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O EXISTENCIALISMO SARTREANO E A EDUCAÇÃO 1

Luiza Helena Hilgert2

RESUMO: Como a teoria existencialista sartreana pode contribuir no debate sobre a educação?
Como se caracterizaria uma educação existencialista e humanista no sentido sartreano?
Fundamentar a ação do professor de modo que sua prática pedagógica vise o esclarecimento e a
consciência da liberdade de cada sujeito permite que ele possa ter uma vivência mais plena,
engajada, autêntica, própria. A mediação feita pelo professor pode contribuir de modo que o
educando seja apresentado a si mesmo, percebendo que é por meio dele mesmo enquanto criador de
valores, enquanto um constante projetar-se sobre si mesmo que a vida terá o sentido que ele próprio
atribuir.

PALAVRAS-CHAVE: existencialismo, educação, liberdade.

O existencialismo adquiriu diferentes interpretações desde o seu surgimento.

Especificamente, o existencialismo elaborado pelo filósofo francês Jean-Paul Sartre (1905-1980),

alcançou muita popularidade e o termo foi até mesmo levado à vulgarização, também. Alvo de

variadas críticas sofreu ataques de lados bem divergentes – diga-se de passagem –, por exemplo,

dos comunistas e dos católicos. Os, chamados por Sartre, comunistas, criticaram o existencialismo

“por incitar as pessoas a permanecerem num quietismo de desespero” (EH, p. 9), argumentando que

não havendo teleologia isto é, um fim último para as coisas, não há melhoramento, nem superação,

então a ação se torna impossível e isso leva a uma “filosofia contemplativa, [...] burguesa, já que a

contemplação é um luxo” (EH, p. 9); além da acusação de que partir da subjetividade humana para

explicar a existência desembocaria na individualidade egoísta do sujeito, “o que nos tornaria

incapazes, por conseqüência, de regressar à solidariedade com os homens que existem fora de mim

1
Artigo originalmente apresentado no VII Seminário de Educação – Educação, cultura e cidadania (UNIOESTE –
Toledo).
2
Professora do Quadro Próprio do Magistério do Estado do Paraná; mestranda do Programa de Pós-Graduação em
Filosofia pela UNIOESTE, linha de pesquisa Metafísica e Conhecimento. Email: luizahilgert@hotmail.com
[...]” (EH, p. 9). Censura esta também feita da parte dos católicos 3 que, não obstante, incriminam o

existencialismo por suprimir “os mandamentos de Deus e os valores inscritos na eternidade, [então]

só nos resta a gratuidade, podendo assim cada qual fazer o que lhe apetecer, e não podendo, pois, do

seu ponto de vista, condenar os pontos de vista e os atos dos outros” (EH, p. 9), isto é, além destas

ideias soarem heréticas aos ouvidos cristãos, estes compreenderam o projeto existencialista como

uma absoluta relativização sem qualquer efeito. Caindo no gosto popular, tornou-se moda e, por

conseguinte, a expressão foi vulgarizada “e no fim de contas, a palavra tomou hoje uma tal

amplitude e extensão que já não significa absolutamente nada” (EH, p. 10)4. De todo modo, o

caráter determinante do existencialismo encontra-se na precedência da existência com relação à

essência, Sartre reconhece que os filósofos do século XVII eliminam a ideia de Deus, mas não

conseguem abandonar as suas sombras, há, ainda a imposição da essência, do ser e não do ter5. O

rompimento com a tradição se dá, sob este aspecto, na declaração de que “a existência precede a

essência”, abandonando qualquer determinismo ou apriorismo. Por isso, Sartre nomeia sua teoria de

existencialismo humanista, “Não há outro universo senão o universo humano, o universo da

subjetividade humana. [...] no sentido de que o homem não está fechado em si mesmo, mas presente

sempre num universo humano [...]” (EH, p. 27). Não há o que não seja por meio da subjetividade,

isto é, é a existência humana que arroga sentido aos valores, às escolhas, às ações, “Humanismo,

porque recordamos ao homem que não há outro legislador além dele próprio, e que é no abandono

que ele decidirá de si [...]” (EH, p. 27). Isso configura sempre uma imprevisibilidade aos fatos

humanos e sociais, bem como a invenção de todo seu conteúdo.

