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GT: Artes Visuais Eixo Temático: Mediações culturais e sociais: fundamentos, práticas e políticas

ABORDAGEM TRIANGULAR PARA FALAR DA ABORDAGEM TRIANGULAR NO


CONTEXTO DA MEDIAÇÃO CULTURAL

Valéria Peixoto de Alencar (Instituto de Artes/UNESP, SP, Brasil)


Rejane Galvão Coutinho (Instituto de Artes/UNESP, SP, Brasil)

RESUMO:
Este artigo apresenta uma experiência realizada com estudantes de Licenciatura em Artes
Visuais no Instituto de Artes/UNESP, na disciplina de Prática de Ensino em Artes Visuais III,
na qual foi apresentado um recorte de uma pesquisa de doutorado sobre imagens em
museus e exposições de história, recorte este com foco na discussão sobre a Abordagem
Triangular para além do ensino da arte. A partir de uma metodologia construída desde a
própria Abordagem Triangular propusemos um exercício que não só tratasse da pesquisa
em si, como também propiciasse reflexões acerca da pertinência desta Abordagem. O
processo é apresentado aqui, bem como nossas análises e reflexões.

Palavras-chave: Abordagem Triangular; Mediação Cultural; Leitura de Imagens.

TRIANGULAR APPROACH TO TALK ABOUT TRIANGULAR APPROACH AT THE


CULTURAL MEDIATION CONTEXT

ABSTRACT:
This article presents an experience done with Visual Arts Degree students at the Art
Institute/UNESP in the Teaching Practices in Visual Arts III class in which was presented a
part of one doctoral research about images at History museums and exhibitions, focusing in
the discussion about Triangular Approach beyond art education. From a methodology
conceived since the own Triangular Approach, was proposed an exercise that it was not only
the research itself, but also propitiated reflections on the relevance of this approach. The
process is presented here as well as our analyzes and reflections.

Key words: Triangular Approach; Cultural Mediation; Images Reading


1 A ideia
A Abordagem Triangular corresponde aos
modos como se aprende, não é um modelo
para o que se aprende.
Ana Mae Barbosa1

Modos como se aprende o quê? A professora Ana Mae Barbosa, no prefácio


da edição revisada do livro A imagem no ensino da arte, intitulado Proposta ou
Abordagem Triangular: uma breve revisão, discute o fato de ter nomeado
inicialmente a abordagem com a palavra “metodologia”, que foi logo substituída,
pois, segundo ela, “metodologia é a construção de cada professor em sua sala de
aula” (2012, p. XXVII). Assim, ela propõe ao invés da palavra metodologia o uso dos
termos proposta ou abordagem, dizendo ainda que “há muita apropriação adequada
da Proposta Triangular por professores de outras áreas. Como essa proposta não se
baseia em conteúdos, mas em ações, é facilmente apropriada a diversos conteúdos”
(BARBOSA, 2012, p. XXVII, grifos nossos). Daí a provocação aos modos como se
aprende, na epígrafe que abre este artigo.
Partindo do pressuposto que podemos nos apropriar da Abordagem
Triangular para além do ensino de Arte, duas experiências se apresentam neste
texto, uma relacionada à outra. Primeiramente, a tese de doutoramento intitulada
Mediação cultural em museus e exposições de história. Conversas sobre
imagens/história e suas interpretações de Valéria Alencar (2015), sob a orientação
da professora Rejane Coutinho, que aborda a questão sobre a leitura de imagens e
expografias em museus e exposições de história, relacionando imagens, história,
educação e museus. A inquietação que moveu a pesquisa foi a de que o discurso
visual criado em museus e exposições de história desde o século XIX para construir
uma memória nacional ainda reverbera no trabalho de mediação cultural, seja
reproduzindo ou criticando tal visualidade.
A tese, escrita como se fosse uma mediação, propõe uma reflexão sobre o
uso da Abordagem Triangular em museus e exposições de História e, ela mesma,
remete à triangulação, se tomarmos a ideia do fazer (um dos vértices da proposta)
como produção de reflexões e conhecimento. A pesquisa e a escrita podem ser
entendidas como este fazer, a leitura e contextualização estão envolvidas nesta
produção, bem como a leitura e os contextos dos leitores, que, também, produzem
suas próprias reflexões.
A outra experiência mencionada é a de que trata, especificamente, este
artigo. Durante o processo da escrita da tese (ALENCAR, 2015), surgiu a
oportunidade de apresentar a pesquisa, em fevereiro de 2015, para uma turma de
Licenciatura em Artes Visuais no Instituto de Artes da UNESP, na disciplina de
Prática de Ensino em Artes Visuais III, que tem como foco de estudo questões em
torno da mediação cultural e o ensino não-formal.

