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INSTITUTO DE LINGUAGENS
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM
ESTUDOS DE CULTURA CONTEMPORÂNEA
CUIABÁ-MT
2012
1
AUGUSTO CEZAR BARBOSA FIGLIAGGI
Cuiabá-MT
2012
Dados Internacionais de Catalogação na Fonte.
___________________________________________________________
Prof. Dr. Yugi Gushiken
Examinador Interno (ECCO/UFMT)
___________________________________________________________
Prof. Dr. José Serafim Bertoloto
Orientador (ECCO/UFMT)
ABSTRACT
KEYWORDS:
Comics, reading, semiotics, Ricardo Leite
Sumário
INTRODUÇÃO ....................................................................................................................... 8
CAPÍTULO 1 UM QUADRO GERAL DOS QUADRINHOS – HISTÓRICO E
LINGUAGEM ........................................................................................................................ 13
1.1 PERCURSO HISTÓRICO – A LEGITIMAÇÃO A PARTIR DE RELAÇÕES
ARTÍSTICAS .................................................................................................................... 18
1.1.1 Referências provindas de momentos distantes ............................................... 20
1.1.2 Referências recentes.......................................................................................... 26
1.2 LINGUAGEM SINCRÉTICA - CONCEITO CABÍVEL AOS QUADRINHOS ........ 31
1.2.1 Elementos Composicionais ...................................................................... 42
1.2.1.1 Narrativa ..................................................................................................... 44
1.2.1.2 Visualidade................................................................................................. 46
1.2.1.3 Diagramação - Quadros, calhas e páginas ................................................... 47
1.2.1.4 Legendas, Balões e onomatopeias ................................................................ 51
1.2.1.5 Metáforas Visuais e linhas cinéticas .............................................................. 52
CAPÍULO 2 SEMIÓTICA: FERRAMENTA DE PERCEPÇÃO DAS PERCEPÇÕES .. 55
2.1 TRIADE PEIRCEANA: OBJETO, SIGNIFICANTE E SIGNIFICADO .................... 60
2.2 PROCESSO DE SEMIOSE: PRIMEIRIDADE, SECUNDIDADE E
TERCEIRIDADE............................................................................................................... 64
2.3 PRIMEIRA TRICOTOMIA: SIGNO CONSIGO MESMO ........................................ 70
2.4 SEGUNDA TRICOTOMIA: SIGNO EM RELAÇAO AO SEU OBJETO. ............... 73
2.5 UMA SUBSTITUIÇÃO TRICOTÔMICA ................................................................... 78
2.5.1 Nível Fundamental .............................................................................................. 79
2.5.2 Nível Narrativo..................................................................................................... 82
2.5.3 Nível Discursivo .................................................................................................. 85
CAPÍTULO 3 NÍVEIS NA PRÁTICA ................................................................................. 92
3.1 CONTEXTUALIZAÇÃO DO AUTOR E SUA OBRA ............................................... 95
3.2 AS AMOSTRAS ARTÍSTICAS OBSERVADAS ...................................................... 99
CONSIDERAÇÕES FINAIS .............................................................................................. 112
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ................................................................................. 115
INTRODUÇÃO
8
Hibrido. Vislumbrar as naturezas diversas de um só objeto, atitude ou
qualquer manifestação humana sobre a ótica da hibridação tem sido uma
corrente em voga nas discussões contemporâneas sobre cultura desde a
segunda metade do século XX, contudo, inserir esse conceito a uma linguagem
artística não é o mesmo que explaná-la. Não que explicações sejam
necessárias, pois caminhos pós-modernistas de pensamento dentro das
Ciências Humanas chegam até mesmo a negligenciar a necessidade de
explicar algo, para não incorrer no risco de serem positivistas1. Mas, toda essa
amplitude pode oferecer um perigo nocivo ao estatuto acadêmico, a de
considerar tudo sem se refletir sobre nada. Por isso, por mais que na prática
tudo seja movente, líquido, mutante, transitório; essa pesquisa trata de
observar uma linguagem artística na intenção de analisar seus potenciais
modos de leitura. A atenção será dirigida ao processo, terá como foco a prática
da leitura de Histórias em Quadrinhos, é essa a linguagem artística em
questão. Para essa ponderação, certas etapas do modo como obras dessa
linguagem produzem sentido serão fixadas temporariamente para análise,
como se colocássemos em uma lâmina laboratorial as possíveis leituras
permitidas pelas obras, para então olharmos com um microscópio
metodológico. As práticas culturais são fluídas, mestiças e efêmeras, mas as
análises acadêmicas sobre elas não; ainda que se discuta o movimento dos
fenômenos da cultura, tornar essa discussão fixa em um documento acadêmico
(como uma dissertação) congela uma parte desse movimento, o conceitua; se
a pesquisa não agir fiscalizando a si mesma e pretensamente acreditar que
encerra alguma discussão, irá aprisionar esse fenômeno. Tais colocações
estão sendo realizadas logo no início do texto dessa pesquisa para que se
traga conscientemente a ideia de que as discussões que aqui se apresentam
são incompletas, pois não há possibilidade de afirmar que as ideias
apresentadas são decisivas e conclusivas sobre os processos que aqui se
1
Tendo aqui o pensamento de que “positivismo” se embrenha com dados concretos e objetivos,
conforme a proposta de Augusto Comte (ARANA, 2007).
9
apresentam, elas são apenas parte da complexa ação de se refletir sobre a
fruição de obras artísticas.
O objeto é, então, a linguagem artística da História em Quadrinhos e a
intenção do estudo com ele é perceber como ocorre a produção de sentido em
níveis de leitura. Tendo o pensamento de que entender como ocorre a leitura
dessa linguagem permite observar sua complexidade
poética/artística/comunicacional.
O entendimento que se partilha nessa investigação é de que, apesar de
ser uma linguagem artística que mescla qualidades existentes em outras
poéticas, tal como a Lieteratura ou as Artes Visuais, as Histórias em
Quadrinhos possuem um modo próprio de se manifestar a seus espectadores.
Para realizar as análises foi feito um processo de leitura de imagens que
defende a semiótica como ferramental metodológico adequado para esse tipo
de entendimento, e, promovendo a ideia de que as diferentes doutrinas
semióticas se complementam, há uma predominância dos conceitos e
discussões propostos por Peirce e por Greimas. Por um lado o viés peirceano
revela os aspectos mais fundamentais do processo de significação, revela cada
etapa da semiose; por outro o entendimento greimasiano leva ao entendimento
da colcha cultural/semântica da produção de sentido. Ambas convivem
conjuntamente neste estudo.
O primeiro capítulo deste estudo, intitulado “Um quadro geral dos
quadrinhos – Histórico e Linguagem”, inicia em uma abordagem que discute as
denominações da poética, que também é chamada pela sigla de HQ, de Arte
Sequencial, Banda Desenhada, entre outros; passando por um percurso
histórico que localiza ações que influenciaram a existência de elementos que
existem na manifestação, passando desde ações que demonstram um passado
remoto, mas condizente com as características existentes em uma HQ;
chegando a observar a história recente desse manifesto. Essa apresentação de
um trajeto histórico legitima o manifesto, contribui para que se veja
historicamente as HQ’s como poética artística. Após isso passa-se a uma
discussão sobre a questão: em que se constitui uma linguagem? Nesse
momento rompe-se uma série de considerações que delineiam certos limiares
para a compreensão do que é um texto, uma linguagem, um plano de conteúdo
e de expressão. Descoberto os conceitos que cabem mais adequadamente
10
para esta pesquisa, então ocorre a apresentação da Arte Sequencial como
uma linguagem sincrética, visto que utiliza características de outras estruturas
de produção de sentido, mostrando inclusive seus elementos composicionais,
que é o material sintático disponível para que se elabore as obras dessa
linguagem, para assim permitir que cada leitor elabore uma semântica, em
busca de sentidos e significações.
No segundo capítulo, sob o título “Semiótica: uma ferramenta de
percepção das percepções”, há uma apresentação sobre os mecanismos
metodológicos que observarão as possibilidades de leitura que uma HQ
permite, que, no caso, é, a já citada, metodologia semiótica. São trazidas várias
doutrinas semióticas, tendo em comum entre elas a, já citada, característica de
todas se ocuparem de entender os modos de significação e produção de
sentido, assim sendo, são pinçados de cada uma delas elementos
complementares que levem ao entendimento dos processos de significação de
uma narrativa de História em Quadrinhos. A semiótica da cultura, por exemplo,
explica o vício em predominantemente entender o processo idiomático como
linguagem, pois apresenta que a língua é o Sistema Modelizante Primário, e as
outras estruturas de significação são calcadas sobre ela. A contribuição da
semiótica peirceana ocorre no modo como encarar a semiose, a partir da
proposição do processo triádico, apresentando um objeto referente, um signo e
um interpretante2; além disso, possibilita entender que o pensamento humano
não se fixa em apenas um resultado de significação, mas pode continuar
realizando semioses, ad infinitum. A semiótica trazida pela semântica
estrutural, de Algirdas Greimas, leva a apresentação de níveis de leitura
propriamente ditos, colocando o Nível Fundamental, Narrativo e Discursivo. Em
suma, por mais que essas correntes ocorreram muitas vezes em caminhos
separados, algumas vezes convergentes, noutras divergentes, percebe-se que
se complementam quando se trata de entender a produção de sentido, por isso
não existe neste trabalho nenhum receio em uni-las como ferramentas
metodológicas. Ainda neste capítulo, ao passo em que se apresenta as teorias,
são mostrados exemplos diversos de Histórias em Quadrinhos, Literatura e
2
Em outros momentos autores pesquisadores de Peirce, e o próprio semioticista, apresentam outras
denominações implicadas no processo triádico como: objeto, representamen e interpretante; referente,
significante e significado, entre outras.
11
Artes Visuais, para que se torne mais palpável como a teoria é aplicada na
prática.
Por fim, no derradeiro capítulo, “Níveis na Prática”, é onde ocorre a
aplicabilidade de toda a discussão num estudo de caso. A discussão utiliza
como material de análise a obra do quadrinista cuiabano Ricardo leite, por isso
realiza-se neste capítulo uma apresentação sobre o contexto social do autor e
de sua obra. É neste momento da pesquisa em que é possível se checar uma
práxis do que é dialogado desde o início, e justamente por já existir toda uma
construção de discussões realizada, o capitulo flui com menos arcabouços
teóricos, em realidade eles estão presentes de modo prático. São mostradas
tiras de histórias em Quadrinhos do citado artista, e delas são feitas projeções
sobre os modos de leitura possíveis.
Apesar de toda a discussão que a pesquisa traz, sabe-se de antemão
que uma das características da conclusão é a de que não existe penas um
modo de leitura para um mesmo espectador, tudo pode ser alterado, visto
novamente, ou ainda que seja visto ao mesmo tempo, ter em si inúmeras
interpretações. Todo fruidor de alguma obra de arte, no caso da linguagem das
Histórias em Quadrinhos, pode interpretar diferentes significados para um
mesmo signo, transitando em distintos níveis de leitura. Pois, como colocado
na abertura desse texto introdutório, a prática da cultura é movente, mutante e
fluída. Contudo vale entender que o que essa pesquisa quer trazer é que, se
utilizando das compreensões que ela elucida, muitas ações práticas podem ser
refletidas, desde o modo como as Histórias em Quadrinhos tem sido tratadas
dentro do estatuto da arte, a maneira como a comunicação se apropria dessa
linguagem, ou, até mesmo, o modo como a educação encara as Histórias em
Quadrinhos.
12
CAPÍTULO 1
13
Para se entender as características de uma linguagem artística é válido
observar as denominações que fazem referência a ela, pois normalmente o
nome é um modo de sintetizar em poucas palavras as qualidades de um
conceito mais amplo. Tendo essa ideia como ponto de partida, faz-se aqui a
apresentação de algumas das variadas maneiras de se referir à linguagem da
História em Quadrinhos, no intento de perceber nas designações diferentes os
entendimentos sintéticos sobre a linguagem. Partindo inicialmente da síntese
para posteriormente utilizar as denominações em um processo de análise.
Essa linguagem artística, a História em Quadrinhos, é, naturalmente,
referenciada de distintas maneiras em locais diferentes, ou seja, se altera o
tratamento dado a ela de acordo com a região geográfica e grupo social. É
evidente que a variação idiomática leva a termos desiguais, e, desse modo, a
linguagem artística da “Pintura” em inglês é chamada de “Painting”, em francês
“la Peinture”, em italiano “”Pittura”, em todos esses casos, apesar de serem
palavras compostas por fonemas e grafias desiguais, trazem em si um mesmo
significado, por mais plural e amplo que ele seja. O que ocorre no caso das
Histórias em Quadrinhos é que a alteração do termo de um país ao outro não é
apenas idiomática, mas também utilizam palavras de natureza diferentes,
palavras que significam coisas distintas. Na maior parte das vezes o termo que
faz alusão ao manifesto está estabelecido a um dos elementos visuais
composicionais existentes na linguagem. Por exemplo, no Brasil está sob o
epíteto de História em Quadrinhos, fazendo referência a duas coisas: primeiro
o termo “história” faz alusão a capacidade de criar narrativas que a linguagem
permite, pois toda história é uma narrativa; em seguida há a referência aos
“quadrinhos”, que são os quadradinhos que emolduram os desenhos existentes
no modo de compor visualmente uma obra dessa natureza artística, vale
colocar que muitas vezes o termo é apenas sintetizado na sigla HQ.
