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INTERACIONISMO SIMBÓLICO E TEORIA DA PRÁTICA: QUAL O

SIGNIFICADO DA RESISTÊNCIA PARA ESSAS ABORDAGENS?

A investigação da Sociologia Contemporânea nos conduz a um vastíssimo


número de temas, nas suas mais variadas vertentes. Neste artigo, escolhemos
duas abordagens teóricas distintas  o interacionismo simbólico e o que estamos
chamando de teoria da prática de Pierre Bourdieu  com o objetivo de
estabelecermos uma comparação entre os conceitos de atitude, utilizado pelos
teóricos do interacionismo, e de habitus, na concepção de Bourdieu, focalizando
no interior dos mesmo o significado dado à resistência1.
Entretanto, é importante ressaltar que consideramos imprescindível uma
breve contextualização, tanto do papel desempenhado pela Escola de Chicago,
no interior da qual se desenvolveu o interacionismo simbólico, quanto da
constituição do projeto científico de Bourdieu. Dessa forma, num primeiro
momento apresentaremos, de modo suscinto, parte da história da referida escola
e, os alicerces da teoria da prática. Num segundo momento, discutiremos os
conceitos de atitude e habitus em Bourdieu. Para finalizar, analisaremos o papel
que a resistência ocupa dentro de cada vertente.

A Escola de Chicago

Costuma-se designar de Escola de Chicago o conjunto de pesquisas


sociológicas realizadas entre 1915 e 1940 por professores e estudantes da
Universidade de Chicago. A sociologia adotada por ela se caracterizava
principalmente pela pesquisa empírica, representando uma mudança no impacto
que a investigação sociológica teve sobre a sociedade. A tendência empírica foi
marcada pela insistência dos investigadores em produzir conhecimentos úteis
para a solução de problemas sociais concretos.
A Escola de Chicago estava voltada para uma abordagem sociológica
urbana. Ela realizou uma série de estudos sobre os problemas que a cidade de
Chicago enfrentava, principalmente, uma questão social e política muito

1
Como resistência entendemos o ato individual ou grupal de não aceitar determinadas imposições ditadas
pela sociedade ou por outros grupos, buscando alternativas para se adaptar às exigências.
2

importante: a da imigração e assimilação de indivíduos de culturas diversas à


sociedade americana.
Todavia, Coulon observa que ´´(...) uma das contribuições mais importantes
dos sociólogos da Escola de Chicago foi o desenvolvimento de métodos originais
de investigação: utilização científica de documentos pessoais, trabalho de campo
sistemático, exploração de diversas fontes documentais. Claramente orientados
para o que hoje é chamado de sociologia qualitativa´´ 2.
A Universidade de Chicago foi fundada em 1895 3a partir de uma grande
doação efetuada por John D. Rockfeller. O presidente da nova universidade,
William Harper, tinha grandes ambições para aquela instituição. Além de criar
imediatamente uma Graduate School dedicada à pesquisa e à formação de
estudantes de doutorado  iniciativa inovadora para a época  também se propôs
abrir a universidade para a vida social. Idealizou também um meio para difundir os
resultados de pesquisas realizadas, criando a Editora da Universidade de
Chicago.
Entretanto, quem teve um papel decisivo na instalação da sociologia, não
só em Chicago, mas no conjunto dos Estados Unidos, foi Albion Small. Ele foi o
fundador do primeiro departamento e da primeira revista de sociologia daquele
país, a American Journal of Sociology. Além disso, ´´(...) um dos méritos
intelectuais de Small foi insistir sobre a necessária objetividade para a qual
deveriam tender as investigações sociológicas. Ele achava que a sociologia era
uma ciência, que se tratava de fundamentar com base não no discurso, mas nas
pesquisas empíricas, ainda que ele próprio não as realizasse. Considerava que a
sociologia, em uma atitude interdisciplinar, deveria dar-nos a conhecer a estrutura
da sociedade´´. Enfim, ´´(...) a influência decisiva de Small sobre a sociologia foi
sobretudo de ordem institucional´´4.
Em Chicago, desde o seu nascimento, a sociologia foi profundamente
influenciada por outras disciplinas. A filosofia, por exemplo, foi a primeira a fundar
uma ´´escola´´ , conhecida pelo nome de pragmatismo, cujo fundador foi John
Dewey. O interacionismo, influenciou bastante a sociologia de Chicago e teve