Tentaremos aqui uma aproximação entre o existencialismo sartreano e a educação,

considerando que o filósofo francês Jean-Paul Sartre não se dedicou à construção de uma pesquisa

privilegiando a prática pedagógica ou concepções de ensino, mas buscou compreender a realidade

humana enquanto um projeto existencial lançado no mundo, pensado a partir dele mesmo, sem

3
Ironia imaginar marxistas e católicos estando ao mesmo lado. Conforme o velho Marx “A religião é o ópio do povo”.
4
Não é nossa intenção tratar historicamente o existencialismo e suas relações com a noção sartreana de existencialismo.
5
“Tal idéia encontramo-la nós um pouco em todo lado: encontramo-la em Diderot, em Voltaire e até mesmo num Kant”
(EH, p. 11).
determinismos ou modelos a priori que estancam a possibilidade de escolhas, de liberdade, de

autonomia e de responsabilidade. Perguntamos, então, se pode a teoria existencialista contribuir

para o debate sobre a educação, ou mesmo, fundamentar a ação pedagógica. Procuraremos ao longo

da nossa exposição demonstrar que a resposta para as duas questões é afirmativa, e, por

conseguinte, uma nova indagação pode ser feita: Como se caracterizaria uma educação

existencialista e humanista?

Sartre é lembrado pela máxima “Estamos condenados à liberdade”, o filósofo do

existencialismo defendeu a liberdade absoluta como o único fundamento do ser humano. Porém, o

que é liberdade? O que é ser livre?

Popularmente entende-se que liberdade é fazer o que se quer, “o que dá vontade”, quando

não há impedimentos entre o querer e o fazer, entre o desejar e o ter; ser livre é não ter empecilhos

para se fazer cumprir essa vontade, esse desejo. Como, por exemplo, na visão dos jovens e

adolescentes, a liberdade se configura quando os pais não os barram nem os proíbem de sair,

namorar ou fazer algo, ou então a concepção de que livre é todo aquele que não está fisicamente

encarcerado, aprisionado.

Contudo, a liberdade a que o filósofo francês se refere é mais radical, é uma liberdade

ontológica, originária, é o que nos fundamenta, o que nos caracteriza como projetos existenciais:

humanos, num sentido prático. A possibilidade de fazermos escolhas, praticarmos determinadas

ações, projetarmos nossas atitudes: é isso o que de fato se caracteriza liberdade. Sendo assim, cada

escolha é feita de modo livre, indeterminado, como escolha livre da própria consciência que não é

fundada por nada, que não é determinada por nada. Também, o conceito de responsabilidade tem

um sentido um tanto diferente do usual: as escolhas são a manifestação da liberdade, a cada escolha

cabe uma responsabilidade; isto é, cada escolha carrega consigo uma responsabilidade.

O homem é, segundo esta corrente filosófica, um projeto, sempre aberto, sempre se fazendo

e se construindo; não se torna concluído, fechado, completo, estático. Ao contrário, o ser humano é

incompleto, dinâmico, vasto de possibilidades. Ao afirmar que “a existência precede a essência”


Sartre retira todos os fundamentos a priori, todos os modelos, formatos fixos, valores pré-

estabelecidos e, com isso, dinamita as bases do racionalismo, do cristianismo e de quaisquer

determinismos. “Se Deus não existe, há pelo menos um ser no qual a existência precede a essência,

um ser que existe antes de poder ser definido por qualquer conceito: este ser é o homem” (EH, p. 5-

6). Isso significa que não há uma natureza ou essência humana, em contrapartida, há a realidade

humana, isto é, o homem se faz, sendo; “o homem existe, encontra a si mesmo, surge no mundo e

só posteriormente se define” (EH, p. 5-6). O existencialismo ateu preconizado por Sartre garante ao

homem um status de artífice do seu próprio destino, isto é, senhor das suas próprias escolhas e

ações, sem mandos, sem características prévias a se encaixar: apenas liberdade. O abandono ao qual

nos encontramos, nos torna, prontamente, criadores dos nossos próprios valores, responsáveis por

nossas próprias escolhas e ações. Isto quer dizer que somos responsáveis pela nossa liberdade.

