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Semeando vento, colhendo tempestade.

Iraque 2003 – 2014: o


fracasso da geopolítica yankee para o Oriente Médio
PUBLICADO POR MKNINOMIYA ⋅ 2014/07/24 ⋅

Disponível em: http://mkninomiya.wordpress.com. Acessado em 10/08/2014

“Quem semeia vento colhe tempestade; quem semeia o mal recebe maldade e perde todo o poder que possuía”.
(Provérbios, 22;18)

Com mais de 68 mil km² de área, o Lago Victoria é o maior lago de água doce da África e o segundo maior do
mundo. No início do século XX, sob domínio colonial britânico, a pesca de subsistência deu lugar à pesca
comercial para abastecer os centros urbanos que cresciam rapidamente. A superexploração reduziu gradativamente
a quantidade e o tamanho dos peixes capturados. Na década de 1950, numa tentativa de melhorar os rendimentos da
pesca, o Governo britânico decidiu introduzir uma nova espécie no lago: a perca-do-nilo.
Voraz predador, com alimento em abundância e sem predadores naturais, a espécie se proliferou, chegando a atingir
mais de 250 kg em um indivíduo adulto, o que o forçava a se alimentar constante e indiscriminadamente. Com a
redução de seu alimento a perca-do-nilo tornou-se canibal, e os indivíduos adultos passaram a se alimentar dos mais
jovens. Com isso, até a população de perca-do-nilo começou a sofrer redução, e mesmo os bons lucros iniciais com
sua captura diminuíram dramaticamente, levando a indústria da pesca ao colapso.
Em 1992, ambientalistas certificaram a devastação provocada pela perca-do-nilo no ecossistema do Lago Victoria:
em pouco mais de 40 anos praticamente toda sua riqueza natural havia sido destruída. Cerca de metade das 400
espécies de peixes endêmicos foram extintos. A diminuição do número de peixes que se alimentam de algas permitiu
que elas crescessem num ritmo alarmante, diminuindo os níveis de oxigênio nas camadas mais profundas da água,
forçando toda a vida a existir dentro de uma gama estreita de profundidade. Atualmente, a perca-do-nilo está sendo
retirada. Há ainda cerca de 200 espécies de peixes no Lago Victoria, que abastece uma das regiões mais povoadas
da África. A exemplo da perca-do-nilo, outras espécies invasoras foram responsáveis por 39% de todos os animais
extintos por causas conhecidas, em centenas de ocorrências por todo o mundo.

Demonstração de força: combatentes do ISIS marcham nas ruas de Mosul


Mas o que tem a ver este desastre ecológico com a atual crise no Iraque? Nada! Exceto pela analogia que se pode

estabelecer em relação à introdução, financiamento e suporte ao extremismo islâmico promovido pelos EUA e

seus aliados, como meio de reconfigurar a geopolítica no Oriente Médio. É o que veremos a seguir.
Prelúdio

Após o fim da Segunda Guerra Mundial e a criação do Estado de Israel, o Oriente Médio viveu décadas de grande

instabilidade, marcadas por conflitos armados, queda das monarquias pro-coloniais e sua substituição por

governos nacionalistas, via de regra autoritários e alinhados em torno de uma das duas superpotências – EUA

ou URSS – dentro do contexto da Guerra Fria. Esse alinhamento porém, nunca teve um viés ideológico, mas foi

determinado por interesses em torno do petróleo, o conflito latente contra o Estado judeu e a disputa pela hegemonia

regional, o que de certa forma envolvia a histórica dissenção entre as correntes do islamismo – xiitas e sunitas.

No final dos anos 1970 o quadro geopolítico no Oriente Médio havia se estabilizado – atendendo à necessidade

estratégica do Ocidente em manter um relativo equilíbrio que permitisse a exploração do petróleo – consolidando-se

assim a existência de cinco potências regionais, além de Israel: as monarquias sunitas do Golfo Pérsico, lideradas pela

Arábia Saudita e reunidas no Conselho de Cooperação do Golfo (1981), totalmente alinhadas com o Ocidente; o

Egito de Anwar Al Sadat e Hosni Mubarak (1981), que sob pressão norte-americana reconheceu o Estado de Israel e

passou a receber uma ajuda financeira dos EUA na ordem de US$ 2 bilhões anuais; o Iraque de Saddam Hussein; a

Líbia de Muammar al-Gaddafi; a Síria de Hafez-al-Assad, com papel central no conflito árabe com Israel; e o Irã,

principal aliado dos EUA no Golfo Pérsico até 1979, quando o Xá Reza Pahlavi foi derrubado pela Revolução

Islâmica, que instituiu uma teocracia na qual a mais alta autoridade governamental era o líder religioso supremo,

Aiatolá Sayyid Ruhollah Khomeini, que anulou os acordos comerciais e militares com os EUA e interrompeu o

fornecimento de petróleo para este país, provocando um forte aumento nos preços do produto e uma crise do petróleo,

com severas consequências para a economia Ocidental.

Preparando a seara: a ascensão e queda de Saddam Hussein

Temerosos de que a Revolução Islâmica se expandisse na região e em outros Estados islâmicos, os EUA passaram a

apoiar o regime de Saddam Hussein – que até então flertava com a URSS. Por inspiração americana, Saddam

revogou unilateralmente um acordo de 1975 (Acordo de Argel) que cedia ao Irã uma área de fronteira de cerca de 518

quilômetros quadrados, exigindo uma nova demarcação ao longo do Shatt-al-Arab, a devolução de

três ilhas no estreito de Ormuz e a cessão de autonomia às minorias (sunitas e curdos) dentro do Irã. Conforme

esperado, Teerã rechaçou as exigências, e em setembro de 1980 o exército iraquiano invadiu o país persa.
Dezembro de 1983. Donald Rumsfeld, enviado especial dos EUA, com Saddam Hussein. numa das várias viagens feitas a
Bagdá durante essa época.