(ACEVEDO, 1990)
Já em Portugal é costumeiro utilizarem Banda Desenhada, novamente
fazendo menção à aparência de composição visual das obras, visto que por lá
14
o termo “banda” é utilizado principalmente para designar listras, tiras, enfim,
áreas limitadas por retas paralelas, não sendo, como no Brasil, uma banda no
sentido de grupo musical. Os lusitanos, tal como os brasileiros, empregam no
nome da linguagem parte de suas propriedades visuais, sendo que no Brasil
aparece a ideia dos quadrinhos e em Portugal a faixa toda – banda – e os
desenhos contidos nela. (idem, 1990)
Na Itália um termo que ficou bastante conhecido para referenciar as
Histórias em Quadrinhos foi Fumetti, mais uma vez referindo-se a elementos
visuais contidos nas obras, pois o termo “fumetti” se relaciona com aquilo que
aparenta ser uma fumaça, realizando analogia aos balões das HQ, que se
assemelham com uma nuvem de fumaça (ibidem, 1990).
Até então, todos os termos aqui apresentados fazem alusão a alguma
das qualidades imagéticas contidas na linguagem, salvo parte do termo
“História em Quadrinhos”, visto que também realiza menção à propriedade de
se contar “narrativas”. Nessa descoberta acerca das denominações
empregadas para essa manifestação existe uma que, apesar de ter sido
bastante difundida, não realiza referência a elementos de composição dessa
poética e sim a um de seus gêneros, trata-se da nomenclatura norte-
americana: Comics. Esse termo existe devido ao grande envolvimento de uma
considerável parcela de HQ’s do início do século XX com o gênero cômico,
então, ao invés ser um tratamento que denuncie algo da aparência visual da
linguagem, é uma designação que reduz o pensamento dos quadrinhos a
apenas um dos gêneros que possui: o cômico. Tal relação com as qualidades
temáticas das histórias é apontada pelos pesquisadores Leila e Roberto
Ianonne:
15
aos quadradinhos, as tiras e aos balões que compõem a narrativa. Por outro
lado, tornou-se bastante conhecida a classificação norte-americana comics,
fazendo menção a um dos gêneros. Por mais que até aqui se falou apenas dos
termos empregados para tratar essa linguagem, observá-los já propicia
perceber pontos para uma discussão mais analítica. Inicialmente é possível um
entendimento de elementos que fazem parte dessa poética artística que são
bastante entremeados no universo das artes plásticas, visto que se relacionam
com as propriedades visuais dos Quadrinhos; isso é percebido devido a
algumas designações - “quadrinhos”, “banda desenhada”, “fumetti” - que são
oferecidas a esse tipo de arte, pois evidenciam elementos composicionais que
participam de uma visualidade.
Outra característica que é possível reparar a partir de suas
denominações é que a visualidade não é a única propriedade que guia a
linguagem em questão, pois também existe uma narrativa que se desenrola,
assim sendo, é uma linguagem que, tal como a literatura, o teatro ou o cinema,
utiliza a intenção de apresentar enredos. Isso não quer dizer que uma obra
específica do universo das Artes Plásticas não possa conter uma história, mas
nas HQ’s esse propósito é mais explícito.
Além dessa intenção declarada em se contar histórias, uma das
denominações – “fumetti” - demonstra que há elementos que oferecem um
modo próprio de entender como as histórias são contadas dentro do universo
das HQ’s, levando assim a perceber que existem recursos dentro dessa
linguagem que lhes são quase exclusivos, no caso os balões.
Para não limitar demasiadamente o pensamento sobre a linguagem
artística em questão, várias nomenclaturas serão adotadas no decorrer do
texto, partindo do pressuposto que, como todas se referem ao mesmo
manifesto, revelam assim partes de um todo. Isto é, os vários termos, por mais
que sejam diferentes, fornecem contribuições para as defesas aqui
apresentadas.
Além das designações já comentadas, será levantada ainda outra
classificação, é o tratamento proporcionado por Will Eisner, um sujeito que
além de produzir HQ’s pesquisava a linguagem no âmbito acadêmico. Suas
ideias ofereceram contribuições inovadoras tanto do ponto de vista artístico
quanto científico para as Histórias em Quadrinhos. A nomenclatura inaugurada
16
por ele é “Arte Sequencial” (EISNER, 1999). A contribuição da visão de Eisner
para a compreensão da Banda Desenhada como uma linguagem artística é
observada pelo artista visual Edgar Franco, que coloca:
17
Quadrinhos como linguagem, pelo contrário, como foi colocado anteriormente,
pode revelar partes do todo, faces que completam um panorama mais
totalizado.
Independente, então, do modo de como tratar essa manifestação
artística, o que há de relevante é entendê-la como uma maneira própria de
oferecer conteúdo estético/poético/comunicacional. Essa defesa, da Arte
Sequencial como uma linguagem artística, é necessária justamente para não
cair no reducionismo que uma de suas nomenclaturas - “comics” - traz, que
restringe a ampla gama de gêneros narrativos de HQ, como produções
cômicas.
18
“nota-se que as histórias em quadrinhos constituem um sistema
narrativo composto por dois códigos que atuam em constante
interação: o visual e o verbal. Cada um desses ocupa, dentro dos
quadrinhos, um papel especial, reforçando um ao outro e garantindo
que a mensagem seja entendida em plenitude. Alguns elementos da
mensagem são passados exclusivamente pelo texto, outros têm na
linguagem pictórica sua forma de transmissão. A grande maioria das
mensagens dos quadrinhos, no entanto, é percebida pelos leitores
por intermédio da interação entre os dois códigos. Assim, a análise
separada de cada um deles obedece a uma necessidade puramente
didática, pois, dentro do ambiente das HQs, eles não podem ser
pensados separadamente.” (VERGUEIRO, 2009, p. 31).
Isso não quer dizer que as obras necessariamente devam unir palavras
às imagens, mas sim que geralmente é o que ocorre. Outras características da
História em Quadrinhos têm relação com outros sistemas artísticos, contudo a
explicitação desses elementos será abordada mais adiante. O que vale frisar
aqui é que a herança da união entre as características das artes que fazem uso
da linguagem verbal (Literatura, Poesia, etc.) e as das artes do campo visual
(Desenho, Pintura, etc.) tem sua origem em diversos momentos históricos, pois
no decorrer do percurso da humanidade a habilidade de unir elementos que
contém valor verbal com elementos de valor visual sucedeu-se em distintas
sociedades. Deve-se entender que palavras escritas são imagens, pois letras
também são desenhos – podem ser mais geometrizados no caso de letras de
forma, ou orgânicos no caso de escrita cursiva e mais uma imensa variedade
de possibilidades de traços nas linhas que constroem as palavras – sendo
assim, tanto os signos verbais quanto as imagens, são representações
captadas pelos olhos, são elementos visuais. Por outro lado o cérebro tem
modos distintos de realizar sinapses de uma palavra escrita em oposição à de
uma imagem não relacionada diretamente à compreensão verbal, por isso, por
mais que ambos os modos de representação se dê na configuração de
mensagens destinadas à captação da visão, aqui será tido que signos verbais
são as palavras escritas que se relacionam com fonemas e signos visuais são
imagens que não possuem essa relação fonética.
É evidente que, assim como Waldomiro Vergueiro apontou, essa divisão
conceitual existe apenas para uma mais clara compreensão sobre o fenômeno,
mas no processo de fruição de obras dessa linguagem o expectador não
necessita ficar atento a essas distinções. Ou seja, a compreensão da narrativa
e gozo estético das Histórias em Quadrinhos não depende de entender suas
19
características de maneira separada, pelo contrário, ocorrem justamente de
modo unificado. É o tipo de compreensão necessária apenas para realizar um
estudo, pois fixará momentaneamente cada característica sob conceitos e
reflexões específicas, mas na prática da leitura tudo ocorre de modo
simultâneo.
20
desaparecidos. Na coluna de Trajano e em outros momentos egípcios
trazidos pelo Império Romano tem-se uma verdadeira ‘história em
quadrinhos em espiral’
Nas tentativas de busca de antecedentes remotos das HQ, é
freqüentemente mencionada a tapeçaria de Bayeux, feita, na
Inglaterra, que tem sido considerada, ao longo de seus 70 metros de
seqüência sucessiva, um relato da epopéia dos cavaleiros
normandos, a ‘maior banda desenhada do mundo’ ”(ANSELMO,
1975, p. 40)
21
partir da utilização de quadros de momentos distintos. No exemplo da coluna,
os enquadramentos de cenas não são exatamente divididos por algum
elemento artístico que torna isso claro, mas de todo modo são momentos
diferentes de uma mesma história. Cada espaço oferece um vislumbre sobre
um instante, a narrativa se movimenta temporalmente ao reparar esse tempo
decorrido entre um espaço e outro, assim sendo, a obra não só opera a partir
da construção da representação de subdivisões diferentes da batalha, mas
também dos intervalos não colocados. Isso é o tempo intrínseco e o tempo
recusado (BERTOLOTO, 2006, p. 65), a história é contada tanto pelas cenas
que estão inseridas no relevo da coluna, tanto pelas ausências; isto é, se em
um espaço do relevo há a representação de um soldado com sua lança em
mãos, e em outro uma representação deste mesmo soldado, mas já com sua
lança transpassada no corpo de um inimigo, a passagem é contada tanto pelo
que está representado – no caso a lança em mãos e a lança já varada no
oponente -, como pelo que foi negligenciado – que seria a ação de atingir o
sujeito.3
3
As implicações que o intervalo oferece como possibilidades semânticas ao expectador serão mostradas
adiante quando o texto aborda um dos elementos composicionais das Histórias em Quadrinhos: a calha.
22
4
Figura 01 – Coluna de Trajano - Fonte: SOUZA, Maria Helena R.
4
Disponível em http://oglobo.globo.com/pais/noblat/posts/2010/05/04/arquitetura-coluna-de-trajano-
113-288661.asp, acessado em novembro de 2011.
23
que a tapeçaria conta, desenvolvendo um site de internet para demonstrar a
relação das cenas5.
“Os balões que hoje caracterizam boa parte das HQ têm seus
antecessores mais remotos num pedaço de madeira gravada em
5
Que pode ser conferido no seguinte endereço eletrônico:
http://www.bayeuxtapestry.org.uk/Index.htm, acessado em novembro de 2011.
6
Os filactérios são pergaminhos normalmente com texto sagrados do judaísmo.
24
1370, a tábua de Protat, na qual um centurião romano, diante do
Calvário, levanta um dedo em direção à cruz e declara: ‘Vere filius
Dei erat iste’ (‘Sim, na verdade este homem era filho de Deus’). De
sua boca sai um ‘filactério’, contendo a mensagem que desejava
transmitir. Vêem os estudiosos nesse filactério um precursor dos
‘balões’ das HQ. Através dos séculos, gradativamente, surgiu uma
nova forma de expressão que envolveu, por um lado, sequencias
ilustradas como as da Tapeçaria de Bayeux e por outro lado o
‘filactério’ da Tábua de Protat. Esses dois elementos básicos,
reunidos mais tarde, resultaram no aparecimento da HQ, relação
dinâmica entre a imagem e o texto.” (ANSELMO, 1975, p. 41)
Figura 03 - Detalhe da estampa feita a partir da "tábua de Protat", onde o texto “sai” da boca do
centurião – Fonte: D'OLIVEIRA, 2009, p. 28.
25
a compreensão sobre a linguagem da Arte Sequencial, mas o surgimento
consciente de que uma linguagem artística aparecia é muito posterior aos
acontecimentos apontados.
26
A passagem histórica mais conhecida em torno de seu surgimento, sob
a compreensão mais próxima do conceito que temos dela
contemporaneamente, aparece em meio a disputas de mercado por algumas
empresas jornalísticas norte-americanas no final do século XIX. Um início
marcado por atitudes que se preocupavam menos com as possibilidades
artísticas, e mais na quantidade de exemplares de jornais que essa nova
manifestação poderia angariar. O que pautou o surgimento dessa linguagem foi
justamente a preocupação em elaborar um elemento atrativo para os
exemplares dos jornais que circulavam no domingo. Essa disputa ocorreu entre
duas empresas, de um lado New York World, de Joseph Pulitzer; de outro a
New York Journal, de William Randolph Hearst. Esse episódio é sintetizado na
seguinte passagem apresentada por Juan Acevedo:
“Na ânsia de tornar mais atraente o seu periódico, o New York World,
Pulitzer publicou, desde 1893, um suplemento dominical com uma
pagina em cores. Nesta apareceu, em 1895, uma vinheta de autoria
do desenhista Richard Outcault, que descrevia cenas pitorescas dos
bairros populares de Nova York e que tinha como personagem
principal um garoto vestido com um camisolão amarelo. O garoto
converteu-se em personagem permanente do dito suplemento,
chegando a ficar conhecido como Yellow Kid (‘Garoto Amarelo’). Para
fazer com que seus personagens ‘falassem’, Outcault incluía textos
em cartazes, paredes, no próprio camisolão do Yellow Kid, e nessa
convenção gráfica que iria afirmando suas características: o balão,
elemento específico da história em quadrinhos.