2
COULON, A. A Escola de Chicago. Campinas: Papirus, 1995, p. 8.
3
Estamos considerando a data de fundação desta instituição de acordo com as informações contidas em um
artigo de Howard Becker (1996). Segundo Coulon, ela foi fundada em 1890.
4
Op. cit. pp. 15 - 16.
3

suas raízes filosóficas no pragmatismo. Ele foi formulado por Charles Peirce e
William James, mas foi desenvolvido principalmente por George Herbert Mead.
Outras influências, nem todas igualmente importantes, também deram suporte
para certos pensadores da Escola de Chicago, como por exemplo as idéias de
evolução de Darwin e a teoria da relatividade de Einstein.
Na visão pragmática, ´´(...) a atividade humana deve ser considerada sob o
ângulo de três dimensões que não podem ser separadas: biológica, psicológica e
ética. Ao agir o indivíduo persegue uma meta, tem sentimentos e emoções. É por
isso que o ensino da psicologia seria necessário à filosofia´´ 5. Mas que isso, os
filósofos de Chicago acreditavam que as duas disciplinas deviam influenciar a
realidade. Neste sentido, o pragmatismo acreditava que o filósofo estava
envolvido com a vida de sua cidade e deveria se interessar tanto pelo seu
ambiente quanto pela ação social que tivesse por fim a transformação social.
O interacionismo simbólico, como o próprio nome indica, sublinhou a
natureza simbólica da vida social. O estudo sociológico, na perspectiva de Mead,
deveria analisar os processos pelos quais os agentes determinam suas condutas,
com base em suas próprias interpretações do mundo que os rodeava 6. Desse
modo, ´´(...) as significações sociais devem ser consideradas como produzidas
pelas atividades interativas dos agentes´´ 7. O pesquisador só poderia ter acesso a
estes fenômenos particulares - as produções sociais significantes dos agentes -
quando participasse, também como agente, do mundo que se propunha a
estudar. Portanto, a concepção que os agentes têm do mundo social é, em última
instância, o objeto essencial da investigação sociológica 8.
Arnold Rose resumiu brevemente as principais proposições do
interacionismo simbólico de Mead em cinco hipóteses que valem a pena destacar:
1) vivemos em um ambiente ao mesmo tempo simbólico e físico, e somos nós
quem construímos as significações do mundo e de nossas ações nele com a
ajuda de símbolos; 2) graças a esses símbolos ´´significantes´´, distintos dos
´´signos naturais´´, temos a capacidade de ´´tomar o lugar do outro´´, por que
temos em comum com os outros os mesmos símbolos; 3) temos em comum uma
5
Op. cit. p. 17.
6
In: Coulon, Op. cit. p. 20.
7
BLUMER, In: Coulon, Op. cit. p.19.
8
Neste aspecto, o interacionismo caminha na direção inversa da concepção durkheimiana do agente, que
acredita que as manifestações subjetivas não pertencem ao domínio da sociologia.
4

cultura, um conjunto elaborado de significações e valores, que guia a maior parte


