço e tempo nas
Histórias em Quadrinhos é muito estreita pois, geralmente, o segundo define o

48
primeiro.” (FRANCO, 2004, p. 43). Um dos recursos que denota não só a
passagem de tempo, mas também possibilita elaborar estratégias sobre como
o leitor poderá realizar suas interpretações da narrativa é a utilização do
espaço entre os quadrinhos, a calha (MCCLOUD, 1995). É nesse espaço que
ocorre uma grande cumplicidade entre os autores da obra e os leitores, pois, é
justamente entre um quadro e outro que a ação acontece, é quando o leitor
completa mentalmente o que os quadrinhos não demonstram, Klawa e Cohen
discorrem sobre isso:

“Uma característica vital foi acrescentada à representação das


imagens: o tempo passava a ser um elemento de organização da
série. No entanto, fazia-se necessário que o leitor completasse o
‘vazio’ entre um e outro quadrinho. Um herói vai abrir uma porta; sua
mão dirigi-se para a maçaneta. No quadro seguinte está correndo
pelas ruas. Foi preciso que o leitor preenchesse com sua imaginação
a falta dos seguintes movimentos – o personagem abre a porta, sai, a
porta bate, ele começa a correr – para que houvesse uma coerência
entre os dois quadros.” (KLAWA, COHEN in MOYA, 1977. p. 110)

É nesse pequeno espaço entre duas imagens que o leitor se torna


cúmplice dos personagens da narrativa, executa a ação com e por eles. Mc
Cloud aponta que a calha é um dos espaços em que a mente do leitor mais
age, pois o pensamento frui naquilo que não está construído com imagens ou
textos nas Histórias em Quadrinhos, e sim apenas com a imaginação. No
exemplo mostrado na figura 07 ele apresenta dois quadros de uma história, e
faz o seguinte apontamento:

Figura 07- extraída de MCCLOUD, 1995, p. 67;

“Neste exemplo, posso ter desenhado um machado erguido, mas


não sou eu quem desfere ou decide o impacto do golpe, nem quem

49
gritou ou porquê. Esse, caro leitor, foi seu crime especial. Cada um
cometeu de acordo com seu próprio estilo. Matar um homem entre os
quadros significa condená-lo à milhares de mortes.” (McCloud 1995,
p.68)

O espaço entre os quadros age como um símbolo compartilhado pelo


grupo cultural que compreende tal linguagem. E o consenso leva o espectador
a entender que é entre um quadro e outro que a ação que os conecta
acontece. Essa ação sucede de acordo com o imaginário de cada espectador,
e, dado as referências culturais de cada fruidor, essa ação acontece de
maneira diferente.
Esse corte de um quadro ao outro acontece de modo muito próximo com
o “corte” cinematográfico, onde uma cena captada salta para a outra e a
semelhança com o cinema não para por aí, pois, cada representação contida
entre os requadros obedece a um enquadramento, como na fotografia e
cinematografia. Essa solução gráfica é apontada por Vergueiro:

“Nos quadrinhos, os enquadramentos ou planos representam a forma


como uma determinada imagem foi representada, limitada na altura e
largura, da mesma forma como ocorre na pintura, na fotografia e
cinema. Os diversos planos serão nomeados conforme se referirem à
representação do corpo humano. Nesse sentido, os quadrinhos
utilizam a denominação utilizada no cinema: Plano Geral [...] Plano
total ou de Conjunto [...] Plano Médio ou aproximado [...] Plano
Americano [...] Primeiro Plano [...] Plano detalhe, Pormenor ou close-
up [...] ângulo de visão médio [...] ângulo de visão superior [...] ângulo
de visão inferior [...]” (VERGUEIRO, 2009, p. 40-44)

A somatória dos quadros vão formando as páginas de uma revista, e as


páginas também estão sujeitas a certas preocupações de diagramação para
contribuírem à narrativa. As principais características que se deve atentar a
uma página são os locais onde dispor os quadros nela, pois deve existir uma
força motriz quase perene que leva o leitor a continuar se interessando em virá-
las. Sendo assim, sempre o último quadrinho de cada página, normalmente o
que está posicionado no canto direito inferior (visto a prática da leitura
11
ocidental ), deve ter alguma característica que atraia o interesse do
espectador em olhar o quadro da página seguinte, tais quadros são chamados
“quadros gancho” (MCCLOUD, 1995). Como a revista deixa as páginas pares e
11
O processo de leitura ocidental consiste em se ler da esquerda para a direita, de cima para baixo.
Seguindo um fluxo que ocorre nesse sentido.

50
impares visualizadas ao mesmo tempo, e nessa ordem, quando estão abertas;
o quadro gancho da página ímpar deve ser tratado com mais dedicação na
estratégia narrativa para levar à força motriz, pois são as páginas ímpares que
são efetivamente viradas ao se folhear uma revista.

1.2.1.4 Legendas, Balões e onomatopeias

É a partir da utilização desses elementos que a história ganha uma


sensação de presença fonética, pois são essas substâncias expressivas que
levam a impressão de sonoridade na narrativa.
As vontades verbais dos personagens são materializadas a partir do uso
dos balões, eles funcionam como um recipiente das informações que os
personagens dialogam e refletem. Do mesmo modo como as linhas do
requadro, os balões podem carregar valor significativo para a narrativa; os
traços que elaboram esse recipiente podem ser dos mais variados, e isso
influencia a ideia de volume da sonoridade e carga expressiva com que o som
é produzido. Essa produção de sentido e funcionalidade dos balões é denotada
por Anselmo quando aponta:

“O balão é um elemento peculiar das histórias em quadrinhos. Ele


contém texto ou imagens, que correspondem ao diálogo mantido
pelos personagens, seus pensamentos e sonhos. Na versão
tradicional, o balão possui formato arredondado e um rabicho em sua
parte inferior. O rabicho aponta para o personagem que está
expressando o texto contido no balão.
A localização do balão no quadro não obedece a uma regra fixa, mas
também não é aleatória. Deve facilitar a leitura, propiciando uma
melhor compreensão do conteúdo e da sequencia do enredo. Se o
cenário pode ser ‘arranjado’, dando movimento à história, o mesmo
ocorre com o posicionamento dos balões, cujo formato varia de
acordo com o significado que se deseja dar à fala ou diálogo.”
(ANSELMO, 1975, p. 69)

A legenda ocorre normalmente em quadros que funcionam de modo


parecido com o balão, podem ter variadas formas de acordo com a carga
expressiva que se pretende passar, contudo indicam o conteúdo verbal do
narrador da história, que funciona com preceitos parecidos com os dos
narradores da literatura, ou de personagens que não se localizam na cena
representada.

51
Já as onomatopeias fazem referência não ao que os personagens dizem
ou pensam, mas sim aos sons que ocorrem em uma história. São combinações
de sílabas que tentam, a partir do princípio fonético de cada idioma - onde cada
letra corresponde a um som na imaginação do leitor -, criar a sensação
específica de cada experiência sonora. A plasticidade da aparência visual das
palavras onomatopeicas é amplamente explorada nas HQs, inferindo carga
expressiva que pode levar a uma vivência mais especifica da sonoridade.
Desse modo as onomatopeias escritas em letras grandes podem corresponder
a sons de alto volume e assim por diante. É importante destacar que, apesar
de existir certa convenção em algumas expressões onomatopeicas, existe uma
variação de um grupo social para outro e, até mesmo, de artista para artista,
conforme apontado por Waldomiro Vergueiro:

“Logicamente, as onomatopeias também irão variar de autor para


autor, segundo sua procedência e preferências pessoais. Nesse
sentido, é importante salientar que alguns autores e editores
brasileiros muitas vezes optaram pela adaptação das onomatopeias
em inglês à língua portuguesa, entendendo que, sendo a linguagem
uma maneira de aprender o mundo, a utilização das onomatopeias
originais implicaria na apreensão de uma cultura e psicologia
alienígenas, com diversas consequências para os leitores.”
(VERGUEIRO, 2009, p. 63)

1.2.1.5 Metáforas Visuais e linhas cinéticas

Nem tudo o que é exposto em um quadro de HQ acontece por meio de


verbo ou imagens figurativas, os elementos até aqui apresentados já denotam
isso, dentro da construção da cena também são inseridos traços e imagens
que realizam a proposta de dizer algo além do que o aspecto figurativo da
imagem traz. Esses traços e imagens tem uma concepção simbólica
convencionada que leva os leitores a entenderem sua significação na narrativa.
Porém esta compreensão pode sofrer uma variação bem diversa se levarmos
em conta a formação e as práticas culturais de cada leitor. A metáfora, essa
figura de linguagem, permite ao observador criar o seu próprio mundo visual a
partir do signo denotado no quadrinho.
Na linguagem verbal o pensamento sobre “metáfora” se dá na ideia de
que é uma palavra substituindo outra; nas artes visuais seria o mesmo: um

52
desenho que substituí outro, por isso o caráter simbólico convencionado, pois é
preciso ter um certo acordo cultural para entender o que um uma determinada
mensagem visual quer substituir, assim uma lâmpada sobre a cabeça de um
personagem ganha a significação de “ideia”, um olhar rodeado de corações
pode carregar a compreensão de “amor”, e assim por diante. Mas, apesar de
existir uma cumplicidade cultural entre o artista que se utiliza da imagem
metafórica e o espectador que a desfruta, é necessário entender que a
utilização da metáfora não é suscetível a uma só interpretação. Bertoloto alega
que a utilização de recursos metafóricos leva a uma liberdade de significado:

“Não é pelo fato de a metáfora ajudar a perceber as significações das


coisas que ela indicará, de maneira unívoca, o sentido das mesmas.
Partindo-se do pressuposto de que as informações indicadas pelo
criador da obra nem sempre entram em consonância com as
expectativas culturais do observador, a metáfora serve de mediadora
no sentido de aproximar as disparidades de significados, entre o
conceito proposto pelo objeto observado e seu espectador. Nesse
sentido, o referente contido no signo icônico e indicial discente
completa a cadeia de imaginário do interpretante, da mesma forma
que, na palavra, a metáfora visual causa uma certa desconfiança e ao
mesmo tempo uma liberdade interpretativa.” (BERTOLOTO, 2006, p.
76)

Já as linhas cinéticas tem herança em alguns princípios fotográficos,


quando um obturador fica aberto por uma grande quantidade de tempo acaba
registrando o percurso de algum objeto em movimento, esse percurso é
denunciado por um borrão na imagem fotografada. O mesmo foi transposto
para os Quadrinhos, mas, ao invés de um borrão, foram colocados linhas e
pontos que denunciam o trajeto de coisas se movimentando ou ilusão de
deslocamento de ar. Já as metáforas visuais ocorrem quando imagens são
inseridas na cena, mas não para trazer seu próprio significado e sim uma
significação simbólica, uma analogia, ou, propriamente, uma metáfora.
Vergueiro também realiza algumas definições sobre esses elementos:

“Nas histórias em quadrinhos, como já comentado, as imagens são


sempre fixas. Para dar idéia ou ilusão de mobilidade, de
deslocamento físico, o meio desenvolveu uma série de artifícios que
permitem ao leitor aprender a velocidade relativa de distintos objetos
ou corpos, genericamente conhecidas como figuras cinéticas. [...] as
mais comuns são as que expressam trajetória linear (linhas ou pontos
que assinalam o espaço percorrido), oscilação (traços curtos que
rodeiam um personagem, indicando tremor ou vibração), impacto

53
(estrela irregular em cujo centro se situa o objeto que produz o
impacto ou o local onde ele ocorre), entre outras.
Já as metáforas visuais atuam no sentido de expressar idéias e
sentimentos, reforçando, muitas vezes, o conteúdo verbal. Elas se
constituem em signos ou convenções gráficas que tem relação direta
ou indireta com expressões do senso comum, como, por exemplo,
‘ver estrelas’, ‘falar cobras e largatos’, ‘dormir como um tronco’ etc..”
(VERGUEIRO, 2009, p. 54)

É devido a essas características de composição, desde o planejamento


da narrativa até a utilização de detalhes como as linhas cinéticas, que são
realizados os modos específicos de leitura. Para se analisar essa leitura
existem diferentes procedimentos, um deles é a partir de uma abordagem
semiótica, que será justamente o que irá ocorrer. Assim sendo, uma vez
compreendido o trajeto histórico que desencadeou na convenção da expressão
artística em questão e as características da linguagem, o próximo capítulo se
ocupará de perceber uma maneira metodológica de perceber os modos de
leitura e a identificação de alguns níveis.

54
CAPÍULO 2

SEMIÓTICA: FERRAMENTA DE PERCEPÇÃO DAS


PERCEPÇÕES

55
Este capítulo abordará a apresentação de preceitos de doutrinas
semióticas, para mostrar que os conceitos e práticas empregados por esse viés
científico contribuem para o entendimento de como ocorre a produção de
sentido na leitura das Histórias em Quadrinhos.
A ciência quer seja humana, exata ou biológica, partilha de certa
similaridade no tocante a seu modo de operar, as práticas científicas
determinam objetos, objetivos e metodologias, para chegarem a seus
resultados. Dentre os modos clássicos, alguns se destacam e ocorrem com
certa frequência em pesquisas e estudos, vale citar os métodos indutivos e
dedutivos (PEIRCE, 2008). Apresentando de maneira simplificada, a indução é
a metodologia que aponta partes que respondem pelo todo, isto é, se cem
pessoas são entrevistadas em uma cidade, onde são selecionadas de modo
heterogêneo, havendo uma variação de diferentes faixas etárias, classes
sociais e localidade de residência, e respondem a questões demonstrando uma
determinada opinião sobre algum assunto, possivelmente aquelas opiniões
dirão respeito ao todo da população daquela cidade, a indução parte do micro
para o macro, muito utilizado pelos meios estatísticos.
A dedução percorre o caminho inverso, ela antevê alguma “verdade” do
macro, e insere aquela verdade sobre o micro. Tal como a lógica aristotélica,
que parte do silogismo onde uma premissa maior determina as premissas
menores, levando a uma conclusão. Um processo dedutivo bastante conhecido
é o que demonstra a mortalidade de Sócrates, colocando: “Todos os homens
são mortais. Sócrates é um homem. Sócrates é mortal.” (ROSSI, 1996, p. 42).
No estudo que ora se apresenta, o que sobrevêm é a ideia de que uma
pesquisa pode se delinear num misto de métodos. Por mais que a dedução
apareça como modo extremamente clássico e coerente para se determinar
certas concepções, em situações específicas pode demonstrar certas aberturas
que outros argumentos possam preencher. Mas há algo da dedução que se
demonstrará de maneira recorrente no decorrer deste capítulo, se trata das
tríades do raciocínio.

