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Como citar este artigo:

PERTEL, Tatiany. A face intercultural da Linguística. In: REZENDE, P. (Org.) Interfaces com a
Linguística: dialogando saberes. São Carlos: Pedro & João Editores, 2016. p.59-79.

A face intercultural da Linguística

Tatiany Pertel Sabaini Dalben

Introdução

Em tempos globalizados, verificamos uma latente necessidade de se explorar


novas tendências, novos caminhos e associações profícuas para a Linguística. Dessa
forma, considerando as características desse novo mundo do século XXI, como, por
exemplo, os desenvolvimentos linguísticos decorrentes das novas e rápidas
possibilidades de contato entre línguas/identidades/culturas diversificadas, nosso
objetivo neste artigo é demonstrar a importância de se considerar a face intercultural da
Linguística. Assim, poderemos colaborar, em primeiro lugar, com uma discussão que se
eleva das inúmeras possibilidades de associações e desenvolvimentos, numa busca por
potenciais renovações de pesquisas dentro desta grande área de estudos, como por
exemplo, o estudo das linguas francas usadas para a interação ou em traduções para o
estabelecimento da comunicação intercultural. Em segundo lugar, estaremos
colaborando para compreender de que forma a Linguística pode se mostrar também uma
ciência caracterizada pela interculturalidade, já que a própria teoria linguística não
apresenta, comumente, um lugar de discussão que integre a cultura e a interculturalidade
ao seu objeto de estudo, geralmente fiando conceitos e definições de outras áreas do
conhecimento.

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A interculturalidade é muito mais acolhida por pesquisadores do campo da


Educação (FLEURI, 2003; CANDAU, 2006) e da Linguística Aplicada (BYRAM;
1997; 2002; MOTA; SCHEYERL, 2004; MENDES, 2007) do que pela Linguística, por
considerar as inúmeras possibilidades de uso da língua dentro de contextos de
ensino/aprendizagem. Porém, o contato e a comunicação através da língua ocorrem
também fora da sala de aula. Por que, então, tal associação não se apresenta como
premissa básica para estudos e pesquisas dentro do campo da Linguística?
Nossa perspectiva não exclui os estudos linguísticos voltados aos textos escritos,
históricos, comparativos e tipológicos, dentre muitos outros. Eles têm o seu lugar e a
sua importância. Porém, a discussão que se segue é direcionada aos que compreendem a
Linguística também como uma ciência social voltada para discussões que
problematizem a língua em uso e que examinem suas diversas possibilidades de
pesquisas que geram conhecimento profícuo para os seus usuários. Neste sentido, a
responsabilidade do pesquisador dos estudos linguísticos é para com a sociedade,
compreendendo esta última como um sistema de interações humanas culturalmente e
historicamente organizadas, onde se (re)criam e renovam símbolos, significados,
valores, normas, crenças e comportamentos em sua maioria conduzidos através da
língua/linguagem. Tal perspectiva se afasta da limitada visão de que a Linguística deve
se comprometer com a ...

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... cientificidade da busca pela verdade1 universal, obtida através de um método


objetivo, dominante na Ciência Moderna, pois não há verdade única quando se pretende
estudar o instrumento de comunicação mais utilizado pelo ser humano dentro das suas
complexas relações sociais.
Quando a língua/linguagem (objeto central da Linguística) é compreendida de
um ponto de vista social, construída a partir da interação entre indivíduos de culturas
diversas, dependente de contextos singulares, as diferenças emergem como fontes de
(re)construção de significados. A língua, portanto, é construída nos interstícios de tais
interações, em que as diferenças étnicas e culturais, inegavelmente presentes também na
língua/linguagem e na forma como ela é utilizada, podem ser compreendidas e
assimiladas, negligenciadas ou até negativamente recebidas. Assim, Bhabha
(1998/2013, p. 21) nos ensina que “os embates de fronteira acerca da diferença cultural
têm tanta possibilidade de serem consensuais quanto conflituosos”. Tais usos e trocas
linguísticas culminam, somente provisoriamente, na construção de identidades ...

