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CURSO SUPERIOR
Marcelino Freire

O meu medo é entrar na faculdade e tirar zero eu que nunca fui bom de matemática fraco no
inglês eu que nunca gostei de química geografia e português o que é que eu faço agora hein mãe
não sei.
O meu medo é o preconceito e o professor ficar me perguntando o tempo inteiro por que eu não
passei por que eu não passei por que eu não passei por que fiquei olhando aquela loira gostosa o
que é que eu faço se ela me der bola hein mãe não sei.
O meu medo é a loira gostosa ficar grávida e eu não sei como a senhora vai receber a loira gostosa
lá em casa se a senhora disse um dia que eu devia olhar bem para a minha cara antes de chegar
aqui com uma namorada hein mãe não sei.
O meu medo também é do pai da loira gostosa e da mãe da loira gostosa e do irmão da loira
gostosa no dia em que a loira gostosa me apresentar para a família como o homem da sua vida
será que é verdade será que isso é felicidade hein mãe não sei.
O meu medo é a situação piorar e eu não conseguir arranjar emprego nem de faxineiro nem de
porteiro nem de ajudante de pedreiro e o pessoal dizer que o governo já fez o que pôde já pôde o
que fez já deu a sua cota de participação hein mãe não sei.
O meu medo é que mesmo com diploma debaixo do braço andando por ai desiludido e
desempregado o policial me olhe de cara feia e eu acabe fazendo uma burrice sei lá uma besteira
será que vou ter direito a uma cela especial hein mãe não sei.

CANTO OBSCURO ÀS RAIZES


Conceição Lima

Em Libreville O meu primeiro avô


não descobri a aldeia do meu primeiro avô. que não morreu agrilhoado em James Island
e não cruzou, em Gorée, a porta do inferno
Não que me tenha faltado, de Alex,
a visceral decisão. Ele que partiu de tão perto, de tão perto
Alex, obstinado primo Ele que chegou de tão perto, de tão longe
Alex, cidadão da Virgínia
que ao olvido dos arquivos Ele que não fecundou a solidão
e à memória dos griots Mandinga nas margens do Potomac
resgatou o caminho para Juffure,
a aldeia de Kunta Kinte - Ele que não odiou a brancura dos algodoais
seu último avô africano
primeiro na América. Ele que foi sorvido em chávenas de porcelana
Ele que foi compresso em doces barras
Digamos que o meu primeiro avô castanhas
meu último continental avô Ele que foi embrulhado em chiques papéis de
que da margem do Ogoué foi trazido prata
e à margem do Ogoué não tornou decerto Ele que foi embalado em caixinhas

O meu primeiro avô O meu concreto avô


que não se chamava Kunta Kinte que não se chamava Kunta Kinte
mas, quem sabe, talvez, Abessole mas talvez, quem sabe, Abessole
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O meu oral avô Mas não legou aos estrangeiros filhos


não legou aos filhos e aos filhos dos filhos dos estrangeiros filhos
dos filhos dos seus filhos o nativo nome do seu grande rio perdido.
o nativo nome do seu grande rio perdido.
Por isso eu, a que agora fala,
Na curva onde aportou não encontrei em Libreville o caminho para a
a sua condição de enxada aldeia de
no húmus em que atolou Juffure.
a sua acossada essência
no abismo que saturou Perdi-me na linearidade das fronteiras.
de verde a sua memória
as águas melancolizam como fios E os velhos griots
desabitadas por pirogas e hipopótamos. os velhos griots que detinham os segredos
de ontem e de antes de ontem
São assim os rios das minhas ilhas
e por isso eu sou a que agora fala. Os velhos griots que pelas chuvas contavam
a marcha do tempo e os feitos da tribo
Brotam como atalhos os rios
da minha fala Os velhos griots que pelas chuvas contavam
e meu trazido primeiro avô a marcha do tempo e os feitos da tribo
(decerto não foi Kunta Kinte,
porventura seria Abessole) Os velhos griots que dos acertos e erros
não pode ter inventado no Água Grande forjavam o ténue balanço
o largo leito do seu Ogoué.
Os velhos griots que da ignóbil saga
Disperso num azul sem oásis guardavam um recto registo
talvez tenha chorado meu primeiro avô
um livre, longo, inútil choro. Os velhos griots que na íris da dor
plantavam a raiz do micondó
Terá confundido com um crocodilo partiram
a sombra de um tubarão. levando nos olhos o horror
e a luz da sua verdade e das suas palavras.
Terá triturado sem ilusão Por isso eu que não descobri o caminho para
a doçura de um naco de mandioca. Juffure
Circunvagou nas asas de um falcão. eu que não dançarei sobre o pó da aldeia do
meu primeiro
Terá invejado a liquidez de caudas e barbatanas avô
enquanto o limo dos musgos sequestrava os
seus pés meu último continental avô
e na impiedosa lavra de um vindoura tempo que não se chamava Kunta Kinte mas talvez,
emergia uma ambígua palavra quem sabe,
para devorar o tempo do seu nome. Abessole