de nossas ações e nos permite prever, em grande medida, o comportamento dos
outros indivíduos; 4) os símbolos não são isolados, mas fazem parte de conjuntos
complexos, diante dos quais o indivíduo define o seu ´´papel´´ e; 5) o pensamento
é o processo pelo qual soluções potenciais são examinadas sob o ponto de vista
das vantagens e desvantagens que o indivíduo teria com elas em relação aos
seus valores para depois serem escolhidas. Um ´´ato´´, portanto, é uma interação
contínua entre o ´´eu´´ (resposta do organismo às atitudes dos outros) e o ´´mim´´
(conjunto organizado de atitudes que empresto aos outros), é uma sucessão de
fases que acabam se cristalizando em um comportamento único 9.
Finalmente, não devemos perder de vista que ´´(...) o interacionismo
simbólico, pela primeira vez na história da sociologia, dá lugar teórico ao agente
social como intérprete do mundo que o rodeia e, por conseguinte, põe em prática
métodos de pesquisa que dão prioridade aos pontos de vista dos agentes, (...)
pois é através do sentido que atribuem a objetos, indivíduos e símbolos que os
rodeiam, que eles (os agentes) fabricam seu mundo social´´ 10 .

A Constituição do Projeto Científico de Bourdieu

A constituição do projeto de conhecimento em Bourdieu, guarda, de modo


geral, uma determinada continuidade em relação a alguns traços constitutivos do
desenvolvimento do pensamento sociológico francês. Sobre este aspecto, é
importante observarmos que a formação da sociologia francesa ocorreu em um
espaço social bastante preciso - o campo universitário - o que contribuiu para lhe
imprimir uma feição acadêmica, voltada para uma busca de legitimidade científica.
Apesar de no século atual a organização das atividades de ensino e
pesquisa, subvencionadas pelo aparelho estatal, ter passado por certas
descontinuidades, não podemos deixar de levar em consideração que o essencial
da pesquisa sociológica na sociedade francesa ocorre, ainda hoje, no interior do
ambiente universitário e de organismos mantidos por fundos públicos.

9
In: Coulon, Op. cit. pp. 21 - 22.
10
Op. cit. p. 22.
5

Neste sentido, o trabalho de Bourdieu representa uma disposição de


reatualização, de imprimir à pesquisa uma conduta controlada por padrões
científicos. Segundo ele, o universo social se constitui num obstáculo por
excelência para o sociólogo, pois ´´(...) construir um objeto científico é, antes de
mais e sobretudo, romper com o senso comum, quer dizer, com representações
partilhadas por todos... . O pré-construído está em toda parte. O sociólogo está
literalmente cercado por ele, como está qualquer pessoa. O sociólogo tem um
objeto a conhecer, o mundo social, de que ele próprio é produto e, deste modo, há
todas as probabilidades de os problemas que põe a si mesmo acerca desse
mundo, (...), sejam produto desse mesmo objeto´´11.
Ao lado da busca de legitimidade, os trabalhos desse autor também
apresentam uma outra continuidade com a forma pela qual se desenvolveu o
pensamento sociológico francês. Apesar de procurar manter determinadas
diferenças em relação a uma crítica dirigida a um certo atomismo individualista,
tudo leva a crer que ele reafirme, ao longo de suas pesquisas, o postulado
metodológico recorrente na sociologia francesa do primado da sociedade sobre o
indivíduo. Sua perspectiva sociológica pressupõe que é a sociedade, e somente
ela, que elabora, de diferentes formas, justificativas e razões para a existência dos
indivíduos. Em sua visão, é a sociedade que, produzindo as posições que
reputamos como ´´importantes´´, produz também agentes sociais que julgam
´´importante´´ a conquista destas mesmas posições. Em sua aula inaugural no
Cóllege de France ele afirma que: ´´(...) com efeito não diria como Durkheim ´a
sociedade é Deus, no entanto afirmaria que Deus não é senão a sociedade. O
que se espera de Deus, não se obtém senão da sociedade, pois somente ela
possui o poder de consagração social... . O julgamento dos outros é o julgamento
definitivo e a exclusão social a forma concreta de inferno e de condenação. É por
isso que o homem é um Deus para o homem assim como o homem é um lobo
para o homem´´12.
Uma das questões centrais da sociologia desenvolvida por Bourdieu
consiste numa reflexão sobre a problemática da mediação entre agente social e
sociedade. O mundo social segundo ele, pode ser objeto de três modos de