1
Grosso modo, a verdade a qual aqui nos referimos é um conceito epistêmico que tem suas raízes na
Lógica aristotélica, na Grécia. Ela tem o caráter de fidelidade ao fato conforme sua existência no mundo
real, ou seja, a proposição corresponderia diretamente a algo no mundo, independente de contextos. Essa
definição, porém, é incompleta, pois a questão da ‘verdade’ nos estudos linguísticos e também na
filosofia da linguagem é um assunto bastante extenso que mereceria um estudo à parte. Esse assunto, no
momento, foge às metas estabelecidas para a presente discussão.
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... atravessadas por marcas características da rede de relações sociais que se estabelece.
Dessa forma, o que falta ao linguista, muitas vezes, é compreender que língua e
cultura são indissociáveis, ou seja, “cultura e língua estão intimamente relacionados.
Nossas culturas influenciam as línguas que falamos, e a forma como usamos as línguas
influencia nossas culturas” (GUDYKUNST, 1998, p. 172) 2. Assim, a compreensão de
língua a partir de uma perspectiva intercultural pode gerar pesquisas que respondam a
diversas questões linguísticas também urgentes às sociedades do século XXI. Vejamos,
pois, como compreendemos a interface entre a Linguística e a perspectiva intercultural.

A natureza multifacetada da Linguística

Para iniciarmos essa discussão, pensemos, primeiramente, sobre os diversos


conceitos que envolvem este tópico. Num primeiro momento, devemos compreender o
que é Linguística, quais seus principais objetivos e preocupações, para, então, entender
sua natureza.
A Linguística é comumente conhecida como a ciência da linguagem. Sua
concepção como ciência independente ocorreu no início do século XX, após a
divulgação dos trabalhos seminais de Ferdinad de Saussure em 1916. Começa-se, desde
então, a reconhecer ...

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Culture and language are highly interrelated. Our cultures influence the languages we speak, and how
we use our languages influences our cultures.
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... a Linguística como espaço independente de estudo científico e de investigação sobre


a língua.
Essa ciência, para uns, direciona seus estudos para as formas linguísticas, uma
definição estrita que englobaria a morfossintaxe, a semântica e a fonologia. Para estes, o
objeto principal e essencial da Linguística seria a língua, que, segundo Saussure
(1916/2002) é homogênea e sistematizável, “um produto social da faculdade de
linguagem e um conjunto de convenções necessárias [...]” (p. 17) um conjunto de signos
que exprimem ideias, “[...] algo adquirido e convencional” (p. 17). A língua, segundo
Saussure (1916/2002) não deveria ser confundida com a linguagem, que seria mais
ampla, tendo um lado individual e outro social, sendo, portanto, heterogênea e não-
sistematizável, ou com a fala, parte integrante da linguagem, concebida como “um ato
individual de vontade e inteligência” (SAUSSURE, 1916/2002, p. 22). A fala, segundo
Saussure, corresponderia à outra parte, secundária porém, dos estudos da linguagem.
Assim, estudar a língua em uso não deveria estar sob a alçada da Linguística,
como afirma Saussure. Entretanto, apesar de sua importância para o reconhecimento da
Linguística como disciplina de direito próprio, os pressupostos de Saussure e da
Linguística tradicional receberam – e ainda recebem – inúmeras críticas.
De acordo com Bakhtin (1929/1997), um dos primeiros a questionar as ideias de
Saussure, a Linguística tradicional se limita à enunciação monológica, ao estudo da
forma, desconsiderando o mundo real, portanto o uso da linguagem e os contextos ...

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... em que ela ocorre. Em sua concepção, que inclui a enunciação e a interação, a língua
não é estática e os signos são criados e ideologicamente modificados pelo homem, pois
“enquanto uma forma linguística for apenas um sinal e for percebida pelo receptor
somente como tal, ela não terá para ele nenhum valor linguístico. A pura ‘sinalidade’
não existe [...], a forma é orientada pelo contexto” (BAKHTIN, 1929/1997, p. 94).
Assim, a língua é uma ferramenta que possibilita ao locutor suprir suas necessidades
enunciativas, e ao se utilizar dela para tais fins, acaba por construí-la sob a orientação
dos sentidos e dos contextos concretos de uso. Como afirma o próprio Bakhtin
(1929/2002, p. 92),

Para ele [locutor], o centro de gravidade da língua não reside na


conformidade à norma da forma utilizada, mas na nova significação
que essa forma adquire no contexto. [...] Para o locutor, a forma
linguística não tem importância enquanto sinal estável e sempre igual
a si mesmo, mas somente enquanto signo sempre variável e flexível.