Aqui terás testemunhado Eu que em cada porto confundi o som da fonte


o esplendor do pôr do sol, o luar, o arco-íris. submersa
Decerto terá pressentido a calidez dos pingos encontrei em ti, Libreville, o injusto património
nas folhas das bananeiras. que chamo
E terá sofrido no Equador o frio da Gronelândia. casa:
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estas paredes de palha e sangue entrançadas,


a fractura no quintal, este sol alheio à assimetria A chuva tema agora a cadência de um tambor
dos prumos, outro silêncio se ergue
a fome do pomar intumescida nas gargantas. no vazio dos salões das coiffeuses.

Por isso percorri os becos E no rasto do tam-tam revelarei


as artérias do teu corpo o medo adolescente encolhido nas vielas
onde não fenecem arquivos beberei a sede da planta no teu grão.
sim palpita um rijo coração, o rosto vivo
uma penosa oração, a insana gesta Eu que trago deus por incisão em minha testa
que refunda a mão do meu pai e nascida a 8 de Dezembro
transgride a lição de minha mãe tenho de uma madona cristã o nome.
e narra as cheias e gravanas, os olhos e os
medos A neta de Manuel da Madre de Deus dos Santos
as chagas e desterros, a vez e a demora Lima
o riso e os dedos de todos os meus irmãos e que enjeitou santos e madre
irmãs. ficou Manuel de Deus Lima, sumu sun Malé
Lima
Que nenhum idioma nos proclame ilhéus de nós Ele que desafiou os regentes intuindo nação -
próprios descendente de Abessole, senhor de abessoles.
vocábulo que não és
Mbanza Congo Eu que encrespei os cabelos de san Plentá,
mas podias ser minha três
Que não és vezes avó
Malabo
poderias ser e enegreci a pele de san Nôvi, a soberana mãe
Que não és do meu pai
Luanda
e podias ser Eu que no espelho tropeço
Que não és na fronte dos meus avós...
Kinshasa
nem Lagos Eu e o temor do batuque da puíta
Monróvia não és, podias ser. o terror e fascínio do cuspidor de fogo

Nascente e veia, profundo ventre Eu e os dentes do pãuen que da costa viria me


conheces a estrutura que sabota os ponteiros: engolir
novos sobas, barcos novos, o conluio antigo. Eu que tão tarde descobri em minha boca os
caninos do antropólogo...
E consomes a magreza dos celeiros
num bazar de retalhos e tumultos Eu que tanto sabia mas tanto sabia
Petit Paris! de Afonso V o chamado Africano
Onde tudo se vende, se anuncia Eu que drapejei no promontório do Sangue
onde as vidas baratas desistiram de morrer. Eu que emergi no paquete Império
Eu que dobrei o Cabo das Tormentas
Medram quarteirões de ouro Eu que presenciei o milagre das rosas
nos teus poros - diurnos, desprevenidos. Eu que brinquei a caminho de Viseu
Medra implacável o semblante das mansões Eu que em Londres, aquém de Tombuctu
Medram farpas na iníquia muralha decifrei a epopeias dos fantasmas elementares.
e um taciturno anel de lama em seu redor.
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Eu e minha tábua de conjugações lentas Meu inexorável primeiro avô


Este avaro, inconstruído agora que das margens do Benin foi trazido
eu e a constante inconclusão do meu porvir e às margens do Benin não tornou decerto

Eu, a que em mim agora fala. Na margem do Calabar foi colhido


e às águas do Calabar não voltou decerto
Eu, Katona, ex-nativa de Angola
Eu, Kalua, nunca mais em Quelimane Nas margens do Congo foi caçado
Eu, nha Xica, que fugi à grande fome e às margens do Congo não tornou decerto
Eu que libertei como carta de alforria
este dúbio canto e sua turva ascendência. Da nascente do Ogoué chegou um dia
e à foz do Ogoué não voltou jamais.
Eu nesta lisa, escarificada face
Eu e nossa vesga, estratificada base Eu que em Libreville não descobri a aldeia
Eu e a confusa transparência deste traço. do meu primeiro avô
meu eterno continental avô
Eu que degluti a voz do meu primeiro avô
que não se chamava Kunta Kinte Eu, a peregrina que não encontrou o caminho
mas talvez, quem sabe, Abessole para Juffure
Eu, a nómada que regressará sempre a Juffure.
Meu sombrio e terno avô

O VERDE DAS PALMEIRAS DA MINHA MOCIDADE


Agostinho Neto

O verde das palmeiras da minha mocidade da minha mocidade.


