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Percebi  que  muitos  caíram  na  armadilha  de  merecedor  de  tudo  o  que  possa  haver  de 

imaginar  que  “O  Poço”  dialoga  sobre  a  “natureza  vantagem  (e  o  ressentimento  vem  quando  isso 
humana”,  se  é  que  existe  alguma.  Aqueles  que  não  acontece),  e  o  outro  é  apenas  um 
pensaram  assim,  viram  na  selvageria  dos  coadjuvante, talvez até descartável. 
residentes  das  plataformas  um  lugar  sem  saída,   
onde  todos  nós estaríamos destinados. Seríamos,  Assim,  a  competição  não  é  algo  “natural”,  pelo 
então,  sob  determinadas  condições,  hospedeiros  contrário,  ela  foi  naturalizada  artificialmente  em 
de  uma  barbárie  egoísta  inata?  Eu  digo  que  não.  nosso  consciente  coletivo.  E  é  assim  que 
E,  para  ilustrar  meu  ponto  de  vista,  farei  uma  funciona,  sem  interrupções,  a  hierarquização  do 
analogia  muito  simples,  porém  eficaz  para  consumo  nas  pessoas do Poço, independente das 
demonstrar o que enxergo sobre isso.  trocas  entre  as  plataformas.  Estar  em  um  andar 
  acima  não significa uma oportunidade de fazer as 
Se  você  pegar  um  copo  d’água,  e  colocar  uma  coisas  de  uma  forma  diferente,  e sim o direito de 
pequena  quantidade  de  óleo,  vai  enxergá-la  se  também  explorar  quem  está abaixo. A exploração 
alojando  na  superfície  da  água.  Mesmo  que  você  persiste  porque  você  não  abre  mão  de  se 
balance  o  copo  ou  misture  os  dois  líquidos,  eles  aproveitar  dos  seus  resultados.  Logo,  você  pode 
vão  se  ajustar  novamente,  sempre  com  o óleo no  sacudir  o  copo  como  quiser  -  o  óleo  sempre 
“topo”  do  copo.  Isso  é  o  que  acontece  na  ficará  na  parte  de  cima,  ou  seja,  ali  sempre 
“estrutura  social”  do  Poço.  Independente  do  estarão  aqueles  que consumirão a maior parte de 
embaralhamento  dos  prisioneiros  nos  andares,  a  tudo  que  é  produzido  (material  e  imaterial),  do 
dinâmica  sempre  se  repete:  os  que  estão  nos  jeito  que  a  Indústria  Cultural,  juntamente com as 
primeiros  cinquenta  e  um  pavimentos  sempre  outras  instituições  que  compõem  a  sociedade, 
comerão  praticamente  toda  a  comida  oferecida.  domesticou  a  todos  a  fazerem,  para  que  o 
A questão é: por que isso acontece?  sistema  capitalista  de  produção  continue,  e  o 
  topo  da  pirâmide  social  acumule  a  maior 
Indústria  Cultural.  Simplesmente,  a  mentalidade  quantidade de recursos possível. 
“instalada”  na  cabeça  das  pessoas  pela  Indústria   
Cultural.  Na minha visão, talvez essa seja uma das  A segunda questão que surge é: isso pode mudar? 
mensagens  mais  importantes  do  filme.  Então,  A  resposta  é  sim.  Acredito  que  existam  duas 
aperte  os  cintos  agora,  porque  entraremos  em  formas  de  quebrar  essa  estrutura  de  relações 
um terreno bem acidentado e pantanoso.  sociais  de  dominação  e  exploração,  e  são  dois 
  tipos  de  “revoluções”.  O  primeiro  tipo  de 
A  maioria  das  pessoas,  ao  assistir  “O  Poço”,  fala  revolução  está  explícita  no  filme,  que  é  baseada 
sobre  a  “natureza  humana”  e  em  como  somos  na  força  e  na  violência.  Não  teríamos  que, 
competitivos  pela  luta  por  sobrevivência,  e  por  obrigatoriamente,  agir  dessa  forma,  mas  seria 
isso  que  as  primeiras  plataformas  consomem  necessário  porque a mentalidade, principalmente 
toda  a  comida  sem  se  importar  com  os  demais.  de  quem  está  nos  andares  de  cima, está alinhada 
As  próprias  pessoas que falam isso não percebem  às  convicções  da  Indústria  Cultural,  de  que  “o 
que,  elas  mesmas,  também estão vestidas com os  que  eu  tenho  é  meu,  eu  mereço, e se alguém não 
fundamentos  da  Indústria  Cultural.  Essa  tem,  isso  não  me diz respeito”. Essas pessoas não 
mentalidade  é  implantada  por  essa  “Indústria”,  conseguem  enxergar  as  circunstâncias  sociais  e 
pois  sendo  uma  das  principais  máquinas  do  históricas  que  levaram  elas a estar na posição em 
capitalismo,  ela  fragmenta  nosso  senso  de  que  se  encontram,  então  resistirão  com  raiva, 
coletividade,  desde  a  infância,  e  somos  medo  e  imaturidade,  uma  vez  que  a  cultura  não 
adestrados  a  ter como sentido na vida a busca do  permite  amadurecimento  -  não  permitindo, 
nosso  próprio  prazer,  nossos  desejos  e  nossos  também,  que  as  pessoas  tornem-se,  de  fato, 
ganhos  financeiros,  através  do  consumo  sujeitos  autônomos  e  cooperativos.  Os 
desenfreado  e  da  aceitação  da  exploração  que  prisioneiros  já  chegam  no  Poço  contaminados 
possamos  vir  a  sofrer  -  e  até  mesmo  a  por  essa  mentalidade, e é por isso que a violência 
autoexploração.  Assim,  cria-se  um  mundo  é  usada  como  forma  de  estabelecer  uma  nova 
imaginário  onde  o  “eu”  é  o  protagonista  e  forma  de  agir.  O  problema  é  que,  usando  deste 
meio,  as  mudanças  podem até ser imediatas, mas  Bordieu  me  ajudaram  a  construir  essa 
será que elas seriam permanentes?  interpretação. 
   