2 A proposta
Como falar de uma pesquisa, como explicá-la? Uma pesquisa que se coloca a
favor de um processo de educação emancipadora no sentido rancieriano do termo,
que se propõe, desde sua escrita, a uma mediação dialógica, então, a explicação
como se fosse uma palestra, parecia uma forma contraditória de resolver este

1
BARBOSA, 2012, p. XXVII.
problema. Como dito por Jacques Rancière (2011, p. 23): “explicar alguma coisa a
alguém é, antes de mais nada, demonstrar-lhe que não pode compreendê-la por si
só”.
Assim, na busca por inverter a lógica explicadora, pensamos na proposta de
conversar sobre a pesquisa utilizando estratégias de mediação. Optamos, então, por
destacar uma questão que estava latente naquele momento: o uso da Abordagem
Triangular nas leituras de imagens no contexto do ensino de História, especialmente
na relação museu/escola e mais particularmente ainda, se considerarmos os
museus e exposições de história, local onde é possível destacar a expectativa de
muitos professores por “ver a história” (ALENCAR, 2014). Assim, foi construída uma
estratégia metodológica que propõe o uso da Abordagem Triangular para conversar
sobre a pesquisa e sobre a própria Abordagem.
Foi proposta a leitura de duas imagens, duas pinturas que representam dois
eventos distintos, a primeira muito conhecida no contexto da cultura visual brasileira,
e a segunda menos conhecida. De modo que, utilizando a Abordagem Triangular na
aula, para falar sobre a pesquisa pudéssemos exercer uma mediação construtivista
(DARRAS, 2009) e não apenas uma explicação/palestra, além disso, era nossa
intenção que a utilização da Abordagem Triangular como meio pudesse ser
percebida no decorrer ou ao fim do processo, e também fosse objeto de reflexão.
É importante lembrar que a pesquisa também se propõe a problematizar a
relação imagem/história, assim também era uma provocação (re)pensar as pinturas
históricas no contexto do ensino da arte, para que elas possam ir além de uma
categorização da História da Arte, ou vistas como representações de fatos a serem
reforçados ou contestados.
Após a leitura e discussão das imagens, os alunos teriam que, em grupos,
produzir uma narrativa visual e, como num jogo, determinadas regras deveriam ser
seguidas, como será explicitado mais adiante.
Apesar da imagem do triângulo, e seus vértices, destacamos aqui que ver,
fazer e contextualizar não são momentos estanques ou sequenciais, ainda que
estejamos trabalhando com imagens da história, não é apenas o contexto da
imagem que nos importa e ele não é um a priori na leitura, da mesma forma que
contextos surgem com a leitura, eles também ampliam as camadas do ver, assim
como o fazer será entendido não apenas como uma prática manual, mas também
como construções reflexivas e produções de conhecimento. Como dito pela
professora Ana Mae Barbosa:
Hoje a metáfora do triângulo já não corresponde mais à estrutura
metodológica. Parece-nos mais adequado representá-la pela figura
do ziguezague, pois os professores nos têm ensinado o valor da
contextualização tanto para o fazer como para o ver. O processo
pode tomar diferentes caminhos /CONTEXTO\FAZER/ CONTEXTO\
VER ou VER/CONTEXTUALIZAR\FAZER/CONTEXTUALIZAR\ ou
ainda FAZER/CONTEXTUALIZAR\VER/CONTEXTUALIZAR.
(BARBOSA, 2012, p. XXXIII).