Contando com forte apoio financeiro e militar dos EUA e da Arábia Saudita, o Iraque esperava uma rápida vitória.

Mas não foi isso que aconteceu. Com a ajuda da Síria e da Líbia, além do crescente fornecimento de equipamento

militar pela URSS (na medida em que crescia o apoio americano ao Iraque), as forças iranianas ofereceram forte

resistência aos ataques iniciais e logo passaram à ofensiva numa guerra de atrito que levou ao desgaste iraquiano,

enquanto Teerã ampliava a zona de guerra para o Golfo Pérsico atacando navios petroleiros que saíam do Iraque e

outras embarcações que passavam pelo Estreito de Ormuz, afetando dessa forma o fluxo regular de petróleo para o

Ocidente.

Dessa forma, a guerra que os iraquianos e seus patrocinadores (EUA, Europa e Arábia Saudita) esperavam ser rápida

e decisiva acabou se arrastando por quase uma década, colocando a economia mundial – dependente do petróleo – em

nova e grave crise. Em 1988, a pretexto de protestar contra o uso de armas químicas por Saddam Hussein, o Ocidente

retira seu apoio ao Iraque, que debilitado econômica e militarmente é forçado a aceitar um armistício “status quo ante

bellum“, para dois anos mais tarde reconhecer as fronteiras estabelecidas pelo Acordo de Argel, no que foi

considerado uma vitória iraniana.

Em 1990, alegando questões territoriais, Saddam Hussein ordenou a invasão do Kuwait, cuja riqueza era tida como a

salvação para as finanças do Iraque – destruída após a guerra com o Irã. Mas a ação provocou a imediata reação das

potências ocidentais, que sob a liderança dos EUA realizaram uma ação militar – Operação Tempestade no Deserto –

para libertar o país. Em poucas semanas as forças iraquianas foram derrotadas, e o Ocidente impôs a Bagdá duras

sanções econômicas. O ex-aliado estava agora proscrito, isolado politicamente e sob forte embargo econômico.

Ressentido por ter sido “abandonado” na guerra contra o Irã e depois ele mesmo atacado por seus ex-aliados, Saddam

Hussein tentaria dar o troco em novembro de 2000. Com o Iraque parcialmente recuperado das pesadas perdas
sofridas nos dois conflitos, Saddam anunciou a troca do dólar pelo euro, criando a expectativa de que a OPEP

seguisse o mesmo caminho. Caso isso ocorresse, os EUA teriam de comprar euros para importar petróleo, vendendo

maciças quantias de dólares no mercado internacional, derrubando a cotação de sua moeda e valorizando

drasticamente o euro. Os bancos centrais dos diversos países seriam também obrigados a converter suas reservas

internacionais em euros para poder importar petróleo, e o mito do dólar forte cairia completamente por terra. Mas os

problemas não param por aí. Quando o dólar se desvaloriza frente a outras moedas, os EUA continuam pagando o

mesmo por um barril de petróleo, já que o preço do produto está cotado em dólares. Porém, se fosse adotado o padrão

euro para o preço deste combustível, qualquer desvalorização do dólar faria com que os americanos tivessem que

pagar mais pelo produto. A iniciativa de Saddam Hussein era uma ameaça real à hegemonia americana, e foi o

verdadeiro motivo para a invasão do Iraque em 2003, feita sem o aval das Nações Unidas sob o falso pretexto de

destruir armas químicas e biológicas que jamais foram encontradas, simplesmente porque o Iraque não as possuía.

Os objetivos da ação militar seriam, na seqüência, a invasão e ocupação militar do Iraque e a deposição de

Saddam Hussein; a instalação e consolidação de um governo fantoche alinhado com os EUA num prazo entre

6 meses a um ano; manutenção da ocupação militar por tempo indeterminado e a implantação de bases capazes

de entrar em operação caso outros países da OPEP (em especial o Irã, que desde 1999 cogitava converter suas

reservas em euros) quisessem seguir o exemplo do Iraque; e minar o poder da OPEP, debilitando seu controle sobre a

produção mundial do petróleo através do aumento da capacidade produtiva do Iraque para além de 7 milhões de

barris por dia (eram 2 milhões em 2002), o que derrubaria o preço do petróleo no mercado internacional. Depois de

quase nove anos de uma guerra sangrenta e custosa, as tropas americanas finalmente se retiraram do

território iraquiano em dezembro de 2011, sem que tivessem alcançado qualquer outro dos objetivos

traçados que não fosse a invasão do país e a deposição de seu presidente. Ao bater em retirada, os EUA deixaram

para trás um país arrasado, desestruturado política, militar e economicamente, terreno fértil para as “sementes de

vento” do radicalismo islâmico.


Preparando as sementes de vento: A Guerra do Afeganistão e a criação da

Al Qaeda
Osama bin Laden, ou “Tim Osman”, como era conhecido pela CIA, com Zbigniew Brzezinski, conselheiro de Segurança
Nacional dos EUA.

Enquanto tais fatos se desenrolavam no Oriente Médio, outro elemento desta trama estava em curso nas áridas e

montanhosas terras do Afeganistão. Em 1978 um golpe de estado levou ao poder um governo comunista no

Afeganistão, que logo empreendeu, com vasto apoio político e econômico da URSS, uma série de reformas de

natureza secular num país que sempre foi marcado pelo conservadorismo islâmico. Não tardou que em vários pontos

do país surgissem fortes focos de oposição, financiados secretamente pelos EUA (From de Shadows: The Ultimate

Insider’s Story of Five Presidents and How They Won the Cold War, Robert M. Gates, 2007), criando o temor

soviético de que o governo pudesse ser derrubado. Em dezembro de 1979 tropas soviéticas entraram no Afeganistão,

iniciando uma ocupação que duraria dez anos e que pelos custos envolvidos tem sido citado como uma das causas do

colapso da União Soviética, em 1991.