Em 1896, Hearst conseguiu conquistar Outcault, que passou,
com seu Yellow Kid, para The New York Journal. Pulitzer, então,
encarregou o pintor George Luks de continuar desenhando, com
idêntico estilo, o mesmo personagem no New York World. O mesmo
personagem publicado, ao mesmo tempo, em dois jornais diferentes,
feito por desenhistas diferentes!
Dessa maneira, utilizada pelos magnatas da imprensa, acolhida
com entusiasmo por um vasto público, entre regateios e atos de
pirataria comercial, começou a história da história em quadrinhos.”
(ACEVEDO, 1990, p. 138)
27
pois as palavras não estavam apenas colocadas em um espaço vago dentro da
composição visual figurativa, mas sim contidas dentro de elementos visuais
específicos, e tais elementos, devido à proximidade com as representações de
certos personagens, denunciavam que aquele texto verbal enunciado era
pertencente àqueles personagens. No decorrer das produções de Outcault nos
jornais, os enunciados verbais passaram a ser apresentados no interior de uma
figura geométrica com um pequeno ponteiro que indicava qual personagem
estava pronunciando as palavras, esse recurso passou a ser conhecido como
“balão”. A denominação do elemento visual que continha as palavras deve ter
sido muito provavelmente fornecida devido à semelhança com bexigas de ar
(figura 04).
28
uma delas: a de que a origem da Arte Seqüencial como conhecemos é
brasileira. Sonia Luyten, pesquisadora da comunicação especializada em
Quadrinhos, apresenta a contestação da origem estadunidense, e também
complementa que um de seus precursores é o ítalo-brasileiro Ângelo Agostini:
7
“descreve o fato do indivíduo considerar seu grupo como ‘centro de tudo’”. (LEITE, 2007, p. 24)
29
Figura 05 - uma historieta de "As Aventuras de Nho Quim" de Angelo Agostini
O que ocorre é que, até início do século XX, este tipo de narrativa
aparecia apenas nos jornais, foi em meados da década de 1930 que
começaram a despontar as primeiras revistas com conteúdo apenas dessa
linguagem. No Brasil as primeiras HQs no formato de revista apareceram no
final dessa mesma década (1930), conforme colocado por Carvalho:
30
criativa de gêneros e temas, alguns gêneros tiveram uma produção quantitativa
maior, mas, de qualquer modo, vários assuntos passaram a existir a partir das
revistas, tais como os quadrinhos de ação, detetivescos, aventura, erótico,
humor, terror, biográficos, entre outros. E se são tantos gêneros possíveis, não
deveria ainda persistir a redução ao cômico, como o termo comics implica.
Edgar Franco sintetiza a recente história da HQ, mencionando inclusive que
esse percurso consolidou a linguagem como arte genuína:
31
A apresentação do breve histórico de referências que ocasionaram o
surgimento das Histórias em Quadrinhos permite entrever algumas das
características próprias dessa linguagem. Contudo vale inclinar-se sobre uma
consideração: em que se constitui uma linguagem? Para então observar as
características específicas da Arte Sequencial. Isso se põe necessário visto
que observar a estrutura da linguagem possibilita entender o funcionamento
dos potenciais modos de leitura. Então, antes mesmo de dialogar sobre as
peculiares características das HQs, será elaborada uma reflexão sobre o
pensamento do conceito “linguagem”.
O processo da leitura está altamente envolvido no entendimento acerca
da produção de sentido. Lê-se, e, a partir do que foi lido, é dada uma
interpretação, uma significação. Os elementos que possibilitam leituras, isto é,
os grupos de signos de natureza variada que permitem uma denotação e uma
conotação, são os textos. Claro que, assim como a própria definição de História
em Quadrinhos, todo e qualquer conceito apresentado aqui é suscetível a uma
polissemia inerente, e como essa pesquisa trata de, entre outras atividades,
observar às possíveis leituras de obras de uma linguagem, seria contraditório
não delimitar as considerações sobre certos conceitos, para se esquivar dessa
polissemia. Desse modo, assim como ocorrerá o esmero em traçar certos
limiares para a compreensão do conceito de “linguagem”, é válido orientar que
a compreensão de “texto” colocada anteriormente diz respeito à “linguagem em
ação”, isto é, o “texto” é o modo como a linguagem age mediando universos
distintos de interlocutores variados (COIMBRA, 2009). Essa compreensão
acerca de “textos” leva ao desdobramento de que não só os códigos originários
da comunicação verbal, que são passados para diferentes suportes por meio
da escrita, sejam textos. Imagens, gestos corporais, música e mais uma
infinidade de modos de exprimir sentidos são textos; todo e qualquer grupo de
signos que permite uma leitura, independente do instrumental que utiliza para
isso, e a que aparatos sensoriais do corpo humano são destinados, são textos.
E, dependendo da natureza pela qual o texto constitui-se, se enquadra em
linguagens diferentes. Isto coloca os limiares do conceito do texto em um
sentido mais amplo, mas, ao mesmo tempo, permite uma compreensão que
solidifica a ideia do conceito, pois não incorre da redução de coloca-lo apenas
32
como composição textual-verbal. Essa compreensão mais ampla é apontada
por Lucia Santaella no seguinte:
33
comunicação faz-se necessária a materialização do texto, conforme proposto
ainda por Santaella:
34
“Uma das particularidades distintivas e, ao mesmo tempo, uma das
dificuldades principais no estudo dos códigos culturais é o fato de
eles se apresentarem como estruturas de grande complexidade,
relativamente às línguas naturais sobre as quais os sistemas de
cultura se constroem (por isso é conveniente defini-los como
‘sistemas modelizantes secundários’). Tentemos determinar a que
está relacionado, afinal, este brusco aumento de complexidade do
código cultural quando ocorre passagem dos sistemas modelizantes
primários (língua natural) aos secundários.” (LOTMAN in
BORISCHNEIDERMAN, 1979, p. 33)
Isso explica muito dos motivos que levam a localização de obras que se
utilizam fortemente de códigos verbais a serem inseridas por muito tempo em
uma estrutura que tem tais códigos em seu campo de manifestação, sendo
assim, os quadrinhos, além de vinculados às ciências da comunicação, foram
refletidos por muito tempo intelectualmente como produto das Letras e
Literatura, quase como um subgênero literário e como se não bastasse essa
limitação conceitual, pesquisadores das Letras restringiam as HQ’s como
pertencentes ao universo específico da infância e juventude, como pode ser
notado na conceituação que a crítica literária Dirce Lorimier Fernandes oferece:
35
É importante frisar que a defesa das Histórias em Quadrinhos como uma
linguagem específica também compreende a força atrativa que os produtos
artísticos dessa poética podem oferecer ao público infantil, mas o que se
coloca aqui é a possibilidade de entendimento de que, tal como qualquer outro
manifesto artístico, é apenas uma de suas potencialidades, sendo tão plural
quanto à própria Literatura e Artes Visuais. O que se traz aqui é a
compreensão de que as obras dessa linguagem permeiam o universo das
letras, mas também utilizam códigos de outras estruturas artísticas, tal como as
Artes Visuais, Cinema, Artes Cênicas, num sincretismo artístico, como
colocado por Antonio Vicente Pietroforte “Os sistemas sincréticos, por sua vez,
são aqueles que ‘acionam várias linguagens de manifestação’ [GREIMAS E
COURTES apud PIETROFORTE], como ocorre em um sistema verbal e um
não-verbal nas canções e nas histórias em quadrinhos.” (PIETROFORTE,
2010, p. 11); e, além disso, podem oferecer narrativas de gêneros diversos,
sendo os produtos artísticos direcionados ao público infantil tão possível quanto
aos que se voltam para outros grupos etários ou culturais.
Em relação às colocações que situam as linguagens artísticas, e outras
diversas, como sistema modelizantes, são teorias amplamente dialogadas
entre estudiosos da semiótica da cultura, corrente teórica que estuda os
processos de significação no âmbito cultural. Várias correntes de estudos
semióticos serão trazidas aqui, e a ideia de integrá-las norteará o percurso
dessa pesquisa, pois acredita-se que, como todos tratam de estudar e refletir
sobre os processos de significação, as variadas visões podem complementar
um pensamento científico acerca do processos de leitura. Dentro do campo da
semiótica da cultura, as especulações sobre os sistemas modelizantes servem
para mediar o entendimento sobre alguns dos fundamentos que levam ao
preconceito apresentado por Santaella, permitem a compreensão de como
espontaneamente o intelecto percebe inicialmente “linguagem” como “língua”, e
as várias estruturas de significação podem ser encaradas como sistemas
modelizantes, ou, no caso desta pesquisa, encaradas como linguagem.
De todo modo, o preconceito ainda poderia ser questionado ao levantar
a controvérsia acerca do seguinte: quando um indivíduo não domina os códigos
verbais (fonéticos ou escritos), seja pela pouca idade de vida ou por alguma
deficiência, ele não tem nenhuma possibilidade de se comunicar com o mundo
36
a partir de alguma linguagem? Muito provavelmente ao refletir-se sobre isso
seria percebido que outras diversas maneiras de comunicação são possíveis
de serem traçadas, e, assim sendo, isso legitima a ideia de que linguagem está
muito além de se restringir a ser um pensamento de comunicação idiomática.
Vale trazer uma compreensão evocada pela semioticista Inês Lacerda Araújo,
que oferece uma visão bastante ampla sobre o que se instaura como
linguagem:
37
uma melhor compreensão das mensagens visuais.” (DONDIS, 1997,
p. 18)
Pensando por esse viés a linguagem seria o modo como um texto pode
ser materializado para depois ser ressignificado, e um conceito pode aparecer
de formas distintas. Um mesmo plano de conteúdo pode aparecer em
diferentes planos de expressão, claro que sofre algumas alterações em seus
percursos semânticos. Toma-se como exemplo uma fábula ocidental
tradicional, como “O Mágico de Oz” de Lyman Frank Baum, a partir da
linguagem da Literatura, seria obtido algo como o próprio texto escrito da obra
original de Baum; já se a intenção da construção do texto fosse a partir da
linguagem do cinema, surgiria algo como a versão cinematográfica dirigida por
Victor Fleming. Umberto Eco coloca que existem vários materiais que podem
ser agenciados para expor um conteúdo, e o que Greimas apresenta como
“Plano de Expressão” ele aponta de modo parecido, como “Forma da
Expressão”, denota-se no seguinte:
39
elementos específicos e especificados, arvoramo-los em unidades
pertinentes da expressão, organizamo-los num sistema de oposições,
dispondo, assim, de uma Forma de Expressão.” (ECO, 2004, p. XII)
40
De todo modo, deve-se levar em conta que o termo denominativo para
uma linguagem pode ocorrer em um período, mas já existirem, anterior ao
surgimento da denominação, certos manifestos que padeciam de estruturas
parecidas com as convencionadas, em que, no caso da Arte Sequencial,
podemos citar a Coluna de Trajano, a tapeçaria de Bayeux ou a tábua de
Protat. Isso é como se, apesar da percepção de um sistema de signos com
paradigmas específicos existir em uma determinada época e para ele
convencionar um termo, fosse observado que, anterior àquele momento, havia
certas manifestações que se enquadrassem sob o termo que se criara. Isso
leva a um questionamento, se um hominídeo primata houvesse criado uma
melodia antes da invenção do termo “música”, ele estava criando música?
Pietroforte reflete sobre essa abordagem permitindo, inclusive, que alguns
esclarecimentos do percurso histórico da Arte Sequencial sejam emergidos,
evocando o ponto sociossemiótico:
41
1.2.1 Elementos Composicionais
8
A convenção se estabelece como campo formador do símbolo, que é o signo que padece dessa
convenção cultural segundo C. S. Peirce.
42
Quando Umberto Eco propõe que existem certos elementos ajustados a
uma convenção dentro dessa linguagem, faz referência justamente aos
recursos sintáticos utilizados para comunicar. Dentro desses recursos, os
signos verbais são só uma das possibilidades, e estão quase
predominantemente acompanhados de elementos visuais não verbais, como os
balões de fala, por exemplo, que é um dos signos mais emblemáticos dos
Quadrinhos.
O processo de convenção é o que leva à facilidade de compreensão de
uma linguagem, quanto mais convencionado o plano de expressão, mais
natural o modo como se percebe o conteúdo que ele intenciona.
Como existem nas Histórias em Quadrinhos muitos pontos em comum
com outras várias linguagens, ela possui um cruzamento de características
dessas várias estruturas de signos, desse modo discorrer sobre seus
elementos é discorrer sobre uma parte dos elementos de outras linguagens,
mas na Arte Sequencial eles ganham um fôlego diferente do que em seu
terreno natural de manifestação. Esta é a face multifacetada da Arte
Sequencial ou, como coloca Pietroforte o aspecto sincrético de seu sistema, de
seu plano de expressão. Santaella reflete que as linguagens pertencem a três
grandes matrizes, a partir das quais se originam todo e qualquer sistema
sígnico produzido pelos seres humanos, são elas: a matriz visual, sonora e
verbal. A autora aponta que as estruturas se formam nas possibilidades de
hibridização permitidas entre as matrizes, seria o que Pietroforte coloca como
sistemas sincréticos, quase como se toda e qualquer manifestação resultasse
dessas mesclas matriciais:
1.2.1.1 Narrativa
44
que, antes dos demais elementos existirem, um pensamento sobre a narrativa
deve estar formado e uma das maneiras de se conseguir isso é através da
utilização de um roteiro. O roteiro seria um processo mais potencialmente
formal de se expor a narrativa. É um texto escrito que descreve como a história
vai acontecer, mas, apesar de ser texto verbal escrito, não deve ser confundido
com um texto literário.