3 A ação
Iniciamos com uma reprodução da conhecida tela de Pedro Américo,
Independência ou morte!. Esta imagem foi selecionada porque um dos locais do
estudo de campo da pesquisa mencionada foi o Museu Paulista/SP, onde esta tela é
a principal atração; a exposição, bem como o roteiro de visita elaborado pelo Serviço
de Atividades Educativas do museu, na qual foram realizadas as observações é a
que esta pintura pertence, exposição criada por Affonso Taunay, que dirigiu o Museu
Paulista entre 1917 e 1945, para comemorar o centenário da Independência. Taunay
construiu uma narrativa visual para contar uma versão da história do Brasil que
incluía, dentre outros elementos, a figura do bandeirante paulista como herói
desbravador e o fato da Independência ter acontecido no bairro em que se situa o
museu, o Ipiranga, considerando ainda que o edifício do museu inicialmente fora
construído para ser o memorial da Independência. A exposição concebida por
Taunay, tem seu final no salão onde a tela já estava desde a inauguração do museu
ao final do século XIX. Além disso, verificamos que esta é uma das pinturas
históricas brasileiras mais reproduzidas em livros didáticos e outros materiais de
propaganda do museu.

Figura 1 – Pedro Américo. Independência ou morte!. 1888. óleo s/ tela, 415 x 760 cm. Museu Paulista

Acervo Museu Paulista/SP2

Antes de qualquer coisa, foi verificado se todos conheciam a obra e se já


tinham ido ao Museu Paulista e a viram presencialmente. Uma vez que todos se
manifestaram positivamente, foi solicitado que sintetizassem a imagem em uma
palavra apenas.
Por ser uma imagem muito conhecida, tanto a cena que retrata como seu
contexto, a síntese em uma palavra foi uma estratégia que inicialmente buscava aliar
o ler e o fazer como produção de sentido da Abordagem Triangular.
As palavras síntese foram: movimento – encontro – dominação – Ipiranga –
mentira – batalha – choque.
Na conversa com os estudantes de Artes Visuais a partir destas palavras, no
entanto, ficou evidente que as sínteses resultaram de leituras da imagem
impregnadas não só pelos contextos de produção da obra, como também pela
contextualização a partir da História do Brasil e da História da Arte, bem como dos
contextos pessoais. Por exemplo, o estudante que elegeu a palavra dominação,
justificou sua escolha com o argumento de que na imagem vê-se um grupo acima

2
Disponível em: <https://commons.wikimedia.org/wiki/File:Independence_of_Brazil_1888.jpg>, acesso em 30
ago. 2015.
que está em posição hierárquica e dominante em relação aos outros dois grupos
representados, o dos soldados que chegam e o dos que assistem a cena: o tropeiro
e o sujeito a frente do carro de bois. Neste caso, a contextualização a partir dos
conhecimentos prévios teve papel relevante no processo de leitura e de produção de
sentido, aliás como em grande parte das outras leituras. A palavra mentira, outro
exemplo, carrega consigo uma leitura crítica da pintura e também de seu contexto,
leitura esta produzida no final do século XX, quando uma onda de criticidade chegou
não só às salas de aula como foi também divulgada pela cultura televisiva, com
programas de TV e minisséries questionando, criticando e, até mesmo, debochando,
da cena criada por Pedro Américo.
No decorrer da apresentação das justificativas para as escolhas das sínteses,
uma estudante modificou sua palavra, que inicialmente era choque e passou a ser
sítio, justificando que após observar a imagem com cuidado a paisagem lembrava a
chácara do avô, com uma casinha no fundo. Percebemos aqui uma deliberada
tentativa de se afastar das leituras preconcebidas e que pode nos remeter a
seguinte questão: Seria uma leitura deste tipo menos importante que as demais?
Como a associação à infância pode ser utilizada num processo de leitura para o
ensino e aprendizagem da Arte ou da História? Não poderíamos sair do conteúdo da
“História do Brasil”, que muitos concordam não ser esta tela uma verdade sobre mas
uma representação instituída a partir de 1888 e reiterada continuamente, e irmos
para um conteúdo sobre a cidade à época da pintura e do fato retratado?
A conversa com a turma seguiu buscando ampliar as leituras já impregnadas
com outras questões sobre os contextos de produção dessa imagem e de outras
tantas imagens, aproximando inclusive a discussão sobre os contextos de produção
das imagens que se apresentam em nossa cultura visual nas redes sociais e que
são usadas para reforçar discursos nem sempre “verdadeiros”.