56
A formulação da dedução se dá em três partes: a premissa maior, a
premissa menor e a conclusão. O processo de produção de sentido à luz da
semiótica se dá também em um processo de recorrente tricotomia, mas,
diferentemente da dedução, ele não se volta apenas para as premissas
maiores determinarem as menores com intenção de se chegar a um resultado,
sua atenção está voltada para o fenômeno em si. Em se tratando dos aspectos
metodológicos para se analisar um fenômeno, como o da leitura de uma
linguagem artística, a semiótica justifica-se como aparato metodológico para se
observar práticas, ou uma ferramenta da percepção de percepções. O filósofo
Roberto Rossi aponta que a contribuição da visão peirceana é justamente esse
pragmatismo:

“Peirce põe em dúvida o propósito cartesiano das ideias claras e


distintas, acentuando o aspecto pragmático que é, exatamente, o de
verificar e ‘tornar clara as ideias’, por si mesmas nada evidentes nem
distintas.” (ROSSI, 1996, p. 283)

Nesse sentido, surge aqui a possibilidade de demonstrar um método


científico que ajusta-se a proposta dessa pesquisa, a fenomenologia. Esse viés
metodológico leva em conta a circunstância, a particularidade de determinado
fato, o contexto em que ele se manifesta, e tira suas considerações observando
o que ocorre e refletindo sobre as faces abstratas, aquelas a que não se pode
observar. Rossi corrobora com a definição dessa proposta metodológica: “A
fenomenologia, quer ser, justamente, isso: um ‘ir às coisas’ (zu den sachen
selbst), isto é, olhar e descrever o que aparece, exatamente os fenômenos.”
(ROSSI, 1996, p. 306). Para Peirce, tanto a Fenomenologia quanto a Semiótica
são relevantes para sua pesquisa, pois ambas permitem essa verificação, o “ir
aos fenômenos”.
Para se checar um acontecimento, é importante entender que não há
uma verdade absoluta sobre ele. Nenhum fenômeno possui um lado que possa
ser encarado como fato absoluto, sempre haverá alguma ótica que fornecerá
algo que outra maneira de se observar não considerava. No caso de analisar o
processo de leitura de uma história em quadrinhos não é diferente, ainda que
esse trabalho de conta de mostrar algumas características sobre a produção de
sentido e seus níveis, evidentemente não mostrará toda a natureza do

57
fenômeno, por isso a semiótica é contextual, ela observa uma determinada
face de uma manifestação, mas isso não quer dizer que, o que ela apresenta é
a verdade sobre o fenômeno. Peirce contribui sobre essa assertiva, mostrando
que o que realmente interessa para ele é a prática em si, ainda que ela não
seja a totalidade “Portanto, não perguntamos o que realmente existe, apenas o
que aparece a cada um de nós em todos os momentos de nossas vidas.
Analiso a experiência [...]” (PEIRCE, 2008, p. 22)
Muito foi comentado no primeiro capítulo a respeito da “linguagem” e
“convenção”, pois várias características elementares das Histórias em
Quadrinhos foram convencionadas e hoje são fruídas com muita naturalidade
por uma grande quantidade de espectadores. O que ocorre é que o estatuto de
“significado” de um signo partilha de uma variedade de possibilidades de
planos de conteúdo, uma mesma representação tem intrínseca várias
significações, para isso deve-se entender que um mesmo signo tem várias
aparências diferentes. Para entender como isso funciona nos processos de
leitura, vale ater-se a certas definições que a semiótica propõe, pois ela pode, e
deve, se ocupar de analisar as várias características e possibilidades de
entendimento dos sentidos que uma cultura realiza, conforme apontado por
Umberto Eco:

“Na cultura, toda entidade pode tornar-se um fenômeno semiótico. As


leis da semiótica são as leis da cultura. A cultura pode ser estudada
completamente sob o perfil semiótico. A Semiótica é uma disciplina
que pode e deve ocupar-se com a cultura em sua totalidade” (ECO,
2004, p.10)

Isso demonstra a potencialidade que a semiótica carrega como recurso


metodológico para se averiguar processos de produção de sentidos que uma
linguagem artística permite. A semiótica, independente de sua doutrina
científica específica, se faz ajustada a realizar a percepção de processos de
leitura. Ela carrega pensamentos e conceitos que se tornam úteis para realizar
tais análises, “[a semiótica] apresenta as ferramentas necessárias para a leitura
das práticas de linguagem, desde as mais simples até as mais complexas.”
(SANTAELLA, 1996, p.79). Mas são várias as ramificações da ciência
semiótica, aqui, por mais que um dos vieses científicos aparecerá de maneira
mais proeminente, serão mescladas algumas das visões com a ideia de que

58
elas podem e devem se complementar, intentando oferecer um panorama mais
amplo de análise.
Dentre as correntes semióticas, o pensamento proposto por Charles
Sanders Peirce é o que ganha destaque quanto ao possibilitar, no âmbito desta
pesquisa, o entendimento das possibilidades de leitura existentes na fruição de
obras de Histórias em Quadrinhos. O olhar de Peirce oferece um conjunto de
concepções que elucidam a pluralidade de um signo. Diferente de Saussure
que colocava que os signos eram elaborados por um emissor e destinados a
um remetente, desse modo todos os signos eram produzidos para algum
intelecto o ressignificar, Peirce aponta que mesmo coisas não produzidas com
uma intencionalidade de significação podem efetivar algum sentido (ECO,
2000). É o caso de olhar para nuvens e enxergar formas de seres e coisas
diversas, não existiu uma intencionalidade da natureza em tornar aquilo um
elemento com semelhança a alguma coisa, é uma casualidade que, mesmo
não intencionalmente, produz algum sentido. Isso demonstra uma das
contribuições do pensamento semiótico proposto por Charles Sanders Peirce,
que é observar os códigos não intencionados pelo autor de uma obra tanto
quanto os intencionados, pois eles também influenciam a leitura. Isso se
relaciona com o que Marcel Duchamp chama de “coeficiente artístico”, sendo
que “Em outras palavras, o ‘coeficiente artístico’ pessoal é como uma relação
aritmética entre o que permanece inexpresso na obra embora intencionado, e o
que é expresso não intencionalmente.” (DUCHAMP in BATTCOCK, 2004, p.
73). Uma produção imagética artística principia em uma concepção mental do
que será desenvolvido materialmente, contudo, do ideal imaginado na mente
do artista e o que se torna realmente desenvolvido, existem variantes que
alteram a composição final; conforme observa Eco “(...) um ser humano
executa atos perceptíveis por outros como artifícios sinalizadores, que revelam
algo mais, mesmo que o emitente não tenha consciência das propriedades
reveladoras de seu próprio comportamento.” (ECO, 1997. p.12). Nesse ponto
vale entender que tudo o que é produzido por um emissor está passível de uma
alteração de interpretação no intelecto do receptor, um signo nunca será o
mesmo, ainda que possua um campo de significação comum entre esses o
polo de quem produz e o de quem o recepta. O que o artista tem em mente é
uma significação do objeto em si, já o que o espectador reconstrói em seu

59
imaginário é o interpretante, que é um segundo signo que ressignifica o
primeiro:

“Um signo, ou representamen, é aquilo que, sob certo aspecto ou


modo, representa algo para alguém. Dirige-se a alguém, isto é, cria
na mente dessa pessoa, um signo equivalente, ou talvez um signo
mais desenvolvido. Ao signo assim criado denomino interpretante do
primeiro signo.” (PEIRCE, 2008, p,46.)

Essa compreensão habilita o entendimento das plurais significações


permitidas por uma obra, levando a variadas leituras que, no tocante ao
fruidor/espectador, ainda que gravitem em um universo de significação próximo
ao intencionado pelo produtor da obra, é impossível, como citado no primeiro
capítulo, precisar o quanto se assemelha com sua intenção.
Uma característica que deve ser levada em conta nessa relação de
leitura de um objeto artístico, é que o artista nem sempre necessita ter a
intenção de comunicar algo a partir de sua produção, isso não é
necessariamente a face mais relevante de um produto da arte, mas ainda que
não seja sua intenção, a produção de sentido existe, e pode ocorrer de
variadas maneiras, para o entendimento disso vale observar o universo triádico
de Peirce. Tal universo conceitual coopera para o entendimento de um
processo de leitura. Mas a proposta que se apresenta nesse estudo inserirá
uma substituição em parte da tríade considerada por Peirce, havendo o
oferecimento de um conhecimento também tripartidário existente na semiótica
visual apresentada pelo linguista Algirdas Julius Greimas.

2.1 TRIADE PEIRCEANA: OBJETO, SIGNIFICANTE E SIGNIFICADO

A compreensão triádica que Peirce aponta no processo de semiose que


se estabelece em três elementos, de maneira muito próxima com a colocação
anterior sobre a fundamentação da linguagem elaborada pelos estóicos: um
“objeto referente”, seria o que origina uma representação; o signo desse objeto,
que carrega em si as possibilidades de representações distintas, chamado de
“significante”; e o signo interpretado pelo espectador, que é a representação
dada efetivamente, seu “significado”, ainda que seja razoavelmente distinto do
objeto referente (PEIRCE, 2008). Inicialmente essa relação é mostrada aqui a

60
partir do diagrama apresentado pelos britânicos Ivor Armstrong Richards e
Charles Kay Ogden (figura 08):

Figura 08 - triângulo semiótico de Ogden e Richards – fonte: OGDEN & RICHARDS (1972)

Mas esse diagrama não demonstra a complexidade da natureza do


processo de produção de sentido, entre outras coisas, o que falta a esse
diagrama é a possibilidade de pensar o próprio signo como também sendo um
objeto. Pois tudo é signo, mas tudo também é objeto, o próprio significado pode
ser um objeto para outro signo que terá outro significado. Desse modo o objeto
refente não necessita ser apenas material, palpável e visível; ele pode ser um
objeto sonhado, pensado ou imaginado. Levando a um outro modo de encarar
o entendimento tríadico. Se o signo de um determinado objeto referente, que
foi colocado por Peirce como “representamen” pode ser observado como
referente para o signo imaginado, o “interpretante”, não é possível precisar que
o significado seja algo fixo, ele é sempre mutante, diferente do objeto referente
e do signo que o representa.
Vale tomar como exemplo o termo “cadeira” inserido no primeiro
capítulo, num diálogo hipotético foi proferida a frase “sente-se nessa cadeira.”
A palavra cadeira pronunciada fazendo alusão a um determinado objeto
material, que é significado na mente do segundo interlocutor, mas esse
significado pode se tornar objeto para outro signo que terá um outro significado,
toda essa etapa pode ocorrer apenas no intelecto.

61
Por vezes o significado é chamado de interpretante, mas esse termo
chega a causar confusão, pois pode ser tido, entre outras coisas, como o
sujeito (humano) intérprete do signo, quando não o é. Ele é o significado dado
pelo intérprete ao signo, sendo que o intérprete pode ser humano, animal,
máquina, ou até a própria natureza. Umberto Eco traz uma reflexão sobre o
interpretante como um caminho que se inicia num determinado signo e
continua num processo de semiose, elaborando signos ao passo que o
receptor do signo realiza encadeamentos entre significados:

“a hipótese aparentemente mais fecunda é a que vê o interpretante


como outra representação que se refere ao mesmo objeto. Em outros
termos, para se estabelecer o que seja o interpretante de um signo,
cumpre nomeá-lo mediante outro signo, o qual possui, por sua vez,
outro interpretante nomeável por outro signo, e assim por diante.
Abrer-se-ia, a esta altura, um processo de semiose ilimitada, que,
embora paradoxal, é a garantia única para a fundação de um sistema
semiológico capaz de justificar-se a si mesmo e unicamente com
seus próprios meios.” (ECO, 2004, p. 18)

Isso é o mesmo que colocar que, a partir de um signo, existem


possibilidades de dialogar mentalmente com a representação e traçar sempre
novos significados, infinitamente, conforme colocado por Santaella “No caso da
semiose genuína (triádica) o objeto do signo é sempre um outro signo ad
infinitum” (SANTAELLA, 1995, p.19). É como se cada significado se tornasse
signo, e esse signo um novo significado, que se torna signo para um novo
significado, e continua como uma espiral. Isso também pode ser mostrado de
modo diagramático (figura 09).

Figura 09 – diagrama de interpretação ad infinitum – fonte: (QUEIROZ, 2005)

Cada nova interpretação dada a um signo, monta uma rede de


significados encadeados, representando e retomando representações
(QUEIROZ, 2005, p. 57), não necessariamente seguindo uma ordem clara, pois

62
um significado pode surgir através de inúmeros estímulos. Tal como as
madeleines de Marcel Proust, onde ao comer um desses bolinhos franceses e
misturá-lo com chá obteve uma sensação que não soube distinguir de imediato.
O sabor do biscoito fez sobrevir um significado turvo, mas extremamente
prazeroso. Somente com uma reflexão posterior que o autor entendeu o que
aquela sensação significava, o biscoito lhe trouxe as sensações que lhe
existiam na infância, onde se deliciava com as madeleines preparadas por sua
tia. Depois daquela experiência o bolinho francês passou a carregar um
significado que lhe era extremamente pessoal. (PROUST, 2004, p. 51). Isso
mostra que um sujeito pode extrair sentidos que não seria possível até então, e
relacioná-los com o signo a partir de encadeamentos que não seguem uma
compreensão necessariamente clara, tal como o conceito de “rizoma” colocado
por Deleuze e Guattari:

“qualquer ponto de um rizoma pode ser conectado a qualquer outro e


deve sê-lo. É muito diferente da árvore ou da raiz que fixam um
ponto, uma ordem. A árvore lingüística à maneira de Chomsky
começa ainda num ponto S e procede por dicotomia. Num rizoma, ao
contrário, cada traço não remete necessariamente a um traço
lingüístico: cadeias semióticas de toda natureza são aí conectadas a
modos de codificação muito diversos, cadeias biológicas, políticas,
econômicas, etc., colocando em jogo não somente regimes de signos
diferentes, mas também estatutos de estados de coisas” (DELEUZE
& GUATTARRI, 1995, p. 14)

Mas essa ideia de que o significado esteja relacionado a sensações leva


a necessária colocação de que um signo possui diferentes aparências, ele
infere sentido por diferentes caminhos. No caso de Proust o significado veio à
sua cognição a partir de um processo mnemônico, e a partir disso se
estabeleceu de maneira mais clara a reflexão sobre o que estava
experimentando. É relevante notar, no caso das madeleines, a distância que
houve entre o primeiro estranhamento e a reflexão que o fez entender que
aquele sabor trazia uma representação de sua infância, demonstrando com
isso que um signo pode ter modos de se apresentar a seu fruidor, e se
transformar de acordo com o modo com que o intelecto o confronta. Nesse
ponto chega-se a uma necessária abertura à próxima tríade, uma divisão sobre
como ocorre o processo de semiose entre signo e espectador.

