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Introdução
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PERTEL, T. A tradução como processo comunicativo intercultural nas aulas de línguas
estrangeiras. In: SCHEYERL, D.; SIQUEIRA, S. Nas trilhas da interculturalidade: relatos de
prática e pesquisa. Salvador: Edufba, 2016. p. 133-152
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com a outridade e com as mais novas características da própria cultura que florescem
durante a comunicação intercultural.
Ao compreender a tradução como processo comunicativo intercultural onde
palavras, gestos, figuras, pinturas e silêncios interpretam e produzem significados, a
leitura do outro se dá quando construímos íntimas conexões que podem se estabelecer
entre palavras e contextos, identidades, idiossincrasias.
Portanto, há muito em comum entre a tradução e a comunicação intercultural,
pois, em primeiro lugar, a tradução sempre foi conhecida como uma prática entre-
fronteiras, uma atividade que envolve e (re)estabelece significados linguísticos e
culturais. Assim, as informações através dela (re)construídas são fruto da busca pelo
estabelecimento da comunicação, da compreensão, da possibilidade de leituras do
mundo. Em segundo lugar, ambas as práticas – tradução e comunicação intercultural –
buscam responder à mesma pergunta: como as pessoas conseguem se compreender
quando não compartilham as mesmas línguas e culturas?
Entretanto, embora a associação entre tradução e comunicação intercultural
pareça óbvia, diversos aspectos e definições devem ser esclarecidos, uma vez que cada
um pode ser compreendido de variadas formas. À vista disso, faremos, em primeiro
lugar, uma discussão envolvendo conceitualizações acerca da tradução e da
comunicação intercultural e, por fim, como esses dois se encontram na sala de aula de
línguas estrangeiras.
Para iniciar esta discussão, é importante ressaltar a nossa visão primeira de que a
tradução é um ato de comunicação (WIDDOWSON 1978; HOUSE, 1986; HATIM;
MASON, 1997), compreendendo ‘comunicação’ como um fenômeno que pode ocorrer
através de diversos
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[…] anywhere from 80 to 90 percent of the information we receive is not only communicated
nonverbally but occurs outside our awareness.
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[…] inside or between languages, human communication equals translation.
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[…] any act of communication, any effort at understanding, is translation.
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somente aquele que traduz um texto escrito de uma língua para outra, mas qualquer
sujeito capaz de algum tipo de interação e interpretação da vida e da comunicação
humana.
Essa perspectiva de tradução difere completamente da visão tradicional e
logocêntrica4 de tradução e a obsessão pelo lógico, pelo racional, pela questão da
fidelidade entre o texto-fonte e o texto-traduzido. Esta tradição logocêntrica, que
“rejeita tudo o que seja subjetivo, contingente e dependente de contexto” (ARROJO,
2003, p. 74), busca respostas para indagações científicas sobre o que seria mais
aceitável numa tradução. Para tanto, têm-se como pressupostos:
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Tendência no pensamento ocidental, desde Platão, em buscar a centralidade da palavra (logos), das
ideias, dos sistemas de pensamento, de forma a serem compreendidos como formas inalteráveis. As
verdades veiculadas pelo logocentrismo são sempre tomadas como definitivas e irrefutáveis. Todas as
teorias ligadas ao logocentrismo acreditam que “[...] é fora do sujeito/leitor ou receptor que se encontra a
origem dos significados”. Isso quer dizer que “[...] a origem do significado é necessariamente localizada
no significante (no texto, na mensagem, na palavra), nas intenções (conscientes) do emissor/autor, ou
numa combinação ou alternância dessas duas possibilidades” (ARROJO, 1993, p. 35).
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Culture and language are highly interrelated. Our cultures influence the languages we speak, and how
we use our languages influences our cultures.
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The word must communicate something (other than itself).
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Translation passes through continua of transformation, not abstract areas of identity and similarity.
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Departamento Americano de Administração para Nativos Americanos
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‘respeito’ significa ter consideração e apreciação pelo outro e valorizá-lo (BYRAM et al, 2013).
