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Comunicação e Educação, São Paulo, ( 1 1: 15 a 46, set.

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130 ANOS
DO DIABO COXO
O PRIMEIRO PERIÓDICO ILUSTRADO DE SÃO PAULO

Há exatamente 130 anos Ângelo Agostini desenhou a primeira


página da História da Imprensa Ilustrada Brasileira.
Esse fato merece ser lembrado não só pelo seu
caráter histórico, mas pela sua importância
para a imprensa atual, que não seria
tão rica sem as ilustrações.

poltronas pouco acolhedoras! Nem uma re-


vista ilustrada sequer para saborear-lhe as
Em nossos dias ninguém, ou quase nin- fotos, ainda que em branco-e-preto! Não ter
guém, dispensa algumas horas, minutos que nem ao menos um jornal para rir de uma
sejam, diante da TV. Ligar o aparelho, ao charge ou ler alguma história em quadri-
voltar para casa, já se tomou um ato condi- nhos, uma "tira" que fosse! Ter apenas e tão
cionado, mecânico, instintivo. A imagem somente aquele jomalão, cheio de letras,
fascinou o homem. É imperioso ver alguma sem nenhum desenho, ou um romance mas-
coisa: saber das notícias, irritar-se com os sudo, um monte de páginas, nem uma figu-
políticos e suas safadezas, maldizer o gover- ra sequer para ver!
no, ou divertir-se com os programas de au- Era bem esta a situação dos paulistanos
ditório, participar ansioso de suas premia- antes da chegada de Ângelo Agostini e do
ções, ou assistir à transmissão de um jogo, seu primeiro jornal ilustrado e de caricatu-
principalmente durante a Copa e quando jo- ras de São Paulo.
ga o Brasil. Ao abrir um jornal, os olhos bus- Os processos de reprodução eram mo-
cam primeiro a charge (representação cari- rosos e caros. A fruição da imagem ainda
catural em que se satiriza uma idéia, situação era privilégio de poucos e de posses. As
ou pessoa), a foto, os quadrinhos. Os arneri-
canos, espertos e pragmáticos, descobriram O AUTOR
isso há muito tempo: os quadrinhos vendiam
Ant6nio Laiz Cagnh
jornais. Inundaram então o mundo com seus
Professar Doutor da FFLCWUSP (Faculdade
heróis e com a imagem de sua cultura. de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da
Ninguém mais consegue privar-se da Universidade de S%o Paulo), em Teoria da
imagem. Hoje em dia, isso é inconcebível! Literatum e Literabura Comprada.
Seria desesperador, trágico até, não ter um Autor de Os Quadrinhos,Colqão Ensaios,
~ dAtica.
.
cinema para ver um filme, ainda que em
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obras de arte, quadros e pinturas, que habi- bo! O Diabo Coxo, como se chamava o pe-
tavam as mansões, não estavam lá, nas ca- queno jornal que movimentou a pequena e
sas mais simples. O povo mal lhes tinha pacata São Paulo de então. Faz hoje 130
acesso ou escassamente. As iluminuras be- anos. 1864. Agostini havia chegado um ano
líssimas e coloridas, trabalho da paciência antes. Jovem. 20 anos apenas. Artista, for-
beneditina dos monges, só nos livros-de-ho- mado em Paris.
ras, raríssimos e mais caros ainda, adquiri-
dos por algum devoto cheio de fé e mais de Agora podiam ver o Imperador, ainda
dinheiro. As estampas, xilogravuras ou em que distante, conhecer-lhe a fisionomia no
talho doce, eram de retrato minucioso
produção limitada, de Agostini, indig-
ornavam livros ou nar-se contra os po-
paredes, com parci- líticos e suas maze-
mônia franciscana. las, rir-se de suas
Revistas de moda re- caricaturas; conhe-
cebiam encartes co- cer os tipos e a mo-
loridos vindos da da da Corte e de to-
França, que lhes ser- do o mundo; viver,
viam para ornar os como se estivessem
exemplares e as extravagâncias dos nobres, presentes, as peripécias da guerra do Para-
das damas, dos burgueses pedantes que se guai, as infindas indecisões de Caxias à
pavoneavam pela Corte. Fotos já existiam. frente das tropas brasileiras, ter algumas
Militão já fotografava por aqui nossas ruas vistas dos locais de batalha; ler as primei-
e praças, desde 1862, ou fixava na "pose po- ras histórias em quadrinhos (Agostini já ar-
sada" os rostos quatrocentões dos nossos riscava suas primeiras "tiras", ainda que
barões e condes, de personalidades como imprecisas); receber, ao vivo, as notícias
Rui Barbosa, Joaquim Nabuco, Luís Gama, da cidade, através de reportagens, também
Castro Alves. em quadrinhos, como a do desastre de
Só nas igrejas, o imaginário sagrado se trem, bem no dia da inauguração da pri-
abria para todos, indistintamente, ricos e meira estrada de ferro de São Paulo. Esta-
pobres. va correndo demais, 16 km por hora! Co-
nhecer os artistas das companhias estran-
Imagine-se então com que avidez nossos geiras que se apresentavam em turnê pela
antepassados receberam aquele primeiro capital da Província.
número de jornal repleto de imagens. Um milagre! Proporcionado pelo ar-
tista e pela litografia. Esse novo processo
é que permitiu ao desenho passar direta-
Nem é preciso imaginar. A imagem foi dada mente da pedra litográfica para as páginas
pelo próprio Agostini. Numa caricatura re- do jornal. A um baixo custo e com rapi-
tratou o alvoroço dos leitores diante da re- dez, fácil e, até, diariamente. Pelos outros
dação da "Lithographia Allemã" para adqui- processos de gravar na madeira ou no me-
rir o número inaugural naquele dia. Um su- tal, morosos e caros, isto nunca fora al-
cesso! Um atropelo! Uma festa! Foi o Dia- cançado antes.
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venção da litografia, o demônio escancarou