63
2.2 PROCESSO DE SEMIOSE: PRIMEIRIDADE, SECUNDIDADE E
TERCEIRIDADE

O linguista alemão Winfried Nöth (1995) apresenta divisão semiótica que


será trazida aqui como a tentativa de Peirce em reduzir a apresentação de
todos fenômenos possíveis de serem recebidos por um processo de semiose
do mundo em apenas três categorias, sendo elas: a primeiridade, secundidade
e terceiridade. Tal classificação deve ser observada como um modo de
entender como as manifestações são provadas, como os fenômenos são
experimentados, ou, de modo a relacionar essa divisão tricotômica com a
anterior que foi exposta nessa dissertação, como os signos são vivenciados.
Essa divisão mostra como é a resposta do espectador ao fenômeno,
quais são os agenciamentos cognitivos do fruidor, não diz respeito
necessariamente à natureza do signo, mas sim a de quem o observa. Vale
tomar como exemplo, para o entendimento do que é discutido nessa tríade, a
seguinte situação: dentro de uma sala de aula, cheia de pessoas
silenciosamente compenetradas em seus estudos, aparece porta adentro, de
súbito, um indivíduo com um artefato extremamente barulhento; inicialmente os
estudantes assustam, depois reconhecem que se trata de um sujeito com um
ar brincalhão, e só então reconhecem que aquele indivíduo e um de seus
colegas de sala, que esta lhes pregando uma peça, pois estão próximos a
alguma data festiva. Esse estranhamento, seguido de um posterior
reconhecimento e entendimento são as categorias que Peirce oferece para a
visão que tem sobre o modo como são as experiências humanas diante dos
fenômenos. Noth realiza uma explicação sintática dessas categorias no que
segue:

“Primeiridade é a categoria de sentimento imediato e presente das


coisas, sem nenhuma relação com outros fenômenos do mundo [...] É
a categoria do sentimento sem reflexão, da liberdade do imediato, da
qualidade ainda não distinguida, da independência. [...] Secundidade
começa quando um fenômeno primeiro é relacionado a um segundo
fenômeno qualquer. É a categoria da comparação, da ação, do fato,
da realidade e da experiência no tempo e no espaço. [...] Terceiridade
é a categoria que relaciona um fenômeno segundo a um terceiro.”
(NOTH, 1995, p. 63-64)

64
No exemplo dado anteriormente, o susto, puro e simples, sem
capacidade de distinção de qual era a natureza do som, nem de onde vinha, ou
que artefato havia o produzido, é o campo da primeiridade. Talvez o susto seja
uma maneira simples de mostra-la, mas existem outras possibilidades, tal
como a Madeleine do Proust, que lhe causou um estranhamento que ele não
sabia explicar.
Noth coloca a primeiridade como uma categoria de sentimento “imediato
e presente das coisas”, pois não há relação com outros fenômenos, não há
com o que comparar, é um estágio de percepção sem clareza. A consciência
não confronta aquela experiência com outras, para poder dar-lhe uma forma
mais bem acabada, ela é a sensação em si. Muitas vezes não há nem uma
consciência sobre o estranhamento, ou, nas palavras de Peirce a respeito da
primeiridade “Não poderia nem mesmo haver um grau de nitidez desse sentir,
pois tal grau é o montante comparativo de distúrbio da consciência geral por
um sentimento.” (PEIRCE, 2008, p. 24). Diferente da sensação de estranheza
vivida por Proust, muitas vezes essa categoria de experimentação ocorre de
maneira muito breve num sujeito, pois rapidamente a mente relaciona o que se
vivencia com algum outro referencial, assim já passando à secundidade. Mas
em outras vezes a sensação de estranheza perdura, principalmente quando ela
se manifesta de modo quase escondido entre outras características do
fenômeno. Para exemplificar vale trazer aqui o que já foi discutido no capítulo
anterior referente ao idioma ser um Sistema Modelizante Primário, e por isso os
quadrinhos estarem tão vinculados à ideia de participarem da linguagem da
literatura, isso leva a alguns espectadores a se envolverem com o conteúdo
literário das obras, e não tomarem consciência sobre como a aparência visual
dos signos influenciam sua experiência ao lê-la. Em realidade o artista nem
precisa almejar que o leitor tome consciência dessa influência, pois pode
utilizar-se disso em favor do modo sobre como sua composição será lida.
Utilizando como referência para expor o modo como um artista pode
fazer uso do estranhamento a favor da maneira como o fruidor de sua obra a
lerá, há o caso do quadrinista Peter Kuper 12 , que realizou uma obra de

12
Peter Kuper é um ilustrador e quadrinista de traço bastante expressivo, além das adaptações que
realizou da obra de Franz Kafka, ficou bastante conhecido pelo seu trabalho com as tiras “Spy VS. Spy”
na revista MAD. Fonte: http://www.peterkuper.com/bio/bio.html , acessado em outubro de 2011.

65
Histórias em Quadrinhos baseada no livro de Franz Kafka13, “A Metarmofose”.
Para fornecer a sua obra o mesmo tenso universo que Kafka imprime em seu
produto artístico, Kuper (figura 10) lança mão de várias estratégias, fornece um
tratamento visual expressivo para seus desenhos, flertando com o universo tido
como “expressionista” pelos críticos de arte. Desse modo apresenta:
representações distorcidas de figuras; uso de um grande contraste entre luz e
sombra, que fica ainda mais evidente devido à impressão realizada apenas em
preto sobre um papel de fundo extremamente branco – caso fosse num papel
amarelado seria oferecido menor contraste aos olhos; linhas de ritmo
interrompido, quase como se houvesse sido realizado num processo de
xilogravura 14 ; requadros dispostos diagonalmente, dando uma atmosfera
desiquilibrada, numa oposição ao “reto” como equilíbrio e “torto” como falta
dele. Ainda que o texto da HQ de Kuper seja interpretado e refletido pelo
intelecto de maneira mais apurada em vista da imagem, a plasticidade dos
traços e visualidade da diagramação influencia a narrativa. Essa inferência
exercida não é necessariamente percebida, naquele momento, pelo
espectador, e nem precisa, o estranhamento proporcionado pelos elementos
plásticos/visuais podem ficar permanentemente na categoria da primeiridade.
Ao exercer as inferências o artista acaba por modelizar e legar ao futuro uma
forma de expressão. E se o artista tiver essa noção, dessa influência quase
subliminar, pode utilizar isso a seu favor, dando existência a possibilidades de
sensações.

13
Escritor Tcheco, também conhecido pelo teor expressivo de suas obras.
14
A técnica da xilogravura consiste em criar sulcos numa tábua de madeira, passar tinta nessa tábua e
então pressioná-la contra um papel, o que oferecer como resultado um desenho de linhas com
costumeira presença de ângulos retos e distorcidos devidos à técnica de sulcagem.

66
Figura 10 – página de “A Metamorfose” de Kafa por Kuper (KAFKA & KUPER, 2004, p. 14)

Se por um lado a primeiridade é essa presentificação da experiência, por


outro a secundidade refere-se ao fenômeno (ou signo) o colocando em
comparação com outro, e assim o destaca. A secundidade é uma categoria de
percepção que, a partir da estranheza inicial, acessa as referências anteriores
do indivíduo e, diante delas, confronta aquela percepção fornecendo certas
características identitárias. Tal categoria trabalha com um processo de
binaridade, colocando de um lado a experiência anterior que o espectador
possui, por outro a estranheza primária do fenômeno que surge diante de si. A
identificação da percepção pode irromper tanto de um processo de perceber

67
similaridade entre a manifestação que está diante do espectador e algo de
suas experiências anteriores, tanto de negar essa semelhança com seu
arcabouço de referências culturais e, assim, perceber a existência de algo que
é novo em sua bagagem cultural. Ainda que um sujeito não nomeie o que está
diante de si, mas percebê-lo confrontando com o que já conhece leva-o a uma
dúvida, e a dubiedade em si é uma maneira de destacar um elemento tirando-o
da primeiridade e inserindo-o na secundidade. Peirce demonstra exatamente
essa relação de percepção a partir de similaridade ou negação dela no que
segue:

“Se não lutássemos contra a dúvida, não procuraríamos a verdade. A


binariedade surge também na negação, e nos termos relativos
comuns, mesmo na similaridade e, de um modo mais real, na
identidade.” (PEIRCE, 2008, p. 24)

A identidade de um signo surge nesse confronto. Ainda com o exemplo


da obra de Peter Kuper, um leitor mais atento, que carrega em sua bagagem
cultural o entendimento de que traços como os do artista em questão flertam
com o que foi convencionado como “expressionismo”, ou ainda, entende que
tais contrastes e deformações de formas figurativas podem psicologicamente
possibilitar estranhas sensações, tem um conjunto de conhecimentos que, em
comparação com a percepção que se instaura ao ver a obra, põe em relevo
uma identificação sobre o signo estranho, aqueles estranhos traços que
fornecem certas sensações que ocorrem durante a leitura da HQ. O
conhecimento passado é que leva ao entendimento do signo que aparece no
presente (PEIRCE, 2008, p. 23), o que já ocorreu é o que leva uma categoria
de primeiridade passar à secundidade. Em relação ao exemplo do escritor
Proust e suas madeleines, a secundidade ocorre quando o autor francês
consegue distinguir que aquele estranhamento pertence exatamente ao bolinho
que está em sua boca e quando confronta com seu passado, lembranças dos
biscoitos que existiam nas refeições que ele realizava em sua infância, aí inicia
um destaque identitário, que transforma aquela estranheza primária numa
concepção secundária.
Dentro dessas categorias, a derradeira parte da tríade é a terceiridade,
que se configura numa relação mais complexa do fenômeno com os

68
conhecimentos intelectuais do espectador. Enquanto na secundidade a ênfase
do passado surge como maneira de confrontar a estranheza com os prévios
conhecimentos culturais do indivíduo, na terceiridade o que entra em questão é
o futuro, e o que determina essa característica são os esforços e projeções
intelectuais mais apurados sobre o signo que está sendo percebido.
Uma vez identificado a manifestação diante de si, o espectador é levado
a traçar essa experiência já compreendida, com o que isso representa para si.
No caso da obra de Proust não é diferente, quando o escritor francês consegue
perceber que aquele estranhamento em comer a madeleine é devido a uma
experiência do tempo decorrido de sua vida, mais especificamente de sua
infância, dá uma identidade ao signo, e o biscoito passa a não representar para
ele apenas um bolinho saboroso, mas sim um símbolo saudoso de sua época
de criança. Isso é projetado, ainda que inconscientemente, para as próximas
vezes em que ele se deparar com a madeleine, isto é, no futuro, aquele
biscoito não será representado à ele apenas como um biscoito.
Quando se diz que o futuro e a apuração intelectual determinam a
terceiridade, é como se esse prolongamento do significado percebido ou dado
ao fenômeno dependesse de compará-lo não apenas às experiências
anteriores, traçando uma binaridade que o identifica, mas usar dessas
experiências para compreendê-lo como algo que transcende ao momento de
percepção do fenômeno em si. No exemplo de da página de “A Metarmofose”
do Kuper, fica mais claro a terceiridade na relação que o autor tem com os
estranhos traços, pois a partir de seu conhecimento projeta a ideia de que a
aparência expressiva das figuras e diagramação que compôs para a obra
influenciará a percepção que o leitor terá. Não que a terceiridade não possa
existir também por parte do espectador no caso da obra em questão, mas
como exemplificação, fica mais fácil observar a ocorrência dessa categoria por
parte do compositor do produto artístico. Essa categoria é apresentada por
Peirce num exemplo que possibilita observar essa intelecção que projeta um
fenômeno futuro:

“O mercador das Mil e Uma Noites jogou fora um caroço de tâmara


que feriu o olho de um demônio. Este ato foi puramente mecânico, e
não houve uma triplicidade genuína. O ato de jogar e o de ferir foram
independentes um do outro. Mas, se ele houvesse feito mira no olho
do demônio, teria havido algo mais do que o simples jogar de caroço.

69
Teria havido uma genuína triplicidade, com o caroço não sendo
simplesmente jogado, mas sim jogado no olho. Aqui teria intervindo a
intenção, a ação da mente. A triplicidade intelectual, ou Mediação, é a
minha terceira categoria.” (PEIRCE, 2008, p. 27)

Desse modo têm-se na primeiridade o presente, que é a percepção


inicial do fenômeno, sem delinear sua identidade, apenas sentindo as
sensações que ele proporciona; na secundidade, o passado, que em confronto
com o presente traça uma identidade para o que está sendo percebido; e na
terceiridade, o futuro, que é quem permite entender que o fenômeno
experimentado influência ou se enquadra em entendimentos ou outros
fenômenos que estão por vir.
Uma vez entendida essa tricotomia primária, referente ao modo como
ocorre um processo de produção de sentido e aos modos como ocorre a
percepção nesse processo, adiante serão expostas as divisões tricotômicas
que Peirce apresenta em relação ao signo em si.

2.3 PRIMEIRA TRICOTOMIA: SIGNO CONSIGO MESMO

Essa divisão orienta denominações ao signo de acordo com as


percepções apresentadas na divisão tricotômica anterior. De acordo com a
categoria a qual o signo se encontra em determinado momento, o tratamento
dado a ele é diferente. É importante entender que todo signo pode ter em si
todas as designações dessa tríplice divisão, mas, dependendo de como o
espectador está sentindo-o, ele recebe um dos termos que serão
apresentados, sendo eles: qualissigno, sinsigno e legissigno. Santaella faz uma
breve colocação sobre as propriedades de um signo, e tais características são
as que distinguem ele entre essas denominações, afirma a autora:

“Se qualquer coisa pode ser um signo, o que é preciso haver nela
para que possa funcionar como signo? Para Peirce, entre as infinitas
propriedades materiais, substanciais etc. que as coisas têm, há três
propriedades formais que lhes dão capacidade para funcionar como
signo: sua mera qualidade, sua existência, quer dizer o simples fato
de existir, e seu caráter de lei. [...] Pela qualidade, tudo pode ser
signo, pela existência, tudo é signo, e pela lei, tudo deve ser signo.”
(SANTAELLA, 2004, p. 12)

70
Quando o signo manifestado ainda está no estágio de estranhamento
por parte de seu fruidor, apenas proporcionando uma sensação de algo, ele é
chamado de qualissigno. O radical “quali” faz menção à “qualidade”, visto que
nessa fase de percepção o que o signo traz é a sensação de algum atributo de
valor, uma estranheza primária pode ser boa, ruim, angustiante, prazerosa,
pode ser uma sensação de “azul”, de grandeza, de frescor, sempre uma
qualidade distintiva, ainda que não seja claro o signo específico. Já quando a
estranheza dá lugar a uma definição mais apurada sobre o signo, quando lhe é
possível destacá-lo, deferi-lo em confronto com algo, ele é chamado de
sinsigno, o radical dessa designação é em alusão ao termo “singular”, pois o
fenômeno deixa de ser algo estranho, indefinido, e passa a ganhar contornos
mais específicos. E, por fim, dentro dessa divisão tripartida, quando um signo é
entendido de forma mais apurada, já com juízos culturais complexos sobre ele,
isto é, dentro do estágio da terceiridade, dá-se a nomenclatura de legissigno;
como se as “leis” culturais definissem suas possibilidades de interpretação.
Peirce realiza sua definição desses três tipos de signo do seguinte modo:

“Um Qualissigno é uma qualidade que é um signo. Não pode


realmente atuar como signo até que se corporifique, mas essa
corporificação nada tem a ver com seu caráter como signo.
Um Sinsigno (onde a sílaba sin é considerada em seu significado de
‘uma única vez’, como em singular [...]) é uma coisa existente e real
que é um signo. E só pode ser através de suas qualidades, de tal
modo que envolve um qualissigno ou, melhor, vários qualissignos.
Mas estes qualissignos são de um tipo particular e só constituem um
signo quando realmente se corporificam.
Um Legissigno é uma lei que é um signo, esta lei é estabelecida
pelos homens. Todo signo convencional é um legissigno (porém a
recíproca não é verdadeira)” (PERICE, 2008, p. 52)

Para tornar a apresentação mais pragmática vale tomar como exemplo


parte de uma obra de Histórias em Quadrinhos, no intento de clarear de modo
prático os conceitos aqui discutidos. Na figura 11 têm-se um quadro da obra de
Will Eisner intitulada “Pequenos Milagres”, neste recorte existe a imagem
figurativa de dois homens dialogando, nos balões há o texto de seus diálogo,
um dos personagens, o que se encontra mais ao fundo na perspectiva da cena,
segura um guarda-chuva, o outro está diante de uma lata de lixo. Contudo
colocando o foco sobre a mancha de tinta que compõe o plano de fundo da
cena vemos uma parte escura com alguns pequenos espaços em branco; a

71
configuração desse espaço não é exatamente geométrica, tendo um contorno
orgânico, o que está além da mancha é a cor branca do próprio papel, vale
observar que o plano de fundo não tem o habitual requadro, tão presente nos
quadros das HQ’s.