Após essas discussões, apresentamos uma segunda imagem, desconhecida


para o grupo, como esperávamos.

Figura 2 – Roux. Festa noturna na Exposição de 1889. óleo s/ tela.


Musée Carnavalet, Paris.

Digitalização a partir de BARBUY, 1999, p. 74.


Sem a legenda inicialmente, a proposta aqui era sintetizar a imagem numa
palavra e num som. Da mesma forma que na imagem anterior, ler e fazer
imbricados, para a partir das palavras e sons, chegarmos a interpretações,
produções de sentido. Importante destacar que, mesmo a imagem sendo
desconhecida, os contextos pessoais foram ativados e estiveram envolvidos nas
leituras.
As palavras foram: Aquecimento – festa – luz – reunião – encontro – multidão
– evento – cúpula.
Os sons, muitos se referiram a burburinho, mas também teve um Bum!, um
Oh! e um som de violino.
Ao colocar a legenda, posteriormente, as leituras/sínteses permaneceram as
mesmas, afinal elas falam muito dessa tela que evidencia um fato: a Exposição
Universal de 1889, ou, como dito por Barbuy:
A pintura de Roux, Festa noturna na Exposição de 1889, que
apresenta uma plateia, de pé, assistindo a um espetáculo. A
cercadura retangular, em filete iluminado, em torno da escultura
central, reforça a identificação do espaço, onde se dá o espetáculo,
como um palco. Graças ao corte que o pintor faz da Torre Eiffel,
mostrando somente sua base, esta forma uma abóboda, que
representa o céu mas também a cobertura do palco: um céu-cenário.
(BARBUY, 1999, p. 74).

Da mesma forma que os estudantes em questão puderam ler, interpretar e


conversar sobre esta imagem (Figura 2) sem nunca terem-na visto anteriormente,
identificando o clima e questões do contexto a partir de seus repertórios e
experiências com imagens e representações, isso nos leva a pensar que,
provavelmente, o mesmo pode acontecer com crianças no Museu Paulista, frente a
pintura de Pedro Américo (Figura 1) pela primeira vez. Ainda que esta última seja
uma obra muito conhecida e reproduzida em livros didáticos, na pesquisa de campo
da tese (ALENCAR, 2015) foi observado que ela chama inicialmente a atenção pelo
tamanho, pela moldura dourada e outros detalhes, assim como foi possível observar
que vários alunos não a reconhecem a primeira vista, e no entanto grande parte
deles fazem suas leituras. Da mesma forma que os estudantes de Artes Visuais
fizeram com a figura 2, pois ainda que nunca tenham visto esta imagem, ela não é
uma estranha.
Retornando ao quadro de Pedro Américo no exercício aqui proposto com os
estudantes de Artes Visuais, entendemos que não seria possível “fingir” uma leitura
como se nunca a tivessem visto, mas foi importante, refletir como educadores, sobre
a importância de levar em conta os contextos do visitante, tal e qual o contexto da
obra, não importa se se trata de uma exposição de arte ou de história, ou outra
qualquer, como alerta Ulpiano de Meneses:
Num museu de arte, uma tela, por exemplo, é documento plástico
(mas sem considerar que a construção da visualidade integra a
realidade histórica). Já no museu histórico, a mesma tela seria
valorizada pelo tema, como documento iconográfico (mas ignorando
a historicidade da matéria plástica (MENESES, 1994, p. 16).