A intervenção militar no Afeganistão foi interpretada por Washington como uma oportunidade para enfraquecer a

União Soviética. Já em 1978, os Estados Unidos treinavam insurgentes e dirigiam transmissões de propaganda

anti-comunista para o Afeganistão a partir do Paquistão. Em julho de 1979, seis meses antes da invasão

soviética, a CIA recebeu aprovação do Governo americano para reunir líderes insurgentes estrangeiros e

fornecer ajuda militar aos rebeldes no Afeganistão. Tal operação, nome código “Ciclone”, teria como personagem

central um agente saudita chamado Osama Bin Laden, codinome Tim Osman, responsável pelo recrutamento de

combatentes islâmicos estrangeiros para o conflito, distribuindo dinheiro e fornecendo logística e recursos para o

esforço de guerra. Esse grupo seria conhecido por “A Base”, ou Al Qaeda, em árabe.

A Operação Ciclone “foi uma das mais longas e dispendiosas ações realizadas pela Agência Central de Inteligência

(CIA), cujo financiamento total chegou a 20 bilhões de dólares e envolveu não apenas o apoio financeiro aos grupos

da resistência afegã como também o repasse de armas (em 1987 entraram cerca de 65.000 toneladas em armas e

munições norte-americanas no Afeganistão) e a construção e manutenção de campos de treinamento no Paquistão.

(…) Segundo estimativas conservadoras, mais de 100 mil homens foram treinados entre 1979 e 1989, dos quais
cerca de 35 mil muçulmanos estrangeiros de 43 países islâmicos” (A verdade sobre a origem e os propósitos da Al

Qaeda, Michael Ninomiya, 2013).

Essa é a verdadeira origem da Al Qaeda, uma invenção dos EUA inicialmente formada como tropa de combate

no Afeganistão para se opor aos soviéticos, e que depois foi empregada como elemento de persuasão para

justificar a liderança internacional unificada dos EUA em prol de uma guerra contra o terrorismo (Doutrina

Bush) servindo de pretexto para a intervenção americana no mundo islâmico.

Após a retirada soviética do Afeganistão, os jihadistas da Al Qaeda foram dispersos, a maioria dos quais retornaram

para seus países de origem ou se dirigiram para outras áreas de conflito, onde criaram células mais ou menos

independentes que atuavam contra governos locais e alvos estrangeiros, sob a “autorização” de uma fatwa emitida por

Bin Laden, que conclamava para ações contra norte-americanos e judeus em toda parte. A inspiração e a obediência à

fatwa seriam os únicos elementos comuns entre diversos grupos de extremistas islâmicos – desde o Al-Shabab da

Somália ao Boko Haram nigeriano, passando por organizações presentes no Sudão, Líbano, Afeganistão, Paquistão e

na Europa Oriental, onde combateram na Guerra da Bósnia (1992-1995), junto à insurgência na Chechênia e em

outros conflitos no norte do Cáucaso.

Durante os anos 1990 o temor diante de uma “organização terrorista global” foi alimentado através de inúmeros

atentados que atingiram alvos no Oriente Médio, África, Ásia e Europa, todas atribuídas à Al Qaeda, que entretanto

nunca se responsabilizou pela maioria das ações. E, de fato, nada havia que provasse a existência de um comando

central e unificado destas “células combatentes”, que se auto-proclamavam “filiados à Al Qaeda”. O jornalista e

pesquisador francês Richard Labévière, editor-chefe da revista Défense do Instituto de Altos Estudos de Defesa

Nacional da França e autor do livro “Nos bastidores do Terror“, é categórico ao afirmar que “a al-Qaeda não existe“.

Uma explicação mais esclarecedora partiu de Pierre-Henri Bunel, ex-agente de inteligência do governo francês, que

afirmou que “não há nenhum exército islâmico ou grupo terrorista chamado Al-Qaeda (…) Mas há uma campanha

de propaganda para fazer o público acreditar na presença de uma entidade identificada representando o “mal”,

apenas para conduzir as pessoas a aceitarem uma liderança internacional unificada em prol de uma guerra contra

o terrorismo. O país por trás dessa propaganda é os EUA e os lobistas para a guerra dos EUA contra o terrorismo

só estão interessados em ganhar dinheiro“.

Uma prova irrefutável desta manipulação midiática viria nos primeiros anos do século XXI. Em 2001 os EUA

invadiram o Afeganistão sob o pretexto de capturar Osama Bin Laden, responsabilizado pelo atentado ao Word Trade

Center. E em 2003, atacaram o Iraque, acusando Saddam Hussein de possuir armas químicas e biológicas e de estar

tramando uma aliança com a Al Qaeda. Quando os Estados Unidos invadiram o Iraque, uma pesquisa do New York

Times/CBS News estimou que 42% do público americano acreditava que Saddam Hussein era diretamente

responsável pelos ataques de 11 de setembro ao World Trade Center. Outra pesquisa

indicava que 55% acreditavam que Saddam Hussein era apoiado diretamente pela Al-Qaeda. Nada baseado em

fatos ou evidências, mas deliberadamente plantado na opinião pública americana e mundial a partir de insinuações e

mentiras veiculadas através imprensa dos EUA.