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diferenciados, trabalhar com valores compartilhados pela comunidade na qual vive e
poderá buscar referências sobre as línguas e culturas com as quais estará em contato.
Tal capacidade de negociação e relativização e a consciência sobre a sua própria
identidade e sobre as identidades alheias são habilidades extremamente relevantes na
relação social com o Outro no mundo contemporâneo. Elas são habilidades
interculturais que podem ser abordadas durante o processo de tradução, preparando o
aluno para a construção de uma análise crítica das experiências e das histórias
individuais e coletivas.
Portanto, a atividade de tradução pode auxiliar o aluno em sua contínua busca
pelo estabelecimento de uma comunicação intercultural que permite o desenvolvimento
dos cinco savoirs, (“saberes”), discutidos a seguir e que, segundo Byram (1997)
compõem a competência comunicativa intercultural.
Em primeiro lugar, o tradutor/aluno pode adquirir esses “saberes”, um amplo
conhecimento que envolve também compreensão sobre grupos sociais diversificados e
seus produtos e práticas e dos processos interacionais individuais e coletivos tanto da
sua própria cultura e sociedade quanto da cultura e sociedade do Outro. Em uma
atividade de tradução interlingual, por exemplo, com a escolha cuidadosa de gêneros e
tipos textuais diversificados, esse conhecimento se inicia com a compreensão da
diversidade da própria cultura e da heterogeneidade de todos os grupos sociais, pois o
aluno trabalhará com sua própria língua e cultura e, ao mesmo tempo, se envolverá com
a língua e cultura do Outro.
Esse contato e as comparações e contrastes necessários à prática da tradução
podem auxiliar o aluno a compreender a influência que sua própria cultura tem sobre
sua compreensão de mundo e expandi-la ao pensar em seu leitor como um sujeito
desconhecedor de tal conhecimento. Dessa forma, gera-se também a compreensão de
que a língua
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com a qual construirá o discurso do texto traduzido não se equivale à outra língua,
sendo cada uma, portanto, única em sua forma de expressar e organizar informações. A
comunicação intercultural se estabelece no conhecimento e na compreensão de que os
valores, discursos, produtos e as práticas e crenças de determinada cultura não podem
ser manifestas de igual forma em outra língua.
Em segundo lugar, a tradução, sob uma perspectiva intercultural, exige que o
tradutor/aluno “saiba ser” (savoir être), ou seja, que possua atitudes interculturais que o
levem a valorizar a diversidade cultural e o pluralismo de ideias e práticas. No contato
com outras línguas e culturas proporcionado pela tradução – de uma língua para outra,
ou mesmo em uma atividade de tradução intralingual – há, inicialmente uma
curiosidade e uma abertura para aprender sobre orientações culturais diferentes. Cria-se
um desejo em refletir sobre os próprios valores, crenças e comportamentos e relativizá-
los, sem presunções de que eles sejam os únicos corretos, pode-se perceber como eles
poderiam ser vistos a partir da perspectiva do Outro, que possui um conjunto diferente
de valores, crenças e comportamentos. O “saber ser”, portanto, através da tradução, é
uma aprendizagem sobre o respeito, a valorização, a abertura e a relativização da
própria identidade e sua relação cooperativa com a diversidade, com a pluralidade.
Outro aspecto intercultural que pode de igual forma ser construído através de
processos de tradução é um “saber compreender” (savoir comprendre). Esse saber reúne
habilidades de interpretação e relacionamento como, por exemplo, a habilidade de
interpretar e relacionar informações de outras culturas, saber explicá-las e relacioná-las
a conhecimentos sobre a própria cultura, compreender que somos seres em contínua
construção. Isso exige do tradutor a habilidade de compreender que uma determinada
cultura não é fechada, e que as interações que o aluno constrói, em especial, em nosso
caso, através das diversas práticas da tradução, criam sua identidade ‘transdimensional’.