É evidente que um roteiro partilha de características comuns à literatura,
pois a estrutura de como a história será traçada pode seguir regras que
funcionam para a literatura. Os conflitos, o perfil dos personagens, as viradas
dramáticas, todo o alicerce da história em si é comum à literatura, o que
diferencia é que, como a obra final não é um texto escrito, e sim Histórias em
Quadrinhos, ele não necessita ser contado do mesmo modo que as obras
literárias. O roteiro funciona como um mapa indicativo das características que
configuram a história, não precisa ser poético, mas sim descritivo, a poesia virá
no decorrer da realização da obra a partir da utilização dos outros elementos.
Seu aspecto é informar como a história acontecerá e quais substâncias
composicionais serão engendradas para isso. Syd Field, roteirista e
pesquisador de roteiro, aponta que se colocássemos um roteiro na parede
como uma pintura e olhássemos para ele, ele se pareceria com um diagrama,
ou seja, mais racional e menos emotivo. (FIELD, 1995). Isso que o roteiro torna
claro não é exatamente o mesmo que a obra finalizada permite ver, apesar de
ele contar a obra, o faz de modo técnico, media a narrativa entre as pessoas
que participarão do processo de realização da HQ, visto que muitas vezes a
história é idealizada por um artista, mas desenhada por outro. Santaella faz a
seguinte colocação acerca das diferenças entre a obra e o roteiro quando
reflete sobre o roteiro cinematográfico:
45
1.2.1.2 Visualidade
Por possuir uma estreita relação com os preceitos que guiam as Artes
Visuais, a imagética pode assumir diferentes estilos de traços, alguns mais
expressivos, outros mais delicados e limpos, e é relevante perceber que essa
escolha sobre como se dará a plasticidade das imagens deve de algum modo
agir em favor da narrativa. Isso denota mais uma vez que o plano de expressão
se relaciona com o plano de conteúdo, a plasticidade ajuda a contar a história.
Conforme aponta Vergueiro, indicando certas tendências visuais de períodos:
46
Não se trata então de entender o que está desenhado, mas como são os
traços que compõem o desenho, é a impressão (e expressão) particular que
cada artista confere a imagem de sua HQ. A visualidade não é a intenção de
inserir semelhança icônica 9 à representação, mas sim de permitir que a
representação ganhe formas que dizem algo além de uma similaridade com
seus modelos referentes. Essas duas faces das imagens, figurativa e plástica,
são explicitadas pelo semioticista José Serafim Bertoloto quando comenta seu
modo de análise de imagem:
9
Aqui o termo “ícone” empregado obedece a uma compreensão da semiótica peirceana, que será
explanada mais adiante.
10
A concepção de design tida é a da estruturação e harmonização da aparência visual de produtos
utilitários
47
momentos da narrativa. As linhas que determinam os limites do quadro são
conhecidas como requadros, elas emolduram cada cena ali representada
(EISNER, 1999). Assim sendo, a disposição, tamanho e escolha da linha que
configurará o quadro poderá agir em função da história a ser narrada. Sobre a
utilização favorável do requadro temos a seguinte consideração de Edgar
Franco:
48
primeiro.” (FRANCO, 2004, p. 43). Um dos recursos que denota não só a
passagem de tempo, mas também possibilita elaborar estratégias sobre como
o leitor poderá realizar suas interpretações da narrativa é a utilização do
espaço entre os quadrinhos, a calha (MCCLOUD, 1995). É nesse espaço que
ocorre uma grande cumplicidade entre os autores da obra e os leitores, pois, é
justamente entre um quadro e outro que a ação acontece, é quando o leitor
completa mentalmente o que os quadrinhos não demonstram, Klawa e Cohen
discorrem sobre isso:
49
gritou ou porquê. Esse, caro leitor, foi seu crime especial. Cada um
cometeu de acordo com seu próprio estilo. Matar um homem entre os
quadros significa condená-lo à milhares de mortes.” (McCloud 1995,
p.68)
50
impares visualizadas ao mesmo tempo, e nessa ordem, quando estão abertas;
o quadro gancho da página ímpar deve ser tratado com mais dedicação na
estratégia narrativa para levar à força motriz, pois são as páginas ímpares que
são efetivamente viradas ao se folhear uma revista.
51
Já as onomatopeias fazem referência não ao que os personagens dizem
ou pensam, mas sim aos sons que ocorrem em uma história. São combinações
de sílabas que tentam, a partir do princípio fonético de cada idioma - onde cada
letra corresponde a um som na imaginação do leitor -, criar a sensação
específica de cada experiência sonora. A plasticidade da aparência visual das
palavras onomatopeicas é amplamente explorada nas HQs, inferindo carga
expressiva que pode levar a uma vivência mais especifica da sonoridade.
Desse modo as onomatopeias escritas em letras grandes podem corresponder
a sons de alto volume e assim por diante. É importante destacar que, apesar
de existir certa convenção em algumas expressões onomatopeicas, existe uma
variação de um grupo social para outro e, até mesmo, de artista para artista,
conforme apontado por Waldomiro Vergueiro:
52
desenho que substituí outro, por isso o caráter simbólico convencionado, pois é
preciso ter um certo acordo cultural para entender o que um uma determinada
mensagem visual quer substituir, assim uma lâmpada sobre a cabeça de um
personagem ganha a significação de “ideia”, um olhar rodeado de corações
pode carregar a compreensão de “amor”, e assim por diante. Mas, apesar de
existir uma cumplicidade cultural entre o artista que se utiliza da imagem
metafórica e o espectador que a desfruta, é necessário entender que a
utilização da metáfora não é suscetível a uma só interpretação. Bertoloto alega
que a utilização de recursos metafóricos leva a uma liberdade de significado:
53
(estrela irregular em cujo centro se situa o objeto que produz o
impacto ou o local onde ele ocorre), entre outras.
Já as metáforas visuais atuam no sentido de expressar idéias e
sentimentos, reforçando, muitas vezes, o conteúdo verbal. Elas se
constituem em signos ou convenções gráficas que tem relação direta
ou indireta com expressões do senso comum, como, por exemplo,
‘ver estrelas’, ‘falar cobras e largatos’, ‘dormir como um tronco’ etc..”
(VERGUEIRO, 2009, p. 54)
54
CAPÍULO 2
55
Este capítulo abordará a apresentação de preceitos de doutrinas
semióticas, para mostrar que os conceitos e práticas empregados por esse viés
científico contribuem para o entendimento de como ocorre a produção de
sentido na leitura das Histórias em Quadrinhos.
A ciência quer seja humana, exata ou biológica, partilha de certa
similaridade no tocante a seu modo de operar, as práticas científicas
determinam objetos, objetivos e metodologias, para chegarem a seus
resultados. Dentre os modos clássicos, alguns se destacam e ocorrem com
certa frequência em pesquisas e estudos, vale citar os métodos indutivos e
dedutivos (PEIRCE, 2008). Apresentando de maneira simplificada, a indução é
a metodologia que aponta partes que respondem pelo todo, isto é, se cem
pessoas são entrevistadas em uma cidade, onde são selecionadas de modo
heterogêneo, havendo uma variação de diferentes faixas etárias, classes
sociais e localidade de residência, e respondem a questões demonstrando uma
determinada opinião sobre algum assunto, possivelmente aquelas opiniões
dirão respeito ao todo da população daquela cidade, a indução parte do micro
para o macro, muito utilizado pelos meios estatísticos.
A dedução percorre o caminho inverso, ela antevê alguma “verdade” do
macro, e insere aquela verdade sobre o micro. Tal como a lógica aristotélica,
que parte do silogismo onde uma premissa maior determina as premissas
menores, levando a uma conclusão. Um processo dedutivo bastante conhecido
é o que demonstra a mortalidade de Sócrates, colocando: “Todos os homens
são mortais. Sócrates é um homem. Sócrates é mortal.” (ROSSI, 1996, p. 42).
No estudo que ora se apresenta, o que sobrevêm é a ideia de que uma
pesquisa pode se delinear num misto de métodos. Por mais que a dedução
apareça como modo extremamente clássico e coerente para se determinar
certas concepções, em situações específicas pode demonstrar certas aberturas
que outros argumentos possam preencher. Mas há algo da dedução que se
demonstrará de maneira recorrente no decorrer deste capítulo, se trata das
tríades do raciocínio.
56
A formulação da dedução se dá em três partes: a premissa maior, a
premissa menor e a conclusão. O processo de produção de sentido à luz da
semiótica se dá também em um processo de recorrente tricotomia, mas,
diferentemente da dedução, ele não se volta apenas para as premissas
maiores determinarem as menores com intenção de se chegar a um resultado,
sua atenção está voltada para o fenômeno em si. Em se tratando dos aspectos
metodológicos para se analisar um fenômeno, como o da leitura de uma
linguagem artística, a semiótica justifica-se como aparato metodológico para se
observar práticas, ou uma ferramenta da percepção de percepções. O filósofo
Roberto Rossi aponta que a contribuição da visão peirceana é justamente esse
pragmatismo:
57
fenômeno, por isso a semiótica é contextual, ela observa uma determinada
face de uma manifestação, mas isso não quer dizer que, o que ela apresenta é
a verdade sobre o fenômeno. Peirce contribui sobre essa assertiva, mostrando
que o que realmente interessa para ele é a prática em si, ainda que ela não
seja a totalidade “Portanto, não perguntamos o que realmente existe, apenas o
que aparece a cada um de nós em todos os momentos de nossas vidas.
Analiso a experiência [...]” (PEIRCE, 2008, p. 22)
Muito foi comentado no primeiro capítulo a respeito da “linguagem” e
“convenção”, pois várias características elementares das Histórias em
Quadrinhos foram convencionadas e hoje são fruídas com muita naturalidade
por uma grande quantidade de espectadores. O que ocorre é que o estatuto de
“significado” de um signo partilha de uma variedade de possibilidades de
planos de conteúdo, uma mesma representação tem intrínseca várias
significações, para isso deve-se entender que um mesmo signo tem várias
aparências diferentes. Para entender como isso funciona nos processos de
leitura, vale ater-se a certas definições que a semiótica propõe, pois ela pode, e
deve, se ocupar de analisar as várias características e possibilidades de
entendimento dos sentidos que uma cultura realiza, conforme apontado por
Umberto Eco:
58
elas podem e devem se complementar, intentando oferecer um panorama mais
amplo de análise.
Dentre as correntes semióticas, o pensamento proposto por Charles
Sanders Peirce é o que ganha destaque quanto ao possibilitar, no âmbito desta
pesquisa, o entendimento das possibilidades de leitura existentes na fruição de
obras de Histórias em Quadrinhos. O olhar de Peirce oferece um conjunto de
concepções que elucidam a pluralidade de um signo. Diferente de Saussure
que colocava que os signos eram elaborados por um emissor e destinados a
um remetente, desse modo todos os signos eram produzidos para algum
intelecto o ressignificar, Peirce aponta que mesmo coisas não produzidas com
uma intencionalidade de significação podem efetivar algum sentido (ECO,
2000). É o caso de olhar para nuvens e enxergar formas de seres e coisas
diversas, não existiu uma intencionalidade da natureza em tornar aquilo um
elemento com semelhança a alguma coisa, é uma casualidade que, mesmo
não intencionalmente, produz algum sentido. Isso demonstra uma das
contribuições do pensamento semiótico proposto por Charles Sanders Peirce,
que é observar os códigos não intencionados pelo autor de uma obra tanto
quanto os intencionados, pois eles também influenciam a leitura. Isso se
relaciona com o que Marcel Duchamp chama de “coeficiente artístico”, sendo
que “Em outras palavras, o ‘coeficiente artístico’ pessoal é como uma relação
aritmética entre o que permanece inexpresso na obra embora intencionado, e o
que é expresso não intencionalmente.” (DUCHAMP in BATTCOCK, 2004, p.