A litografia democratizou a imagem. Di- seu riso mordaz nos títulos dos muitos jor-
vulgou, difundiu, popularizou. Todos, até nais satíricos e de humor.
os menos instruídos ou os de pequeno po- Diabos de todos os tipos, em todas as
der aquisitivo tinham agora acesso às no- línguas:
tícias ilustradas.
E1 Diablo Suelto (1 839 e 1863-64)
E1 Diablo (1 842-43; 185 1 e 1886)
Todos passaram a "ler" imagens. Todas as Le Diable a Paris (1 845-46)
semanas. Por 500 réis apenas. O preço de E1 Diablo, Revista Infernal ( 185 1)
um almoço. Le Bon Diable (Paris, 1858-9)
Fra Diavolo (Milão, 1862 e1890)
Mas por que um título tão estranho? Gazeta do Diabo (Lisboa, 1867)
É o que parece pra nós, hoje. Mas, se Diabrete (Lisboa, 1877)
olharmos para trás na história, veremos que O Diabo em Lisboa (1 879),
o diabo sempre foi tomado como elemento E1 Diablillo Suelto (Madri, 1893)
infernizante. Desde a Idade Média, encara- E1 Diablo Mundo (Madri, 1895)
pitado no alto das catedrais góticas, despeja O Diabo (Lisboa, 1899)
das gárgulas horrendas o sorriso sarcástico.
Instalou-se na literatura e na arte em geral. Diabos de todas as cores:
Foi tema de pinturas e de esculturas, foi tí- Diable Rose (Paris, 1848)
Le Diable Vert (Paris, 1864)
tulo de peças teatrais e de romances. E1 Diablo Azul (Madri, 1872)
E1 Diablo Cojuelo do escritor espanhol E1 Diablo Rojo (Madri, 1873)
Luis Velez de Guevara lhe granjeou, logo ao I1 Diavolo Rosa (Milão, 1888-93)
ser publicada em 1641, um grande sucesso.
Mais de um século depois, em 1720, Lesage . . . em todos os sons:
A Rebeca do Diabo (1875)
repetiu-lhe a dose e o tom no romance com Língua do Diabo (Lisboa, 1 879, 1886 e 1888)
o mesmo título e assunto, Le Diable Boi-
t e m . O diabo Asmodeu, o coxo, estava pre- aos montes:
so em uma garrafa. Libertado por um estu- O Diabo a Quatro (Recife, 1878)
O Trinta Diabos (Lisboa, 1869-78, 1882 e 1886)
dante, concedeu ao jovem o poder de ver,
O Trinta Mil Diabos (Lisboa, 1872-73)
através dos tetos e das paredes das casas, o Trinta Diabos Júnior (Lisboa, 1875)
que se passava com as pessoas no seu inte-
rior. Era uma fórmula cômoda de retratar e outros diabos:
satirizar, com espirituosidade, os costumes Satan (Paris, 1868)
da sociedade. Mefstófeles (Rio de Janeiro, 1889)
Por parodoxal que seja, o gênio do mal, e até os coxos:
anjo rebelde, foi tomado como agente mo- Le Diable Boiteux (Paris, 1824-5)
ralizante, crítico da sociedade e dos seus er- E1 Diablo Cojuelo (Madri, 1860-1)
ros, realizando, sobretudo através da carica- I1 Diavolo Zoppo (Milão, 1871)
O Diabo Coxo (Lisboa, 1873)
tura desenhada, o dito estampado no alto da
Le Diable Boiteux (Paris, 1883).
Comédie Française e consagrado no provér-
bio latino: "ridendo castigat mores" (rindo, Não é de estranhar, pois, que também
castiga os costumes). Agostini tenha sido tentado por um diabo
Daí, ao desenvolver-se a imprensa pe- desses. O coxo, certamente, da novela es-
riódica e ilustrada no século XIX, com a in- panhola.
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O Diabo Coxo de Agostini era um jor- coleção completa da publicação original de