Outro conceito importante da teoria sartreana é a noção do Outro. A liberdade e a responsabilidade

carregam em si a liberdade e a responsabilidade também pelo outro. Escolhendo, escolhe-se

igualmente a humanidade, pois cada escolha feita engaja, isto é, afeta, compreende além de mim o

outro, a humanidade. Não há escolha feita que não seja escolher perante o outro. O homem é

completamente responsável pela sua vida, é fundamentalmente livre. Conforme Sartre “Isso é o que

faz que me apreenda como totalmente responsável por meu ser, enquanto sou o seu fundamento”

(SN, p. 126). Nossa responsabilidade é muito maior do que poderíamos imaginar, pois envolve toda

a humanidade. E mesmo quando não fazemos nada, quando nos omitimos, também somos

responsáveis, justamente pela omissão, pois também é uma escolha: escolha do não agir. De todo

modo, não há como fugir da nossa liberdade, estamos todo o tempo fazendo escolhas. Porém, a má-

fé é também estrutura constituinte do para-si, então, estamos constantemente procurando nos afastar

da nossa liberdade e responsabilidade, atribuindo a responsabilidade pelas nossas escolhas e pela

nossa situação a outras instâncias, como sociedade, governo, escola, família, igreja, televisão.

Voltamos agora à questão central: quais as contribuições que o existencialismo humanista

pode oferecer à educação? Tanto a humanidade quanto a educação estão em crise e precisam ser
repensados, recuperados. As normas escolares, assim como toda forma de lei ou códigos vigentes,

se impõem de fora para dentro, se configuram de modo que se deva cumprir o que é determinado e

pré-estabelecido hierarquicamente, por temor às punições ou sanções. Isso implica até no discurso

dos professores e gestores, muitas vezes formulado segundo estes padrões, apelando para o medo

das consequências decorrentes do não cumprimento das ordens. Percebemos isto quando, por

exemplo, os professores dizem aos educandos “Estude, porque isso é conteúdo da prova”, ou “Faça

isso senão aquilo”, ou ainda, “Copie a tarefa que vale nota”.

A educação desempenha papel fundamental na busca pela emancipação humana, para

muitos teóricos, ela é o instrumento que pode proporcionar o rompimento com os elos da alienação

na qual a humanidade se encontra. Não está presente neste tipo de postura uma educação existencial

e humanizadora, pois não atribui ao sujeito a responsabilidade pelas suas escolhas e pela sua vida;

ao contrário, leva o individuo a adotar determinados comportamentos de modo alienado, temendo

represálias ou consequências desagradáveis que são exteriores, como sendo ações da parte de um

terceiro sujeito: direção, pais, professores; e que não se caracterizam como responsabilidade do

próprio ato do estudante. Este exemplo de prática rompe com o binômio liberdade-

responsabilidade, pois não atribui ao estudante nem um nem outro, o coage a seguir e a se encaixar

nos moldes do comportamento esperado. Não garante ao estudante a percepção da importância de

estudar, de fazer atividades propostas, e por si mesmo opte conscientemente pelas suas atitudes.

Qualquer concepção de educação que se preocupe em promover a emancipação humana deve estar

voltada para o viver autêntico e pleno do ser humano, pois uma vida só é autêntica quando é o

próprio sujeito que a escolhe. Fundamentar a ação do professor de modo que sua prática pedagógica

vise o esclarecimento e a consciência da liberdade do educando garantirá instrumentos para que o

mesmo possa ter uma vivência mais plena, engajada, autêntica e própria. Declarar que diante das

condições de existência se inclui o poder de fazer escolhas dentro dos limites da facticidade humana

e dos modos iniciais de existir. Essa nova postura é como uma “tomada de consciência” que torna o

sujeito-estudante capaz de refletir, explicar e desejar suas experiências no mundo.


