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Carta aberta sobre a dignidade de morrer em tempos de coronavírus1

Às cidadãs e aos cidadãos, com particular atenção às autoridades competentes.


A morte entrou nas nossas casas. Todos os dias, recebemos com pesar os números dos
mortes por causa do vírus. Tornou-se um boletim de guerra olhar ao telefone, ler e ouvir as
notícias. Números desproporcionais.
Por trás do anonimato dos números, existem rostos, nomes, histórias, pessoas que
cruzaram as nossas vidas: os nossos pais, parentes, amigos, colegas e conhecidos. Muitos
deles viveram a tragédia de morrer sozinhos, sem o afeto dos seus entes queridos.
Isso também poderia acontecer conosco. O vírus ataca indistintamente. Também poderia
acontecer que nos encontremos no hospital, sozinhos, sem a presença de um membro da
família. Pensamos com pavor na própria morte, mas agora parece ainda mais terrível a ideia
de ter que enfrentá-la na solidão, sem a possibilidade de se despedir dos próprios entes
queridos.
Sabemos que, desde sempre, a unidade de terapia intensiva é um local proibido para os
visitantes; e que, nos momentos de epidemia, as precauções se tornam ainda mais rigorosas.
No entanto, no debate democrático que não deveria faltar, mesmo nestes momentos de
emergência, gostaríamos de chamar a atenção para o desaparecimento do caráter humanizante
do morrer, sem o qual se deixa a pessoa que está morrendo na solidão afetiva.
Quem morre sozinho não têm a possibilidade de fazer ouvir a própria voz, as suas
últimas vontades. No máximo, pode entregá-las à equipe médica. Um modo de medir a
humanidade de uma sociedade civil é o fato de proteger os mais fracos, dando voz a quem não
tem voz. Acreditamos que isso também reveste o caráter de emergência que move as decisões
destes dias.
Pedimos, portanto, que nos interroguemos seriamente sobre esse aspecto e que tentemos
formular um protocolo que reúna as razões da saúde e as dos afetos. É verdadeiramente
inadmissível pensar que um ente querido, no absoluto respeito pelas normas sanitárias, possa
estar presente para acompanhar um parente no delicado momento da passagem da vida para a
morte?
Pode-se, com dificuldade, aceitar a solidão do enterro: passada a emergência, poderá
haver gestos públicos para elaborar o luto. Mas, para quem morre, os tempos não podem ser
diferidos: há apenas um único momento. Ninguém merece morrer sozinho, nem mesmo em
uma situação como a atual, sob a chantagem do sacrifício pelo bem de seus entes queridos.
Assim como os profissionais de saúde, com as devidas precauções, podem se aproximar
da pessoa que está morrendo, assim também, na nossa opinião, é necessário pensar em prever
a presença de um parente.
Apelamos, portanto, à inteligência vigilante e criativa daqueles que trazem no coração a
promoção da dignidade do viver e do morrer de todas e de todos.
Na emergência, junto com a excelência sanitária e o governo político da situação,
façamos emergir também uma clara atenção ao perfil humano daqueles que são vítimas da
epidemia.

Lidia Maggi; Paolo Squizzato; Andrea Grillo; Fabio Corazzina; Cristina


Arcidiacono; Massimo Aprile; Paolo Curtaz; Carlo Molari; Gianni
Marmorini; Silvia Giacomoni; Marco Campedelli; Angelo Reginato

1
Carta aberta escrita por diversos teólogos/as e lideranças religiosas italianas, publicada em Fine Settimana, 27-
03-2020. A tradução é de Moisés Sbardelotto. Publicado por IHU On Line. Disponível em
http://www.ihu.unisinos.br/597580-carta-aberta-sobre-a-dignidade-de-morrer-em-tempos-de-coronavirus

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