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Diploma para

os clássicos
Histórias de estudantes e docentes de ensino superior que ainda
veem o latim como uma chave importante para a compreensão
da própria língua portuguesa
POR MARIANA HILGERT

Q
uando começou a apren- para ingressar no curso de Letras caso, o que era declinação, quan-
der latim, aos 10 anos, Português-Grego da Universidade do entram na universidade”.
Maria Helena de Moura Estadual Paulista (Unesp – Arara- A história de Neves serve
Neves ainda desconhecia a impor- quara). Atualmente, trabalhando para ilustrar uma época em
tância da língua que ouvia somen- como professora de Linguística na que o latim era prestigia-
te da boca do padre, nas missas que Universidade Presbiteriana Ma- do em todos os níveis
frequentava quando criança. O ckenzie e na mesma Unesp em que educacionais – cul-
aprendizado que teve na infância estudara, ela compara a época em tura que vem do
só foi lhe ser útil anos mais tarde, que viveu com a atual no que diz século XVII,
quando prestou vestibular. “Aqui- respeito ao estudo do latim. “Eles quando o
lo ali, para mim, era a coisa mais [os estudantes] começam a fazer ensino do
simples do mundo”, comenta, ao aquilo que eu fazia com 10 anos, idioma
relembrar a prova de latim que fez que é começar a saber o que era é in-
troduzido nos seminários. Os jesuítas va de que deve ser entendida como alunos quando eles a questionavam
foram os primeiros professores da lín- ‘simples matéria instrumental’’’. sobre a real utilidade do latim. “Para
gua, que só se tornou disciplina obri- Autor da obra que serve é uma coisa relativa, eu di-
gatória, em nível secundário, no ano , Italo Lana enxerga esse proces- zia. Saber fritar um ovo é algo muito
de 1772, mais de um século depois. so de instrumentalização de forma mais relevante quando você está com
Com o surgimento das primeiras uni- positiva. Para ele, somente usando fome”. Apesar de brincar, ela deixa-
versidades – como a de Manaus e a o latim como um meio, através do va clara a função da sua disciplina:
do Rio de Janeiro, criadas, respecti- estudo das obras literárias, será pos- explicar os fenômenos do português.
vamente, em 1909 e 1920 – e dos pri- sível compreender historicamente Mesmo assim, ela ressalta que “a pes-
meiros cursos de Filosofia, a língua e a a civilização romana. Já Alceu Dias soa pode falar um português perfeito
literatura latina se tornam disciplinas Lima, no livro sem conhecer latim. Você pode falar
relevantes no âmbito educacional do , um inglês perfeito sem saber de onde
ensino superior. Em 1931, o Minis- publicado em 1995, vê a língua como ele veio”.
tro da Educação Francisco Campos um instrumento para outro fim: o Como professora de Linguística,
incentiva oficialmente a dedicação à aperfeiçoamento do português. Maria Helena de Moura Neves con-
área, através da promulgação do De- corda com a afirmação de Cardoso.
creto No 19851. “Não é dizer que eu preciso do latim
Com isso Justificativas para escrever bem. Eu estou pensan-
aum entam Nesse contexto, surge o ques- do em pessoas que se aprofundam na
as produções tionamento: afinal, por que estudar linguagem, que lidam com a lingua-
de gramáticas, latim? Para José Ernesto de Vargas, gem como objeto de investigação”,
traduções de obras professor da disciplina de História da explica, referindo-se aos discentes.
latinas e elaboração de livros Língua Portuguesa, na Universidade Para ela, o latim traz uma vantagem
didáticos diferenciados. Federal de Santa Catarina (UFSC), específica que difere seus estudantes
Trinta anos depois, a situação do é interessante suscitar tal questiona- dos demais: “Você tem um gatilho
latim já era diferente. Com a lei de mento entre os alunos. Concordando disparado para poder observar mais
Diretrizes e Bases da Educação Na- com a ideia de Lana, ele entende que coisas na sua língua. A vivência do
cional (LDB), decretada em 1962, “a razão primordial [para o estudo do latim é a preparação de um gatilho
seu ensino se restringiu ao curso de latim] é a questão histórica, e, para disponível pra você desvendar certas
Língua e Literatura Latinas e às dis- mim, história é uma preocupação construções”.
ciplinas compulsórias presentes no fundamental. O próprio Cícero dizia Responsável pelas disciplinas de
currículo de Letras. Nem mesmo as que não saber o que se passou, o que Língua, Literatura e Tradução La-
instituições de ensino superior regi- aconteceu no passado, é ter uma pos- tina no curso de Letras da UFSC,
das pela Igreja Católica, responsável tura de criança”. Mauri Furlan volta suas aulas para a
pelas primeiras investidas da língua Esse fator, que diz respeito à histó- questão do funcionamento e da es-
no país, o mantiveram, deixando tal ria da civilização, é a principal razão trutura do sistema linguístico latino.
responsabilidade a cargo das institui- levantada por Lana. Na sua obra, ele Mas, segundo ele, isso é uma questão
ções, na sua maioria, públicas. explica o porquê do estudo do latim: de escolha que fica a critério do do-
Em 1989, o professor da Univer- “A sociedade de hoje deve conhecê- cente. “Ele pode dirigir a sua prática
sidade Federal Fluminense (UFF) lo (e a cultura de hoje, a ele recorrer de acordo com os seus objetivos”,
Rosalvo do Vale escreveu o artigo com frequência) para conhecer a si observa. Por isso que, para ele, não
, no mesma. A compreensão do presente há uma justificativa principal para o
qual justifica a crise de disciplinas passa pelo conhecimento do passado. estudo do latim. “No curso de Letras,
como o Latim, dentro do ensino su- E o nosso passado é antes de tudo a o latim é oferecido não com vistas a
perior. Um dos fatores remonta ao civilização da Roma antiga no que ler as obras clássicas. Mas isso é uma
Parecer No 283 , elaborado, no mes- teve de bom e no que teve de mau”. consequência – primeira, talvez. O
mo ano da LDB, pelo Conselho Fe- A outra justificativa, de que o latim também é a base de nossa cul-
deral de Educação. Nele, fica estabe- latim favoreceria a compreensão da tura. A gente sempre aprende que
lecido que, no currículo mínimo para língua, era usada pela professora de ela é greco-romano-judaica, mas eu
os cursos de Letras, a “Língua Latina Latim da Universidade de São Paulo deveria entender essas culturas, que
integra a parte comum, obrigatória (USP), Zélia de Almeida Cardoso. Ela estão na base da minha origem”, ex-
das disciplinas, porém com a ressal- conta que costumava brincar com os plica.


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