O  segundo  tipo  de  revolução  seria  uma  espécie   
de  “revolução  cultural”.  Veja  bem,  se  todos  os   
residentes  do  Poço  adquirissem  uma    
mentalidade  de  cooperação  total  antes  de entrar 
lá,  não  importaria  o  embaralhamento  entre  as 
plataformas,  pois  sempre  todos  pensariam  em 
repartir  o  alimento,  anulando  a  influência  da 
“administração”  em  suas  relações  sociais.  Para 
isso,  seria  necessário  reeducar  gradativamente 
aqueles  que  já  foram  cooptados  pela  Indústria 
Cultural,  e  educar,  desde  cedo,  as crianças sobre 
sua  condição  como  fruto  de  um  processo 
histórico  e  qual  o  seu  papel  nisso,  ensinando 
direitos  humanos,  cultivando  a  empatia,  a 
cooperação,  o  diálogo construtivo e, entre outras 
lições,  esclarecer  que  não  existe  protagonismo 
de  ninguém  na  vida  em  comunidade,  e  sua 
importância,  como  sujeito,  reside  em  ser 
responsável por aqueles que estão ao seu lado. 
 
Usando  uma  outra  metáfora  com  o  copo  d’água, 
dessa  vez  imaginando  que  misturamos  areia,  no 
lugar  do  óleo,  o  que  aconteceria?  Independente 
de  quantas  vezes  você  agitasse  o  copo, a areia se 
espalha  de  forma  uniforme  (todos  os  andares 
contemplados  com  comida)  e,  depois  de  um 
tempo,  a  areia  se  acumlaria  no  fundo  do  copo, 
simbolizando  a  atenção  que  temos  que 
direcionar  a  quem  está  nos  “andares”  mais 
baixos. 
 
Dessa  forma,  analisando  somente  as  dinâmicas 
sociais  dos  residentes  das  plataformas  (em breve 
vou  postar  minha  interpretação  sobre  outros 
aspectos  do  filme),  “O  Poço”  nos  mostra  como  a 
mentalidade  individualista,  consumista  e 
competitiva,  que  é  ensinada  e  implantada  nas 
pessoas  desde  a infância pela Indústria Cultural e 
por  outras  instituições  de  nossa  sociedade 
(escola,  religião,  leis,  etc),  impede  que  o  sistema 
capitalista  perca  sua  hegemonia  e,  consequente, 
que  as  desigualdades  sociais  sejam  destruídas 
totalmente.  Isso  não  é  a  “natureza  humana”.  Isso 
é ensinado. Novamente: isso é ensinado. 
 
Obrigado  por  ler  até  aqui.  Não  usei  referência 
bibliográficas,  mas  posso dizer que o contato que 
tive  com  as  ideias  de  Theodor  Adorno  e  Pierre 

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