Você está na página 1de 3

À GDSADU

GRANDE ORIENTE DO BRASIL DE SÃO PAULO

ARLS CARLOS GOMES Nº 2.972

A MODÉSTIA E A VAIDADE 1
(Trabalho no Grau de AM)

Ir Wallace Lima

Convidadas a exporem suas razões perante uma assembleia de Maçons reunida em uma
tradicional Loja da cidade, a Modéstia e a Vaidade fizeram uso da palavra, uma de cada vez.

Logo que a Modéstia acabou seu breve discurso, mansamente e com os olhos fitos no chão, como
lhe convém, sentou-se.

Sem esperar ser chamada, a Vaidade de um salto, como que impulsionada por uma mola,
empertigou-se e foi logo dizendo:

Caros Maçons, acabais de ouvir a mais chocha de todas as virtudes, a mais inútil, a mais estéril de
quantas podem reger o coração dos homens; e ides ouvir agora a mais sublime delas, a mais
fecunda, a mais sensível, a que pode dar a vocês - e ao mundo - a maior profusão de alegrias, sem
dúvida alguma.

Eu tenho sido classificada, erradamente, por alguns retóricos de profissão, como um vício, mas
na realidade, sou a primeira das virtudes!

Peço que não olheis para minha roupa de cores variadas e ricas rendas, nem para as joias com
que me adorno. Não olheis, digo eu, se tendes o preconceito da Modéstia; mas se o não tendes,
reparai bem, todos os que aqui estão, que estes adornos e tudo mais que uso, longe de ser uma
casca ilusória e vã, como disse minha inimiga agora há pouco, são, em verdade, a própria polpa
do fino fruto da sabedoria.

Peço a todos que reparem, porque a todos vocês cobiço, sem distinção. Os belos e formosos
como Páris, os feios como Térsites2, os gordos como Sancho Pança, os magros como Dom
Quixote, os altos, os baixos, em resumo todos os que aqui estão e que compõem esse mundo, e
que um dia hão de compor o outro. A todos falo, como uma mãe fala a seus filhos, a saber, com
interesse, com graça, com amor. Porque nenhum dos que aqui se acham poderá afirmar que não
me conhece; que eu não o tenha um dia ao menos já alçado às alturas ou, quem sabe, consolado.

1
O presente Trabalho é uma adaptação do texto de Machado de Assis “Elogio da vaidade”, publicado
originalmente na edição de 28/05/1878 da revista O Cruzeiro, e hoje disponível em domínio público.
http://www.dominiopublico.gov.br/download/texto/fs000087pdf.pdf Acessado em 16/09/2019.

2
Térsites é apresentado por Homero em sua Ilíada, como o homem mais feio que pisou em Tróia.
E onde é que eu não entro? Me digam. Onde é que eu não mando alguma coisa? Vou do salão do
rico ao albergue do pobre, do palácio ao cortiço, da seda fina e bordada ao algodão escasso e
grosseiro; nunca faço exceções.

A tu que me possuis e que tenta se livrar de mim, que me busca nas tuas roupas, nos teus carros,
nos teus adornos, entre as porcelanas da tua casa; que digo? busca-me em ti mesmo! busca-me
no teu próprio coração. É aí que me encontrarás.

Por acaso foi para se livrar de mim que compraste este terno? É para se livrar de mim que usas
esse avental todo bordado, com esses apliques, medalhas e penduricalhos?

E tu, que pouco ou nada tens, por que aplicas o salário de uma semana ao jantar de uma hora, e
publica a fotografia desse fugaz momento, senão por que eu te possuo e te digo que ao menos
um pouco deves parecer melhor do que és na realidade?

Por que te levou em teu casamento um carro, tão rico e tão caro, como o do teu opulento vizinho,
já que podias ir à igreja com teus próprios pés?

Por que compras esse anel e esse relógio? Por que usas roupas com marcas, e por que te olhas
ao espelho com tanto gosto, senão porque eu te consolo da tua miséria e do teu nada, dando-te
a troco de um pequeno sacrifício o grande benefício de sentir-se bem e superior?

E esses dois aí que estão agora brigados? Sim, vocês dois aí! Sei de tudo o que se passa no coração
dos homens. Querem mudar essa situação? Quer você tentar? É fácil: elogie seu inimigo. Sim,
diga qualquer coisa que o eleve acima dos demais, não precisa ser verdade, que de camuflar
elogios falsos em verdades cuido eu, e bem. Uma semana depois, senhores, vê-los-eis ambos de
braços dados um com o outro, à mesa do café, à mesa do jogo, alegres, íntimos e perdoados. E
quem terá eliminado esse ódio velho entre os dois, senão eu? Quem terá vertido o bálsamo do
esquecimento nesses dois corações irreconciliáveis? Eu, a caluniada amiga do gênero humano.