Figura 11 – quadro de “Pequenos Milagres” – (EISNER, 2006, p. 07)

Essas simples descrição já impossibilitaria o leitor dessa dissertação,


nesse estágio, fruir essa mancha do plano de fundo na primeiridade. Seria pelo
menos um objeto segundo, pois acabamos de defini-lo como uma “mancha”, e
desse modo, um sinsigno. Mas imaginando a possibilidade de que esse
desenho apareça não para o leitor dessa dissertação e sim para o espectador
da própria obra de Eisner; essa forma escura de contornos orgânicos, inserida
num fundo branco sem os tradicionais limites fornecidos pelo requadro pode
aparecer de modo a causar uma estranheza, uma sensação de amplitude a
que não se pode distinguir o motivo. Essa sensação é uma qualidade, e desse
modo pode-se dizer que, sob essa ótica, a mancha é um qualisigno. Toda e
qualquer imagem vista ou sentida pela primeira vez é um qualissigno, a cor
preta sobre o fundo branco, uma sensação de calor, um cheiro, a própria cor do
céu etc, tudo em primeiro é um qualissigno.
Agora, diante do entendimento do hábito de que o branco faz alusão à
neve, ainda mais diante do contexto das formas figurativas do restante dos
desenhos, ou então realiza menção ao vazio que pode ser um significado
corroborado pela ausência da linha do requadro, nesse espaço a mancha

72
surge como a silhueta de algo que está ao fundo e observando mais
atentamente as linhas de seu limite, parte do contorno da mancha parece
assemelhar-se a topos de edifícios, como se houvesse uma cidade ao fundo.
Ainda nessa observação do contraste da parte escura com as partes claras,
percebe-se que os pequenos espaços em branco no interior da mancha podem
ter similaridade com flocos de neve, mais uma vez realizando referência ao frio,
e tudo isso implica em um valor poético que o artista quis imprimir sobre a
cena. A fisionomia do rosto do personagem diante da lata de lixo, sua fala
registrada no balão e o signo da mancha de fundo com todas as implicações
aqui discutidas apresentam que quando o artista colocou tal forma escura
sobre o fundo branco sem requadros não fez isso de maneira acidental, impôs
valores que na composição transitam no universo do dito no texto literário. O
“vazio”, a “frieza” e a “vastidão” não estão muito distante poeticamente das
“ruínas” do personagem. Diante dessa reflexão, pode-se dizer que o signo é
um legissigno, pois estabelece significado de acordo com uma “lei estabelecida
pelos homens”, de acordo com uma convenção cultural.
Desse modo, na divisão apresentada é possível perceber denominações
ao signo em relação ao modo como ele é percebido, adiante será apresentado
alguns desígnos do signo em relação ao objeto referente de sua
representação.

2.4 SEGUNDA TRICOTOMIA: SIGNO EM RELAÇAO AO SEU OBJETO.

Sobre a aparência de um signo é preciso entender que ele pode ter,


simultaneamente, várias possibilidades de entendimento, o que acarretará em
diferentes processos de semântica. Pierce aponta que existem inicialmente três
espécies de signos, que são definidas de acordo com a relação com o objeto a
que se refere. Seriam o ícone, índice e o símbolo. Dentro disso o primeiro se
relaciona com seu referente por semelhança, o segundo por alguma relação
factual e o terceiro por uma convenção cultural. Peirce os apresenta do
seguinte modo:

“Um signo ou é um ícone, um índice ou um símbolo. [...] O ícone não


tem conexão dinâmica com seu o objeto que ele representa;
simplesmente suas qualidades se assemelham com às do objeto e

73
excitam sensações análogas na mente para a qual ele é uma
semelhança. Mas está realmente desconectado de seu objeto. O
índice está fisicamente conectado a seu objeto, fazendo um par
orgânico, mas a mente interpretadora não tem nada a ver com esta
conexão, exceto por observá-la depois de ter sido estabelecida. O
símbolo está conectado com seu objeto em virtude da idéia da mente
usando o símbolo, sem a qual tal conexão não existiria.” (PEIRCE
apud QUEIROZ, 2005, p. 83)

Tais definições sígnicas não podem ser entendidas como se não


pudessem existir ao mesmo tempo no signo, pois as representações têm todas
as características ao mesmo tempo, o que muda não é o signo, mas de que
forma ele se manifesta ao interpretante e a ótica de leitura implicada sobre ele.
Como exemplo vale observar a figura 12, onde algumas deduções podem ser
realizadas: se for considerar o caráter icônico da imagem, é colocado de
antemão a semelhança que os objetos da composição possuem com a fruta
maçã, e vale notar que mesmo levando em conta apenas uma das faces do
signo, no caso seu valor de ícone, existem múltiplas possibilidades de
interpretação, pois um conhecedor mais específico de frutas pode mencionar a
espécie específica de maçã que se encontra representada na imagem.

Figura 12 “Simplesmente Maçã” de Leandro Fabrício – Fonte:


http://forum.mundofotografico.com.br/index.php?topic=18914.0 acessado em dezembro de
2011.

Já por outro lado, com o se trata de uma fotografia, o signo possui além
de uma face icônica, uma grande relação com a realidade, pois todas as

74
fotografias são registros de luz incididos sobre objetos. Nas câmeras
fotográficas analógicas, a luz efetivamente queimava o filme que estava dentro
do corpo da máquina, mas mesmo com a tecnologia digital, a luz bate no objeto
e a lente captura esse raio luminoso, transformando-o nas informações binárias
que formam o arquivo informático. Ou seja, de fato o objeto que é registrado
necessita existir diante da lente para que seja formado numa imagem
fotográfica. Sendo assim, toda fotografia é, antes de tudo, um índice, pois
mesmo antes de um espectador perceber a semelhança entre a imagem e o
objeto referente, é necessário haver essa relação factual entre um e outro.
Lucia Santaella contribui a essa reflexão, afirmando a forte ligação entre o
conceito de índice e a fotografia como pertencendo a essa ideia:

“O caso do índice é bem diferente do ícone [...] Um bom exemplo


para evidenciar essa diferença é o de uma fotografia, digamos, de
uma montanha ou de uma escada ou de uma cachoeira, pois falar de
fotografias é já começar a tratar de índices. A montanha, cuja imagem
foi capturada na foto, de fato, existe fora e independentemente da
foto. Assim, a imagem que está na foto tem o poder de indicar
exatamente aquela montanha singular na sua existência.”
(SANTAELLA, 2004, p. 18)

A mesma imagem das maçãs capturadas pela ótica e lentes de Leandro


Fabrício pode carregar significados mais complexos do que os colocados pelos
valores icônicos ou indiciais, pois todo signo também possui um relevante
aspecto cultural. É uma face mais potencialmente complexa, pois, das três
considerações enredadas por essa tricotomia, ela é a mais abstrata e
intangível. Essa concepção é o caráter simbólico do signo, que depende de
uma vivência cultural convencionada por habito, lei, norma ou regra. Ainda que
existam maneiras de reter as práticas culturais de um grupo determinado, é
uma tarefa efêmera, pois cada grupo pode fornecer significados diferentes a
uma mesma representação, e alguns desses sentidos podem ser perdidos
caso o grupo não continue partilhando essa concepção. O antropólogo Franz
Boas realizou uma relevante consideração sobre o cunho de curta duração
pertinente aos traços culturais de uma sociedade:

“Do mesmo modo que no reino da biologia, na investigação das


culturas nossas inferências precisam estar baseadas em dados
históricos. A menos que saibamos como a cultura de cada grupo
humano se tornou aquilo que é, não podemos ter a esperança de

75
alcançar qualquer conclusão relativa às condições que controlam a
história geral da cultura.
O material necessário para a reconstrução da história biológica da
humanidade é insuficiente, pela escassez de restos mortais e pelo
desaparecimento de todas as partes moles e perecíveis do corpo
humano. O material para a reconstrução da cultura é ainda muito
mais fragmentário, porque os maiores e mais importantes aspectos
da cultura não deixam traços no solo: linguagem, organização social,
religião. [...]” (BOAS, 2004, p.97)

Por isso a interpretação do aspecto simbólico de um signo é possível


de ser entendido como uma tarefa arriscada, pois é sempre movente, fluída,
líquida, enfim, transitória. Sobre esse produto artístico oferecido como exemplo,
é possível dizer que a imagem da maçã pode significar uma fábula infantil, se
for considerado, por exemplo, a história dos irmãos Grimm sobre a moça que
possuía a pela alva como a neve 15 ; ou então pode representar o pecado
original da mitologia cristã, se considerarmos uma sociedade que compartilha
os símbolos bíblicos contidos no livro do Gênesis16; ou ainda pode fazer alusão
ao universo da marca da empresa fundada por Steve Jobs17, a qual a imagem
da empresa era representada por uma maçã. As considerações simbólicas
continuam, pois tal como as madeleines de Proust, pode ter um significado
cultural extremamente específico, difícil de ser compreendido de maneira muito
generalizada.
De todo modo é necessário ressaltar que todas as divisões aqui
discutidas existem apenas nesse processo analítico, pois na mente de quem lê
tais imagens, as significações podem ocorrer de maneira mesclada,
sobrepostas, indissociáveis. Outra relevante implicação que vale colocar ao se
refletir o caráter simbólico de uma imagem, é que, na prática as relações dos
intérpretes humanos com o signo ocorrem de modo mais potencialmente
simbólico, pois todos estão à mercê de referências culturais. Até mesmo a
busca intelectual de uma semelhança ou a percepção de uma relação factual,
ou seja o aspecto de ícone e índice, ocorrem amparados em conhecimentos
culturais.

15
“[...] os irmãos Grimm, que eram estudiosos da língua (filólogos) e das histórias do folclore germânico,
se dedicaram a compilar histórias de encantamento, inclusive aquelas só encontradas na cultura oral, a
fim de preservá-las.” (LAZAR, KARLAN & SALTER. 2007, p. 169)
16
Primeiro livro da bíblia cristã.
17
Fundador da empresa de informática “Apple”, cuja marca era uma maçã.

76
Claro que todas as representações apresentadas aqui são apenas
algumas das possibilidades de leitura simbólica, pois existem vários modos de
realizar uma leitura de um texto, cada um com seus referenciais específicos,
levando a interpretações variadas. Essas possibilidades distintas são
apresentadas por Lotman a seguir:

“É preciso indicar ainda um ponto importante: peculiaridade


substancial dos textos é a sua mobilidade semântica: um mesmo
texto pode fornecer a seus diferentes ‘consumidores’ informações
diferentes. Sem penetrar na análise da natureza deste interessante
fenômeno, que torna os textos culturais profundamente diferentes dos
textos das linguagens naturais e, mais ainda, nas linguagens
científicas, apontemos uma de suas causas: toda a hierarquia de
códigos que compõe este ou aquele tipo de cultura pode ser
decifrada por uma estrutura de código idêntica, ou por meio de uma
estrutura de código de outro tipo, apenas em parte interferindo com a
que foi utilizada pelos criadores do texto, ou ainda, por uma estrutura
completamente alheia a ela. Assim, o leitor contemporâneo de um
texto sagrado medieval, naturalmente, decifra sua semântica
utilizando outros códigos estruturais que não os do criador do texto.
Com isto muda também o tipo de texto: no sistema de seu criador ele
pertencia aos textos sagrados, enquanto, no sistema do leitor,
pertence aos textos literários.” (LOTMAN, BORISCHNEIDERMAN,
1979, p. 35)

A semântica de um texto é plural, pois a bagagem cultural de quem o lê


é variada. Se isso já ocorre em um signo simples, como a palavra “cadeira”
apontada no primeiro capítulo, ou a fotografia das maçãs, que dirá de obras
que participam de uma linguagem que agenciam diversas modalidades de
signos. É necessário colocar que além do valor de fruição frívola que as
empresas jornalísticas do final do século XIX acreditavam que a História em
Quadrinhos possuía, existe também uma relação de empenho intelectual, para
atingir certos níveis da leitura. (EISNER, 1999, p. 08) É nesse empenho que
certas características simbólicas de uma obra ocorrem.
A profunda capacidade de representação influenciada por valores
culturais já mostram a complexidade existente na próxima, e derradeira,
tricotomia que será apresentada neste estudo. Adiante será mostrada uma
averiguação de níveis de leitura de uma obra de História em Quadrinhos, que
também é apresentada em uma divisão tripartida, mas, diferentemente das que
foram discutidas até agora, não são propostas por Charles S. Peirce, e sim por
Algirdas Greimas, vias as reflexões do linguista brasileiro Antonio Vicente
Pietroforte.

77
2.5 UMA SUBSTITUIÇÃO TRICOTÔMICA

Colocar as considerações acerca dos processos de geração de sentido


pode causar uma primeira impressão de que o processo de análise de imagem
entra em questões puramente especulativas, e, realmente, seria ousado
demais colocar que existe um modo de traçar com precisão os caminhos
interpretativos que um signo pode levar. Mas, não é porque não se pode agir
com exatidão que deva se achar que estudar os fenômenos de produção de
sentido que ocorrem com a prática da leitura sejam desnecessários de se
discutir. Até porque, conforme colocado pelo antropólogo Clifford Geertz, não é
só porque “é impossível um ambiente perfeitamente asséptico, é válido fazer
uma cirurgia num esgoto” (GEERTZ, 1989:21). Umberto Eco observa a atitude
de se pensar sobre as possibilidades de leitura quando reflete sobre sua
própria análise de uma História em Quadrinhos do personagem Steve Canyon,
e indica que, por mais inconstante que possa ser a análise, é um dever realizá-
la, para que se possa refletir e reconstruir a partir dela:

“uma página como a que examinamos [do personagem Steve


Canyon] está destinada a desencontrar-se com um público que muda
de momento a momento, e que com ela se defronta sempre segundo
novos códigos. Em tal sentido, a pesquisa sobre os meios de massa
só pode, de contínuo, formular conclusões no condicional: ‘dever-se-
ia concluir tal coisa, se tais condições se mantivessem inalteradas’.
Mas, acima dessa variabilidade dos resultados, e portanto dos
objetos, a reflexão crítica procura ainda exercitar-se a outro nível.
Esforça-se, em suma, por voltar, embora consciente dos outros
fatores considerados, à posição em que, por exemplo, encontra-se o
estudioso da estética. Este sabe que com o variar do período
histórico, ou do público, também a fisionomia da obra de arte poderá
mudar, adquirindo o objeto, um novo sentido. Mas é seu dever,
também, assumir uma responsabilidade: a de comensurar ao período
histórico, ao âmbito cultural em que trabalha, o fenômeno obra de
arte, e deve conferir-lhe um certo sentido, para, com base nele,
elaborar suas definições, as suas verificações, as suas análises, as
suas reconstruções.” (ECO, 2008, p. 170)

Essa é uma das características dos caminhos científicos pragmáticos,


pois como observam a prática, andam por trajetos incertos, mas necessários.
Corroborando com a possibilidade de legitimação da análise imagética pelo uso
da semiótica, temos o estudo proposto por Pietroforte, que, a partir da

78
Semântica Estrutural de Greimas, aponta a existência de níveis de leitura
distintos, sendo o mais simples chamado de Nível Fundamental.