Uma educação existencialista afirma que cada indivíduo se constitui como fundamento de si

em situação, apesar de não escolher sua posição ou situação, escolhe o sentido que esta situação se

lhe apresenta e o modo como agirá frente a ela. Assumir o ambiente escolar por parte do aluno é

viver um horizonte de conhecimento, de desafios, de crescimento humano, de descobertas

científicas, de investigação, e tudo o que isto implica; assumir cada experiência, cada vivência

como sua, o que o levará, num contexto de relações, a vivenciar plenamente os outros âmbitos:

familiar, profissional, social, e ainda, os horizontes do seu próprio mundo interno cheio de dúvidas,

sentimentos, desejos, projetos. De outro lado, assumir o ambiente escolar por parte do professor,

segundo estes princípios, é aceitar a gratuidade e relatividade da sua disciplina, da sua situação,

entendendo que as artes, as ciências, a história, a linguagem, a filosofia, a religião, são, também,

produtos inacabados, em construção assim como si próprio e seu aluno e isto significa, com efeito,

não esperar o aluno “ideal”, não ser o professor “ideal”, mas um projeto existencial.

Aceitar que estamos inseridos em um mundo, sociedade, política e sistema que já estão em

curso; mas que poderão alterar-se segundo ações e das quais também seremos resultado segundo as

opções feitas. Assim, o existencialismo é um conjunto de ideias, teorias, tramas filosóficas e, ainda

assim, postura, posição e atitude que possibilitam atribuir algum sentido à vida humana. Portanto, a

mediação feita pelo professor pode contribuir de modo que o educando seja apresentado a si

mesmo, percebendo que é por meio dele mesmo enquanto criador de valores, enquanto um

constante projetar-se sobre si mesmo que a vida terá o sentido que ele próprio atribuir.

Todas essas questões perpassam o horizonte pedagógico, pois a existência humana autêntica

se dá em vistas a entender sua dimensão livre, responsável, gratuita, factual e cotidiana. Viver de

modo autêntico consiste em atender ao projeto original que nos é imposto de antemão, qual seja: o

de sermos responsáveis por nós mesmos e por toda a humanidade, aceitando-nos como ausentes de

fundamentação a priori e, por isso mesmo, tendo que transcender essa condição para fundamentar, a

partir de nosso próprio engajamento, valores e modelos. Por isso, a ação pedagógica de caráter

originário, não se preocupa em moldar cidadãos conformados e preparados para o mercado de


trabalho, nem alunos prontos para o vestibular, mas visa fornecer instrumentos para o educando

perceber-se e assumir-se como ser livre inserido no mundo, responsável por suas escolhas, fazendo

parte da humanidade.

Com efeito, acreditamos que essa concepção de ensino existencialista não se limita à

disciplina de filosofia, mas que pode, por sua vez, ser estendida a todas as disciplinas que compõem

a grade curricular, desde o ensino infantil até o superior, que não pretende dar conta do que é o

processo pedagógico, mas que pode, muito bem, constituir-se como um princípio norteador que

tem, por sua vez, a intenção de resgatar o existencialismo como um humanismo.

REFERÊNCIA BIBLIOGRAFIA

BORNHEIM, G. Sartre, metafísica e existencialismo. São Paulo: Perspectiva, 2007.


LUIJPEN, W. A. M. Introdução à Fenomenologia Existencial. Trad. Carlos Lopes de Mattos. SP:
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PERDIGÃO, P. Existência e liberdade. uma introdução à Filosofia de Sartre. Porto Alegre:
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SARTRE, J. P. O Existencialismo é um Humanismo. 3ª edição. São Paulo: Nova Cultural, 1987.
Coleção Os Pensadores.
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SILVA, F. Ética e literatura em Sartre: ensaios introdutórios. São Paulo: UNESP, 2004.

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