A língua, portanto, na perspectiva bakhtiniana é mais ampla, sendo


continuamente construída a partir de contextos sociais nos quais os indivíduos
interagem. Outros autores igualmente rejeitam a proposição da Linguística tradicional
(WITTGENSTEIN II, 1953/1999; JAKOBSON, 1959; AUSTIN, 1962; ABAURRE,
2003; MARCUSCHI, 2003, RAJAGOPALAN, 2003a), criticando, principalmente, suas
limitações, pois, para eles a Linguística “[...] envolve muito mais do que apenas o
estudo de formas” (MARCUSCHI, 2003), incluindo também os usos e as atividades
linguísticas na vida social.

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Comungamos com tal pensamento, uma vez que compreendemos ciência como
um conjunto de atividades que deve, de alguma forma, dar certo retorno prático à
sociedade, de forma a proporcionar melhorias e a gerar conhecimento não somente para
o meio acadêmico, mas, sobretudo, para qualquer usuário das línguas. Assim, para
Rajagopalan (2003a), por exemplo, a ciência da linguagem pensa a vida, incluindo dois
aspectos: pensar sobre a vida e pensar em vida. “Pensar sobre indica distanciamento;
pensar em indica o mergulho. No entanto, ambas as posições comungam no pensar: não
há como excluir ramos de uma mesma teia” (RAJAGOPALAN, 2003a, p. 13).
Essa perspectiva nos leva a acreditar na falácia de definições que restringem a
ciência da linguagem ao estudo de estruturas e formas. Pois a língua, instrumento/meio
e objeto da Linguística é

[...] uma atividade e não um sistema ou forma [...] um domínio público


de construção simbólica e interativa do mundo [...]. Língua se
manifesta como uma atividade social e histórica desenvolvida
interativamente pelos indivíduos com alguma finalidade cognitiva,
para dar a entender ou para construir algum sentido (MARCUSCHI,
2003, p. 132, grifos do autor).

A partir do pressuposto acima, podemos afirmar que ao tratar da língua também


em seu uso, abre-se um leque de possibilidades de múltiplas associações que podem ser
realizadas a partir do estudo da língua/linguagem. Assim, ‘Linguística’, ciência que
estuda os mais variados processos e aspectos ligados à língua/linguagem e seus usos,
pode ser considerado um termo genérico que serve para abrigar uma variedade de ...

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... subciências que, segundo Kato (2003), podem parecer bastante contraditórias. Para
ela, a Linguística pode ser considerada “[...] a ciência que estuda as línguas humanas, as
línguas naturais. Agora, a abordagem, o ângulo é que diferem” (p. 116). Nessa mesma
linha de pensamento, Rajagopalan (2003, p. 44) afirma que “podemos fazer da
Linguística o que quisermos que ela seja. Vai depender tão-somente de nós linguistas”.
Portanto, a natureza dos estudos linguísticos se apresenta multifacetada,
pluralizada, uma vez que a interação e o uso da língua/linguagem são grandes
responsáveis por essa caracterização. Esse novo modelo de linguagem ordinária se
mostrou mais evidente após as produções da Escola de Oxford, com Ryle, Austin,
Strawson e Searle, sob a influência de Wittgenstein II, quando se passa a compreender
que “a função da linguagem NÃO É FALAR ACERCA DO MUNDO, MAS AGIR
COM A FALA NO MUNDO, pois ela é um tipo de AÇÃO, uma atividade, um
comportamento, uma forma de vida” (ARAÚJO, 2004, p. 100, grifos da autora). Essa
forma de vida, porém, não pode ser afastada de suas características culturais, pois língua
e cultura são inseparáveis dentro da perspectiva de que língua é uma prática social
(KRAMSCH, 1994),
Ao compreender a linguagem e a natureza da Linguística desse ponto de vista,
podemos afirmar que há nela espaço necessário para a interface com outros aspectos da
vida humana em sociedade, bem como com a questão da interculturalidade, um campo
de estudos que nos permite compreender as inter-relações entre diferentes identidades,
culturas. Passemos, portanto, a ...