2.5.1 Nível Fundamental

Buscar esse nível é o mesmo que tentar simplificar a narrativa em


termos básicos, mas sua simplicidade é o que gera toda a gama complexa da
semântica. É o Nível Fundamental que possibilita todos os caminhos
semânticos da compreensão de uma linguagem. Ele fornece elementos para
traçar as possibilidades de sentido e discurso da obra. Para perceber esses
elementos básicos deve-se ficar atento aos planos de Expressão e Conteúdo,
apontados no primeiro capítulo, e reparar quais as informações que eles
denotam. Pietroforte coloca que, quando um significado se relaciona com seu
significante ocorre o semi-simbolismo; e indica que é no campo das
possibilidades semi-simbólicas que se encontra o caráter poético de uma obra.
Expõe-se do modo a seguir:

“Se em uma pintura, por exemplo, as cores quentes são relacionadas


a conteúdos do sagrado, e as cores frias, do profano, em seu texto há
uma projeção no eixo sintagmático da relação entre os paradigmas
que formam a categoria de expressão cor quente vs. cor fria e a
categoria do conteúdo sagrado vs. profano. Assim, toda relação semi-
simbólica é poética, mas nem toda relação poética é semi-simbólica.”
(PIETROFORTE, 2010, p. 10)

O semi-simbolismo permite que o conceito de uma obra seja visualizado


a partir de algum recurso visual. Fornece um sentido que é apreendido tanto
pela ideia contida (o plano de conteúdo), mas também pela estética (o plano de
expressão). Um está relacionado ao outro, se complementando e permitindo
novas reflexões, esse recurso contribui para entender o Nível Fundamental de
um produto artístico, pois este nível se configura principalmente pelas
oposições.
Nota-se no exemplo dado por Pietroforte que as relações são
dicotômicas, uma coisa se opõe a outra, e cada ponta dessa divisão recebe um
tratamento estético. A dicotomia é algo que ocorre de maneira muito forte no
intelecto humano, dessa maneira não é estranho imaginar que tudo pode ser
polarizado em opostos. O semioticista tcheco Ivan Bystrina coloca uma
79
concepção sobre essa divisão binária do mundo em pares opostos, cada um
desses polos é atribuído de valores, de um lado o valor é positivo, do outro,
negativo. “Tanto na sua ontogênese como na sua filogênese, no início o
homem vê tudo como nítidos contrários, como oposições.” (BYSTRINA, 1995,
p.19). Esses polos contrários são a base para o processo de entendimento do
Nível Fundamental da análise semântica da leitura. Mas algumas vezes são
tantos recursos plásticos a se explorar em uma poética artística, que mesmo
para se buscar esse nível é preciso examiná-lo à luz de outras doutrinas
semióticas, para isso a visão peirciana irá agir fornecendo um alicerce básico.
Pietroforte mesmo concorda com essa colocação quando ressalta:

“Com o semi-simbolismo, é possível determinar alguns componentes


plásticos que garantem a coesão plástica dos textos de algumas
HQs. Nada impede que a categoria semântica vida vs. morte seja
correlacionada à categoria pontiagudo vs. arredondado e que todas
as formas pontiagudas de uma HQ se relacionem a conteúdos de
vida e as arredondadas, a conteúdos de morte. Contudo, há nas HQs,
com mais evidência que em outras semióticas plásticas, o
componente cronológico, que determina a distribuição dos quadros
de uma HQ em sequência; e o componente cinético, que determina o
fluxo discursivo.
Deve-se, portanto, considerar os limites do semi-simbolismo na
análise das semióticas plásticas e procurar resolver a questão teórica
da análise semiótica da história em quadrinhos de outro ponto de
vista.” (PIETROFORTE, 2010, p. 19-20)

Todavia, ainda a respeito das binaridades contrárias que levam ao


entendimento do Nível Fundamental, deve-se entender que toda informação
pode gerar um oposto, e esse oposto gera uma outra característica, são as
redes de relações (figura 13) e são elas que levam ao entendimento de que
existem vários níveis de leitura. As redes podem ser exemplificadas em um
diagrama esquemático, que apresenta o nível fundamental, e, a partir dele
surgem as outras possibilidades de interpretação. Vamos observar o quadro, e
as considerações sobre ele virão a seguir:

80
Figura 13 – quadrado semiótico que propõe a construção de um “Nível Fundamental”

Imagine-se que S1 é uma temática artística, um valor cultural qualquer, o


lado oposto dessa temática é ~S1, que por sua vez leva semanticamente à S2;
que também tem seu oposto direto, sendo ele ~S2, que semanticamente pode
corresponder à S1, assim a rede funcionando para ambos os lados. Para
clarear vamos fornecer valores concretos ao diagrama: se S1 for o termo
“homem”, o contrário direto a esse termo seria o “não-homem” (~S1), contudo,
semanticamente o valor “não-homem”, pode levar à significação de “mulher”
(S2), ainda que esse não seja seu oposto, pois são várias as coisas que não
são homens, como todos os outros animais, ou então vegetais, ou até mesmo
minerais; mas ao se chegar ao valor “mulher” (S2), ter-se-ia o oposto direto
“não-mulher”, que leva ao valor “homem” (S1). O que esse diagrama mostra é
que as vezes um aspecto de uma obra artística pode evocar vários outros,
inclusive àqueles que não aparecem diretamente na obra, mas
semanticamente são representados no intelecto do espectador. Essas
categorias definem o nível fundamental, e a partir da rede de relações é que
podem ser compostas as leituras sintáticas. Isso é exposto por Pietroforte no
seguinte:

“No processo de geração do sentido, a semiótica define um nível


fundamental do qual se pode partir para a formalização de seu extrato
mais geral e abstrato. O sentido é definido pela semiótica como uma
rede de relações, o que quer dizer que os elementos do conteúdo só
adquirem sentido por meio das relações estabelecidas entre eles. [...]
que estabelecem sua coerência, de modo que, entre outras relações,
esses elementos adquirem outros sentidos.” (PIETROFORTE, 2010,
p. 12-13)

81
O linguista afirma que esses valores são euforizados ou disforizados no
decorrer de uma narrativa. Aponta que quando um valor inicial surge em uma
História em Quadrinhos, ou literatura, ou qualquer outra manifestação artística
que possua um enredo dramático, ele caminha em direção a seu oposto, essa
caminhada é seu propósito, ainda que não o atinja o valor contrário. Sua
concepção sobre esses conceitos são as seguintes:

“Euforia e disforia são palavras de origens gregas; foria vem do grego


‘phóreo’, que significa ‘tolerar’, ‘suportar’. Com os prefixos ‘eu’ e ‘dis’,
euforia é ‘aquilo que se suporta bem’ e ‘disforia’, ‘aquilo que se
suporta mal’. [...] Uma vez euforizado, tal valor permanece definido
como aquele em relação ao qual o sujeito narrativo busca realizar ou
manter a conjunção. Contrariamente, o valor disfórico tende a ser
evitado e, se em conjunção com ele, o sujeito narrativo busca a
disjunção. Desse modo, a categoria euforia vs. disforia, dita tímica,
projeta-se sobre os valores da categoria semântica e orienta os
percursos narrativos do sujeito, que deriva para os valores
euforizados.” (PIETROFORTE, 2009, p. 14)

Ao se reparar as conjunções e disjunções de uma narrativa, que


implica na efuorização ou desforização, passa-se do Nível Fundamental, que é
o conflito básico de uma história, muitas vezes denunciado num processo semi-
simbólico, e começa a iniciar a observação do Nível Narrativo.

2.5.2 Nível Narrativo

É importante colocar que euforia vs. disforia não tem, necessariamente


uma implicação moralista. Não se trata de bem e mal, mas sim de observar o
cumprimento da estrutura dramática, ou o não cumprimento dela, e isso implica
em positivo e negativo, onde a positividade e negatividade estão em relação a
cumprir ou não o objetivo. O positivo para a narrativa pode ser algo moralmente
ou culturalmente inaceitável, como, por exemplo, a história de um assassino,
para ele, o objetivo pode ser matar sua vítima, esse é o seu andamento no
percurso narrativo, e, de modo sintático, pode-se euforizar o cumprimento
desse objetivo, e, contrariando a moral, semanticamente estimular a ideia de
positividade dessa ação. Dentro desse exemplo do assassino, o personagem
caminhará em direção a seu objetivo, e poderá conseguir, matando a vitima e

82
euforizando a narrativa (valor positivo na ótica do enredo), ou não conseguir,
disforizando a narrativa (valor negativo na ótica do roteiro).
Os valores básicos oferecidos no Nível Fundamental fornecem material
para se entender o cumprimento de uma narrativa. Utilizando um exemplo de
história em quadrinhos, toma-se a figura 14, que se trata de um tira 18 das
personagens criadas por Bill Watterson, “Calvin e Haroldo”. O primeiro
quadrinho mostra a figura do menino19 se coçando, e em seu balão de fala um
texto que denuncia que seu corpo contorcido realmente está confrontando uma
comichão, aí já se instaura um Nível Fundamental onde inicialmente o que
temos é o valor “coceira/roupa” (S1), que teria o seu oposto “não-coceira/não-
roupa” (~S1), que semanticamente seria “nu/aliviado” (S2), que teria o oposto
direto sendo “não-nu/não-aliviado”(~S2), implicando no resultado semântico de
S1 novamente.

Figura 14 – tira de “Calvin e Haroldo” (WATTERSON, 1994, p. 05)

No decorrer da narrativa o garoto contrai ainda mais seu corpo, a ponto


de, no terceiro quadro, começar a retirar suas vestes, e, no final da tira, mostra
contentamento em ver seu corpo cheio de manchas do possível inseto que o
estava picando. No caso, para euforizar o valor inicial, o personagem da tira de
HQ resolveu retirar suas vestes, fornecendo ainda mais signos para que o
espectador construísse a ideia de que o resultado final seria aquilo que a
18
A “tira” de quadrinhos é um conjunto formado por poucos requadros, normalmente em torno de três
ou quatro, nessa quantidade de quadros são contadas as histórias de maneira breve. Há também tiras,
veiculadas em jornais diários, tal como o “Yellow Kid”, onde a história que iniciou em um determinado
dia, continua na tira que será veiculada no dia seguinte.
19
Iconicamente existem informações que permitem dizer que seja “um menino”, mas, de todo modo,
também é possível dizer isso devido ao valor simbólico do personagem, que, uma vez que o leitor
conheça o universo do autor da HQ, entenderá que essa personagem se trata de uma criança.

83
euforização propunha, que ao retirar a roupa ocorreria um alívio – que
semanticamente leva à ideia de normalização da situação. Mas como se trata
de uma tira cômica, e a comicidade tende a nos últimos instantes fornecer
informações que desmontam a construção narrativa posta, no final a conjunção
é parcial, pois o personagem parece não mais sentir, ou ao menos não se
importar com a coceira, ainda que a situação não esteja realmente
normalizada, visto que está com manchas pelo corpo resultantes da comichão.
Calvin, tal como o assassino do exemplo fictício, não mata sua vítima, não
euforiza totalmente a narrativa. Entra em uma conjunção parcial.
É considerável ressaltar que o início do entendimento do Nível
Fundamental da tira de Watterson se dá na relação expressão/conteúdo, pois
as formas plásticas contorcidas do garoto interagem com o texto acerca da
coceira, e as expressões tranquilas do último quadrinho ocorrem em uma
ausência desse texto. Não chega a ser um semi-simbolismo bem delineado,
visto que a carga expressiva dos traços não se altera consideravelmente, mas,
ainda assim, forma e conteúdo agem em prol do roteiro. Além disso, o percurso
narrativo se dá de modo bastante curto, mas isso não quer dizer que não
permita uma pluralidade de entendimentos distintos. Se já o Nível Fundamental
é possível de ser interpretado de outras maneiras, dada a cognição de cada
leitor, tendo, como dito anteriormente um oposto de “homem” em “animal”, ou
“criança”, ao invés de “mulher”; o Nível Narrativo é ainda mais cheio de
multiplicidade. Seus objetos de valor se originam em significados fundamentais
que podem ser variados, sendo assim, é uma representação de
representações. Ou seja, os objetos de valor do Nível Narrativo são apenas
possibilidades semânticas, mas que, através de recursos semi-simbólicos
propostos pelo autor do objeto artístico, podem levar a certas deduções por
parte de seus espectadores. Pietroforte aponta esse esquema dos níveis
serem interdependentes, e reflete sobre a variabilidade dos processos
semânticos:

“Em princípio, a narratividade pode ser definida como transformações


de estado que envolvem as junções do sujeito narrativo com o objeto
de valor. Uma vez gerados no quadrado semiótico no nível
fundamental, os valores semânticos são convertidos em objetos de
valor no nível narrativo, em relação aos quais os sujeitos oscila entre
estar em conjunção ou disjunção. [...] assim, como por meio da

84
estrutura sintática das línguas é possível construir inúmeras
realizações diferentes da mesma sintaxe de um frase, é possível
formular um esquema narrativo que descreva, enquanto estrutura
formal, a construção de inúmeras narrativas diferentes.”
(PIETROFORTE, 2009, p. 14)

2.5.3 Nível Discursivo

No primeiro capítulo desta pesquisa foi colocado que a linguagem


materializa em textos as ideias que habitam as mentes de interlocutores. Os
produtos físicos são os textos, que aqui são as tiras, páginas e outros
manifestos da linguagem dos quadrinhos. Mas esses materiais físicos possuem
inúmeras faces, algumas que são apenas apreendidas como uma sensação de
estranheza, uma qualidade que não permite singularizar o significado; outras
apresentam a singularidade do signo, e outras ainda, levam a uma reflexão que
traz à tona os valores culturais compartilhados por um grupo social; dentro
disso tem-se, respectivamente, as designações de quali, sin e legissigno. Além
disso, foi mostrado que os produtos que carregam significados podem ter em si
várias possibilidades de compreensão, podem ser vistos como semelhantes ao
objeto referente, ou então uma relação factual, e um sentido estabelecido pela
partilha de um conhecimento convencionado. Já nessa divisão tripartida a
respeito dos níveis de leitura, o que está sendo proposto são as possibilidades
de significado a partir do caráter cultural, e, de maneira aparentemente
contraditória, nesse último nível o que será proposto é que existe, a partir
daquilo que está materializado pelos textos – tendo aqui o entendimento mais
amplo sobre “texto”, conforme dialogado no primeiro capítulo – a possibilidade
de acessar aquilo que não está totalmente explícito no produto materializado. O
discurso não está exatamente claro no signo, mas, semanticamente pode ser
apreendido a partir dele, surge defronte à vista de alguém que realiza as
conexões a partir do nível fundamental do signo. O discurso é permutado entre
os interlocutores, ainda que o signo não o torne óbvio, ele pode ser
comunicado. O filósofo Michel Foucault já dizia sobre as características do
discurso surgir a partir dos signos:

“O discurso nada mais é do que a reverberação de uma verdade


nascendo diante de seus próprios olhos; e, quando tudo pode, enfim,
tomar a forma do discurso, quando tudo pode ser dito e o discurso

85
pode ser dito a propósito de tudo, isso se dá porque todas as coisas,
tendo manifestado e intercambiado seu sentido, podem voltar a
interioridade silenciosa da consciência de si. [...] o discurso nada mais
é do que um jogo, de escritura [...], de leitura [...], de troca, e essa
troca, essa leitura e essa escritura jamais põem em jogo senão os
signos. O discurso se anula, assim, em sua realidade, inscrevendo-se
na ordem do significante.” (FOUCAULT, 2007, p. 49)