Mas nem tudo saiu conforme os planos americanos. Tanto no Afeganistão como no Iraque a resistência foi muito

além do esperado, e estas duas guerras se arrastaram por longos anos, a um custo extraordinário, o que levou

Washington a retomar a ideia de utilizar a mesma força de combate usada no Afeganistão contra os soviéticos: a “Al

Qaeda”!

Plantando as sementes de vento: o Projeto Novo Oriente Médio

Em 2006 tropas americanas ainda lutavam no Afeganistão e no Iraque. Ambas as guerras haviam excedido o prazo

previsto pelos estrategistas americanos, e o custo – político, financeiro e em vidas humanas – já alcançava o limite do

proibitivo. No Líbano, Israel deflagrava a Operação Justa Recompensa, atacando posições do Hezbollah com fogo de

artilharia, ataques aéreos e bombardeio naval. A razão para o conflito teria sido o sequestro de dois soldados

israelenses, mas o fato é que o ataque já estava sendo planejado dentro de um roteiro militar conjunto entre EUA e

Israel, como parte de um futuro ataque aéreo norte-americano às instalações nucleares iranianas, pois acreditava-se

que a destruição da capacidade militar do Hezbollah protegeria Israel de uma retaliação.

Dentro deste contexto, o termo “Novo Oriente Médio” foi apresentado ao mundo em junho daquele ano pela

Secretária de Estado dos EUA, Condoleezza Rice em uma conferência de imprensa realizada em Washington: “… o

que estamos vendo aqui (os ataques israelenses ao Líbano), em certo sentido, é o surgimento de um “Novo Oriente

Médio” e nós (os Estados Unidos) temos a certeza de que estamos avançando para um novo Oriente Médio, que não

tornará a ser jamais o antigo“.

O que vimos acontecer no Egito e no Iêmen, naquilo que se convencionou chamar de “Primavera Árabe”, a

destruição da Líbia, a guerra civil na Síria e os recentes acontecimentos no Iraque fazem parte deste projeto

americano-israelense para redesenhar a geopolítica do Oriente Médio, visando especialmente reduzir o arco de

influência do Irã, que se estende desde as suas fronteiras, através da Síria e do Iraque, alcançando o Líbano e a costa

do Mediterrâneo.

O “modus operandi” deste projeto segue a diretriz traçada pelo ex-Conselheiro de Segurança Nacional dos

EUA, Zbigniew Brzezinski, que em 1988, em seu livro “The Grand Chessboard: American Primacy and Its

Geostrategic Imperatives” já preconizava a “balcanização” do Oriente Médio, chamando atenção para a potencial

vulnerabilidade da região a conflitos étnicos. E naquele momento, a “chave” para a consecução deste objetivo

passava pela destruição do Iraque e sua divisão em três estados sectários e não cooperantes entre si,

controlados respectivamente por sunitas, xiitas e curdos.


Nessa mesma época

começou a circular nos círculos governamentais e militares dos EUA e da OTAN um mapa elaborado pelo tenente-

coronel Ralph Peters, ex-Vice-Chefe do Gabinete do Estado-Maior para Inteligência do Departamento de Defesa dos

EUA, publicado no Jornal das Forças Armadas e usado em um programa de treinamento no Colégio de Defesa da

OTAN para altos oficiais militares. Embora o Pentágono e o Governo norte-americano nunca tenham admitido que

este mapa refletisse a visão estratégica dos EUA para o Oriente Médio, as coincidências com o que vem

acontecendo hoje na região são assustadoras, em especial no que diz respeito à dissolução do Iraque, a criação de

um Estado Islâmico (sunita) e o provável surgimento de um Curdistão independente, englobando territórios tomados

do Iraque, da Síria e do Irã, que nesse caso perderia seu corredor estratégico até o Mar Mediterrâneo.

Segundo o Cel. Peters o reordenamento geopolítico do Oriente Médio teria por finalidade consolidar a

hegemonia americana na região com óbvios objetivos econômicos, estratégicos e militares: “Embora a maioria

dos estados localizados no Golfo Pérsico e no Oriente Médio sejam instáveis, o árbitro final na região é o poder

americano. A região é, portanto, uma área de hegemonia de um poder único e é temperado por essa hegemonia. Em
contraste, os Balcãs Eurásianos são verdadeiramente uma reminiscência dos Balcãs mais velhos, mais familiares do

sudeste da Europa: suas entidades políticas não são apenas instáveis, mas eles enfrentam constantemente a intrusão

de vizinhos mais poderosos, cada um dos quais está determinado a se opor a dominação da região por outro. É esta

combinação familiar de um vácuo de poder e poder de sucção que justifica a denominação “Balcãs Eurasianos”. Os

Balcãs tradicionais representavam um potencial prêmio geopolítico na luta pela supremacia européia. Os Balcãs

Eurasianos (…) também são geopoliticamente significativos. (…) são infinitamente mais importantes como um

potencial prêmio econômico: uma concentração enorme de gás natural e reservas de petróleo estão localizados na

região (…). O consumo de energia do mundo vai aumentar consideravelmente nas próximas duas ou três

décadas. Estimativas do Departamento de Energia dos EUA prevêem que a demanda mundial vai aumentar em mais

de 50 por cento entre 1993 e 2015, com um aumento significativo no consumo no Extremo Oriente. (…) O acesso a

esses recursos e a partilha de sua riqueza potencial representam objetivos que agitam ambições nacionais, motivam

os interesses corporativos, reacendem reivindicações históricas, revivem aspirações imperiais e rivalidades

internacionais. A situação é ainda mais volátil pelo fato de que a região não é apenas um vácuo de poder, mas

também internamente instável”.