11
BOURDIEU, P. O poder simbólico. Lisboa: Difel, 1989, p. 34.
12
In: MARTINS, C. B. Estrutura e ator: a teoria da prática em Bourdieu. 1987(mineo.) p. 5.
6

conhecimento teórico: o objetivista, o fenomenológico 13 e o praxiológico. É a partir


de sua apreciação crítica dos dois primeiros modos de conhecimento, que formula
e desenvolve o terceiro.
Segundo ele, há para uma oposição total entre o modo objetivista e o
fenomenológico: ´´(...) no primeiro caso, o conhecimento científico só é obtido
mediante uma ruptura com as representações primeiras - chamadas ´prenoções´
em Durkheim e ´ideologia´ em Marx - que conduz às causas inconscientes. No
outro caso, ele está em continuidade com o conhecimento de senso comum, já
que não passa de uma ´construção das construções´´´ 14. Na perspectiva do autor,
os dois momentos, o objetivista e o subjetivista, estão numa relação dialética e
não de oposição. Segundo ele: ´´(...) de uma lado, as estruturas objetivas que o
sociólogo constrói no momento objetivista, descartando as representações
subjetivistas dos agentes, são o fundamento das representações subjetivas e
constituem as coações estruturais que pesam nas interações; mas, de outro lado,
essas representações também devem ser retidas, sobretudo se quisermos
explicar as lutas cotidianas, individuais ou coletivas, que visam transformar ou
conservar essas estruturas´´15.
Como já nos referimos acima, é com o propósito de superar a polêmica
entre o objetivismo e o subjetivismo que Bourdieu procurou formular e
desenvolver um outro modo de conhecimento que é denominado por ele de
praxiológico, cujo objetivo consiste em articular dialeticamente estrutura social e
ator social. Para construir a sua teoria da prática, ele recupera a velha idéia
escolástica de habitus, que será discutido mais à frente.

O Conceito de Atitude na Escola de Chicago

O interesse da Escola de Chicago pela questão da assimilação dos


imigrantes foi, sem dúvida, responsável pela elaboração de muitos dos grandes
conceitos da sociologia americana, como por exemplo, a definição de atitudes
individuais, valores sociais, desorganização social, marginalidade e aculturação.
Dentre estes, o que interessa ao objetivo deste artigo é o conceito de atitude. Ele
13
É dentro desta perspectiva que o autor localiza o interacionismo simbólico.
14
BOURDIEU, P. Coisas ditas. São Paulo: Brasiliense, 1990, p. 151.
15
Op. cit. p. 152.
7

teve um papel particularmente importante no estudo dos fenômenos ligados à


imigração pois, permitiu questionar as idéias então correntes, de que as
diferenças raciais ou étnicas tinham seu fundamento em diferenças biológicas.
Esse reducionismo biológico pôde ser relativizado a partir do conceito de atitude
que demonstrou que o estado mental dos imigrantes não estava ligado a um
problema fisiológico e sim, diretamente, às transformações sociais ocorridas em
sua vida cotidiana.
Thomas introduziu o conceito de atitude em 1907 em seu trabalho Sex and
society in the social psychology of sex 16, mas só o desenvolveu alguns anos
depois num estudo sobre o camponês polonês, juntamente com Znaniecki.
A análise sociológica, segundo Thomas e Znaniecki, deveria considerar ao
mesmo tempo os valores sociais, que são ´´os elementos culturais objetivos da
vida social´´, e as atitudes, entendidas como ´´(...) as características subjetivas
dos indivíduos do grupo social considerado´´. Neste sentido, como observa
Coulon, ´´(...) a atitude é um conjunto de idéias e emoções que se transforma em
uma disposição permanente em um indivíduo e lhe permite agir de maneira
estereotipada´´17.
Segundo Thomas e Znaniecki a atitude pode ser definida ainda como ´´(...)
o processo da consciência individual que determina a atividade real ou potencial
do indivíduo no mundo social. A atitude é a contrapartida do indivíduo aos valores
sociais, e toda atividade humana estabelece um elo entre estes dois elementos
´´18.
Diferentemente de Durkheim, que acreditava que os fenômenos sociais só
poderiam ser explicados pela influência de outros fenômenos sociais e não pela
intervenção do nível individual, estes autores afirmavam que o fato social é uma
combinação íntima dos valores coletivos e das atitudes individuais. Portanto, era
necessário ser capaz de dar conta tanto da natureza subjetiva das interações
sociais quanto dos fenômenos sociais, que são diferentes dos fenômenos físicos.
Para eles: ´´(...) o efeito de um fenômeno físico depende unicamente da natureza
objetiva desse fenômeno e não pode ser calculado com base em seu conteúdo
empírico, ao passo que o efeito de um fenômeno social depende do ponto de vista
16
In: Coulon, Op. cit. p. 30.
17
Op. cit. p. 30.
18
Op. cit. p. 30. (Grifo nosso).
8