Pensem na mãe que gerou um filho, que o amamenta e acalenta, que põe na frágil criaturinha o
mais puro de todos os amores, essa mãe é má, se a compararmos à Vaidade que consola o
homem da injúria, com o elogio. Faço-vos essa comparação porque sei que só há uma coisa mais
forte que o amor materno: é o amor de si próprio.

Não deveríeis crer vós que me fosse vedada a entrada nessa nobre instituição? Decerto; e,
contudo, acho sempre um meio de aqui penetrar, muitas vezes fortuitamente, às escondidas,
algumas vezes abertamente e de braços dados com a comitiva. Verto então meu óleo no coração
de todos, e todos sentem-se melhor, e melhores que os demais. Quantas cores, que farfalhar de
panos e guizos aqui escuto!

Mas eu perderia meu tempo e o de todos, se me detivesse a mostrar um por um todos os meus
súditos; perderia o tempo e o latim. Omnia vanitas. Para que citá-los, arrolá-los, se quase toda a
terra me pertence? E digo quase, porque não há de se negar que há tristezas na terra e onde há
tristezas aí governa a minha irmã bastarda, aquela que ali vedes com os olhos baixos no chão.
Mas onde a alegria sobrepuja a tristeza, ali estou eu.
Dizem que Deus dá um anjo guardador a cada homem; pois eu digo que a natureza lhe dá outro,
e esse outro é nem mais nem menos que esta vossa criada, que recebe o homem no berço, para
deixá-lo somente na cova. Que digo? Na cova não, acompanho-vos na eternidade! Reparem bem
de perto na qualidade dos mármores que guardarão seus ossos e verão lá o meu sorridente
reflexo!

Oh! a Modéstia! Que tem feito ela no mundo que valha a pena ser citado? Foram suas as mãos
que carregaram as pedras das magníficas Pirâmides? Foi sua a arte que criou e elevou tantos e
tão belos monumentos? Traga-me ela uma lista de seus feitos, de seus heróis, de suas obras
duradouras; traga-me, e eu a suplantarei, mostrando-lhe que a vida, que a história, que os séculos
nada são sem mim.

Não vos deixeis cair na tentação da Modéstia: é a virtude dos fracos. Achareis decerto, algum
filósofo, que a louve, e pode ser que algum poeta a cante. Mas, louvaminhas e cantarolas têm a
existência e o efeito da flor que a Modéstia elegeu para emblema; cheiram bem, mas morrem
depressa. Escasso é o prazer que dão, e ao fim definham na solidão.

Comigo é outra coisa: achareis, é verdade, algum filósofo que de mim reclame; algum frade que
vos dirá que eu sou inimiga da boa consciência. Mentiras! Não sou inimiga da consciência, boa
ou má; limito-me a substituí-la, quando a vejo em frangalhos; e se é ainda nova, ponho-lhe diante
de um espelho de cristal, vidro de aumento. Agora, se vos parece preferível o narcótico da
Modéstia, dizei-o; mas ficai certos de que excluireis do mundo o fervor, a alegria, e a própria
fraternidade que tanto pregam aqui.

Ora, pois, cuido haver mostrado o que sou e o que ela é; e nisso mesmo revelei a minha
sinceridade, porque disse tudo, sem vexame, nem reserva; fiz o meu próprio elogio, que é
vitupério, segundo um antigo ditado; mas eu não faço caso de ditados. Vistes que sou a mãe da
vida e do contentamento, o vínculo da sociabilidade, o conforto, o vigor, a ventura dos homens;
alço a uns, realço a outros, e a todos amo; e quem é isto é tudo, e não se deixa vencer por quem
não é nada.

O quê? Que caras são essas? Credes que não é assim? Será que perdi toda a minha retórica, e
que ao cabo dessa pregação, deixo um auditório de relapsos? Céus! Será que o monótono
discurso da minha rival fez mais sucesso que o meu? Todos dirão isso ao ver a cara com que me
escuta este cavalheiro; ao ver o desdém daquele outro ali sentado. Um levanta os ombros; outro
ri de escárnio. Vejo ali um rapaz a fazer-me figas: outro abana tristemente a cabeça; e todas,
todas as pálpebras parecem baixar, movidas por um sentimento único. Ah, sim, agora percebo!
Tendes todos vós a suprema volúpia da vaidade, que é a vaidade de parecerdes modestos!

Ir Wallace Lima


Jaguariúna – SP 16/09/2019 EV

Você também pode gostar