É dessa forma que o Oriente Médio vem sendo condicionado a se transformar em um barril de pólvora pronto

para explodir. Até a primeira década deste século, quando tais teses foram expostas, o gatilho para incendiar a região

seria provavelmente um ataque dos EUA/Israel/OTAN à Síria ou ao Irã. Mas o fracasso das guerras no Afeganistão e

no Iraque, travadas ao custo de muito sangue e trilhões de dólares, fez Washington repensar sua estratégia. E é

exatamente aqui que a história do Oriente Médio encontra similaridade com o desastre ecológico no Lago Victoria.

No lugar das intervenções diretas, os estrategistas de Washington passaram a explorar as divisões sectárias e

as tensões étnicas para provocar conflitos armados em larga escala, e para fazer isso, introduziu, armou e

financiou organizações extremistas. Desde então as tentativas de criar intencionalmente animosidade entre os

diferentes grupos étnico-culturais e religiosas do Oriente Médio têm sido sistemáticas, desde a guerra civil na

Palestina em 2007, que culminou com a cisão entre o Hamas e o Al Fatah até a eclosão dos distúrbios que ficaram

conhecidos como a “Primavera Árabe”, quatro anos depois. Publicado em 2007, um artigo do jornalista Seymour

Hersh, vencedor do Prêmio Pulitzer, declarava especificamente:


- “Para minar o Irã, que é predominantemente xiita, a administração Bush decidiu, com efeito, reconfigurar suas
prioridades no Oriente Médio. No Líbano, a Administração tem colaborado com o governo da Arábia Saudita, que é
sunita, em operações clandestinas que se destinam a enfraquecer o Hezbollah, a organização xiita que é apoiada
pelo Irã. Os EUA também têm participado em operações clandestinas que visam o Irã e seu aliado Síria. Um
subproduto dessas atividades tem sido o reforço de grupos extremistas sunitas que defendem uma visão militante
do Islã e são hostis para a América e simpático à Al Qaeda“.

As acusações de Hersh comprovar-se-iam nos anos seguintes, com as revelações de que os EUA, com a cumplicidade

das Monarquias do Golfo, em particular a Arábia Saudita, armaram e financiaram a criação de exércitos de

extremistas dentro Líbia e ao longo das fronteiras da Síria. O plano, desde o início, era levantar uma força

expedicionária extremista para provocar um banho de sangue sectário na região. Em 2011 ocorreu o levante

contra Muammar al-Gaddafi na Líbia. Não por acaso a rebelião começou na região de Cirenaica, em cidades

como Bengazi, Al Bayda’ e Derna, tida como a principal base do Al-Jama’a al-Islamiyyah al-Muqatilah bi-
Libya, ou Grupo de Combate Islâmico Líbio, que na década de 1990 travou uma insurgência armada contra o

governo de Gaddafi, cujos líderes lutaram sob a bandeira da Al Qaeda contra os soviéticos no Afeganistão. Não

foram poucas as ocasiões em que Gaddafi denunciou que a rebelião contra seu governo era uma conspiração dos

EUA e da Al Qaeda para controlar a Líbia e seu petróleo:


“Há uma conspiração para controlar o petróleo da Líbia e para controlar a terra da Líbia, para colonizar a Líbia
mais uma vez (…). Como foi que tudo começou? Pequenas células da Al-Qaeda que estavam adormecidas (…). As
células da Al Qaeda atacaram as forças de segurança e tomaram as suas armas … Depois de Bayda, as células da
Al Qaeda avançaram para Benghazi e Derna.” (in “Upbeat Gaddafi Fires Trademark Blast at West and Qaeda”,
Março 2011, Agência Reuters).

Os acontecimentos na Líbia evoluíram rapidamente, muito devido ao fato de que apesar do vasto arsenal, as Forças

Armadas Líbias sempre foram mantidas em pequenos contingentes, mal treinados e mal liderados. Estima-se que

antes do início da rebelião o Exército líbio não possuía mais que 50 mil homens e a maioria de seu equipamento

(tanques, blindados, canhões e peças de artilharia) era obsoleto, adequados talvez a guerras de “baixa intensidade” e

certamente letais em guerras civis, mas ineficazes diante da ofensiva de um inimigo preparado para uma guerra

moderna. Isso permitiu o sucesso das intervenções aéreas dos EUA e da OTAN que devastaram as forças líbias e

abriram caminho para a vitória dos rebeldes.

Quase que simultaneamente teve início a revolta contra Bashar al Assad, porém num contexto que se diferenciava da

Líbia pelo fato de a Síria possuir uma das mais poderosas Forças Armadas do mundo árabe, contando com

equipamentos de defesa aérea capazes de repelir eficazmente uma ofensiva como aquela posta em prática na Líbia.

Nesse caso, descartada uma ação militar direta dos EUA e da OTAN, aaposta dos estrategistas americanos foi

concentrar todos os recursos – políticos, financeiros e militares – no apoio ao seu “exército por

procuração”, inicialmente dirigidos ao “Exército Livre da Síria” e à “Coalizão Nacional Síria”, mas que passariam a

ser canalizados para os grupos extremistas ligados à Al Qaeda.

Depois de um início avassalador, quando forças rebeldes tomaram quase metade do território povoado do país, o

conflito passou por uma fase de atrito com ganhos e perdas para ambos os lados, até que no início de 2013 o Exército

Sírio recuperou a iniciativa e passou a conquistar sucessivas vitórias, de elevado valor estratégico, que

proporcionaram a recuperação do controle de grande parte do território e a obstrução das linhas de comunicação e

suprimentos entre os insurgentes e entre estes e seus cúmplices no exterior. A vitória dos rebeldes não apenas estava

ameaçada, mas a cada batalha perdida tornava-se mais improvável.