73). Uma produção imagética artística principia em uma concepção mental do
que será desenvolvido materialmente, contudo, do ideal imaginado na mente
do artista e o que se torna realmente desenvolvido, existem variantes que
alteram a composição final; conforme observa Eco “(...) um ser humano
executa atos perceptíveis por outros como artifícios sinalizadores, que revelam
algo mais, mesmo que o emitente não tenha consciência das propriedades
reveladoras de seu próprio comportamento.” (ECO, 1997. p.12). Nesse ponto
vale entender que tudo o que é produzido por um emissor está passível de uma
alteração de interpretação no intelecto do receptor, um signo nunca será o
mesmo, ainda que possua um campo de significação comum entre esses o
polo de quem produz e o de quem o recepta. O que o artista tem em mente é
uma significação do objeto em si, já o que o espectador reconstrói em seu
59
imaginário é o interpretante, que é um segundo signo que ressignifica o
primeiro:
60
partir do diagrama apresentado pelos britânicos Ivor Armstrong Richards e
Charles Kay Ogden (figura 08):
Figura 08 - triângulo semiótico de Ogden e Richards – fonte: OGDEN & RICHARDS (1972)
61
Por vezes o significado é chamado de interpretante, mas esse termo
chega a causar confusão, pois pode ser tido, entre outras coisas, como o
sujeito (humano) intérprete do signo, quando não o é. Ele é o significado dado
pelo intérprete ao signo, sendo que o intérprete pode ser humano, animal,
máquina, ou até a própria natureza. Umberto Eco traz uma reflexão sobre o
interpretante como um caminho que se inicia num determinado signo e
continua num processo de semiose, elaborando signos ao passo que o
receptor do signo realiza encadeamentos entre significados:
62
um significado pode surgir através de inúmeros estímulos. Tal como as
madeleines de Marcel Proust, onde ao comer um desses bolinhos franceses e
misturá-lo com chá obteve uma sensação que não soube distinguir de imediato.
O sabor do biscoito fez sobrevir um significado turvo, mas extremamente
prazeroso. Somente com uma reflexão posterior que o autor entendeu o que
aquela sensação significava, o biscoito lhe trouxe as sensações que lhe
existiam na infância, onde se deliciava com as madeleines preparadas por sua
tia. Depois daquela experiência o bolinho francês passou a carregar um
significado que lhe era extremamente pessoal. (PROUST, 2004, p. 51). Isso
mostra que um sujeito pode extrair sentidos que não seria possível até então, e
relacioná-los com o signo a partir de encadeamentos que não seguem uma
compreensão necessariamente clara, tal como o conceito de “rizoma” colocado
por Deleuze e Guattari:
63
2.2 PROCESSO DE SEMIOSE: PRIMEIRIDADE, SECUNDIDADE E
TERCEIRIDADE
64
No exemplo dado anteriormente, o susto, puro e simples, sem
capacidade de distinção de qual era a natureza do som, nem de onde vinha, ou
que artefato havia o produzido, é o campo da primeiridade. Talvez o susto seja
uma maneira simples de mostra-la, mas existem outras possibilidades, tal
como a Madeleine do Proust, que lhe causou um estranhamento que ele não
sabia explicar.
Noth coloca a primeiridade como uma categoria de sentimento “imediato
e presente das coisas”, pois não há relação com outros fenômenos, não há
com o que comparar, é um estágio de percepção sem clareza. A consciência
não confronta aquela experiência com outras, para poder dar-lhe uma forma
mais bem acabada, ela é a sensação em si. Muitas vezes não há nem uma
consciência sobre o estranhamento, ou, nas palavras de Peirce a respeito da
primeiridade “Não poderia nem mesmo haver um grau de nitidez desse sentir,
pois tal grau é o montante comparativo de distúrbio da consciência geral por
um sentimento.” (PEIRCE, 2008, p. 24). Diferente da sensação de estranheza
vivida por Proust, muitas vezes essa categoria de experimentação ocorre de
maneira muito breve num sujeito, pois rapidamente a mente relaciona o que se
vivencia com algum outro referencial, assim já passando à secundidade. Mas
em outras vezes a sensação de estranheza perdura, principalmente quando ela
se manifesta de modo quase escondido entre outras características do
fenômeno. Para exemplificar vale trazer aqui o que já foi discutido no capítulo
anterior referente ao idioma ser um Sistema Modelizante Primário, e por isso os
quadrinhos estarem tão vinculados à ideia de participarem da linguagem da
literatura, isso leva a alguns espectadores a se envolverem com o conteúdo
literário das obras, e não tomarem consciência sobre como a aparência visual
dos signos influenciam sua experiência ao lê-la. Em realidade o artista nem
precisa almejar que o leitor tome consciência dessa influência, pois pode
utilizar-se disso em favor do modo sobre como sua composição será lida.
Utilizando como referência para expor o modo como um artista pode
fazer uso do estranhamento a favor da maneira como o fruidor de sua obra a
lerá, há o caso do quadrinista Peter Kuper 12 , que realizou uma obra de
12
Peter Kuper é um ilustrador e quadrinista de traço bastante expressivo, além das adaptações que
realizou da obra de Franz Kafka, ficou bastante conhecido pelo seu trabalho com as tiras “Spy VS. Spy”
na revista MAD. Fonte: http://www.peterkuper.com/bio/bio.html , acessado em outubro de 2011.
65
Histórias em Quadrinhos baseada no livro de Franz Kafka13, “A Metarmofose”.
Para fornecer a sua obra o mesmo tenso universo que Kafka imprime em seu
produto artístico, Kuper (figura 10) lança mão de várias estratégias, fornece um
tratamento visual expressivo para seus desenhos, flertando com o universo tido
como “expressionista” pelos críticos de arte. Desse modo apresenta:
representações distorcidas de figuras; uso de um grande contraste entre luz e
sombra, que fica ainda mais evidente devido à impressão realizada apenas em
preto sobre um papel de fundo extremamente branco – caso fosse num papel
amarelado seria oferecido menor contraste aos olhos; linhas de ritmo
interrompido, quase como se houvesse sido realizado num processo de
xilogravura 14 ; requadros dispostos diagonalmente, dando uma atmosfera
desiquilibrada, numa oposição ao “reto” como equilíbrio e “torto” como falta
dele. Ainda que o texto da HQ de Kuper seja interpretado e refletido pelo
intelecto de maneira mais apurada em vista da imagem, a plasticidade dos
traços e visualidade da diagramação influencia a narrativa. Essa inferência
exercida não é necessariamente percebida, naquele momento, pelo
espectador, e nem precisa, o estranhamento proporcionado pelos elementos
plásticos/visuais podem ficar permanentemente na categoria da primeiridade.
Ao exercer as inferências o artista acaba por modelizar e legar ao futuro uma
forma de expressão. E se o artista tiver essa noção, dessa influência quase
subliminar, pode utilizar isso a seu favor, dando existência a possibilidades de
sensações.
13
Escritor Tcheco, também conhecido pelo teor expressivo de suas obras.
14
A técnica da xilogravura consiste em criar sulcos numa tábua de madeira, passar tinta nessa tábua e
então pressioná-la contra um papel, o que oferecer como resultado um desenho de linhas com
costumeira presença de ângulos retos e distorcidos devidos à técnica de sulcagem.
66
Figura 10 – página de “A Metamorfose” de Kafa por Kuper (KAFKA & KUPER, 2004, p. 14)
67
similaridade entre a manifestação que está diante do espectador e algo de
suas experiências anteriores, tanto de negar essa semelhança com seu
arcabouço de referências culturais e, assim, perceber a existência de algo que
é novo em sua bagagem cultural. Ainda que um sujeito não nomeie o que está
diante de si, mas percebê-lo confrontando com o que já conhece leva-o a uma
dúvida, e a dubiedade em si é uma maneira de destacar um elemento tirando-o
da primeiridade e inserindo-o na secundidade. Peirce demonstra exatamente
essa relação de percepção a partir de similaridade ou negação dela no que
segue:
68
conhecimentos intelectuais do espectador. Enquanto na secundidade a ênfase
do passado surge como maneira de confrontar a estranheza com os prévios
conhecimentos culturais do indivíduo, na terceiridade o que entra em questão é
o futuro, e o que determina essa característica são os esforços e projeções
intelectuais mais apurados sobre o signo que está sendo percebido.
Uma vez identificado a manifestação diante de si, o espectador é levado
a traçar essa experiência já compreendida, com o que isso representa para si.
No caso da obra de Proust não é diferente, quando o escritor francês consegue
perceber que aquele estranhamento em comer a madeleine é devido a uma
experiência do tempo decorrido de sua vida, mais especificamente de sua
infância, dá uma identidade ao signo, e o biscoito passa a não representar para
ele apenas um bolinho saboroso, mas sim um símbolo saudoso de sua época
de criança. Isso é projetado, ainda que inconscientemente, para as próximas
vezes em que ele se deparar com a madeleine, isto é, no futuro, aquele
biscoito não será representado à ele apenas como um biscoito.
Quando se diz que o futuro e a apuração intelectual determinam a
terceiridade, é como se esse prolongamento do significado percebido ou dado
ao fenômeno dependesse de compará-lo não apenas às experiências
anteriores, traçando uma binaridade que o identifica, mas usar dessas
experiências para compreendê-lo como algo que transcende ao momento de
percepção do fenômeno em si. No exemplo de da página de “A Metarmofose”
do Kuper, fica mais claro a terceiridade na relação que o autor tem com os
estranhos traços, pois a partir de seu conhecimento projeta a ideia de que a
aparência expressiva das figuras e diagramação que compôs para a obra
influenciará a percepção que o leitor terá. Não que a terceiridade não possa
existir também por parte do espectador no caso da obra em questão, mas
como exemplificação, fica mais fácil observar a ocorrência dessa categoria por
parte do compositor do produto artístico. Essa categoria é apresentada por
Peirce num exemplo que possibilita observar essa intelecção que projeta um
fenômeno futuro:
69
Teria havido uma genuína triplicidade, com o caroço não sendo
simplesmente jogado, mas sim jogado no olho. Aqui teria intervindo a
intenção, a ação da mente. A triplicidade intelectual, ou Mediação, é a
minha terceira categoria.” (PEIRCE, 2008, p. 27)
“Se qualquer coisa pode ser um signo, o que é preciso haver nela
para que possa funcionar como signo? Para Peirce, entre as infinitas
propriedades materiais, substanciais etc. que as coisas têm, há três
propriedades formais que lhes dão capacidade para funcionar como
signo: sua mera qualidade, sua existência, quer dizer o simples fato
de existir, e seu caráter de lei. [...] Pela qualidade, tudo pode ser
signo, pela existência, tudo é signo, e pela lei, tudo deve ser signo.”
(SANTAELLA, 2004, p. 12)
70
Quando o signo manifestado ainda está no estágio de estranhamento
por parte de seu fruidor, apenas proporcionando uma sensação de algo, ele é
chamado de qualissigno. O radical “quali” faz menção à “qualidade”, visto que
nessa fase de percepção o que o signo traz é a sensação de algum atributo de
valor, uma estranheza primária pode ser boa, ruim, angustiante, prazerosa,
pode ser uma sensação de “azul”, de grandeza, de frescor, sempre uma
qualidade distintiva, ainda que não seja claro o signo específico. Já quando a
estranheza dá lugar a uma definição mais apurada sobre o signo, quando lhe é
possível destacá-lo, deferi-lo em confronto com algo, ele é chamado de
sinsigno, o radical dessa designação é em alusão ao termo “singular”, pois o
fenômeno deixa de ser algo estranho, indefinido, e passa a ganhar contornos
mais específicos. E, por fim, dentro dessa divisão tripartida, quando um signo é
entendido de forma mais apurada, já com juízos culturais complexos sobre ele,
isto é, dentro do estágio da terceiridade, dá-se a nomenclatura de legissigno;
como se as “leis” culturais definissem suas possibilidades de interpretação.
Peirce realiza sua definição desses três tipos de signo do seguinte modo:
71
configuração desse espaço não é exatamente geométrica, tendo um contorno
orgânico, o que está além da mancha é a cor branca do próprio papel, vale
observar que o plano de fundo não tem o habitual requadro, tão presente nos
quadros das HQ’s.
72
surge como a silhueta de algo que está ao fundo e observando mais
atentamente as linhas de seu limite, parte do contorno da mancha parece
assemelhar-se a topos de edifícios, como se houvesse uma cidade ao fundo.
Ainda nessa observação do contraste da parte escura com as partes claras,
percebe-se que os pequenos espaços em branco no interior da mancha podem
ter similaridade com flocos de neve, mais uma vez realizando referência ao frio,
e tudo isso implica em um valor poético que o artista quis imprimir sobre a
cena. A fisionomia do rosto do personagem diante da lata de lixo, sua fala
registrada no balão e o signo da mancha de fundo com todas as implicações
aqui discutidas apresentam que quando o artista colocou tal forma escura
sobre o fundo branco sem requadros não fez isso de maneira acidental, impôs
valores que na composição transitam no universo do dito no texto literário. O
“vazio”, a “frieza” e a “vastidão” não estão muito distante poeticamente das
“ruínas” do personagem. Diante dessa reflexão, pode-se dizer que o signo é
um legissigno, pois estabelece significado de acordo com uma “lei estabelecida
pelos homens”, de acordo com uma convenção cultural.
Desse modo, na divisão apresentada é possível perceber denominações
ao signo em relação ao modo como ele é percebido, adiante será apresentado
alguns desígnos do signo em relação ao objeto referente de sua
representação.