subjetivo do indivíduo ou do grupo e só pode ser calculado se conhecermos não


apenas o conteúdo objetivo de sua suposta causa, mas também o significado que
tem para os seres conscientes considerados... Uma causa social é complexa e
deve incluir ao mesmo tempo elementos objetivos e subjetivos, valores e
atitudes19.
A partir do enfoque da atitude enquanto contrapartida dos indivíduos aos
valores sociais, se atribui, de alguma forma, a possibilidade de resistência sob
vários aspectos, como por exemplo, naquilo que Goffman chamou de
´´elaboração da face´´, que será comentado no último ítem deste artigo. Como
veremos a seguir, o conceito de habitus, ao contrário, condiciona a ação dos
indivíduos a aspectos estruturais, contribuindo para que a resistência seja vista
apenas como algo residual.

O Conceito de Habitus

Como já nos referimos anteriormente, para articular a mediação entre


estrutura e ator, Bourdieu se apropria da noção de habitus utilizada pela filosofia
escolástica. No entendimento dos escolásticos, este conceito era utilizado para
designar uma qualidade estável e difícil de ser removida que tinha por finalidade
facilitar as ações dos indivíduos. O habitus por si próprio não executava nenhuma
operação, apesar de facilitá-la. Segundo ele, era adquirido através de execuções
repetidas de determinados atos, o que pressupunha a existência de um
aprendizado passado20.
Bourdieu reteve a idéia escolástica do habitus enquanto sistema de
´´disposições duráveis´´. Entretanto, ressaltou que sua existência resultaria de um
longo processo de aprendizado, que seria produto do contato dos agentes sociais
com as diversas modalidades de estruturas sociais. Dessa forma o habitus
adquirido pelo ator social através da inserção em diferentes espaços sociais,
constituiria uma matriz de percepção, de apreciação e de ação que se realiza em
determinadas condições sociais. Assim, ele informaria a conduta do ator, as suas
estratégias de conservação e ou de transformação das estruturas que estavam no