O ressurgimento do Estado Islâmico do Iraque e da Síria (ISIS), agora como protagonista principal desta trama,

acontece em meados de abril de 2013. Diante do fracasso do Exército Livre da Síria em bater as forças de Assad, os

Estados Unidos, através de seus aliados regionais – Arábia Saudita, Qatar e Turquia – recrutaram, armaram,

treinaram e introduziram no conflito sírio jihadistas estrangeiros de países árabes – particularmente do Iraque, mas

também da Líbia, Tunísia e Arábia Saudita – do norte do Cáucaso, da Rússia e da Europa fornecendo-lhes

recursos que tornaram o ISIS a força de combate mais poderosa e eficaz entre os grupos da

oposição. Coincidentemente, a expansão do ISIS acontece no momento em que a “ajuda” americana à insurgência
contra Bashar al-Assad atinge seu ponto culminante, como revelam reportagens do “The New York Times” e do

“Washington Post” publicadas à época, cujos trechos reproduzimos:

“Com a ajuda da CIA, os governos árabes e Turquia têm aumentado drasticamente sua ajuda militar aos
combatentes de oposição da Síria nos últimos meses, a expansão de uma ponte aérea secreta de armas e
equipamentos para a revolta contra o presidente Bashar al-Assad, de acordo com dados do tráfego aéreo, as
entrevistas com funcionários em vários países e as contas dos comandantes rebeldes” (Arms Airlift to Syria Rebels
Expands, With Aid From C.I.A. – The New York Times, 24/03/2013).

“A CIA começou a entregar armas a rebeldes na Síria, encerrando meses de atraso na ajuda letal que havia sido
prometido pela administração Obama, de acordo com autoridades norte-americanas e figuras sírias. Os embarques
começaram a fluir para o país ao longo das últimas duas semanas, juntamente com entregas separadas pelo
Departamento Estadual de veículos e outros equipamentos – um fluxo de material que marca uma grande escalada
do papel dos EUA na guerra civil da Síria”. (CIA begins weapons delivery to Syrian rebels – The Washington Post,
11/09/2013)

“Voraz predador, com alimento em abundância e sem predadores naturais” (repito a frase para enfatizar a analogia

com os acontecimentos no Lago Victoria) o ISIS expandiu suas atividades terroristas e passou a praticar o

“canibalismo”, atacando e tomando pela força áreas então controladas pelos remanescentes do “Exército Livre da

Síria” e outros grupos “moderados” da oposição. Passou ainda a recrutar homens entre suas fileiras e com isso

dominou uma ampla faixa no noroeste da Síria, entre a fronteira com a Turquia até a fronteira com o Iraque, onde já

estava estabelecido. Esse não foi um movimento casual, mas premeditado e executado com maestria, fazendo

desaparecer a fronteira e abrindo caminho para a criação de um Estado Islâmico sunita que abrangeria

territórios de ambos os países, atendendo, propositalmente ou não, às diretrizes traçadas para o Projeto Novo

Oriente Médio.

Com as armas obtidas para combater al-Assad, os terroristas do ISIS transpuseram facilmente a fronteira e reforçaram

seus congêneres no Iraque para lançar ataques às grandes cidades do país e fazer o cerco a Bagdad. Um claro

exemplo da premeditação destas ações foi a retirada (março/2014) de centenas de combatentes do ISIS das cidades

sírias de Latikia e Idlib e seu reposicionamento na região limítrofe com o norte do Iraque, claramente um preparativo

para a invasão do país vizinho.

Colhendo Tempestade

Nos dez primeiros dias de junho toda a província de Nínive, no norte do Iraque, foi tomada pelos terroristas do ISIS,

inclusive a cidade de Mosul, capital da província. Mosul é a segunda maior cidade do país, com uma população de

cerca de 1 milhão de pessoas. Foram necessários apenas quatro dias de combates com as tropas do governo nos

subúrbios de Mosul para alcançar esta vitória. A seguir, destruíram todos os acampamentos militares locais,

assumindo o controle dos equipamentos militares, incluindo helicópteros e tanques, que foram abandonados pelas

forças armadas iraquianas, e libertaram mais de três mil criminosos da prisão estadual, a maior parte dos quais

condenados por seu envolvimento em atividades terroristas. Durante a noite, cerca de quinhentos mil habitantes

fugiram de Mossul para buscar refúgio no vizinho Curdistão.


Nos dias seguintes, os terroristas se dirigiram em grandes colunas para o sul, em direção a Tikrit, a cidade natal de

Saddam Hussein, centro administrativo da província de Salah al-Din, povoada exclusivamente por sunitas, e um dos

maiores centros de produção de petróleo no país. No caminho, sem encontrar resistência do exército iraquiano,

pilharam um número significativo de depósito de armas e capturaram dezenas de carros blindados. Logo depois,

atacaram a cidade de Samarra.

Ao final da primeira quinzena de junho as forças do ISIS já haviam controlado cerca de 50.000 quilômetros

quadrados ou 15% do território do país, que abriga 4,5 milhões de habitantes, o que equivale a 12% do total da

população do Iraque. Em 29 de junho – primeiro dia do Ramadã – o ISIS proclamou a formação de um Estado

Islâmico, nomeando seu líder, Abu Bakr al-Baghdadi como califa, ou seja, sucessor de Maomé e líder único do

Islã, exigindo que todos os muçulmanos lhe jurem fidelidade, declarando inválidos todos os demais emirados, reinos,

Estados e organizações islâmicas.