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... seguir, a discutir mais detalhadamente as relações que construímos entre a Linguística
e a Interculturalidade.

A Linguística e a perspectiva intercultural

O termo ‘intercultural’ é de difícil definição, uma vez que existem vários


vocábulos referentes a ele, tais como: intercultura, comunicação intercultural,
competência (comunicativa) intercultural, abordagem intercultural, dimensão
intercultural, perspectiva intercultural, entre outros, cada qual com certas características
teóricas que os diferenciam.
Podemos, inicialmente, ‘desconstruir’ o termo ‘intercultural’ para compreendê-
lo melhor. De acordo com o Dicionário Aurélio da Língua Portuguesa (2010), o prefixo
‘-inter’ pode significar: “posição intermediária; reciprocidade; interação”. Já o adjetivo
‘cultural’ deriva de ‘cultura’ que, dentre as diversas entradas apresentadas pelo
Dicionário Aurélio (2010), significa: “o conjunto de características humanas que não
são inatas, e que se criam e se preservam ou aprimoram através da comunicação e
cooperação entre indivíduos em sociedade”.
O termo polissêmico ‘cultura’, componente integrante da língua/linguagem, se
apresenta diferentemente conceituado em disciplinas como Filosofia, Sociologia,
Antropologia, Literatura, e Estudos Culturais. As definições variam de acordo com os
padrões de referência de cada área de estudos. Raymond Williams (2009, p. 32), por
exemplo, grande escritor e crítico da área dos Estudos Culturais, define cultura como ...

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[...] uma forma particular de viver que expressa certos significados e


valores não somente na arte ou no processo de ensino/aprendizagem,
mas também em comportamentos comuns ou institucionalizados. A
análise da cultura, a partir desta definição implica o esclarecimento
sobre os significados e valores implícitos em certas formas de se
viver, uma certa cultura [...], formas características através das quais
membros da sociedade se comunicam (tradução nossa)3.

O conceito de cultura sobre o qual nos debruçamos sobrepõe-se aos conceitos de


culturas nacionais homogêneas que são transmitidas continuamente de geração em
geração, mantendo-se supostas tradições históricas igualmente compartilhadas entre os
membros de comunidades étnicas ‘orgânicas’. Tais construtos encontram-se hoje em
profundo processo de redefinição, segundo Bhabha (1998/2013). Os círculos pós-
modernos criticam a ideia de ‘cultura pura’, grupos sociais heterogêneos, uma vez que
tais grupos sofrem influências externas constantes, especialmente no mundo
globalizado. Nesse sentido, a própria imagem de cultura é idealizada, e serve somente
para reduzir as reais diferenças existentes entre os seres humanos de forma
individualizada.
Dadas as definições separadas de ‘inter’ e de ‘cultura’/‘cultural’ expostas acima,
poderíamos apreender o termo ‘intercultural’, num primeiro ...

3
“a particular way of life, which expresses certain meanings and values not only in art and learning but
also in institutions and ordinary behaviour. The analysis of culture, from such a definition, is the
clarification of the meanings and values implicit in a particular way of life, a particular culture… the
characteristic forms through which members of the society communicate”.
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... momento, como: a posição intermediária comunicativa e cooperativa de indivíduos