Não apenas pela sua plasticidade ou seu conteúdo, a proposta de uma leitura
de imagens a partir da Abordagem Triangular num processo educativo em museus,
pode revelar outros conteúdos, contextos e visualidades. E para que estas
revelações engendrem processos de construção de conhecimento pertinentes aos
sujeitos é necessário que os educadores estejam atentos às intrincadas relações
envolvidas e presentes naquele ato de ler, e estejam também abertos a outras
possíveis leituras.
No caso da pesquisa apresentada (ALENCAR, 2015), a discussão enfoca a
narrativa visual dos museus nacionais de história, entendendo tais instituições, bem
como sua visualidade como vetores na construção de um imaginário acerca de
histórias nacionais, imaginário esse que propagam até hoje os valores da cultura
hegemônica. Foi verificado na pesquisa, por exemplo, que a despeito de todas as
críticas que a historiografia tenha feito ao longo dos anos, a procura dos professores
que agendam visitas ao Museu Paulista, o fazem para “ver a história” (ALENCAR,
2014).
Diante desse contexto cabe nos perguntar: Será que a fala do educador pode
colaborar na desconstrução da visão hegemônica da história? Ou seria através de
outro discurso que pode se conectar ou não com as leituras dos visitantes?
Sabemos que o mediador tem sua subjetividade e, muitas vezes, sente a
necessidade de fazer a crítica a uma determinada obra ou expografia, mas teria o
seu discurso eficácia?
A tese de doutorado que motivou essa experiência em sala de aula verificou
que de fato o discurso expositivo construído a partir da cultura hegemônica
reverbera no trabalho de mediação cultural, seja reproduzindo-o ou criticando-o, tais
concepções são parte dos contextos de produção e recepção dessa visualidade. O
problema se dá quando tal reprodução ou crítica são (ex)postos como verdades, ou
únicas leituras possíveis, desconsiderando a leitura e escrita de mundo dos sujeitos
envolvidos na mediação, não correndo o risco consciente de outras possibilidades e
produzindo novos e outros conhecimentos sobre a própria exposição e, por que não,
sobre a vida, as escritas e reescritas de mundo (ALENCAR, 2015). É emblemático o
fato de uma das estudantes ter trocado sua palavra de choque para sítio, uma vez
que tal palavra síntese acabou se despregando dos discursos conhecidos acerca da
pintura histórica em questão e trouxe para a reflexão e produção de significados um
elemento da memória afetiva, relativo a sua subjetividade.
Muitas vezes, durante a fase de observação das visitas do programa
educativo do Museu Paulista era perceptível a valorização do discurso pelo
educador a partir da razão, sobre a tela de Pedro Américo, bastante conhecida.
Porém, o que mais chamava a atenção dos visitantes diante da tela pela primeira
vez eram as dimensões e a moldura dourada. O impacto de se ver essa imagem
(re)conhecida era provocado pela emoção, que entendemos ser um aspecto
fundamental do processo de leitura de obras de arte, da possibilidade de se ter uma
experiência de leitura no sentido que Dewey (2010) atribui a experiência de
conhecer. No entanto, esta possibilidade logo era deixada de lado pelos educadores,
com explicações dos motivos pelos quais precisamos entender a imagem e seu
contexto de produção.
Ainda sobre esse período da pesquisa de campo, certa vez, conversando com
um educador do Museu Paulista, após observar sua visita, dentre outros
comentários, ele disse: não que tenha uma leitura [da pintura] correta, mas uma
leitura adequada deve ter. Mas, o que seria uma leitura adequada para ele?
Acompanhando outras visitas e em conversas informais com a equipe de
educadores do museu, entendemos que o que ele chamava de leitura adequada
seria o que já foi dito/lido/interpretado por historiadores da arte. Certamente, se
sabemos do contexto de produção de uma obra, nossa leitura pode se modificar,
mas preferimos pensar em ampliar contextos, ampliar as camadas de leitura sem
perder de vista as relações e afetos que podem se estabelecer entre essas
camadas. Esperar pela leitura adequada, ou ainda, explicar qual seria ela, ainda que
seja no caminho de um olhar crítico à visualidade legitimada pela cultura
hegemônica, acaba por abrir mão do risco do não saber, não provoca a rasgadura,
no sentido que Didi-Huberman (2010) nos leva a pensar. Continua a ser a
reprodução do discurso hegemônico, não mais o proposto pela narrativa visual, mas
o ditado pela História e pela História da Arte (ALENCAR, 2015).
É fato também, que à revelia da narrativa visual ou da narrativa oral, o
visitante faz as suas leituras, então o mediador não pode assumir o seu discurso
como o único possível.