Embora rejeitado pela totalidade dos Estados muçulmanos, e também pelos demais grupos rebeldes que combatem na

Síria e no Iraque, o califado do ISIS acaba por se materializar como poderoso catalizador do extremismo

islâmico, cujo sucesso estimularia o acirramento das tensões em países como a Jordânia, Líbano, Palestina e

Egito, levando o caos ao Oriente Médio. Na Palestina, por exemplo, o fracasso do Hamas em defender militarmente

a Faixa de Gaza e a impotência política do al Fatah diante da expansão dos assentamentos judeus na Cisjordânia

poderiam levar milhares de jovens palestinos a aderirem ao auto-proclamado califado.

O fato é que o ISIS é uma criação da CIA, um “ativo de inteligência” dos EUA, utilizado para a guerra não-

convencional; também é fato que não haviam rebeldes da Al Qaeda no Iraque antes da invasão de 2003, bem como

inexistiam na Síria até o início da insurgência março de 2011. Como vimos, a formação de um Estado que abrangesse
tanto o Iraque como a Síria era parte de uma agenda de longa data da inteligência dos EUA, dentro do

chamado “Projeto Novo Oriente Médio”.

Considerando que a deposição de Bashar al Assad tornou-se um objetivo central da política dos EUA, também é

lógico deduzir que a presença dos terroristas do ISIS em ambos os lados da fronteira entre o Iraque e a Síria venha a

ser extremamente conveniente. Isso porque qualquer campanha militar para erradicá-los a partir do território

iraquiano pode facilmente se espalhar para as fronteiras da Síria, permitindo justificar eventuais operações

transfronteiriças e o estabelecimento de uma “zona tampão” para interromper o fluxo comercial e a logístico

entre a Síria e o Irã.

Isso sem mencionar que a captura dos estoques militares iraquianos proporcionou um dramático aumento no

poder de fogo das forças que procuram derrubar o governo sírio. Centenas de veículos blindados foram

capturados, o suficiente para equipar uma divisão blindada completa. No aeroporto de Mosul, os terroristas

ganharam acesso a helicópteros militares e outras aeronaves. Enormes quantidades de armas e munições foram

roubadas e poderiam armar vários batalhões de combatentes que fossem enviados pela agora segura região fronteiriça

de volta à Síria. Dessa forma, a demanda americana de fornecer armas para os “rebeldes” seria largamente

atingida na prática pelos acontecimentos em Mosul.

Analisado deste ponto de vista poder-se-ia concluir, equivocadamente, que o sucesso dos terroristas do ISIS é

na verdade um sucesso da estratégia norte-americana pra o Oriente Médio, ou que suas lideranças estariam

agindo sob ordens diretas de Washington. E que sob a bandeira de um conflito sectário entre xiitas e sunitas os EUA

estão simplesmente substituindo sua ocupação militar por formas não-convencionais de guerra, utilizando-se de

milícias armadas que são referenciadas ora como oposição pró-democracia ou terroristas, dependendo do contexto e

do papel que têm a desempenhar na trama: os mesmos extremistas são chamados na Síria de “oposição legítima,

representantes da liberdade que lutam pela democracia contra uma ditadura brutal”, enquanto que no Iraque, são

“terroristas que lutam contra um governo democraticamente eleito apoiado pelos EUA”. Vejamos o que diz o Prof.

Michel Chossudovsky:

“O Estado Islâmico do Iraque e o projeto do califado sunita de al-Sham coincide com uma agenda de longa data
dos EUA para esculpir o Iraque e a Síria em três territórios distintos: um califado sunita, uma República Árabe xiita
e uma República do Curdistão. Sob a bandeira de uma guerra civil, uma guerra de agressão está sendo travada
para destruir ainda mais todo um país, suas instituições, sua economia. A operação secreta é parte de uma agenda
de inteligência, de um processo de engenharia que consiste em transformar o Iraque em um território aberto.
Enquanto isso, a opinião pública é levado a acreditar que o que está em jogo é o confronto entre xiitas e sunitas.
“(The Engineered Destruction and Political Fragmentation of Iraq. Towards the Creation of a US Sponsored
Islamist Caliphate, Michel Chossudovsky, Junho/2014)

Mas as aparências podem ser enganosas. A começar pela invasão do Iraque, uma operação militar planejada para

durar entre seis meses a um ano que acabou se arrastando por longos nove anos, ao custo de trilhões de dólares e

milhares de vidas. Um conflito que “terminou” com a derrota militar, moral e econômica dos EUA. Vejam o que
disse o economista Joseph Stiglitz, ex-presidente do Conselho de Assessores Econômicos (Council of Economic

Advisers) no governo Clinton e ex-economista chefe do Banco Mundial, em entrevista à agência EFE (2008):
(Sobre o programa de intervenção nos mercados financeiros, no início da crise de 2008): “Acho que não é
suficiente, nem foi feito de forma correta, nem aborda o problema fundamental, que é a grande quantidade de
execuções de hipotecas. O sistema está debilitado pelo peso da dívida, e parte desta se deve à guerra do Iraque“.
(Sobre o vínculo entre a Guerra do Iraque e a crise financeira): “A guerra contribuiu para o enfraquecimento da
economia. Em 2008-2009 está previsto que tenhamos o maior déficit fiscal de nossa história. A guerra também
contribuiu para a alta do preço do petróleo. Drenamos nossa economia para comprar petróleo. Isso foi o motivo da
ampla liquidez (fornecida pelo Fed antes da crise): diminuir os efeitos de uma despesa tão alta no Iraque. Mas
certamente se criou um problema para o futuro com isso”.