Simplesmente entender que em tudo existe um discurso escondido,


esperando ser interpretado, esperando surgir aos olhos dos espectadores, é se
aventurar em parte do âmago da semiótica. Pois a análise da produção de
sentido não serve para apenas entender a estrutura da linguagem, mas sim
entender os arriscados caminhos semânticos, tal afirmação é corroborada por
Inês Araujo, quando diz que “A complexidade da linguagem mostra que ela não
se reduz a um sistema ou código, de modo que um procedimento puramente
estrutural não basta.” (ARAÚJO, 2004, p. 215) Por isso será apresentado aqui
o Nível discursivo, para, além de se realizar uma análise dos signos
isoladamente, se entremear no entendimento do discurso de uma narrativa de
HQ.
O discurso existente em uma obra oriunda de uma linguagem sincrética,
tal como a Arte Sequencial, provém de elementos sígnicos de natureza
diferentes. Cada qual fornece possibilidades de agir em favor (ou contra) do
conceito da narrativa, fornecendo mais, ou menos, plenitude do discurso. É
ingênuo achar que a aparência imagética não influencia no discurso, não só
influencia como pode determinar semânticas específicas. A aparência
imagética é o próprio discurso do texto visual. Essa característica da expressão
ou do tema agirem para propiciar um harmônico caminho semântico que leva
ao discurso é chamado de isotopia. O linguista Ricardo Leite Lopes apresenta
a visão que a semiótica oferece à isotopia:

“A isotopia, por fim, diz respeito à estratégia textual que possibilita a


leitura uniforme e coerente do texto metafórico, diante da ocorrência
simultânea de dois planos de significação durante a interpretação. Em
outras palavras, o surgimento de uma figura no texto causa uma
tensão semântica que relaciona dois conjuntos sêmicos ou domínios
conceituais, distintos em certos aspectos e semelhantes em outros.”
(LOPES, 2008, p. 179)

86
A isotopia age como uma força modeladora do tema ou do aspecto
visual, para que ambos contribuam à formação do discurso, conforme coloca
Pietroforte:

“Na relação entre temas e figuras, portanto, constrói-se a semântica


do nível discursivo. Uma vez formados, os percursos temáticos e
figurativos são garantidos pela repetição dos mesmos valores
semânticos ao longo do discurso, determinando as chamadas
isotopias temáticas e figurativas. [...] que garantem a coerência
semântica.” (PIETROFORTE, 2009, p. 18)

Isso não quer dizer que se ocorrer uma desarmonia entre as isotopias,
não será proferido um nível discursivo. Sempre o é, mas, tal como comentado
sobre a obra de Peter Kuper, ter consciência sobre a imagem agir em conjunto
com o tema facilita a comunicação de sentidos específicos. Segue adiante um
exemplo a partir da obra “Maus” do americano Art Spielgeman (figura 15).

87
Figura 15 – Página da obra “Maus” (SPIELGMAN, 2005:p. 113)

Na história de Spielgman, tal como Kafka ou a releitura de Kuper, os


seres humanos são transformados em animais diferentes de acordo com cada
um dos grupos sociais que aparecem em sua narrativa. O ambiente da história
é a 2ª Guerra mundial, no qual os judeus são retratados como ratos, alemães
como gatos, americanos como cachorros, russos como ursos, franceses como
sapos e poloneses como porcos. Existe uma estilização da imagem do animal

88
quando estes estão sendo retratados como seres humanos. No discurso da
narrativa há atravessamento; por mais que esteja fazendo alusão à peculiar
face do animal, a dramaturgia, as ações, os diálogos são tais como as das
histórias dos sobreviventes da 2ª Guerra. Em realidade a obra é uma biografia
de um personagem (o pai do autor) que passou por várias situações
complicadas que essa guerra lhe prestou. E a estética dos animais utilizados
por Spielgeman são as maneiras que o autor encontrou de revelar a apreensão
desses dois universos, a de animal e de ser humano. Não se trata da
transformação de um ao outro, mas sim de um casamento de um com o outro,
da paralelidade entre os dois, trata-se do devir, no sentido de Deleuze, pois em
Crítica e Clínica, o autor afirma que a condição do devir:

“... não é atingir uma forma (identificação, imitação, Mimese), mas


encontrar a zona de vizinhança, de indicernibilidade ou de
indiferenciação tal que já não seja possível distinguir-se de uma
mulher, de um animal ou de uma molécula: não imprecisos nem
gerais, mas imprevistos, não-preexistentes, tanto menos
determinados numa forma quanto se singularizam numa população.”
(DELEUZE, 1997: p.11)

Para Parnet, Deleuze reafirma o seu o pensamento, alegando que o


devir jamais é imitar:

"... nem fazer como, nem ajustar-se a um modelo, seja ele de justiça
ou de verdade. Não há um termo de onde se parte, nem um ao qual
se chega ou se deve chegar. Tampouco dois termos que se trocam. A
questão "o que você está se tornando?" é particularmente estúpida.
Pois à medida que alguém se torna, o que ele se torna muda tanto
quanto ele próprio. Os devires não são fenômenos de imitação, nem
de assimilação, mas de dupla captura, de evolução não paralela,
núpcias entre dois reinos." (DELEUZE & PARNET, 1998, p.10)

No discurso da obra de Maus os animais não funcionam apenas como


artifícios estéticos ou estilísticos para prender o espectador na história, mas
como um processo simbólico de demonstração dos devires que se instauram
nos personagens da história. É a imagem agindo em favor do conteúdo, e os
dois formando o nível discursivo. Não é apenas a velha perseguição de cão,
gato e rato - que dentro da obra de Spielgeman são os americanos, alemães e
judeus respectivamente – mas é a implicação em se misturar ao rato de tal
maneira em que não é possível perceber as diferenças de comportamento

89
entre o ser humano e o animal, ou, ainda que essa mistura não se instaure nas
ações, é a desterritorialização de âmago do ser - humano com o rato. “Maus”
busca o animal no caráter do ser humano. O discurso de um texto leva ao
entendimento da ideologia de seu produtor, pois as ideias são apreendidas
através da materialidade dos signos, e a reciprocidade é verdadeira, pois os
signos são ideológicos e por si constroem a ideologia, ou como coloca
Santaella “[as ideologias] São, mais esmiuçadamente dizendo, sistemas de
representações imaginárias que os indivíduos fazem de suas reais condições
de existência social, de modo que toda e qualquer prática existe através e sob
uma ideologia” (SANTAELLA, 1996, p. 213).
Ainda sobre o exemplo da obra de Spielgeman, por mais que aqui não
entre nos detalhes específicos sobre seu discurso – pois não é esse o estudo
de caso da pesquisa que ora se apresenta -, a simples possibilidade de
entender tudo o que foi apresentado até então leva à possibilidade de realizar
uma leitura mais atenta sobre seu potencial discursivo. Embasado nos
delineamentos sobre a linguagem colocados no primeiro capítulo, que propõe
conhecimento sobre o histórico e definição que legitima e fornece óticas para
se observar as Histórias em Quadrinhos como um objeto de pesquisa
multifacetado e complexo, digno, tanto quanto outras linguagens artísticas, de
uma análise mais apurada, pois qualquer obra de Quadrinhos pode ser
examinada a ponto de serem descobertas as possibilidades de leitura, inclusive
de seu discurso. Lembrando que para isso que foram apresentadas as
ferramentas conceituais e metodológicas de investigação semiótica que o
presente capítulo oferece, sendo elas: o alicerce semiótico oferecido por
Peirce, levando ao entendimento do funcionamento do processo de produção
de sentido, e, somado a ele, as características de níveis de leitura da visão de
Pietroforte sobre a obra de Greimas.
Entender isso propicia inúmeras possibilidades de aplicabilidade prática,
tanto por parte de indivíduos que produzem obras de Arte Sequencial, que
podem usar desse conhecimento para amadurecer o processo de trabalho;
como por parte de espectadores, que, podem realizar o exercício de olhar para
uma determinada produção de história em quadrinhos e intentar buscar
significados diversos, e não apenas aqueles que se encontram no Nível
Fundamental.

90
O capítulo seguinte traz um estudo de caso, onde é apresentado parte
da obra do quadrinista cuiabano Ricardo Leite, que adotou o nome artístico de
Ric Milk. Nele é realizado de maneira extremamente prática uma análise que
faz uso do ferramental aqui apresentado para propor processos semânticos,
bem como possibilidades de leituras de sua obra.

91
CAPÍTULO 3

NÍVEIS NA PRÁTICA

92
Colocar uma determinada discussão num processo prático leva à
possibilidade de entender que, se aquilo que foi dito teoricamente aplica-se a
uma determinada experiência, assume-se como parte da verdade sobre a
discussão. É dito “parte”, pois nenhuma experiência pode dar conta de
assegurar que em outros casos o mesmo resultado seria alcançado. Sob essa
visão todo estudo de caso é, como dito anteriormente, circunstancial, ou
fenomenológico. Isso não quer dizer que a teoria seja mais verdade do que a
prática, e vice-versa, mas que, dentro desse contexto, a prática permite ver
grande parte da teoria. Claro que, se a proposta desta dissertação dialogasse
com uma doutrina científica mais potencialmente indutiva, poder-se-ia afirmar
que como a discussão teórica se aplica ao caso das HQs que são mostradas
aqui, então pode ser aplicada a todos os exemplares de histórias em
quadrinhos. Por um lado o autor deste estudo acredita nesse potencial, mas
afirma-lo é o mesmo que agir contra ele, visto que para a semiótica, nada é fixo
o suficiente para ser tomado como verdade, mesmo por que verdade não
existe e sim persiste enquanto uma ideia ou teoria até ser suplantada por outra
verdade, o que vale é sempre checar os fenômenos na prática.
Neste último capítulo é trazido algumas amostras do trabalho de Ricardo
Leite, também conhecido pela alcunha de Ric Milk, para ser analisadas através
dos meios já apresentados. Será inserida uma breve contextualização acerca
do quadrinista e do material produzido por ele, que aqui é apresentado e
utilizado para exemplificar mais especificamente como a semiótica possibilita
enxergar os níveis de leitura.
A maioria do material disponibilizado aqui fazia parte de um acervo
virtual que o autor reunia em seu blog pessoal20. No entanto, no final do ano de

20
Os blogs são uma espécie de site de internet, onde no princípio eram muito utilizados apenas para fins
pessoais, quase como um diário aberto à comunidade virtual, posteriormente todo tipo de intenção
foram voltadas para essa espécie de site, tendo muitas empresas utilizando esse formato de portal
virtual, por isso colocar “blog pessoal” não é necessariamente redundante. O antigo endereço do blog
pessoal do autor em questão era http://diariodeumcasal.com.br/ , as informações que foram retiradas
de lá ficaram guardadas com o autor dessa dissertação, que como já havia iniciado um processo de

93
2011 o blog foi retirado do ar, mas, apesar disso, Ricardo Leite intenta colocar
novamente o material em um novo endereço eletrônico. Algumas Histórias em
Quadrinhos que foram encontradas em outros locais da internet receberam o
crédito desses novos sítios ciberculturais, apesar disso as histórias que
estavam apenas no blog pessoal do autor foram mantidas, e o endereço
eletrônico e período em que foram acessados idem.
Várias das referências deste capítulo provêm da cibercultura, por isso
vale inserir aqui a compreensão da reprodutibilidade técnica mencionada a
respeito das Histórias em Quadrinhos, que permitia que as obras fossem
disseminadas para uma imensa quantidade de espectadores devido ao método
industrial com que eram impressas; o mesmo ocorre contemporaneamente,
mas as prensas gráficas da revolução industrial deram lugar ao movente
universo da cibercultura. Um local efêmero e intangível que, de algum modo,
tem características agindo positivamente em relação a atingir a elevadas
quantidades de espectadores, pois sempre haverá alguém que partilha
produtos artísticos que aparentemente atendem aos gozos estéticos e poéticos
de grupos culturais bem específicos. Não importa o quão restrito seja o tema
ou a estética das HQs, uma vez colocadas e divulgadas através da utilização
dos grupos virtuais da internet, sempre encontrarão algum fruidor que se
identifica com aquele plano de conteúdo e de expressão. Esses grupos são
chamados de “comunidades virtuais” segundo Pierre Levy em suas reflexões
sobre a cibercultura:

“Uma comunidade virtual é construída sobre as afinidades de


interesses, de conhecimentos, sobre projeto mútuos. Em processo de
cooperação ou de troca, tudo isso independentemente das
proximidades geográficas e das filiações institucionais.” (LEVY, 1999,
p. 127)

Ainda que o artista não saiba, diversos espectadores podem ter gerado
cópias das imagens de seu site pessoal, e por mais que tais arquivos de
imagens não existam no endereço que Ricardo Leite retirou do ar, podem
existir em inúmeros equipamentos de armazenagem de arquivos digitais, desde
computadores e laptops a CD’s e similares. A efemeridade e aspecto

reflexão sobre as amostras que nesse endereço eletrônico existiam, achou prudente continuar com sua
reflexão, vendo nisso uma maneira de guardar o material que na rede internet se mostra tão efêmero.

94
polivalente da internet é, ao mesmo tempo, uma maneira de certos registros se
apagarem, mas também de perdurarem.
Pelo fato do material impresso e registrado na Biblioteca Nacional com a
biografia do autor ser escasso, recorreu-se a cibercultura já que a intenção era
observar certas narrativas que não se encontram em versões impressas.

3.1 CONTEXTUALIZAÇÃO DO AUTOR E SUA OBRA

Ricardo Leite é um artista cuiabano que tem a formação em desenho


industrial, atuou como ilustrador para estúdios e agências de publicidade de
vários estados brasileiros, mas foi no universo da Arte Sequencial que
desenvolveu uma carreira que alcançou vários locais do Mato Grosso, do Brasil
e alguns outros lugares do mundo, tendo executado trabalhos artísticos até
para a Austrália, local onde realizou ilustrações através do estúdio ZUPI
Design21. Já publicou histórias que variavam de temática e estética, produzindo
desde narrativas que ofereciam aventuras de ficção científica, vale citar a
história “Crash Test”, elaborada junto de Marcelo Cabral para a revista de
Minas Gerais “A3”22; até histórias de aventuras que penetram um universo de
personagens infantis, como a “Rosinha no País das Maravilhas” (figura 16), que
se trata de uma releitura da personagem criada pelo quadrinista brasileiro
Maurício de Souza, publicada no álbum “MSP + 50 Artistas”. Essa última
narrativa serve, inclusive, para ilustrar a notoriedade de Ricardo Leite, visto que
para essa publicação, Sidney Gusman, o responsável pela produção da obra,
convidou apenas artistas que de algum modo tenham uma carreira e trabalho
já consolidado no mercado industrial de quadrinhos. 23 Além desses dois
exemplos, sua versatilidade já esteve presente em edições de quadrinhos que
transitavam entre grupos culturais de todos os tipos, desde o gênero infantil,

21
Estúdio paulistano que realiza contratos com ilustradores autônomos, mediando contratos com
clientes do mundo todo.
22
A revista A3 foi idealizada por Mathes Moura com apoio da prefeitura de Uberlândia - MG, além de
idealizar Matheus organizou a edição, que conta com várias histórias de diferentes artistas em uma
publicação de 110 páginas. A história de Ric Milk e Marcelo Cabral é a primeira do exemplar.
Informações disponíveis em http://impulsohq.com/resenha-hqb/resenha-hqb-revista-a3-n%C2%BA1/ ,
acessado em novembro de 2011.
23
Alguns outros artistas convidados são encontrados no seguinte endereço de internet
http://www.hcast.com.br/hcast/2010/08/review-extra-msp50-os-participantes-e-suas-homenagens/ ,
acessado em novembro de 2011.