numa sociedade para a preservação, aprimoramento ou criação de características
humanas não inatas; ou melhor, ainda: interação, comunicação e cooperação em
sociedade para preservação, aprimoramento ou criação de significados e valores
implícitos em certas formas de se viver em sociedade.
Nota-se que ao criar tais definições, ainda desconsideramos uma palavra, a
‘reciprocidade’, que implica ‘trocas’, ‘permutas’, ‘mutualidade’ (Dicionário Aurélio de
Língua Portuguesa, 2010). Essa palavra é de grande valia para compreendermos o termo
‘intercultural’, mas ainda não é o suficiente para que possamos conceituá-lo.
Os conceitos constituídos e apresentados acima são plausíveis, mas poderiam
levar o leitor a desacreditar na complexidade do termo ‘intercultural’. Eles poderiam até
nos auxiliar a iniciar uma compreensão, mas são insuficientes numa tentativa de definir
‘intercultural’.
‘Comunicação intercultural’, por exemplo, um dos primeiros termos a serem
utilizados nessa perspectiva, foi cunhado por E. T. Hall (1959/1990) quando trabalhava
para o US Aministration for Native Americans e notou que mal-entendidos ocorriam
com frequência entre pessoas de diferentes culturas, não através da língua, mas de
outros fatores silenciosos, escondidos ou inconscientes, embora padronizados, ou seja,
incompreensões geradas a partir de diferenças culturais (KATAN, 2009).
O termo comunicação intercultural tornou-se fonte de inspiração para as diversas
perspectivas teóricas ...

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diferentes, podendo ser definido, num conceito mais geral, como um tipo de
comunicação que ocorre quando indivíduos de diferentes culturas negociam
significados durante a interação. Essa negociação, entretanto, segundo Hall
(1991/1998), exige do sujeito atenção a certas regras de comunicação e comportamento
não-especificadas (‘unstated rules of behavior and communication’), sem a qual haverá
falhas que o levarão ao fracasso na comunicação.
Portanto, a comunicação intercultural é aqui compreendida como uma
perspectiva interacionista que envolve pessoas de diferentes culturas, baseada na
compreensão, apreciação e respeito4 às diferenças (BENNETT, 1998). A comunicação
intercultural envolve mais do que a ciência sobre fatos e características gerais de
determinadas culturas, embora seja importante que o comunicador intercultural tenha
conhecimento suficiente sobre a sua própria cultura, pelo menos, sendo, contudo, aberto
às diversas possibilidades de reconstrução e relativização desse conhecimento. Assim,
tal sabedoria deve servir apenas parcialmente e como ponto de partida para a
(re)construção de hipóteses que deverão ser testadas durante a interação ou construção
do texto.
De modo geral, os valores, as crenças, práticas e suposições culturalmente
estabelecidos e conhecidos são considerados de forma generalizada, uma visão
estereotípica ou até etnocêntrica do mundo, e questionados quando nos confrontamos ...

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‘respeito’ significa ter consideração e apreciação pelo outro e valorizá-lo (BYRAM, 1997).
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... com a outridade, com o estranho, o desconhecido. Dessa forma, a comunicação


intercultural só poderá ocorrer quando, nesse confronto, geramos uma análise crítica das
próprias experiências, práticas e conhecimentos e os relativizamos, construindo um
novo conhecimento e uma nova visão crítica das variadas culturas, linguagens,
sociedades, identidades.
Assim, a comunicação intercultural se estabelece quando se constroem certas
atitudes, habilidades, conhecimentos e compreensões necessários ao encontro com a
outridade. Tais aspectos compõem o que Byram (1997) chama de ‘competência
comunicativa intercultural’ (CCI), juntamente com as competências linguística,
sociolinguística e discursiva, complementadas, ainda, por valores individuais que são
parte das identidades sociais.
As atitudes incluem curiosidade, abertura e disposição para observar a própria
cultura e outras sem julgamentos pré-estabelecidos. As habilidades incluem
interpretação e relacionamento, descoberta, interação e consciência cultural crítica. O
conhecimento diz respeito aos grupos sociais e a seus produtos e práticas, e de
processos gerais de interação individual e social (BYRAM, 1997).
Essa competência é construída na comunicação (oral ou escrita) e nas interações
construídas entre identidades culturais e sociais complexas que devem se estabelecer
para além de realizações puramente linguísticas, mas através de exercícios de
comparação e análise entre as diversificadas formas de falar, escrever e, sobretudo
viver. A competência comunicativa intercultural de um sujeito estará sempre em
construção, mas ela sempre ...