73
excitam sensações análogas na mente para a qual ele é uma
semelhança. Mas está realmente desconectado de seu objeto. O
índice está fisicamente conectado a seu objeto, fazendo um par
orgânico, mas a mente interpretadora não tem nada a ver com esta
conexão, exceto por observá-la depois de ter sido estabelecida. O
símbolo está conectado com seu objeto em virtude da idéia da mente
usando o símbolo, sem a qual tal conexão não existiria.” (PEIRCE
apud QUEIROZ, 2005, p. 83)
Já por outro lado, com o se trata de uma fotografia, o signo possui além
de uma face icônica, uma grande relação com a realidade, pois todas as
74
fotografias são registros de luz incididos sobre objetos. Nas câmeras
fotográficas analógicas, a luz efetivamente queimava o filme que estava dentro
do corpo da máquina, mas mesmo com a tecnologia digital, a luz bate no objeto
e a lente captura esse raio luminoso, transformando-o nas informações binárias
que formam o arquivo informático. Ou seja, de fato o objeto que é registrado
necessita existir diante da lente para que seja formado numa imagem
fotográfica. Sendo assim, toda fotografia é, antes de tudo, um índice, pois
mesmo antes de um espectador perceber a semelhança entre a imagem e o
objeto referente, é necessário haver essa relação factual entre um e outro.
Lucia Santaella contribui a essa reflexão, afirmando a forte ligação entre o
conceito de índice e a fotografia como pertencendo a essa ideia:
75
alcançar qualquer conclusão relativa às condições que controlam a
história geral da cultura.
O material necessário para a reconstrução da história biológica da
humanidade é insuficiente, pela escassez de restos mortais e pelo
desaparecimento de todas as partes moles e perecíveis do corpo
humano. O material para a reconstrução da cultura é ainda muito
mais fragmentário, porque os maiores e mais importantes aspectos
da cultura não deixam traços no solo: linguagem, organização social,
religião. [...]” (BOAS, 2004, p.97)
15
“[...] os irmãos Grimm, que eram estudiosos da língua (filólogos) e das histórias do folclore germânico,
se dedicaram a compilar histórias de encantamento, inclusive aquelas só encontradas na cultura oral, a
fim de preservá-las.” (LAZAR, KARLAN & SALTER. 2007, p. 169)
16
Primeiro livro da bíblia cristã.
17
Fundador da empresa de informática “Apple”, cuja marca era uma maçã.
76
Claro que todas as representações apresentadas aqui são apenas
algumas das possibilidades de leitura simbólica, pois existem vários modos de
realizar uma leitura de um texto, cada um com seus referenciais específicos,
levando a interpretações variadas. Essas possibilidades distintas são
apresentadas por Lotman a seguir:
77
2.5 UMA SUBSTITUIÇÃO TRICOTÔMICA
78
Semântica Estrutural de Greimas, aponta a existência de níveis de leitura
distintos, sendo o mais simples chamado de Nível Fundamental.
80
Figura 13 – quadrado semiótico que propõe a construção de um “Nível Fundamental”
81
O linguista afirma que esses valores são euforizados ou disforizados no
decorrer de uma narrativa. Aponta que quando um valor inicial surge em uma
História em Quadrinhos, ou literatura, ou qualquer outra manifestação artística
que possua um enredo dramático, ele caminha em direção a seu oposto, essa
caminhada é seu propósito, ainda que não o atinja o valor contrário. Sua
concepção sobre esses conceitos são as seguintes:
82
euforizando a narrativa (valor positivo na ótica do enredo), ou não conseguir,
disforizando a narrativa (valor negativo na ótica do roteiro).
Os valores básicos oferecidos no Nível Fundamental fornecem material
para se entender o cumprimento de uma narrativa. Utilizando um exemplo de
história em quadrinhos, toma-se a figura 14, que se trata de um tira 18 das
personagens criadas por Bill Watterson, “Calvin e Haroldo”. O primeiro
quadrinho mostra a figura do menino19 se coçando, e em seu balão de fala um
texto que denuncia que seu corpo contorcido realmente está confrontando uma
comichão, aí já se instaura um Nível Fundamental onde inicialmente o que
temos é o valor “coceira/roupa” (S1), que teria o seu oposto “não-coceira/não-
roupa” (~S1), que semanticamente seria “nu/aliviado” (S2), que teria o oposto
direto sendo “não-nu/não-aliviado”(~S2), implicando no resultado semântico de
S1 novamente.
83
euforização propunha, que ao retirar a roupa ocorreria um alívio – que
semanticamente leva à ideia de normalização da situação. Mas como se trata
de uma tira cômica, e a comicidade tende a nos últimos instantes fornecer
informações que desmontam a construção narrativa posta, no final a conjunção
é parcial, pois o personagem parece não mais sentir, ou ao menos não se
importar com a coceira, ainda que a situação não esteja realmente
normalizada, visto que está com manchas pelo corpo resultantes da comichão.
Calvin, tal como o assassino do exemplo fictício, não mata sua vítima, não
euforiza totalmente a narrativa. Entra em uma conjunção parcial.
É considerável ressaltar que o início do entendimento do Nível
Fundamental da tira de Watterson se dá na relação expressão/conteúdo, pois
as formas plásticas contorcidas do garoto interagem com o texto acerca da
coceira, e as expressões tranquilas do último quadrinho ocorrem em uma
ausência desse texto. Não chega a ser um semi-simbolismo bem delineado,
visto que a carga expressiva dos traços não se altera consideravelmente, mas,
ainda assim, forma e conteúdo agem em prol do roteiro. Além disso, o percurso
narrativo se dá de modo bastante curto, mas isso não quer dizer que não
permita uma pluralidade de entendimentos distintos. Se já o Nível Fundamental
é possível de ser interpretado de outras maneiras, dada a cognição de cada
leitor, tendo, como dito anteriormente um oposto de “homem” em “animal”, ou
“criança”, ao invés de “mulher”; o Nível Narrativo é ainda mais cheio de
multiplicidade. Seus objetos de valor se originam em significados fundamentais
que podem ser variados, sendo assim, é uma representação de
representações. Ou seja, os objetos de valor do Nível Narrativo são apenas
possibilidades semânticas, mas que, através de recursos semi-simbólicos
propostos pelo autor do objeto artístico, podem levar a certas deduções por
parte de seus espectadores. Pietroforte aponta esse esquema dos níveis
serem interdependentes, e reflete sobre a variabilidade dos processos
semânticos:
84
estrutura sintática das línguas é possível construir inúmeras
realizações diferentes da mesma sintaxe de um frase, é possível
formular um esquema narrativo que descreva, enquanto estrutura
formal, a construção de inúmeras narrativas diferentes.”
(PIETROFORTE, 2009, p. 14)
85
pode ser dito a propósito de tudo, isso se dá porque todas as coisas,
tendo manifestado e intercambiado seu sentido, podem voltar a
interioridade silenciosa da consciência de si. [...] o discurso nada mais
é do que um jogo, de escritura [...], de leitura [...], de troca, e essa
troca, essa leitura e essa escritura jamais põem em jogo senão os
signos. O discurso se anula, assim, em sua realidade, inscrevendo-se
na ordem do significante.” (FOUCAULT, 2007, p. 49)
86
A isotopia age como uma força modeladora do tema ou do aspecto
visual, para que ambos contribuam à formação do discurso, conforme coloca
Pietroforte:
Isso não quer dizer que se ocorrer uma desarmonia entre as isotopias,
não será proferido um nível discursivo. Sempre o é, mas, tal como comentado
sobre a obra de Peter Kuper, ter consciência sobre a imagem agir em conjunto
com o tema facilita a comunicação de sentidos específicos. Segue adiante um
exemplo a partir da obra “Maus” do americano Art Spielgeman (figura 15).
87
Figura 15 – Página da obra “Maus” (SPIELGMAN, 2005:p. 113)
88
quando estes estão sendo retratados como seres humanos. No discurso da
narrativa há atravessamento; por mais que esteja fazendo alusão à peculiar
face do animal, a dramaturgia, as ações, os diálogos são tais como as das
histórias dos sobreviventes da 2ª Guerra. Em realidade a obra é uma biografia
de um personagem (o pai do autor) que passou por várias situações
complicadas que essa guerra lhe prestou. E a estética dos animais utilizados
por Spielgeman são as maneiras que o autor encontrou de revelar a apreensão
desses dois universos, a de animal e de ser humano. Não se trata da
transformação de um ao outro, mas sim de um casamento de um com o outro,
da paralelidade entre os dois, trata-se do devir, no sentido de Deleuze, pois em
Crítica e Clínica, o autor afirma que a condição do devir:
"... nem fazer como, nem ajustar-se a um modelo, seja ele de justiça
ou de verdade. Não há um termo de onde se parte, nem um ao qual
se chega ou se deve chegar. Tampouco dois termos que se trocam. A
questão "o que você está se tornando?" é particularmente estúpida.
Pois à medida que alguém se torna, o que ele se torna muda tanto
quanto ele próprio. Os devires não são fenômenos de imitação, nem
de assimilação, mas de dupla captura, de evolução não paralela,
núpcias entre dois reinos." (DELEUZE & PARNET, 1998, p.10)
89
entre o ser humano e o animal, ou, ainda que essa mistura não se instaure nas
ações, é a desterritorialização de âmago do ser - humano com o rato. “Maus”
busca o animal no caráter do ser humano. O discurso de um texto leva ao
entendimento da ideologia de seu produtor, pois as ideias são apreendidas
através da materialidade dos signos, e a reciprocidade é verdadeira, pois os
signos são ideológicos e por si constroem a ideologia, ou como coloca
Santaella “[as ideologias] São, mais esmiuçadamente dizendo, sistemas de
representações imaginárias que os indivíduos fazem de suas reais condições
de existência social, de modo que toda e qualquer prática existe através e sob
uma ideologia” (SANTAELLA, 1996, p. 213).
Ainda sobre o exemplo da obra de Spielgeman, por mais que aqui não
entre nos detalhes específicos sobre seu discurso – pois não é esse o estudo
de caso da pesquisa que ora se apresenta -, a simples possibilidade de
entender tudo o que foi apresentado até então leva à possibilidade de realizar
uma leitura mais atenta sobre seu potencial discursivo. Embasado nos
delineamentos sobre a linguagem colocados no primeiro capítulo, que propõe
conhecimento sobre o histórico e definição que legitima e fornece óticas para
se observar as Histórias em Quadrinhos como um objeto de pesquisa
multifacetado e complexo, digno, tanto quanto outras linguagens artísticas, de
uma análise mais apurada, pois qualquer obra de Quadrinhos pode ser
examinada a ponto de serem descobertas as possibilidades de leitura, inclusive
de seu discurso. Lembrando que para isso que foram apresentadas as
ferramentas conceituais e metodológicas de investigação semiótica que o
presente capítulo oferece, sendo elas: o alicerce semiótico oferecido por
Peirce, levando ao entendimento do funcionamento do processo de produção
de sentido, e, somado a ele, as características de níveis de leitura da visão de
Pietroforte sobre a obra de Greimas.
Entender isso propicia inúmeras possibilidades de aplicabilidade prática,
tanto por parte de indivíduos que produzem obras de Arte Sequencial, que
podem usar desse conhecimento para amadurecer o processo de trabalho;
como por parte de espectadores, que, podem realizar o exercício de olhar para
uma determinada produção de história em quadrinhos e intentar buscar
significados diversos, e não apenas aqueles que se encontram no Nível
Fundamental.
90
O capítulo seguinte traz um estudo de caso, onde é apresentado parte
da obra do quadrinista cuiabano Ricardo Leite, que adotou o nome artístico de
Ric Milk. Nele é realizado de maneira extremamente prática uma análise que
faz uso do ferramental aqui apresentado para propor processos semânticos,
bem como possibilidades de leituras de sua obra.
91
CAPÍTULO 3
NÍVEIS NA PRÁTICA
92
Colocar uma determinada discussão num processo prático leva à
possibilidade de entender que, se aquilo que foi dito teoricamente aplica-se a
uma determinada experiência, assume-se como parte da verdade sobre a
discussão. É dito “parte”, pois nenhuma experiência pode dar conta de
assegurar que em outros casos o mesmo resultado seria alcançado. Sob essa
visão todo estudo de caso é, como dito anteriormente, circunstancial, ou
fenomenológico. Isso não quer dizer que a teoria seja mais verdade do que a
prática, e vice-versa, mas que, dentro desse contexto, a prática permite ver
grande parte da teoria. Claro que, se a proposta desta dissertação dialogasse
com uma doutrina científica mais potencialmente indutiva, poder-se-ia afirmar
que como a discussão teórica se aplica ao caso das HQs que são mostradas
aqui, então pode ser aplicada a todos os exemplares de histórias em
quadrinhos. Por um lado o autor deste estudo acredita nesse potencial, mas
afirma-lo é o mesmo que agir contra ele, visto que para a semiótica, nada é fixo
o suficiente para ser tomado como verdade, mesmo por que verdade não
existe e sim persiste enquanto uma ideia ou teoria até ser suplantada por outra
verdade, o que vale é sempre checar os fenômenos na prática.
Neste último capítulo é trazido algumas amostras do trabalho de Ricardo
Leite, também conhecido pela alcunha de Ric Milk, para ser analisadas através
dos meios já apresentados. Será inserida uma breve contextualização acerca
do quadrinista e do material produzido por ele, que aqui é apresentado e
utilizado para exemplificar mais especificamente como a semiótica possibilita
enxergar os níveis de leitura.