95
dentre eles a publicação ganhadora da categoria obra infantil/juvenil do prêmio
HQ Mix 24 intitulada “Pequenos Heróis”; até publicações de cultura urbana
alternativa, como as histórias que eram circuladas numa coletânea de vários
autores chamada “Gorjeta”. Em Cuiabá, Leite tem uma cotidiana produção de
tiras de quadrinhos no jornal Folha do Estado25, o que leva a uma constante
produção; também na capital mato-grossense, Ricardo Leite produziu o álbum
de HQ “Destino Oeste”, que foi roteirizado pelo arquiteto e também
pesquisador de História em Quadrinhos Gabriel de Mattos.

Figura 16 – versão de Ric Milk para a personagem “Rosinha” de Maurício de Souza, disponível
em http://www.hcast.com.br/hcast/2010/08/review-extra-msp50-os-participantes-e-suas-
homenagens/ , acessado em novembro de 2011

Essa grande quantidade de trabalhos, somado ao fato de Ricardo Leite


ter atuado por muito tempo em agências de publicidade, local onde os sujeitos
que elaboram as artes das campanhas devem ter uma versatilidade estética
para atender as solicitações dos clientes, levou o autor a possuir uma
polimorfia estética e temática em seu traço e ideias das narrativas que produz.
Apesar dessa condição de elaborar desenhos de aparências bastante diversas,
existe um fio condutor que une suas composições visuais, como uma
identidade, uma impressão particular em suas expressões. Isso é o que se

24
Principal prêmio destinado a publicações de Histórias em Quadrinhos no Brasil. A lista completa com
todos os ganhadores do ano de 2011 foi recolhida do site http://trofeu-
hqmix.blogspot.com/2011/08/aqui-esta-o-seu-convite.html , acessado em dezembro de 2011.
25
Uma breve biografia do artista é encontrada em http://4mundo.com/quadrinistas/ric-milk/ , acessado
em novembro de 2011.

96
pode chamar de “estilo”, resultante evidentemente desse mesmo ambiente de
exigência de aparências visuais variadas, mas ao mesmo tempo consequência
de outros fatores, alguns deles impossíveis de serem explicitados com firmeza,
pois para isso seria necessário realizar uma avaliação tão minuciosa no autor,
que até seu perfil psicológico teria de ser analisado com maior profundidade.
Dondis discorre sobre a característica estilística de um artista, e em sua
concepção é possível vislumbrar como são diversos os fatores culturais que
influenciam essa carga identitária da composição que um indivíduo utiliza em
suas produções:

“Nas artes visuais, o estilo é a síntese última de todas as forças e


fatores, a unificação, a integração de inúmeras decisões e estágios
distintos. No primeiro nível está a escolha do meio de comunicação, e
a influência deste sobre a forma e o conteúdo. Depois vem o objetivo,
a razão pela qual alguma coisa está sendo feita [...] O ato de fazer
apresenta uma série de opções: a busca de decisões compositivas
através da escolha de elementos e do reconhecimento do caráter
elementar; a manipulação dos elementos através da escolha das
técnicas apropriadas. O resultado final é sempre uma expressão
individual (às vezes grupal), regida por muitos dos fatores acima
enumerados, mais influenciada, especial e profundamente, pelo que
se passa no ambiente social, físico, político e psicológico, todos eles
fundamentais para tudo aquilo que fazemos ou expressamos
visualmente.” (DONDIS, 1997, p. 86)

Seria tarefa complexa dizer com precisão os fatores sociais, físicos,


políticos e psicológicos que influenciaram a produção de Ric Milk, mas isso não
quer dizer que não seja possível ater-se a características de sua vida, até
porque algumas delas aparecem na narrativa de suas obras, como, por
exemplo, seu casamento.
Ricardo Leite foi casado, e durante o período de seu matrimônio
produziu uma série de tiras de Histórias em Quadrinhos intitulada “Diário de um
Casal”26, nela apareciam recorrentemente personagens que eram as versões
caricaturadas dele, da esposa e do filho. Tal informação já denota algumas
características simbólicas referentes à sua obra, pois um leitor desavisado, que
não conheça especificamente que os personagens ali retratados são inspirados
na família do autor, pode assumir que se trata de um casal totalmente fictício.

26
Recentemente o autor publicou um livro homônimo à série de tiras. Disponível em
http://rquadrinhos.blogspot.com/2011/07/ric-milk-e-josi-bell-lancam-album.html , acessado em
novembro de 2011.

97
Evidentemente que as narrativas, apesar de sugerirem as vivências do casal,
eram ficcionalizadas, pois toda representação é uma espécie de ficção, mas
certos signos representam ao menos uma face da realidade. Vale citar como
exemplo a figura 17, que mostra o casal em Cuiabá, este local geográfico é
realmente a cidade onde o autor reside; isto quer dizer que durante a época em
que realizou a tira conhecia as condições climáticas desse território. Para os
que partilham da vivência cotidiana nesse mesmo local, fica mais
potencialmente fácil entender à referência que o autor faz ao calor da cidade.
Já se o espectador não entender o quão quente a cidade é na maior parte do
ano, o significado pode não surtir o mesmo efeito, chegando até a achar que o
valor que o termômetro marca no desenho (45º graus) é uma invenção de
Ricardo Leite, um exagero tal como as caricaturas de um quadrinho.

Figura 17 – Tira censurada de Ricardo Leite, realizada no aniversário de Cuiabá – fonte:


http://diariodeumcasal.blogspot.com/2011/04/aniversario-de-cuiaba-e-atira-aprovada.html
acessado em setembro de 2011.

A tira tomada como exemplo foi desenvolvida para ser circulada no


jornal Folha do Estado no aniversário da capital de Mato Grosso, mas em
decorrência do teor humorístico ter sido avaliado como inapropriado para o

98
meio de comunicação, a HQ teve sua publicação vetada. Isso é outro fator que
pode ser observado quando se entra em foco o contexto cultural do autor, as
revelações e significados descobertos não são apenas referentes ao artista que
produz, mas também a todo seu entorno. O arte-educador Gazy Andraus
realiza uma observação acerca dessa característica de análise:

“As HQs também refletem o ideário do autor que concebe a história, e


por tal autor estar inserido num contexto social e cultural, acabam por
refletir todas as idiossincrasias inerentes aos habitantes [...]”
(ANDRAUS, 1999, 35)

Nesse caso, além da tira dizer algo a respeito do autor, diz também
sobre seu entorno social, como exemplo pode-se dizer que a visão humorística
de Ricardo Leite nem sempre coincidia com aquilo com que a equipe a qual ele
trabalhava, mais especificamente aqueles funcionários do jornal que tinham o
poder de vetar conteúdos, que consideravam adequados ao público da
publicação periódica. Se Ricardo Leite fez a tira já sabendo que se destinava a
ser veiculada no jornal, deve, pelo menos por algum momento, ter acreditado
que não seria censurada, contudo não foi o que aconteceu.
Nas análises que seguirão acerca de alguns exemplares da obra de Ric
Milk, vez ou outra serão trazidas informações referentes às suas circunstâncias
sociais, são dados que contribuirão ao entendimento dos níveis de leitura de
sua obra.

3.2 AS AMOSTRAS ARTÍSTICAS OBSERVADAS

As HQ’s de Leite aqui mostradas serão analisadas de modo a unir os


conteúdos de texto ao imagético, mas, vez ou outra, tais signos serão
discutidos independentemente, pois, como foi comentado no primeiro capítulo,
a dissociação desses itens são realizados para cumprir objetivos didáticos, e
como esse trabalho se trata de uma investigação acadêmica, tem um
compromisso didático. Mas na prática a Arte Sequencial atinge às faculdades
mentais que atuam sobre as percepções verbais e visuais. Nesse sentido, pode
se afirmar que a relação intrínseca das HQs como uma literatura imagética
apresenta possibilidades daquilo que não é nem imagem e nem texto, mas ao

99
mesmo tempo são os dois. Uma manifestação que não se distingue onde é
referenciada exatamente pela força motriz da literatura que a abarca, ou pela
plasticidade visual das imagens que estão contidas. Essa provocação cognitiva
que os quadrinhos causam no intelecto de quem os lê é colocada por Andraus
do seguinte modo:

“As histórias em quadrinhos não servem apenas ao auxílio


interdisciplinar ou às aulas de literatura, mas principalmente como
agentes artísticos auto-suficientes literário-imagéticos apresentados
de uma maneira própria, independentemente. Isto se dá, sobretudo,
devido à relação intrínseca das HQs como uma literatura imagética
(ou panvisual) e a importância delas como imprescindível e
necessário objeto de estruturação cultural aos povos: objeto este que
auxilia em uma melhor interface dos dois hemisférios cerebrais:
esquerdo: racional (fonético) e direito: intuitivo (imagético).”
(ANDRAUS, 2009, p. 44)

É dito isso, pois as investigações irão ora dialogar sobre a aparência


visual, ora sobre o texto verbal, ora sobre como um pode complementar ao
outro, assim sendo, os leitores dessa dissertação podem ter que voltar várias
vezes às amostras, para que possam acompanhar o raciocínio proposto. Além
de se misturar na mente, é necessário lembrar que os signos das Hqs também
podem assumir diferentes concepções de acordo com a ótica empregada sobre
eles.
Para exemplificar como um mesmo signo de História em Quadrinhos
pode conter os três aspectos propostos por Pierce será tomado de exemplo
uma pequena história de Ricardo Leite (figura 18). Se trata de uma das tiras
que eram encontradas em seu blog pessoal; as tiras são um modo rápido de
contar narrativas nessa linguagem, normalmente reduzidas a poucos quadros
dispostos no sentido horizontal ou vertical, a união desses quadros forma uma
faixa, por isso o nome “tira”, tal como listras de quadrinhos.

100
Figura 18 - Tira de Ric Milk – retirada do endereço eletrônico http://diariodeumcasal.com.br/ ,
acessado em junho de 2011.

A curta narrativa possui três quadrinhos, inicia em uma imagem cujo


conteúdo imagético se assemelha à silhueta de uma personagem que, assim
que a primeiridade dá espaço para que se confronte a imagem existente
através de algumas características denotadas, pode ser tomada por uma
mulher. Por mais que a figura feminina esteja representada em um modo
estilizado, fugindo levemente de critérios naturalistas, o reconhecimento das
formas que lembram cabelo, rosto, ombros, braços e seios levam à
constatação da feminilidade da figura. Talvez no primeiro quadrinho haja até
um conflito entre a imagem ser a representação de uma mulher ou de algum
humano, seja masculino ou feminino, de cabelos compridos. Mas aqui será
tratado como se a pequena saliência encontrada na altura do tórax da silhueta
possa ser encarada como uma representação da curvatura de um seio. Além
da mulher, é possível identificar algo em que ela se apoia, ou que é apoiado
por ela, por mais que a percepção visual possa não dar conta de precisar sobre
qual a objeto a mulher está segurando, o texto verbal da caixa de legenda
fornece pistas para que reconheçamos essa parte da imagem.
É válido inserir uma curta nota sobre o texto, pois ele muitas vezes leva
direto aos caracteres imagéticos tirando a sensação de estranheza, tão
comentada no segundo capítulo, e passarem à categoria de secundidade; isto
é, os textos, com sua força simbólica, levam as imagens a serem passadas de
qualissignos à sinsignos. Mas, apesar disso, algumas vezes a sutileza do estilo
do autor leva a uma perduração da sensação de estranheza, como a página de
“A Metamorfose” de Peter Kuper já exemplificada no segundo capítulo.

101
Em se tratando dessa tira de Ricardo Leite, o texto coloca “todo herói
tem sua pátria”, em processo semântico a relação de pátria e os objetos
simbólicos que a representa, é possível entre eles imaginar a bandeira, então,
ao olhar novamente a imagem do objeto na qual a personagem sustenta, cai-se
na ideia de que pode ser um mastro segurando uma bandeira. É claro que não
é exatamente seguro que os espectadores façam essa relação entre a forma
apresentada e a “bandeira”, mas o artista elabora esse discurso com base na
cumplicidade que existe entre o produtor da arte e o fruidor dela, cumplicidade
que nada mais é que entender o grupo cultural a qual se destina sua obra. No
caso de Ric Milk, como realiza uma produção cotidiana de tiras, sejam as que
são veiculadas no jornal ou as que ele insere em seu sítio da internet, muitas
vezes o autor deve criar a expectativa de que o leitor tenha acompanhado as
tiras anteriores, e dessa cumplicidade extraí inclusive o pensamento de que a
figura, a qual discutiu-se aqui a possibilidade de ser tanto homem quanto
mulher, seja interpretada como “Josi Bel”, sua esposa caricaturada. O que
facilita a análise da tira, reduzindo as possibilidades de ser interpretada como
uma figura andrógina.
O segundo quadrinho possibilita que essa percepção seja reafirmada,
pois mostra um enquadramento a partir de um plano americano, onde é
possível observar a personagem acima dos joelhos, permitindo enxergar uma
silhueta que mostra a cintura fina e quadris largos, inserindo, mais uma vez, a
ideia de que se trata de uma mulher, isso levaria aos leitores que não
acompanham cotidianamente as tiras de Ric Milk a também interpretarem a
figura como uma mulher. O segundo quadrinho mostra também a forma que se
assemelha a uma bandeira, deixando-a melhor visualizada, por mais que não
apareça por completo, a intenção de ser uma bandeira continua sendo
afirmada pelo conteúdo verbal, “e toda pátria reconhece seu herói”, ainda na
correlação simbólica entre pátria e bandeira.
No derradeiro quadro da tira as silhuetas remetem a outras
características, a imagem que remetia à bandeira se revela semelhante à outra
coisa: um mastro com fios como se tivessem roupas penduradas nele, nesse
momento o signo que remetia à bandeira, que já era um sinsigno, em processo
de semiose assume novas possibilidades imagéticas, tornando-a um varal com

102
roupas, outro sinsigno construído sobre o mesmo signo. A mulher está
inclinada e sua silhueta revela o que parece ser uma camiseta em suas mãos.
O conteúdo verbal condiciona e aprisiona a leitura dai percebermos a imagem
como se fosse uma mulher segurando uma peça de vestuário com um varal
compondo os arredores de onde ela se encontra, no quadro de legendas há
escrito “menos Josi Bel, nossa heroína, mãe, mulher, guerreira... e, dona de
casa.”
No âmbito cultural tudo está passível de ser símbolo, isto é, o homem
sempre irá fornecer um valor convencionado às leituras que realiza, mesmo
que não queria, “pois o pensamento não trabalha diretamente com o concreto,
mas com representações mentais desse mesmo concreto” (SANTAELLA, 1996,
p. 64). Apesar disso, é possível recortar hipoteticamente a ideia de que, no
âmbito de ícone, os quadrinhos do exemplo mostram uma mulher que parece
uma heroína apoiada em algo que parece ser uma bandeira, isso é traçado por
certas características de semelhança. Mas ao fim, ainda por relações de
similaridade, o que surge é a imagem de uma mulher que está pendurando
roupas em um varal. Esse seria o caráter icônico da obra mostrada. Ora, as
manchas da tinta criando as imagens de uma mulher ou bandeira ao carregar a
carga de similaridade com o conteúdo identificado (mulher, bandeira) já pulou
para o campo da secundidade peirceana.
No caráter indicial, seria necessário imaginar a que coisas a história se
relaciona factualmente. Pelo princípio mais básico a relação factual entre a
imagem acima se dá com o artista que a produziu, no caso Ricardo Leite, pois
para ela existir foi necessário haver um sujeito que a compusesse
materialmente; mas outras indicações podem ser elaboradas, algumas
bastante ousadas, mas nem por isso menos indiciais, por exemplo, como esta
reprodução específica da história em quadrinhos consta em um texto de
dissertação, ela indica a existência de um espectador que a retirou de seu local
original e a inseriu aqui, desse modo ela permite perceber a existência de
alguém que refletiu sobre ela como objeto com potencial de dialogar certas
teorias acadêmicas na prática, ou seja, essa HQ, sob as condições específicas
onde se encontra reproduzida (nessa dissertação), indica a existência do autor
desse texto, e mais, indica a existência de um programa de mestrado que