19
In: Coulon, Op. cit. p. 31.
20
In: MARTINS, Op. cit. p. 10.
9

princípio de sua produção. Nas palavras de Bourdieu, o habitus é: ´´(...) um


sistema de disposições duráveis, estruturas estruturadas predispostas a
funcionarem como estruturas estruturantes, isto é, como princípio que gera e
estrutura as práticas e as representações que podem ser objetivamente
´regulamentadas´ e ´reguladas´ sem que por isso sejam o produto da obediência
de regras...´´21.
Na concepção desenvolvida por Bourdieu, o habitus como produto da
história, orienta as práticas individuais e coletivas. Através dele o passado do
indivíduo sobrevive no momento atual, atualizando-se nas práticas realizadas no
presente e tende a subsistir nas ações futuras dos atores individuais. As
disposições duráveis que a noção de habitus procura enfatizar, permitem que a
realidade objetiva, em suas várias dimensões, exerça forte influência sobre os
indivíduos, produzindo o processo de interiorização da exterioridade através
deles. Nesse aspecto, o habitus forjado no interior das relações sociais
´´exteriores´´, ´´necessárias´´ e ´´independente das vontades individuais´´, possui
uma dimensão inconsciente para o ator, uma vez que este não detém os
princípios que estão na gênese da produção de seus esquemas de pensamentos,
percepções e ações22.
Entretanto, é importante ressaltar que o habitus torna possível a criação de
novas modalidades de conduta dos atores sociais, possibilitando-os, de certa
forma, produzir determinadas ´´improvisações´´. Contudo, apesar do indivíduo
desfrutar nas situações conjunturais de um grau de liberdade para ajustar as suas
práticas às contingências surgidas, esta não se confunde com uma ´´criação
imprevisível de uma novidade´´, uma vez que a prática social possui sempre como
limite condições históricas específicas.
Finalmente, é importante ainda observar que se o habitus orienta a prática
dos agentes, ela somente se realiza na medida em que as disposições duráveis
dos atores entram em contato com uma situação (que Bourdieu denominou
campo). Dessa forma, como já nos referimos anteriormente, a prática é entendida
por Bourdieu como produto de uma ´´relação dialética´´ entre uma situação e um
habitus.
21
In: FERNANDES, F (coord.). Sociologia - Coleção Grandes Cientistas Sociais. São Paulo: Ática, 1983 p.
15.
22
In: MARTINS, Op. cit. p. 11.
10

A Noção de Resistência Dentro das Perspectivas do Interacionismo e de


Bourdieu

O conceito de atitude enquanto a contrapartida do indivíduo aos valores


sociais, utilizado pelo interacionismo simbólico, nos leva a pensar em um ato de
resistência.
Becker, um renomado participante da Escola de Chicago, concebe a
sociedade ´´como ação coletiva e a Sociologia como o estudo das formas de ação
coletiva´´23. Esta concepção implica em uma posição teórica que analisa ´´o
sistema de interação no qual surge o problema... Localizamos o problema
metodológico no comportamento das pessoas que participam desse sistema,
perguntando o que, nos padrões recorrentes de interação, leva as pessoas a
fazerem coisas que nos criem dificuldades como cientistas´´ 24.
Ao dar espaço em sua análise à ação do indivíduo, Becker nos possibilita
pensar nessa ação também no sentido de resistência aos valores sociais. Esta
resistência pode ser percebida, por exemplo, naquilo que Goffman chama de
´´elaboração da face´´.
A elaboração da face é considerada um elemento ritual na interação social.
´´Estudar o modo como as pessoas salvam faces é estudar as regras de trânsito
da interação social´´25. Na perspectiva do referido autor, toda pessoa vive em um
mundo de encontros sociais, que a coloca em contato com outros participantes.
Em cada um desses contatos, ela tende a pôr em ação uma linha, que é um
padrão de atos verbais e não-verbais através dos quais ela expressa sua visão da
situação e, através disso, sua avaliação dos participantes, e especialmente de si
mesma26.
Apesar de considerar que a sociedade coage o indivíduo a elaborar sua
face, ainda assim, o indivíduo tem participação consciente nessa elaboração:
´´(...) embora a face social de uma pessoa possa ser o que ela possui de mais
pessoal, o centro de sua segurança e prazer, trata-se apenas de um empréstimo
23
BECKER, H. S. Uma teoria da ação coletiva. Rio de Janeiro: Zahar, 1977, p. 10
24
Op. cit. pp. 10 - 11. (Grifo nosso).
25
GOFFMAN, E. A elaboração da face. In: FIGUEIRA, S. A. Psicanálise e Ciências Sociais. Rio de Janeiro:
Francisco Alves, 1980, p. 82.
26
Op. cit. p. 76.
11