nal pequeno, 18 x 26 cm, com oito páginas 1864. Pertence ao Dr. Roberto Lemos Mon-
apenas, quatro de ilustrações e quatro de teiro, residente em São Paulo.
textos (artigos, poesias, notícias, críticas, A Biblioteca Municipal Mário de An-
etc.), dos quais se ocupavam Luís Gama drade, de São Paulo, possui uns poucos nú-
(Luís Gonzaga Pinto da Gama, 1830- meros, na sessão de obras raras, encadema-
1882) e Sizenando Barreto Nabuco de dos com exemplares de outros jornais do sé-
Araújo (1842-1892). Era impresso na Ti- culo passado. Possui também um microfil-
pographia e Lithographia Allemã, de Hen- me negativo da coleção completa, reprodu-
rique Schroder. zido, por sua vez, de um negativo fotográfi-
O primeiro número saiu em 17 de setem- co. Não existe, porém, registro nem a menor
bro de 1864. Publicaram-se duas séries de 12 informação a respeito do original que tenha
números cada: a primeira, a partir daquela dado origem a esses dois negativos. Nem
data até 3 1 de dezembro de 1864; a segunda, mesmo dos próprios negativos.
de 23 de julho a 31 de dezembro de 1865. Ângelo Agostini foi o pioneiro da im-
Nele colaborou também "Nicoláo de prensa ilustrada entre nós e que abriu pra
Vergara, pintor estabelecido à Rua da Luz, São Paulo o mundo encantado da imagem.
iniciando sua carreira de caricaturista em De Vercelli, no Piemonte, Itália, educou-se
São Paulo", que, mais tarde, "em 1876, em Paris, com a avó, com a qual conviveu
ilustrou o semanário humorístico 'O Poli- desde os 4 anos, após a morte do pai, um
chinelo', redigido por Luís Gama (ver Délio violinista. Desembarcou no Rio muito pro-
Freire dos Santos. Cabrião. Imprensa Ofi- vavelmente em 1863 em companhia da
cial, São Paulo, p. 28). mãe, cantora lírica e, após 3 meses, chegava
Em duas notas o Correio Paulistano de em São Paulo, onde, ainda nos seus verdes
então comentou elogiando o aparecimento 20 anos, com a arte itálica e a finesse fran-
do Diabo Coxo: cesa, publica o Diabo Coxo, o primeiro jor-
9 out 1864: nal ilustrado e de caricaturas de São Paulo
O Diabo Coxo aparece em forma de jor- (1864-1865). Logo no ano seguinte lança o
nal e promete não cair (pelo seu primeiro Cabrião (1866-67), outro jornal, de não me-
número) na encharcada vereda dos pas- nor importância e não menos infernal.
quins. Ainda bem, já é um progresso pra Em 1867 parte para o Rio de Janeiro
nossa terra possuir uma folha do gosto da onde permanece até a morte, em 1910. Foi
"Semana Illustrada ", uma folha dedicada à onde Agostini atingiu o auge de sua carreira
caricatura, ao gracejo digno e comedido. e se destacou no panorama da vida nacional
27 nov 1864: por sua atuação na imprensa ilustrada, em-
O Diabo Coxo é um jornal de que já dei punhando as armas da caricatura, do riso e
notícias à leitora. Esteve interessantíssimo da sátira, com uma influência efetiva na for-
este último número, principalmente a gra- mação da opinião pública, sobretudo em
vura da 4a página. Há inspiração naquele de- dois momentos decisivos da vida nacional:
senho; há alguma coisa de Rafael naquela a Abolição da Escravatura e a Proclamação
pintura. Vejam e me digam (Cabrião, Délio da República. Esse mesmo poder persuasi-
Freire dos Santos, p. 22). vo através da imagem, Agostini havia exer-
Hoje, existe, com certeza, apenas uma cido antes, em São Paulo, com os seus dois
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jornais, o Diabo Coxo e o Cabrião, por "Repórter do lápis" - como gostava de