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... pode ser enriquecida através de práticas que promovam encontros interculturais.
Conforme House (2007), o agente intercultural deve ser independente tanto da
sua cultura nativa (e língua) quanto das novas culturas (e línguas) com as quais mantém
contato, ou intermedeia, ou reconcilia. Ele estará criando algo (língua/linguagem,
cultura, identidade) novo e autônomo, ocupando, dessa forma, um entre-lugar (HOUSE,
2007), ou um Terceiro Espaço (KRAMSCH, 1993; BHABHA, 1998/2013), cujas
características principais são o hibridismo e a imprevisibilidade.
Ao agir no mundo através da língua/linguagem, construímos, portanto, muito
mais do que signos linguísticos, construímos também significados culturais, identitários,
valores e características que nos diferenciam como seres humanos, pelo menos
provisoriamente. Tal fato é apresentado por Widdowson em Linguistics (1996), ao
definir a natureza da língua. Segundo o linguista, a língua nos auxilia a descobrir nossa
própria identidade como indivíduos e como parte da sociedade e “nos serve como meio
cognitivo através do qual nos comunicamos, permitindo-nos pensar por nós mesmos e
cooperar como o Outro em comunidade” (1996, p. 3).
Portanto, a Linguística não poderia se ater ao estudo das formas, das estruturas,
ignorando as diversas possibilidades que podem surgir a partir das interações
comunicativas construídas através dos usos linguísticos e das negociações de
significados. Entretanto, tais negociações, bem como possíveis compreensões do mundo
não podem ser construídas quando os interlocutores se mantêm no nível simplificado
da...

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... decodificação dos seus próprios significados. Neste sentido, Bakhtin (1997, p. 27)
nos ensina que “[...] é ainda em nós mesmos que somos menos aptos para perceber o
todo da nossa pessoa”. Os interlocutores precisam, para tanto, buscar a compreensão das
relações desses significados com os significados construídos pelos outros (BYRAM,
1994), que devem ser sempre relativizados.
Para tanto, a perspectiva intercultural nos auxilia a compreender melhor o objeto
de estudo da Linguística. O uso da língua/linguagem não é nada menos do que um
processo de construção enunciativo-cultural, mas cabe aos interlocutores diferenciar
entre o ‘sujeito da proposição’ e o ‘sujeito da enunciação’5, compreendê-los, mediar
entre os dois e reconciliá-los num terceiro espaço, que não se caracteriza nem pelo pré-
suposto, nem por um centro interpretativo inalterável. Nesta perspectiva, Bhabha
(1998/2013, p, 72) nos ensina que ...

5
A proposição é o objeto da lógica preconizada por Aristóteles. Grosso modo, ela é um discurso
declarativo que exprime verbalmente os juízos formulados pelo pensamento através da linguagem. Dessa
forma, o sujeito da proposição é aquele que pensa e que transforma esse pensamento em linguagem,
independente de contextos. Já a enunciação corresponde ao momento de atualização da língua numa
situação de discurso precisa, num dado momento histórico e em certo espaço. Ela é o resultado da
produção individual, porém é dependente da atividade conjunta do locutor e do interlocutor. Assim, o
sujeito da enunciação é aquele que fala, no momento preciso em que fala e por aquele que ouve.
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a diferença linguística que embasa qualquer performance cultural é


dramatizada no relato semiótico comum da disjunção entre o sujeito
de uma proposição (énoncé) e o sujeito da enunciação, que não é
representado no enunciado mas que é o reconhecimento de sua
incrustação e interpelação discursiva, sua posicionalidade cultural, sua
referência a um tempo presente e a um espaço específico.

Esse processo é atravessado pela différance da escrita (DERRIDA, 1967/1971),


onde o jogo de substituições infinitas sempre pressupõe a criação do novo, do
imprevisto, pois “o movimento da significação acrescenta alguma coisa, o que faz que
sempre haja mais, mas esta adição é flutuante porque vem substituir, suprir uma falta do
lado do significado” (DERRIDA, 1967/1971), o que inegavelmente levam a produções
de sentidos culturais e linguísticos de um terceiro espaço, de um entre-lugar.
Portanto, ao considerar a perspectiva intercultural, a Linguística, como campo de
estudos de caráter interdisciplinar, revela a necessidade de se pensar a
língua/linguagem, principal e mais importante meio de comunicação do ser humano,
não como um sistema imutável de signos, mas como uma potencial produtora de
terceiros lugares, desconstruindo, dessa forma, a ineficiente perspectiva de cultura (e
língua) como um sistema homogêneo de características historicamente transferidas. A
língua/linguagem torna-se meio e lugar de negociações, representações, apresentações e
interpretações infinitas, uma ponte entre o Eu performático e o Eu enunciativo em
contínua (re)construção de si e do Outro. Assim,