4 Mais fazeres, leituras e contextos


Cabe aqui lembrar que os processos de sínteses da leitura das imagens
proposta neste exercício também se caracterizaram como uma produção, mas ainda
uma outra atividade foi proposta, tendo agora um fazer específico como foco, sem
desconsiderar contextos e leituras.
A proposta era, em grupos, construir uma narrativa visual a partir do seguinte
desafio: a narrativa visual seria uma história de vida de alguém do grupo ou de
algum personagem fictício; poderia ser o recorte temporal que quisessem (um dia,
um mês, um ano, uma vida); deveria conter somente imagens; deveria conter 5
(cinco) imagens apenas, sendo que uma delas seria a tela Independência ou Morte!.
Dois grupos se formaram. Eles criaram suas narrativas e apesar do formato
não ter sido predeterminado ambos usaram o recurso das histórias em quadrinhos.
Nas narrativas a imagem da tela de Pedro Américo foi utilizada, como foi proposta.
A primeira delas, foi uma história de uma criança fictícia, inspirada de forma
deliberada na memória afetiva da estudante que designou a palavra síntese sítio. A
história inicia com a criança indo passar “férias no vovô”, primeira imagem, este
estava lendo o jornal e sugeriu que ela fosse brincar, na segunda imagem, a criança
aparece entediada na terceira imagem, na quarta imagem a criança olha para o sítio
do avó e se vê na cena da tela Independência ou Morte! Na última e quinta imagem
a criança aparece sorrindo feliz por ter podido brincar com sua imaginação. A tela foi
incluída na narrativa como recurso de imaginação para dinamizar o roteiro. Ao invés
de levar a memória afetiva para a leitura da imagem, como no caso da palavra
síntese, aqui foi a imagem que invadiu o contexto da imaginação da criança fictícia,
uma metáfora talvez de quanto esta imagem está impregnada em nossa imaginação
e uma tentativa de apontar para uma feliz apropriação dela.
A outra narrativa se desenvolve a partir da história real de uma das alunas
que estava prestes a viajar para intercâmbio em outro país. Tem início com ela
dentro do contexto da sala de aula onde surge a imagem da tela, segue-se então um
recorte temporal do que aconteceria com ela a partir daquele momento até chegar a
seu destino.
A conversa prosseguiu então, a partir da experiência das narrativas,
procurando pensar em como é complexo criar um discurso narrativo para uma
exposição com imagens que já existem, remetendo ao contexto do Museu Paulista e
à exposição concebida por Taunay, que como já dissemos, criou uma narrativa
visual, encomendando pinturas e esculturas, sendo que a tela Independência ou
morte! já se encontrava no museu.
O exemplo é importante para destacar que existe uma visualidade maior que
a própria pintura que é a exposição em que está inserida. Pensando em museus,
toda exposição é uma produção de cultura visual. Levar em conta esse contexto
institucional e expográfico é tão relevante quanto levar em conta os outros
contextos, pois a mesma obra pode adquirir outros significados dependendo de
como está articulada a outros objetos de uma exposição.
Também exploramos na discussão o papel do mediador que deve levar em
conta o contexto da obra e da curadoria, bem como suas próprias referências e
experiências e seus próprios contextos.
Por fim, a ideia da aula era usar a Abordagem Triangular para falar da
Abordagem Triangular, como sendo uma das inquietações da pesquisa que tenta
aliar imagens, museu, história e mediação. Abordagem Triangular como detonadora
e articuladora de processos de conhecimento seja em Arte seja em História. Esta
não é uma questão nova para o contexto da mediação cultural, outras experiências
já foram realizadas com sucesso (COUTINHO, 2009) e têm se multiplicado no
campo. No entanto, acreditamos que o resultado dessa aula foi produtivo, pois trata-
se de um contexto potencial de formação de arte/educadores. Também as
discussões decorridas tanto da leitura das imagens quanto das produções de
significados, levando em conta diferentes contextos foi um exercício de mediação
que nos levou, por exemplo, a falar sobre o papel do mediador numa exposição pré-
concebida. Evidentemente que tínhamos uma estratégia de mediação, mas abordar
a pesquisa a partir do que os estudantes produziram em suas sínteses e narrativas
visuais, ressaltou alguns aspectos da pesquisa que, provavelmente, em outra
situação, talvez não fossem abordados, ou nos levassem a outros caminhos.
Além disso, exercitar a mediação de uma pesquisa que também foi escrita
como mediação, considerando contextos, leituras e produções, acabou por ser uma
metalinguagem para falar do potencial da Abordagem Triangular, presente na
pesquisa, na escrita e na mediação.