A maioria do material disponibilizado aqui fazia parte de um acervo
virtual que o autor reunia em seu blog pessoal20. No entanto, no final do ano de
20
Os blogs são uma espécie de site de internet, onde no princípio eram muito utilizados apenas para fins
pessoais, quase como um diário aberto à comunidade virtual, posteriormente todo tipo de intenção
foram voltadas para essa espécie de site, tendo muitas empresas utilizando esse formato de portal
virtual, por isso colocar “blog pessoal” não é necessariamente redundante. O antigo endereço do blog
pessoal do autor em questão era http://diariodeumcasal.com.br/ , as informações que foram retiradas
de lá ficaram guardadas com o autor dessa dissertação, que como já havia iniciado um processo de
93
2011 o blog foi retirado do ar, mas, apesar disso, Ricardo Leite intenta colocar
novamente o material em um novo endereço eletrônico. Algumas Histórias em
Quadrinhos que foram encontradas em outros locais da internet receberam o
crédito desses novos sítios ciberculturais, apesar disso as histórias que
estavam apenas no blog pessoal do autor foram mantidas, e o endereço
eletrônico e período em que foram acessados idem.
Várias das referências deste capítulo provêm da cibercultura, por isso
vale inserir aqui a compreensão da reprodutibilidade técnica mencionada a
respeito das Histórias em Quadrinhos, que permitia que as obras fossem
disseminadas para uma imensa quantidade de espectadores devido ao método
industrial com que eram impressas; o mesmo ocorre contemporaneamente,
mas as prensas gráficas da revolução industrial deram lugar ao movente
universo da cibercultura. Um local efêmero e intangível que, de algum modo,
tem características agindo positivamente em relação a atingir a elevadas
quantidades de espectadores, pois sempre haverá alguém que partilha
produtos artísticos que aparentemente atendem aos gozos estéticos e poéticos
de grupos culturais bem específicos. Não importa o quão restrito seja o tema
ou a estética das HQs, uma vez colocadas e divulgadas através da utilização
dos grupos virtuais da internet, sempre encontrarão algum fruidor que se
identifica com aquele plano de conteúdo e de expressão. Esses grupos são
chamados de “comunidades virtuais” segundo Pierre Levy em suas reflexões
sobre a cibercultura:
Ainda que o artista não saiba, diversos espectadores podem ter gerado
cópias das imagens de seu site pessoal, e por mais que tais arquivos de
imagens não existam no endereço que Ricardo Leite retirou do ar, podem
existir em inúmeros equipamentos de armazenagem de arquivos digitais, desde
computadores e laptops a CD’s e similares. A efemeridade e aspecto
reflexão sobre as amostras que nesse endereço eletrônico existiam, achou prudente continuar com sua
reflexão, vendo nisso uma maneira de guardar o material que na rede internet se mostra tão efêmero.
94
polivalente da internet é, ao mesmo tempo, uma maneira de certos registros se
apagarem, mas também de perdurarem.
Pelo fato do material impresso e registrado na Biblioteca Nacional com a
biografia do autor ser escasso, recorreu-se a cibercultura já que a intenção era
observar certas narrativas que não se encontram em versões impressas.
21
Estúdio paulistano que realiza contratos com ilustradores autônomos, mediando contratos com
clientes do mundo todo.
22
A revista A3 foi idealizada por Mathes Moura com apoio da prefeitura de Uberlândia - MG, além de
idealizar Matheus organizou a edição, que conta com várias histórias de diferentes artistas em uma
publicação de 110 páginas. A história de Ric Milk e Marcelo Cabral é a primeira do exemplar.
Informações disponíveis em http://impulsohq.com/resenha-hqb/resenha-hqb-revista-a3-n%C2%BA1/ ,
acessado em novembro de 2011.
23
Alguns outros artistas convidados são encontrados no seguinte endereço de internet
http://www.hcast.com.br/hcast/2010/08/review-extra-msp50-os-participantes-e-suas-homenagens/ ,
acessado em novembro de 2011.
95
dentre eles a publicação ganhadora da categoria obra infantil/juvenil do prêmio
HQ Mix 24 intitulada “Pequenos Heróis”; até publicações de cultura urbana
alternativa, como as histórias que eram circuladas numa coletânea de vários
autores chamada “Gorjeta”. Em Cuiabá, Leite tem uma cotidiana produção de
tiras de quadrinhos no jornal Folha do Estado25, o que leva a uma constante
produção; também na capital mato-grossense, Ricardo Leite produziu o álbum
de HQ “Destino Oeste”, que foi roteirizado pelo arquiteto e também
pesquisador de História em Quadrinhos Gabriel de Mattos.
Figura 16 – versão de Ric Milk para a personagem “Rosinha” de Maurício de Souza, disponível
em http://www.hcast.com.br/hcast/2010/08/review-extra-msp50-os-participantes-e-suas-
homenagens/ , acessado em novembro de 2011
24
Principal prêmio destinado a publicações de Histórias em Quadrinhos no Brasil. A lista completa com
todos os ganhadores do ano de 2011 foi recolhida do site http://trofeu-
hqmix.blogspot.com/2011/08/aqui-esta-o-seu-convite.html , acessado em dezembro de 2011.
25
Uma breve biografia do artista é encontrada em http://4mundo.com/quadrinistas/ric-milk/ , acessado
em novembro de 2011.
96
pode chamar de “estilo”, resultante evidentemente desse mesmo ambiente de
exigência de aparências visuais variadas, mas ao mesmo tempo consequência
de outros fatores, alguns deles impossíveis de serem explicitados com firmeza,
pois para isso seria necessário realizar uma avaliação tão minuciosa no autor,
que até seu perfil psicológico teria de ser analisado com maior profundidade.
Dondis discorre sobre a característica estilística de um artista, e em sua
concepção é possível vislumbrar como são diversos os fatores culturais que
influenciam essa carga identitária da composição que um indivíduo utiliza em
suas produções:
26
Recentemente o autor publicou um livro homônimo à série de tiras. Disponível em
http://rquadrinhos.blogspot.com/2011/07/ric-milk-e-josi-bell-lancam-album.html , acessado em
novembro de 2011.
97
Evidentemente que as narrativas, apesar de sugerirem as vivências do casal,
eram ficcionalizadas, pois toda representação é uma espécie de ficção, mas
certos signos representam ao menos uma face da realidade. Vale citar como
exemplo a figura 17, que mostra o casal em Cuiabá, este local geográfico é
realmente a cidade onde o autor reside; isto quer dizer que durante a época em
que realizou a tira conhecia as condições climáticas desse território. Para os
que partilham da vivência cotidiana nesse mesmo local, fica mais
potencialmente fácil entender à referência que o autor faz ao calor da cidade.
Já se o espectador não entender o quão quente a cidade é na maior parte do
ano, o significado pode não surtir o mesmo efeito, chegando até a achar que o
valor que o termômetro marca no desenho (45º graus) é uma invenção de
Ricardo Leite, um exagero tal como as caricaturas de um quadrinho.
98
meio de comunicação, a HQ teve sua publicação vetada. Isso é outro fator que
pode ser observado quando se entra em foco o contexto cultural do autor, as
revelações e significados descobertos não são apenas referentes ao artista que
produz, mas também a todo seu entorno. O arte-educador Gazy Andraus
realiza uma observação acerca dessa característica de análise:
Nesse caso, além da tira dizer algo a respeito do autor, diz também
sobre seu entorno social, como exemplo pode-se dizer que a visão humorística
de Ricardo Leite nem sempre coincidia com aquilo com que a equipe a qual ele
trabalhava, mais especificamente aqueles funcionários do jornal que tinham o
poder de vetar conteúdos, que consideravam adequados ao público da
publicação periódica. Se Ricardo Leite fez a tira já sabendo que se destinava a
ser veiculada no jornal, deve, pelo menos por algum momento, ter acreditado
que não seria censurada, contudo não foi o que aconteceu.
Nas análises que seguirão acerca de alguns exemplares da obra de Ric
Milk, vez ou outra serão trazidas informações referentes às suas circunstâncias
sociais, são dados que contribuirão ao entendimento dos níveis de leitura de
sua obra.
99
mesmo tempo são os dois. Uma manifestação que não se distingue onde é
referenciada exatamente pela força motriz da literatura que a abarca, ou pela
plasticidade visual das imagens que estão contidas. Essa provocação cognitiva
que os quadrinhos causam no intelecto de quem os lê é colocada por Andraus
do seguinte modo:
100
Figura 18 - Tira de Ric Milk – retirada do endereço eletrônico http://diariodeumcasal.com.br/ ,
acessado em junho de 2011.
101
Em se tratando dessa tira de Ricardo Leite, o texto coloca “todo herói
tem sua pátria”, em processo semântico a relação de pátria e os objetos
simbólicos que a representa, é possível entre eles imaginar a bandeira, então,
ao olhar novamente a imagem do objeto na qual a personagem sustenta, cai-se
na ideia de que pode ser um mastro segurando uma bandeira. É claro que não
é exatamente seguro que os espectadores façam essa relação entre a forma
apresentada e a “bandeira”, mas o artista elabora esse discurso com base na
cumplicidade que existe entre o produtor da arte e o fruidor dela, cumplicidade
que nada mais é que entender o grupo cultural a qual se destina sua obra. No
caso de Ric Milk, como realiza uma produção cotidiana de tiras, sejam as que
são veiculadas no jornal ou as que ele insere em seu sítio da internet, muitas
vezes o autor deve criar a expectativa de que o leitor tenha acompanhado as
tiras anteriores, e dessa cumplicidade extraí inclusive o pensamento de que a
figura, a qual discutiu-se aqui a possibilidade de ser tanto homem quanto
mulher, seja interpretada como “Josi Bel”, sua esposa caricaturada. O que
facilita a análise da tira, reduzindo as possibilidades de ser interpretada como
uma figura andrógina.
O segundo quadrinho possibilita que essa percepção seja reafirmada,
pois mostra um enquadramento a partir de um plano americano, onde é
possível observar a personagem acima dos joelhos, permitindo enxergar uma
silhueta que mostra a cintura fina e quadris largos, inserindo, mais uma vez, a
ideia de que se trata de uma mulher, isso levaria aos leitores que não
acompanham cotidianamente as tiras de Ric Milk a também interpretarem a
figura como uma mulher. O segundo quadrinho mostra também a forma que se
assemelha a uma bandeira, deixando-a melhor visualizada, por mais que não
apareça por completo, a intenção de ser uma bandeira continua sendo
afirmada pelo conteúdo verbal, “e toda pátria reconhece seu herói”, ainda na
correlação simbólica entre pátria e bandeira.
No derradeiro quadro da tira as silhuetas remetem a outras
características, a imagem que remetia à bandeira se revela semelhante à outra
coisa: um mastro com fios como se tivessem roupas penduradas nele, nesse
momento o signo que remetia à bandeira, que já era um sinsigno, em processo
de semiose assume novas possibilidades imagéticas, tornando-a um varal com
102
roupas, outro sinsigno construído sobre o mesmo signo. A mulher está
inclinada e sua silhueta revela o que parece ser uma camiseta em suas mãos.
O conteúdo verbal condiciona e aprisiona a leitura dai percebermos a imagem
como se fosse uma mulher segurando uma peça de vestuário com um varal
compondo os arredores de onde ela se encontra, no quadro de legendas há
escrito “menos Josi Bel, nossa heroína, mãe, mulher, guerreira... e, dona de
casa.”
No âmbito cultural tudo está passível de ser símbolo, isto é, o homem
sempre irá fornecer um valor convencionado às leituras que realiza, mesmo
que não queria, “pois o pensamento não trabalha diretamente com o concreto,
mas com representações mentais desse mesmo concreto” (SANTAELLA, 1996,
p. 64). Apesar disso, é possível recortar hipoteticamente a ideia de que, no
âmbito de ícone, os quadrinhos do exemplo mostram uma mulher que parece
uma heroína apoiada em algo que parece ser uma bandeira, isso é traçado por
certas características de semelhança. Mas ao fim, ainda por relações de
similaridade, o que surge é a imagem de uma mulher que está pendurando
roupas em um varal. Esse seria o caráter icônico da obra mostrada. Ora, as
manchas da tinta criando as imagens de uma mulher ou bandeira ao carregar a
carga de similaridade com o conteúdo identificado (mulher, bandeira) já pulou
para o campo da secundidade peirceana.
No caráter indicial, seria necessário imaginar a que coisas a história se
relaciona factualmente. Pelo princípio mais básico a relação factual entre a
imagem acima se dá com o artista que a produziu, no caso Ricardo Leite, pois
para ela existir foi necessário haver um sujeito que a compusesse
materialmente; mas outras indicações podem ser elaboradas, algumas
bastante ousadas, mas nem por isso menos indiciais, por exemplo, como esta
reprodução específica da história em quadrinhos consta em um texto de
dissertação, ela indica a existência de um espectador que a retirou de seu local
original e a inseriu aqui, desse modo ela permite perceber a existência de
alguém que refletiu sobre ela como objeto com potencial de dialogar certas
teorias acadêmicas na prática, ou seja, essa HQ, sob as condições específicas
onde se encontra reproduzida (nessa dissertação), indica a existência do autor
desse texto, e mais, indica a existência de um programa de mestrado que
103
solicita tal pesquisa ao autor do texto, que indica a existência de uma
academia, e assim por diante.