As canoas serpenteavam lestas
sobre as águas sujas Todos os deuses da mística dos séculos
afastando escória e podridão e os seus sacrifícios
flores trocos vísceras cruentos ou incruentos
impelidas pelo medo o sopro metafísico das florestas sagradas
e pela força dos braços. a inspiração divinizada dos xinguilamentos
e dos feiticeiros
Para mais alto! Para mais alto! ficavam, ficavam encharcados nas águas
Nos olhos brincava a aventura da insegurança que me dançava no peito.
nas mãos crispado o temor
no peito dançava a insegurança. E ficavam também
as orgias religiosas dos óbitos
O Cuanza transbordante as adivinhações maravilhosas dos malefícios
de ameaça e despotismo a histeria
avançava sobre a terra das crepusculares cerimónias para a vida
num parto alastrante de chuvas torrenciais e para o amor
e os crocodilos o cheiro acre do sangue
vencido o elemento a fecundidade da terra
iam banquetear-se nos currais abandonados. o objecto transformado em deus
tintas e poeiras
Eu fugia do verde gotas e fragmentos de ossos
do verde negro das palmeiras lágrimas e canções
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segredos invioláveis de seitas de mistério Eu fugia


humanidade e desumanidade do verde negro das palmeiras
a poesia da minha mocidade
e o rasto espiritual do sangue afagando o dedo da insegurança

Eu Os dorsos!
afagava inocente o dedo da insegurança E os dorsos simétricos encurvados sobre a
terra
Orava: mugindo – a rudemente com as enxadas
Tata ietu uala ku diulu de macio brilho
Fukamenu! e os cantos ritmando o esforço
Lengenu! a dor
O ituxi! O ituxi e a poligamia dos afectos
ó paradoxo dos pecados! as lágrimas viscosas dos decepados troncos
com raiz
Nova linguagem! a ânsia solidária nas canoas deslizando
Não mais as histórias contadas à sombra sobre as águas
da mafumeira e os sorrisos orquestrados sob os leques dos
ou à doce luz duma enfumarada fogueira coqueiros
nem o macaco ou o leão ou a impossibilidade de cingir o embondeiro
o coelho ou a tartaruga num abraço.

Fugir! Tudo ficava


Deixar os reptéis banquetear-se no currais lá longe em África
abandonados na África da África.
com tudo quanto criaram os anos
a recordação E as águas despóticas e devastadoras
da agilidade dos membros e dos troncos entregavam fartos os currais abandonados
das ancas e das vozes à fome indecente dos animais.
na noite escura recortados
sobre o clarão do fogo Eu fugia
a vibração o ritmo sorridente e triste
o rendilhado dos coqueiros sorridente e vazio
o cheiro da terra húmida e capinada sem terra, nem língua, nem pátria
as vozes dos homens brincando com a aventura
o espírito tremendo ao oscilar das canoas frágeis
a graça da autenticidade e da certeza esperançosas
sincopadas na marimba e no quissange para uma metafísica mestiça de conjuntura
e sublinhados pelo tambor com o estômago vazio
o sabor doce e a alegria da tradição. e o espírito
esmagado entre os malcheirosos dentes.
Eu fugia
e o espírito era espezinhado Para mais alto!
nos currais abandonados. Para mais alto!

Cresçam sinfonias de Beethoven Trazia no sangue a alegria dos espaços


e poemas que o amigo Mussunda não o aroma dos corpos sacrificados à
entende. humanidade
a virgindade das flores
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a angústia dos cárceres Eu fugia


e da ignorância do verde negro das palmeiras
o medo da minha mocidade
do céu e da terra afagando inocente o dedo da insegurança
dos deuses e dos homens sorridente e triste
dos cadáveres e dos vivos deixando o espírito espezinhado nos currais
o medo da profundidade e da altura. abandonados

Trazia no sangue E nos gritos embrionários dos velhos mundos


o calor humano da amizade tudo revive
o calor febril dos ritmos violentos da noite esta dramática mocidade de reencontro
e o brilho verde das folhagens tudo revive em peitos largos de ansiedade
e dos olhares selvagens das avezinhas ofegantes à força da verdade
o ruído das torrentes alicerçados no imperecível.
a subitaneidade dos relâmpagos
a terra O verde negro das palmeiras
e o homem. tem beleza!

Trazia no sangue Cadeia de Caxias


o amor. 26 de Fevereiro de 1955

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