103
solicita tal pesquisa ao autor do texto, que indica a existência de uma
academia, e assim por diante.
Já o caráter simbólico no campo da imagem é bem perceptível quando
identificamos, via o habito, as formas como algo reconhecível como as da
mulher e da bandeira, porém quando pensamos pelo lado do conteúdo as
informações são engessadas pelas ideologias e convenções culturais, que têm
suas significações alteradas de acordo com o grupo social que a lê. Mas, sob
situação hipotética e como exemplo didático, pode-se imaginar algumas
possibilidades simbólicas. A obra coloca a mulher como heroína de uma pátria,
representada apenas pela silhueta, a partir da utilização da linguagem da Arte
Sequencial; essa linguagem artística teve uma profunda produção de revistas
do gênero de aventura, tendo destaques as aventuras de heróis e super-heróis,
então é conveniente traçar uma relação simbólica entre a ideia de heroína da
narrativa e a ideia do gênero aventuroso. Contudo, no último quadrinho existe
um rompimento com a ideia de heroína desse tipo de gênero artístico, pois é
apresentada a face de dona-de-casa, esposa, mãe; isso coloca um contraponto
como se a verdadeira face de um herói fosse superar os desafios de seu
cotidiano, por mais prosaico que seja. No conteúdo textual/verbal a narrativa
coloca que toda pátria reconhece seus heróis, menos Josi Bel, a heroína do
dia-a-dia; como se a nação não valorizasse as milhares de mulheres que agem
em prol do bom desenvolvimento familiar, pois, mesmo sendo boas mães,
esposas e donas de casa, não tem seu espírito heroico valorizado. Assim
sendo, a partir de uma breve reflexão, pode-se dizer que a história em questão
é um símbolo da constante falta de valor oferecida as atividades domésticas e
familiares. Um símbolo do machismo. Por outro lado, ainda dentro do caráter
simbólico, essa tira, através da desvalorização dada à “heroína do dia-a-dia”,
pode fazer alusão à ideia de que heroico mesmo é enfrentar o cotidiano
estabelecido, mas isso não quer dizer que haja um reconhecimento.
Desse modo, o caráter simbólico de um signo é campo das
possibilidades múltiplas, multiformes e reversíveis; como os múltiplos pontos de
uma cadeia rizomática. Isso coloca que, além da variedade de espectadores,
com seus diferentes acervos culturais, existe uma pluralidade de signos em
potencial internalizados no intelecto de cada intérprete do signo externalizado.

104
O seguinte quadrinho de Ric Milk (figura 19) possui um desfecho que cabe para
colocar como exemplo dessas várias interpretações possíveis.

Figura 19 – Tira de Ric Milk - retirada do endereço eletrônico http://diariodeumcasal.com.br/ ,


acessado em junho de 2011.

A narrativa textual verbal discorre sobre a temática “liberdade”, utiliza


formas icônicas de um casal em diferentes poses, de imediato poderia ser
colocado não como apenas um casal, mas vários casais, pois todos estão
presentes numa mesma cena sem requadros. Contudo o texto da personagem
feminina indica que por opção tal história é sem requadros, isso fica denotado
no diálogo entre o homem e a mulher - “Hoje a história é livre...” “Sem as bases
dos quadros... sem pressão a nossa volta.”. Colocam a partir dessa denotação
a possibilidade semântica de que se trata de um mesmo casal, em diferentes

105
momentos, apesar das cenas não estarem separadas pelos requadros; vale
lembrar que alguns exemplos de Arte Sequencial durante a história da
humanidade não utilizavam requadros, tal como a coluna de Trajano.
Ao final da história de Ricardo Leite existe uma única moldura, que se
opõe à ideia de liberdade, visto que no início a narrativa propõe que a ausência
das linhas de limitação dos planos da imagem agia em favor de uma liberdade;
então o requadro age como algo que limita, e todo limite é a demarcação de
um fim, nesse ponto o plano de expressão age em favor do plano de conteúdo,
pois o requadro aparece no fim da história, ou seja, um semi-simbolismo, que
segundo Pietroforte, é onde reside a poesia de uma linguagem sincrética.
Nesse quadro marcado pelas linhas limitantes da cena existe um único balão,
com o seguinte texto “Pois um dia tudo pode terminar aqui. E fecha o quadro.”.
Esse “aqui” onde a personagem indica que tudo pode acabar, se trata do quê?
Da morte? Do final da história propriamente dito? Ou apenas está indicando
que um dia a liberdade pode acabar, independente de como for? Essas
significações podem levar a outras, a partir do processo peirceano de
interpretação ad infinitum,
Dentre as possibilidades infinitas vale sistematizar uma delas a partir da
ideia de níveis de leitura, o semi-simbolismo leva a identificar o Nível
Fundamental “Liberdade vs. Não Liberdade”, onde a liberdade é mostrada
visualmente pela ausência dos requadros. Inferindo o seguinte quadrado
semiótico (figura 20):

Figura 20 – quadrado semiótico “Liberdade VS Não Liberdade”

106
A ausência de requadros implica na liberdade, e o texto indica que
quando estão livres os personagens podem “matar o serviço, não ir à escola,
seguir um outro caminho, acordar de madrugada, beber até cair, fazer
orgias...”, todas as atividades estão envolvidas na ideia de ausência de uma
“pressão”, quase como se viver dionisiacamente fosse um modo de ser ver livre
das razões e pressões apolíneas. As perspectivas diversas que existem nas
poses dos personagens se relacionam com a ausência de sistematização,
denunciada pelo texto da mulher que diz “sem simetria nos cobrando, sem uma
ordem linear nos lembrando de seguir adiante”, o homem do casal
representado ainda complementa que aquela tira em específico “não tem a
rudeza dos quadrados”. O termo “quadrado” pode tanto fazer menção ao
contorno do requadro como à expressão popular que diz ser “quadrado” o
indivíduo que age de maneira mais potencialmente racional, com muito
conservadorismo, sem ter as emoções tão à flor da pele. Essas implicações
levam à absorção de um discurso que prega a vida dionisíaca à existência de
uma história, e quando os limites são instaurados, a história se finda, isso é
percebido pelo derradeiro quadrinho possuir o requadro. Como se para o
artista, ainda mais levando em conta que o autor é personagem de si mesmo, a
vida sem pressão fosse mais potencialmente prazerosa do que a vida com
limites. A própria face dos personagens denota esse prazer, de modo
icônico/simbólico é visto que quando não há limites as faces se encontram com
semblantes cheios de sorrisos, e no fim os rostos assumem um perfil sério,
quase deprimido.
Vale tomar como exemplo outra narrativa de Ric Milk, para que outros
quadrados semióticos sejam vislumbrados, (figura 21).

107
Figura 21 – Tira de Ric Milk - retirada do endereço eletrônico http://diariodeumcasal.com.br/ ,
acessado em junho de 2011.

Os quadrinhos (figura 21) apresentam um casal que pouco a pouco vai


retirando suas vestimentas. Os olhares entre as personagens ocorre como se
estivessem flertando, como se o Plano de Conteúdo da narrativa estivesse
voltado para um jogo de sedução entre um homem e uma mulher. No tocante
ao Plano de Expressão, foi escolhido um traço de requadro que inicia retilíneo
e, conforme os dois se despem, o traço vai se tornando sinuoso, fazendo
alusão a um cubo de gelo que derrete. Finaliza com um quadro que possui um
diálogo que menciona o quanto o “negócio” esquentou; como se o calor
houvesse derretido o gelo, e como a imagem dos dois sumiu no quadrinho
liquefeito, o diálogo termina sugerindo que se “aproveitasse, já que ninguém
estava vendo.”. Aí é possível traçar a relação vestido vs. nu e a relação frio vs.

108
quente. Isto é, enquanto estavam vestidos o quadrinho estava congelado, à
medida que foram retirando peças de roupas a temperatura tivesse se elevado
e derretido o quadrinho.
Desse modo relaciona-se que quando as roupas somem o ambiente
esquenta, e dá-se a isso a ideia do calor da paixão, da sensualidade, dos
corpos; é fornecido pensamento de que com o clima quente o ato sexual
acontece. Em contraponto ao estatuto do frio, onde as roupas existem e o ato
sexual não é consumado. Então, em se tratando das redes de relações, pode-
se indicar que nudez/calor corresponde à possibilidade de realizar o ato sexual,
e frio/vestido a não realização do ato, e, por outro lado, também possibilita a
relação de que na realização do ato temos a ausência das figuras e na
presença das figuras temos a ausência do ato. A rede de relações que leva aos
diferentes níveis de leitura pode ser visualizada no esquema do “quadrado
semiótico”. Que, dentro das categorias apresentadas, se instaura no seguinte:

Figura 22 – quadrado semiótico que traça as redes de relações

Esse estado elementar leva a delinear certas relações sintáticas entre os


termos apresentados na história, e essas relações de sintaxe levam aos
percursos semânticos, ou seja, a narrativa em si pode ser curta, de poucos
quadrinhos, mas o processo semântico que origina pode ser longo, pois se
desdobra a partir de um núcleo elementar de significados. Ao opor a nudez ao
estatuto de da não-nudez (isso são as categorias de construção, ou seja, de
sintaxe), caminha-se para a possibilidade semântica de realização da oposição
entre estar vestido vs. nudez. E a estrada de interpretações pode ser longa,
conferindo inclusive a ideia de “censura” à narrativa, pois quando estão nus, e

109
o ato sexual pode acontecer, as figuras não aparecem; é justamente por não
aparecerem que semanticamente pode-se colocar que os quadrinhos foram
censurados, ainda que, diferente do exemplo da tira comemorativa do
aniversário da cidade do autor, Cuiabá, possa ter sido uma auto-censura.
Para relacionar esses entendimentos ao processo de polarização,
atribuindo valores negativos para um lado da dicotomia e positivos para outro,
deve-se embrenhar com o pensamento sobre a conjunção e a disjunção dos
atores da narrativa. Isto é, toda narrativa inicia em um conflito, onde, quando o
conflito é superado, o ator da narrativa está em conjunção com seu objetivo, se
o conflito não é superado ocorre a disjunção. No exemplo da história de Ric
Milk, o início do percurso da narrativa é o flerte, a conjunção do flerte seria a
consumação de alguma atividade sexual. Para a realização do objetivo, deve
existir alguma ação que mova os personagens em prol da conjunção da
estrutura dramática do roteiro. Essa ação na história exemplificada seria o ato
de retirar as peças de roupa. Se os sujeitos da narrativa efetivam o objetivo,
estão em conjunção, isto seria o caráter positivo da dicotomia; se não cumprem
o objetivo, estão em disjunção com a meta narrativa, logo isso seria o caráter
negativo da dicotomia.
Como, apesar de não aparecer explicitamente, a narrativa oferece
possibilidades sígnicas para dizer que o ato sexual foi consumado, visto o calor
que derreteu todo o requadro e o texto do último balão que é dito, ainda que
não se veja para quem o ponteiro do recurso visual aponte, pelas localizações
das personagens nos planos anteriores é permitido atribuir à personagem
feminina, “Aproveita que ninguém tá vendo, mesmo.”. Como o ato se iniciou,
ainda que houvesse sido no término da narrativa, a história entrou em
conjunção com os valores propostos no quadrado semiótico.
O fato de se propor tais leituras da produção em Arte Sequencial
realizada por Ricardo Leite, não quer, nem de longe, colocar que essas
significações é que sejam as mais próximas das intenções que o artista
projetava. Não quer também cair na ideia de que essa visão semiótica seja
mais completa do que outros caminhos científicos. A intenção nessa
investigação é a de se propor que conhecendo as discussões aqui
apresentadas seja possível fornecer uma maturidade ao entendimento das

110
Histórias em Quadrinhos como linguagem artística, revelando que é tão
complexo como qualquer outra produção em Artes.

111
CONSIDERAÇÕES FINAIS

112
Toda pesquisa apresentada é uma parte terminada de um percurso
interminável, isto é, esse estudo não é algo que deve ser tido como uma
proposta acabada; nem que as implicações sobre produção de sentido aqui
sejam inteiramente completas. Longe de acreditar que essa pesquisa finda os
estudos referentes à produção de sentido nas Histórias em Quadrinhos, em
realidade a visão é de que ela seja apenas um ponto de partida para inúmeras
averiguações. Esse ponto inicial permitido evoca uma defesa em prol das
Histórias em Quadrinhos como uma linguagem artística mais antiga do que o
cinema. Um passeio que mostra a compreensão de que a Arte Sequencial não
é algo recente na trajetória da humanidade, tendo exemplares tão antigos
quanto a própria literatura.
Quando, nessa dissertação, se legitimou as HQ’s como uma linguagem
artística complexa e específica, ainda que flerte com outros campos da arte, se
fez isso para perceber que o objeto necessita que alguns preconceitos do
senso comum sejam destruídos, como os de creditarem a essa manifestação
apenas obras relacionadas com o público infantil e juvenil. Não é um problema
ter uma grande produção para essa parcela etária, mas esse rompimento é
necessário para que se utilize os recursos da linguagem em questão para
inúmeras outras situações e diversos outros grupos culturais.
Richard Outcault, Ângelo Agostini, Will Eisner, Peter Kuper, Bill
Watterson, Art Spielgeman, Maurício de Souza e Ricardo Leite, todos são
quadrinistas, mas isso não quer dizer que o público que frui suas obras seja o
mesmo. Isso nem quer dizer que cada projeto de Banda Desenhada que eles
executem sejam para o mesmo perfil de espectadores; os quadrinhos são tão
plurais quanto às intenções dos autores.
E não só isso, este estudo comporta uma discussão de que uma mesma
obra pode ser lida de inúmeras maneiras, desde a compreensão dos valores
mais fundamentais da narrativa, até a ideologia de quem o fez a partir do
discurso comunicado. As HQs podem propor sensações qualitativas, singulares
ou culturais, todas ao mesmo tempo, ou cada uma em um momento distinto.

113
Passar pelos momentos de sentidos produzidos propiciados por uma HQ é tal
como a poesia do mineiro Murilo Mendes, “Ninguém se banha duas vezes no
mesmo rio”, sendo assim, ninguém lê duas vezes uma banda desenhada do
mesmo modo.
A expectativa tida a partir deste estudo é que, conhecer os níveis de
leitura, entender a semiótica como metodologia de análise, observar a história
e fundamentos da linguagem aqui apresentada, leve os espectadores dessa
arte a olharem suas revistas e livros colecionáveis com outros olhos; leve os
artistas a usufruírem desse conhecimento para experimentarem possibilidades
diversas em suas produções; leve educadores a explorarem maneiras mais
críticas de percepção; leve investidores a perceberem como pode ser amplo o
discurso gerado por uma HQ. Enfim, apesar de não se intencionar uma
verdade absoluta nesta pesquisa, ao menos a intenção é de se desfazer
algumas mentiras.

114
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