que lhe foi feito pela sociedade... Atributos aprovados e sua relação com a face
fazem de cada homem seu próprio carcereiro: trata-se de uma coerção social
fundamental mesmo que todo homem goste de sua cela´´ 27. Todavia, é importante
observar que, ao contrário de Durkheim e do próprio Bourdieu, a sociedade não
se coloca ao homem como um Deus; na realidade as relações sociais se dão ao
nível das interações, permitindo ao indivíduo um poder de ação maior na
elaboração da sua face, por exemplo. Assim, observa Goffman: ´´(...) se uma
pessoa sabe que, como resposta à sua modéstia, receberá elogios, poderá
buscá-los conscientemente´´28
Na perspectiva de Bourdieu, a noção de resistência é bem diferente da do
interacionismo. Ele chega mesmo a criticar o conceito de interação da Escola de
Chicago. Segundo ele: ´´(...) as interações, que proporcionam uma satisfação
imediata às disposições empiristas - podemos observá-las, filmá-las, registrá-las,
em suma tocá-las com a mão -, escondem as estruturas que se concretizam
nelas. Esse é um daqueles casos em que o visível, o que é dado imediatamente,
esconde o invisível que o determina. Assim, esquece-se de que a verdade da
interação nunca está inteira na interação tal como ela se oferece à observação´´ 29.
A noção de resistência, pode ser considerada para este autor como um ato
residual, a menos que a sociedade esteja passando por uma crise muito
acentuada. A sociedade possui ´´ritos de instituição´´ que conseguem fazer crer
aos indivíduos consagrados que eles possuem uma justificação para existir, ou
seja, que sua existência serve para alguma coisa.
Neste sentido, Bourdieu destaca que a fórmula que subtende a magia
performativa de todos os atos de instituição é: ´´torne-se o que você é´´. Assim,
´´a função de todas as fronteiras mágicas (...) consiste em impedir que os que se
encontram dentro, do lado bom da linha, de saírem, de saírem da linha, de se
desclassificarem´´. Mais que isso, observa ele: ´´(...) a estratégia universalmente
adotada para eximir-se duradouramente da tentação de sair da linha consiste em
naturalizar a diferença e transformá-la numa segunda natureza através da
inculcação e da incorporação sob a forma de habitus´´30.
27
Op. cit. p. 81.
28
Op. cit. p. 91.
29
BOURDIEU, P (1990). Op. cit. p. 154.
30
BOURDIEU, P. A economia das trocas lingüísticas. São Paulo: Ed. Universidade de São Paulo/Edusp,
1996, pp. 102 - 103.
12

Finalmente, é importante observar que Bourdieu não nega que os agentes


constroem sua visão de mundo mas, essa construção é operada sob coações
estruturais. As disposições dos sujeitos, o seu habitus, isto é, as estruturas
mentais através das quais eles apreendem o mundo social, são em essência
produto da interiorização das estruturas do mundo social.

Referências Bibliográficas

1. BECKER, H. S. Uma teoria da ação coletiva. Rio de Janeiro: Zahar, 1977.


2. ______ . A Escola de Chicago. In: Mana, v. 2, n. 2, PPGAS/Museu Nacional,
UFRJ, 1996.
3. BOURDIEU, P. O poder simbólico. Lisboa: Difel, 1989.
4. ______ . Coisas ditas. São Paulo: Brasiliense, 1990.
5. ______. A economia das trocas lingüísticas. São Paulo: Ed. Universidade de
São Paulo/Edusp, 1996.
6. COULON, A. A Escola de Chicago. Campinas: Papirus, 1995.
7. FERNANDES, F (coord.). Sociologia: Coleção Grandes Cientistas Sociais. São
Paulo: Ática, 1983.
8. FIGUEIRA, S. A. Psicanálise e Ciências Sociais. Rio de Janeiro: Francisco
Alves, 1980.
9. MARTINS, C. B. Estrutura e ator: a teoria da prática em Bourdieu. Trabalho em
Sociologia. Série Sociológica, n. 63, jun/1987(mineo.).

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