Pois, como
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nos lembra Bakhtin (1997, p. 27), “[...] é ainda em nós mesmos que somos menos aptos
para perceber o todo da nossa pessoa”. A verdadeira essência da prática da traduzir é,
pois, revelar o Outro, mas naturalmente, fazer florescer aspectos idiossincráticos do
próprio tradutor, da sua língua materna e de sua cultura.
A prática da tradução também pode auxiliar no desenvolvimento do “saber
aprender/fazer” (savoir apprendre/faire), pois desenvolve habilidades de
descobrimento, interpretação e interação, tais como a habilidade de adquirir ou
(re)construir conhecimentos sobre culturas e práticas sociais e ter a capacidade de lidar
com elas. A prática da tradução auxilia no saber expor a informação, evitando-se
construções indelicadas ou maliciosas para o Outro, construindo textos compreensivos e
respeitosos para leitores/ouvintes que poderão ser de diferentes culturas, tendo, assim,
um papel de intermediador entre culturas estranhas.
Por último, a tradução pode auxiliar a adquirir um “saber se engajar” (savoir
s’engager), referente à consciência cultural crítica, ou seja, saber avaliar criticamente e
a partir de critérios explícitos, diferentes perspectivas, práticas e produtos da própria
cultura e das culturas alheias. O resultado pode ser uma tradução coerente que
estabeleça uma relação de respeito às diferenças na construção de um discurso
integralizador, e não excludente.
Portanto, a prática da tradução pode ser uma rica fonte de aprendizagem
intercultural, oferecendo ao aluno a oportunidade de construção de características que
levam à compreensão, apreciação e respeito às diferenças, tais como:
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Portanto, traduzir é muito mais do que transferência, uma vez que “se traduzir
dependesse simplesmente de decorar algumas regras e de conhecer uma língua
estrangeira, há muito tempo as máquinas de traduzir já teriam conseguido substituir o
homem” (ARROJO, 2002, p. 78). A tradução deve ser compreendida como processo
comunicativo intercultural inerente ao ser humano e, quando estamos conscientes de tal
concepção, ela pode ser uma potencial ferramenta para a compreensão das pluralidades
que compõem o mundo contemporâneo.
No ambiente de ensino/aprendizagem de línguas estrangeiras, conceber a
tradução como processo comunicativo intercultural é perceber sua importância como
processo interpretativo não somente de textos, mas também de pessoas. Nessa
perspectiva, professores e alunos se engajam em um processo de busca e construção de
novas línguas, culturas e identidades de forma consciente, exercitando as atitudes,
habilidades, compreensões e os conhecimentos que compõem a competência
comunicativa intercultural.
O resultado, continuamente sob construção, compara-se a textos traduzidos, cuja
característica principal é também a sua originalidade, pois jamais serão imitações dos
‘originais’, mas composições e (re)criações a partir de uma visão única, pessoal, criada
a partir de uma tensão dinâmica entre o conhecimento antigo e o novo e entre as
diferenças existentes entre línguas, culturas, identidades.
A seguir, expomos algumas possibilidades de utilização da tradução em sala de
aula de língua estrangeira de forma a construir a competência comunicativa
intercultural.
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Considerações finais
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culturas e identidades com as quais interagem. A partir dessa perspectiva, essa prática,
que ocorre dentro e entre línguas e culturas, descerra habilidades de negociação,
relativização, compreensão e apreciação das diferentes formas de agir no mundo.
Esperamos, assim, que alguns dos pontos de conexão aqui sugeridos abram, de
fato, caminho para futuras e mais consistentes discussões envolvendo os Estudos da
Tradução, a Linguística Aplicada e os Estudos Culturais mais especificamente, a
Comunicação Intercultural.
Referências
BENJAMIN, W. On language as such and on the language of man. In: BULLOCK, M.;
JENNINGS, M. W. (Ed.) Walter Benjamin: selected writings. v. 1 (1913-1926).
Cambridge: The Belknap press of Harvard University Press, 1996.
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