ocasião da guerra do Paraguai. se chamar -,a prancha litográfica mal conti-
nha seu impulso iconorrágico. Sua produ-
A eloqüência das cenas que mostravam os ção é volumosa, impressionantemente bela
sofrimentos dos escravos certamente fo- e cheia de vigor.
ram muito mais convincentes que os dis- "A pedra de impressão era a pedra dára
cursos dos abolicionistas a ponto de ter do altar da Liberdade." (Pires Brandão)
promovido uma comoção popular em fa- "Figura solar da caricatura e da litogra-
vor da abolição fia brasileira (Herman Lima), o mais brasi-
leiro dos brasileiros (Joaquim Nabuco), só
(como de fato reconheceu o próprio Nabuco). lhe conhecemos uma vaidade, a de não ter
precisado nascer nestas paragens do Cruzei-
Foi, da mesma forma, fator determinan- ro do Sul, para ser um dos primeiros, dos
te na formação da opinião pública em prol mais beneméritos brasileiros." (José do Pa-
do movimento republicano. trocínio)
No Rio publicou a Revista Illustrada
(1876- 1895), o periódico de maior duração
e de grande importância no Segundo Impé- Cabe-lhe também a glória de ter sido um
rio. Foi chamada por Nabuco de "a bíblia da dos precursores, no mundo, das histórias
abolição dos que não sabem ler". em quadrinhos e de ter publicado, lá no
Além da caricatura, vergastou a politi- longínquo 1869, a primeira novela-folhe-
cagem reinante, representou o dia-a-dia da tim, em quadrinhos, de que se tem notícia,
vida urbana, retratou os tipos humanos, des-
de o engraxate aos barões, fez reportagens
sobre os acontecimentos, os crimes, os des- "Nhô-Quim,ou Impressões de uma Viagem
mazelos da administração, condenou a vio- a Corte. História em muitos capítulos" e
lência policial, fez a critica das atividades "As Aventuras de Zé Caipora".
artísticas, riu-se e fez rir de tudo e de todos. "Era de ver o magote de guris em redor
Agostini compôs com tal precisão o da folha (Revista Illustrada) desdobrada no
dia-a-dia da cidade que nos legou, ao final, assoalho, à noite, à luz do lampião de que-
um retrato por inteiro e a história ilustrada rosene, o mais taludote explicando a um
desse período. Talvez, o documentário ico- crioulinho, filho da mucama, como é que o
nográfico mais importante e completo do Zé Caipora escapou às unhas da onça."
Segundo Império.
(Monteiro Lobato)
"Quem, na verdade, quiser estudar a
Em 1910 morreu acabrunhado e desilu-
história política de nossa terra há que recor-
rer, forçosamente, a esse colossal fabulário dido dos políticos e da República. Não era
a esfuminho, por onde o gênio do caricatu- aquela com que sonhara. Pouco antes, em-
rista perpassa de contínuo fixando... as ma- balava nos braços a netinha Mariana, que
zelas dos nossos próceres." (Herman Lima) ainda vive, em Brasília, a recontar saudosa
E, por fim, editou o Don Quixote as histórias do avô.
(1895- 1902), menor, mas extremamente Hoje, 1994, homenageamos Ângelo
significativo, por ser, com certeza, uma ale- Agostini, quem, há 130 anos, desenhou a
goria da própria vida desse novo "cavaleiro primeira página da História da Imprensa
da esperança". Ilustrada de São Paulo.

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