O fracasso no Iraque atrasou o Projeto “Novo Oriente Médio” em quase uma década e levou Washington a

fazer uso de um “ativo de inteligência” que nunca foi a primeira opção estratégica a considerar, em razão dos

perigosos “efeitos colaterais”: a Al Qaeda e o extremismo islâmico. Na Líbia o método funcionou a contento, mas na

Síria seu “exército por procuração” fracassou vergonhosamente na tentativa de derrubar o governo de Bashar al

Assad, e apesar de todo suporte político, militar e financeiro promovido pelos EUA e seus aliados, Damasco continua

de pé, colecionando vitórias nos campos de batalha e mantendo o controle sob a maior parte do país. A convulsão

social que tomou o Egito no rastro da “Primavera Árabe”, a queda de Mubarak e a ascensão da Irmandade

Muçulmana foi um “ponto fora da curva” na estratégia americana, esse devidamente corrigido com a volta dos

militares ao poder.

Talvez não se possa ainda falar em blowback – termo utilizado pela CIA para descrever os efeitos inesperados ou

indesejados das operações secretas ou encobertas realizadas por seus agentes em outros países (Blowback: the cost

and consequences of American Empire, Chalmers Johnson, 2007) – mas a VERDADE é que da mesma forma como

não há dúvida quanto ao fato de que organizações extremistas como a Al Qaeda e o ISIS foram criadas e

alimentadas pelos EUA, também não se deve ignorar que estes “exércitos por procuração” não respondem a um

comando estratégico que passe pelo controle direto de Washington.

Estas organizações terroristas possuem uma agenda própria – que nesse momento está sendo mais ou menos

conveniente aos propósitos yankees, assim como a perca-do-nilo pareceu conveniente aos propósitos britânicos no

episódio do Lago Victoria. Através do terror e de grotesca violência, o ISIS cumpre seu papel no processo de

“balcanização” do Iraque, mas a proclamação de um califado passa longe da ideia que Washington esperava

para o seu “Sunistão”.


Mais de uma década depois da invasão do Iraque o Projeto “Novo Oriente Médio” ainda é só uma coleção de

fracassos, que vem deteriorando a credibilidade dos EUA e reduzindo drasticamente seu poder de influência

na região, até mesmo junto a aliados históricos, como Israel e Arábia Saudita, que já parecem não contar mais com o

poderio americano para conter o Irã, que mantêm intacto seu arco de influência e continua o desenvolvimento de seu

programa nuclear apesar das sanções econômicas, firmando-se como potência central no Oriente Médio. Por outro

lado, o fortalecimento destas organizações terroristas sunitas, criadas, armadas e financiadas pela inteligência

americana para seus rasos propósitos, abriu caminho para viabilizar um projeto ainda mais ambicioso, que

escaparia a qualquer tipo de argumento geopolítico, controle ou ingerência de seus “patrocinadores”, uma vez

que encontra suas origens na teologia islâmica: a criação de um califado que se estenderia do Iraque ao

Mediterrâneo Oriental, ponta-de-lança para a unificação de todo o mundo islâmico. Esse propósito já foi

anunciado pelas lideranças do ISIS e seu eventual desenvolvimento se daria agora em direção à Jordânia e

finalmente, Israel. Esses são os FATOS acerca do fracasso da geopolítica americana para o Iraque e o Oriente

Médio.

E como comecei o artigo com uma analogia (o desastre ambiental provocado pela introdução da perca-do-nilo no

Lago Victoria), termino lançando mão de outra, para provocar os que insistem em acreditar que a ameaça do ISIS não

passa de um estratagema dentro de uma bem sucedida estratégia norte-americana:

Em dezembro 1941 os EUA sofreram o até então maior revés militar de sua História. Navegando invisível por

milhares de milhas através do Pacífico uma frota japonesa com dezenas de embarcações, incluindo seis porta-aviões,

chegou ao Hawai, para bombardear a base naval de Pearl Harbour, afundando ou danificando dezenas de navios e

causando a morte de 2.403 americanos. Entretanto, apesar da dramaticidade dos fatos, o ataque teve apenas um

pequeno impacto militar, uma vez que os porta-aviões, estaleiros de reparos e depósitos de combustível escaparam da

destruição. Por outro lado, serviu para dobrar a opinião pública americana – que se opunha ao envolvimento na

guerra contra Hitler – e finalmente conduzir os EUA e sua massiva economia industrial para a Segunda Guerra

Mundial, ao final da qual o país emergiu como uma potência mundial.

Foram os EUA quem provocaram a agressão japonesa, ao apresentar um ultimato com severas exigências –

inaceitáveis para o Japão – em relação à guerra com a China. A inteligência americana tinha conhecimento dos planos

japoneses e tudo o que fizeram foi facilitar sua execução, relaxando a vigilância no Pacífico. A ausência dos porta-

aviões foi mais uma evidência de que o ataque era esperado e que simplesmente os americanos “deixaram acontecer”.

Mas isso não significa que os comandantes japoneses, ou seu próprio Governo, fossem “cúmplices” dos planos

americanos. E a prova disso foram os sangrentos combates nas ilhas do Pacífico e a explosão de duas bombas

atômicas para dar fim à guerra.

Assim acontece com os extremistas islâmicos. Foram criados, armados e financiados pelos EUA para travarem

“guerras por procuração”, tropas de infantaria a serviço de um plano para consolidar a hegemonia americano-

israelense no Oriente Médio. Mas estes terroristas não são simplesmente cúmplices do Governo americano. Não
lutam sob ordens diretas de Washington, nem seguem à risca seus planos estratégicos. Eles tem seus próprios

objetivos e vão agir para alcança-los, o que fará com que num determinado momento tenham que ser enfrentados

por seus “patrocinadores” e aliados. Talvez duas bombas atômicas não sejam suficientes para detê-los, e nesse

momento se fará evidente o fracasso da geopolítica americana e a ocorrência do blowback. É esperar para ver…

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