o pacto da interpretação nunca é simplesmente um ato de


comunicação entre o Eu e o Você designados no enunciado. A
produção de sentido requer que esses dois lugares sejam mobilizados
na passagem por um Terceiro Espaço, que representa tanto as
condições gerais da linguagem quanto a implicação específica do
enunciado em uma estratégia performativa e institucional da qual ela
não pode, em si, ter consciência. O que essa relação inconsciente
introduz é uma ambivalência no ato da interpretação (BHABHA,
1998/2013).

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O processo enunciativo, a criação inédita de significados a partir da interação, do


uso da língua/linguagem, introduz novos aspectos constitutivos da cultura – e também
da língua. Tal processo enunciativo, como afirma Bhabha (1998/2013, p. 70),

introduz uma quebra no presente performativo da identificação


cultural, uma quebra entre a exigência culturalista tradicional de um
modelo, uma tradição, uma comunidade, um sistema estável de
referência, e a negação necessária da certeza na articulação de novas
exigências, significados e estratégias culturais.

A importância de compreender a perspectiva intercultural, o espaço contraditório


e ambivalente sempre criado nas interações através da língua/linguagem, leva-nos à
urgente necessidade de repensarmos novos caminhos para a Linguística do século XXI
como ciência crítica e questionadora de verdades absolutas, como a noção de
língua/linguagem pura e sistematizável e a de originalidade e ‘pureza’ inerentes às
culturas.

7 Considerações finais

As problematizações colocadas neste trabalho podem parecer um tanto


contraditórias quando nos valemos de perspectivas teóricas ou filosóficas ...

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... diversificadas, quando buscamos conhecimento tanto dentro da própria Linguística


quanto nos Estudos Culturais, na Linguística Aplicada, na Filosofia e na perspectiva
filosófica desconstrutivista. Entretanto, para criar uma abertura suficiente para
percebermos o potencial intercultual da Linguística, fez-se necessário recorrer a tais
campos do conhecimento e criar um desafio às nossas próprias convicções.
Portanto, o espaço contraditório, ambivalente, porém apreciativo das diferenças
através do qual se caracteriza a perspectiva intercultural foi, de igual forma, respeitado
entre os campos de estudos aqui consultados. O objetivo foi de utilizar cada construto
apresentado de forma que pudéssemos compreender melhor a relação entre a
Linguística e seu objeto de estudo e a perspectiva intercultural que deve se fazer
presente nas interações que ocorrem através da língua/linguagem.
Concluímos, pois, que é dentro desse terceiro espaço, desse entre-lugar criado na
interação pelas trocas mútuas que se constituem as línguas e culturas híbridas,
heterogêneas, passageiras, que garantem que o significado e as características
linguísticas e culturais não se evidenciem pela unicidade ou pelo centro pré-
estabelecido, pela fixidez. Tal interface se faz importante ao estudioso das línguas que
compreende as importantes bases fundamentais de sua ciência, mas que, sobretudo, age
conscientemente a favor das diversificadas possibilidades de (re)encontro consigo
mesmo e com o desconhecido.
Constatamos, portanto, um vasto campo de possibilidades de pesquisas que se
estabeleçam sobre a ...

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Como citar este artigo:
PERTEL, Tatiany. A face intercultural da Linguística. In: REZENDE, P. (Org.) Interfaces com a
Linguística: dialogando saberes. São Carlos: Pedro & João Editores, 2016. p.59-79.

... interface Linguística e perspectiva intercultural. Em tempos de globalização em que a


consciência sobre si mesmo e sobre o Outro e o respeito às diversidades se mostram
relevantes principalmente para o futuro das relações linguísticas e culturais, os
estudiosos da Linguística são capazes de contribuir na busca por um mundo de maior
entendimento que pode ser construído pela comunicação nas sociedades do século XXI.

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