Já o caráter simbólico no campo da imagem é bem perceptível quando
identificamos, via o habito, as formas como algo reconhecível como as da
mulher e da bandeira, porém quando pensamos pelo lado do conteúdo as
informações são engessadas pelas ideologias e convenções culturais, que têm
suas significações alteradas de acordo com o grupo social que a lê. Mas, sob
situação hipotética e como exemplo didático, pode-se imaginar algumas
possibilidades simbólicas. A obra coloca a mulher como heroína de uma pátria,
representada apenas pela silhueta, a partir da utilização da linguagem da Arte
Sequencial; essa linguagem artística teve uma profunda produção de revistas
do gênero de aventura, tendo destaques as aventuras de heróis e super-heróis,
então é conveniente traçar uma relação simbólica entre a ideia de heroína da
narrativa e a ideia do gênero aventuroso. Contudo, no último quadrinho existe
um rompimento com a ideia de heroína desse tipo de gênero artístico, pois é
apresentada a face de dona-de-casa, esposa, mãe; isso coloca um contraponto
como se a verdadeira face de um herói fosse superar os desafios de seu
cotidiano, por mais prosaico que seja. No conteúdo textual/verbal a narrativa
coloca que toda pátria reconhece seus heróis, menos Josi Bel, a heroína do
dia-a-dia; como se a nação não valorizasse as milhares de mulheres que agem
em prol do bom desenvolvimento familiar, pois, mesmo sendo boas mães,
esposas e donas de casa, não tem seu espírito heroico valorizado. Assim
sendo, a partir de uma breve reflexão, pode-se dizer que a história em questão
é um símbolo da constante falta de valor oferecida as atividades domésticas e
familiares. Um símbolo do machismo. Por outro lado, ainda dentro do caráter
simbólico, essa tira, através da desvalorização dada à “heroína do dia-a-dia”,
pode fazer alusão à ideia de que heroico mesmo é enfrentar o cotidiano
estabelecido, mas isso não quer dizer que haja um reconhecimento.
Desse modo, o caráter simbólico de um signo é campo das
possibilidades múltiplas, multiformes e reversíveis; como os múltiplos pontos de
uma cadeia rizomática. Isso coloca que, além da variedade de espectadores,
com seus diferentes acervos culturais, existe uma pluralidade de signos em
potencial internalizados no intelecto de cada intérprete do signo externalizado.
104
O seguinte quadrinho de Ric Milk (figura 19) possui um desfecho que cabe para
colocar como exemplo dessas várias interpretações possíveis.
105
momentos, apesar das cenas não estarem separadas pelos requadros; vale
lembrar que alguns exemplos de Arte Sequencial durante a história da
humanidade não utilizavam requadros, tal como a coluna de Trajano.
Ao final da história de Ricardo Leite existe uma única moldura, que se
opõe à ideia de liberdade, visto que no início a narrativa propõe que a ausência
das linhas de limitação dos planos da imagem agia em favor de uma liberdade;
então o requadro age como algo que limita, e todo limite é a demarcação de
um fim, nesse ponto o plano de expressão age em favor do plano de conteúdo,
pois o requadro aparece no fim da história, ou seja, um semi-simbolismo, que
segundo Pietroforte, é onde reside a poesia de uma linguagem sincrética.
Nesse quadro marcado pelas linhas limitantes da cena existe um único balão,
com o seguinte texto “Pois um dia tudo pode terminar aqui. E fecha o quadro.”.
Esse “aqui” onde a personagem indica que tudo pode acabar, se trata do quê?
Da morte? Do final da história propriamente dito? Ou apenas está indicando
que um dia a liberdade pode acabar, independente de como for? Essas
significações podem levar a outras, a partir do processo peirceano de
interpretação ad infinitum,
Dentre as possibilidades infinitas vale sistematizar uma delas a partir da
ideia de níveis de leitura, o semi-simbolismo leva a identificar o Nível
Fundamental “Liberdade vs. Não Liberdade”, onde a liberdade é mostrada
visualmente pela ausência dos requadros. Inferindo o seguinte quadrado
semiótico (figura 20):
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A ausência de requadros implica na liberdade, e o texto indica que
quando estão livres os personagens podem “matar o serviço, não ir à escola,
seguir um outro caminho, acordar de madrugada, beber até cair, fazer
orgias...”, todas as atividades estão envolvidas na ideia de ausência de uma
“pressão”, quase como se viver dionisiacamente fosse um modo de ser ver livre
das razões e pressões apolíneas. As perspectivas diversas que existem nas
poses dos personagens se relacionam com a ausência de sistematização,
denunciada pelo texto da mulher que diz “sem simetria nos cobrando, sem uma
ordem linear nos lembrando de seguir adiante”, o homem do casal
representado ainda complementa que aquela tira em específico “não tem a
rudeza dos quadrados”. O termo “quadrado” pode tanto fazer menção ao
contorno do requadro como à expressão popular que diz ser “quadrado” o
indivíduo que age de maneira mais potencialmente racional, com muito
conservadorismo, sem ter as emoções tão à flor da pele. Essas implicações
levam à absorção de um discurso que prega a vida dionisíaca à existência de
uma história, e quando os limites são instaurados, a história se finda, isso é
percebido pelo derradeiro quadrinho possuir o requadro. Como se para o
artista, ainda mais levando em conta que o autor é personagem de si mesmo, a
vida sem pressão fosse mais potencialmente prazerosa do que a vida com
limites. A própria face dos personagens denota esse prazer, de modo
icônico/simbólico é visto que quando não há limites as faces se encontram com
semblantes cheios de sorrisos, e no fim os rostos assumem um perfil sério,
quase deprimido.
Vale tomar como exemplo outra narrativa de Ric Milk, para que outros
quadrados semióticos sejam vislumbrados, (figura 21).
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Figura 21 – Tira de Ric Milk - retirada do endereço eletrônico http://diariodeumcasal.com.br/ ,
acessado em junho de 2011.
108
quente. Isto é, enquanto estavam vestidos o quadrinho estava congelado, à
medida que foram retirando peças de roupas a temperatura tivesse se elevado
e derretido o quadrinho.
Desse modo relaciona-se que quando as roupas somem o ambiente
esquenta, e dá-se a isso a ideia do calor da paixão, da sensualidade, dos
corpos; é fornecido pensamento de que com o clima quente o ato sexual
acontece. Em contraponto ao estatuto do frio, onde as roupas existem e o ato
sexual não é consumado. Então, em se tratando das redes de relações, pode-
se indicar que nudez/calor corresponde à possibilidade de realizar o ato sexual,
e frio/vestido a não realização do ato, e, por outro lado, também possibilita a
relação de que na realização do ato temos a ausência das figuras e na
presença das figuras temos a ausência do ato. A rede de relações que leva aos
diferentes níveis de leitura pode ser visualizada no esquema do “quadrado
semiótico”. Que, dentro das categorias apresentadas, se instaura no seguinte:
109
o ato sexual pode acontecer, as figuras não aparecem; é justamente por não
aparecerem que semanticamente pode-se colocar que os quadrinhos foram
censurados, ainda que, diferente do exemplo da tira comemorativa do
aniversário da cidade do autor, Cuiabá, possa ter sido uma auto-censura.
Para relacionar esses entendimentos ao processo de polarização,
atribuindo valores negativos para um lado da dicotomia e positivos para outro,
deve-se embrenhar com o pensamento sobre a conjunção e a disjunção dos
atores da narrativa. Isto é, toda narrativa inicia em um conflito, onde, quando o
conflito é superado, o ator da narrativa está em conjunção com seu objetivo, se
o conflito não é superado ocorre a disjunção. No exemplo da história de Ric
Milk, o início do percurso da narrativa é o flerte, a conjunção do flerte seria a
consumação de alguma atividade sexual. Para a realização do objetivo, deve
existir alguma ação que mova os personagens em prol da conjunção da
estrutura dramática do roteiro. Essa ação na história exemplificada seria o ato
de retirar as peças de roupa. Se os sujeitos da narrativa efetivam o objetivo,
estão em conjunção, isto seria o caráter positivo da dicotomia; se não cumprem
o objetivo, estão em disjunção com a meta narrativa, logo isso seria o caráter
negativo da dicotomia.
Como, apesar de não aparecer explicitamente, a narrativa oferece
possibilidades sígnicas para dizer que o ato sexual foi consumado, visto o calor
que derreteu todo o requadro e o texto do último balão que é dito, ainda que
não se veja para quem o ponteiro do recurso visual aponte, pelas localizações
das personagens nos planos anteriores é permitido atribuir à personagem
feminina, “Aproveita que ninguém tá vendo, mesmo.”. Como o ato se iniciou,
ainda que houvesse sido no término da narrativa, a história entrou em
conjunção com os valores propostos no quadrado semiótico.
O fato de se propor tais leituras da produção em Arte Sequencial
realizada por Ricardo Leite, não quer, nem de longe, colocar que essas
significações é que sejam as mais próximas das intenções que o artista
projetava. Não quer também cair na ideia de que essa visão semiótica seja
mais completa do que outros caminhos científicos. A intenção nessa
investigação é a de se propor que conhecendo as discussões aqui
apresentadas seja possível fornecer uma maturidade ao entendimento das
110
Histórias em Quadrinhos como linguagem artística, revelando que é tão
complexo como qualquer outra produção em Artes.
111
CONSIDERAÇÕES FINAIS
112
Toda pesquisa apresentada é uma parte terminada de um percurso
interminável, isto é, esse estudo não é algo que deve ser tido como uma
proposta acabada; nem que as implicações sobre produção de sentido aqui
sejam inteiramente completas. Longe de acreditar que essa pesquisa finda os
estudos referentes à produção de sentido nas Histórias em Quadrinhos, em
realidade a visão é de que ela seja apenas um ponto de partida para inúmeras
averiguações. Esse ponto inicial permitido evoca uma defesa em prol das
Histórias em Quadrinhos como uma linguagem artística mais antiga do que o
cinema. Um passeio que mostra a compreensão de que a Arte Sequencial não
é algo recente na trajetória da humanidade, tendo exemplares tão antigos
quanto a própria literatura.
Quando, nessa dissertação, se legitimou as HQ’s como uma linguagem
artística complexa e específica, ainda que flerte com outros campos da arte, se
fez isso para perceber que o objeto necessita que alguns preconceitos do
senso comum sejam destruídos, como os de creditarem a essa manifestação
apenas obras relacionadas com o público infantil e juvenil. Não é um problema
ter uma grande produção para essa parcela etária, mas esse rompimento é
necessário para que se utilize os recursos da linguagem em questão para
inúmeras outras situações e diversos outros grupos culturais.
Richard Outcault, Ângelo Agostini, Will Eisner, Peter Kuper, Bill
Watterson, Art Spielgeman, Maurício de Souza e Ricardo Leite, todos são
quadrinistas, mas isso não quer dizer que o público que frui suas obras seja o
mesmo. Isso nem quer dizer que cada projeto de Banda Desenhada que eles
executem sejam para o mesmo perfil de espectadores; os quadrinhos são tão
plurais quanto às intenções dos autores.
E não só isso, este estudo comporta uma discussão de que uma mesma
obra pode ser lida de inúmeras maneiras, desde a compreensão dos valores
mais fundamentais da narrativa, até a ideologia de quem o fez a partir do
discurso comunicado. As HQs podem propor sensações qualitativas, singulares
ou culturais, todas ao mesmo tempo, ou cada uma em um momento distinto.
113
Passar pelos momentos de sentidos produzidos propiciados por uma HQ é tal
como a poesia do mineiro Murilo Mendes, “Ninguém se banha duas vezes no
mesmo rio”, sendo assim, ninguém lê duas vezes uma banda desenhada do
mesmo modo.
A expectativa tida a partir deste estudo é que, conhecer os níveis de
leitura, entender a semiótica como metodologia de análise, observar a história
e fundamentos da linguagem aqui apresentada, leve os espectadores dessa
arte a olharem suas revistas e livros colecionáveis com outros olhos; leve os
artistas a usufruírem desse conhecimento para experimentarem possibilidades
diversas em suas produções; leve educadores a explorarem maneiras mais
críticas de percepção; leve investidores a perceberem como pode ser amplo o
discurso gerado por uma HQ. Enfim, apesar de não se intencionar uma
verdade absoluta nesta pesquisa, ao menos a intenção é de se desfazer
algumas mentiras.
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REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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Naify, 2003 (V.1), p: 167-240.
115
CIRNE, Moacy. A Linguagem dos Quadrinhos. Petropólis:Vozes, 1971;
____________. Para ler os Quadrinhos – Narrativa cinematográfica à
narrativa quadrinizada. Petropólis: Vozes, 1975;
____________. História e Crítica dos Quadrinhos Brasileiros. Rio de
Janeiro: Funarte, 1990;
116
__________. Pequenos Milagres. São Paulo: Devir, 2006.
117
LUYTEN, Sonia. Quadrinhos Paulistanos: de Agostini à Maurício. In: São
Paulo na Idade Mídia. Organizadores: José Marques de Melo & Antonio Adami,
São Paulo: Arte e Ciência, 2004;
118
PIETROFORTE, Antonio Vicente Seraphim. Análise textual da história em
quadrinhos: uma abordagem semiótica da obra de Luiz Gê. São Paulo:
Annablume; Fapesp, 2009;
_____________________________________.Semiótica Visual – os
percursos do olhar. São Paulo: Contexto, 2010;
RAMOS, Paulo. A Leitura dos Quadrinhos. São Paulo: Ed. Contexto, 2009;
119