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O ESTADO DE EXCEPÇÃO E AS REGIÕES AUTÓNOMAS – BREVE NOTA

1. Numa decisão inédita no regime constitucional democrático português, o Presidente


da República, ouvido o Conselho de Estado e obtida a autorização da Assembleia da
República, decretou o estado de emergência, através do Decreto do Presidente da
República n.º 14-A/2020, de 18 de Março, com fundamento no estado de calamidade
pública, em resultado da pandemia pelo coronavírus Covid-19, o qual é aplicável a
todo o território nacional, vigorando por um período de quinze dias, com início às
00.00 horas do dia 19 de Março.

O estado de sítio e o estado de emergência podem ser condensados na expressão


“estado de excepção” e estão sujeitos à disciplina da Lei nº 44/86, de 30 de Setembro,
no ordenamento jurídico nacional e aos limites jurídicos dos artigos 4º e 15º do Pacto
Internacional de Direitos Civis e Políticos e da Convenção Europeia dos Direitos do
Homem, respectivamente, aplicáveis na ordem jurídica portuguesa.

2. O diploma que decreta o estado de excepção contém uma norma que estabelece que
“em caso algum pode ser posto em causa o princípio do Estado unitário ou a continuidade
territorial do Estado”, (artigo 5º, nº 3) que, em nossa opinião, é inconstitucional por
violação dos artigos 5º, nº 1 e 6º, nº 1 da CRP, se interpretada no sentido de que proíbe
a adopção de medidas legislativas ou administrativas que visem impedir a circulação
aérea de pessoas entre o continente, os Açores e a Madeira.

O território do Estado abrange o território do continente e os arquipélagos dos Açores


e da Madeira, estes politicamente organizados como regiões autónomas. Isto é, o
território do Estado português é, por definição, descontínuo no conjunto das suas três
parcelas, sendo o princípio da continuidade territorial definido como um princípio de
diferenciação positiva na política interna e externa do Estado no artigo 13º do Estatuto
Político-Administrativo dos Açores, única norma na ordem jurídica portuguesa que
densifica aquele conceito. O decreto presidencial, porque não suspende a natureza do
Estado ou a sua configuração territorial (o que apenas poderia suceder por um absurdo
jurídico) está sujeito a uma interpretação conforme a Constituição, o que impede, sim,
o Governo da República de adoptar medidas de excepção que agravem a natureza
ultraperiférica dos Açores e da Madeira, que não tenham fundamento em razões de
saúde pública e de combate à pandemia.
3. O regime jurídico do estado de sítio e de emergência continua a estabelecer que a
execução da declaração do estado de emergência nas regiões autónomas é assegurado
pelo Representante da República, em cooperação com o governo regional (artigo 20º,nº
2) numa norma inconstitucional, por violação do artigo 230º da CRP, pois o
Representante da República já não representa o Estado na Região Autónoma, não tem
competências administrativas, nem dispõe de competências de superintendência dos
serviços do Estado na região, desde a revisão constitucional de 2004. A função que a lei
comete ao Representante da República é absolutamente incompatível com o respectivo
estatuto constitucional, não se antevendo como poderá assegurar a execução das
medidas adoptadas em estado de excepção, quando há uma repartição competencial
entre o Governo da República e os Governos Regionais (por exemplo, quanto à saúde
ou à protecção civil).

A incerteza do tempo que vivemos não pode autorizar a incerteza do direito.

Pedro Gomes

pedrobettencourtgomes@gmail.com

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