Referências
ALENCAR, Valéria Peixoto de. Mediação cultural em museus e exposições de história.
Conversas sobre imagens/história e suas interpretações. Tese (Doutorado) – Instituto de
Artes/UNESP, São Paulo, 2015.

______. Arte para ver a história, história para falar da arte: arte/educação em museus
históricos. In: CONGRESSO NACIONAL DA FEDERAÇÃO DE ARTE-EDUCADORES DO
BRASIL, 24., 2014, Ponta Grossa, PR. Arte/educação contemporânea: metamorfoses e
narrativas do ensinar/aprender: anais. Ponta Grossa, PR: Universidade Estadual de Ponta
Grossa, 2014. Disponível em:
<http://www.isapg.com.br/2015/html/areas/Artes%20Visuais/8/11.pdf>, acesso em 1 jul.
2015.

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Paulo: Perspectiva, 2012.

BARBUY, Heloísa. A exposição universal de 1889 em Paris. Visão e representação na


sociedade industrial. São Paulo: Loyola, 1999.
COUTINHO, Rejane Galvão. Estratégia de mediação e a abordagem triangular. In:
BARBOSA, Ana Mae; COUTINHO, Rejane Galvão (orgs.). Arte/educação como mediação
cultural e social. São Paulo: Editora UNESP, 2009, p. 171-186.
DARRAS, Bernard. As várias concepções da cultura e seus efeitos sobre os processos de
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RANCIÈRE, Jacques. O mestre ignorante. Cinco lições sobre a emancipação intelectual. 3.


ed. Belo Horizonte: Autêntica editora, 2011.

Valéria Peixoto de Alencar


Bacharelado e Licenciatura em História pela USP (1998), Mestrado em Artes pelo Instituto
de Artes/UNESP (2008) e Doutorado pelo Instituto de Artes/UNESP (2015). Mediadora
Cultural e e formadora de educadores para exposições. Possui pesquisa sobre história da
educação em museus e mediação cultural. Atualmente é Professora Substituta no Instituto
de Artes/UNESP e memebro do GPIHMAE - Grupo de Estudos e Pesquisas sobre Imagem,
História e Memória, Mediação, Arte e Educação, diretório CNPq.

Rejane Galvão Coutinho


Professora do Instituto de Artes da Universidade Estadual Paulista, UNESP, onde atua na
Licenciatura em Artes Visuais, no Programa de Pós Graduação em Artes, mestrado e
doutorado, e coordena o Mestrado Profissional em Artes, Prof-Artes. Doutora (2002) e
Mestre (1998) em Artes pela Universidade de São Paulo, licenciada em Educação Artística,
habilitação em Artes Plásticas (1987) pela Universidade Federal de Pernambuco. Coordena
o GPIHMAE - Grupo de Estudos e Pesquisas sobre Imagem, História e Memória, Mediação,
Arte e Educação, diretório CNPq.

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