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As noites de quarta eram reservadas para bebidas e alguma comida barata.

Mas hoje não


parecia ser uma quarta comum.

O céu estava coberto por uma espessa camada de nuvens acinzentadas, embora não
desse sinal algum de que iria chover. As ruas eram escuras e abraçavam uma espécie de
neblina, algo parecia dançar dentro dela, empurrando em direções opostas, puxando,
rodopiando. Era difícil dizer.

O som do motor desligando reverberou pelas ruas. Não era uma hora comum para se estar
ali. Muitos olhares foram atraídos pelo reluzir do metal contra a luz dos postes. Era uma
bela máquina de fato. A mulher que estava nela, trajava uma jaqueta pesada, os cabelos
caíram deslizando pelo ombro assim que o capacete foi removido. Possuía o semblante
sério e os lábios carnudos.

Seus olhos miravam o letreiro do bar, o brilho do neon rosado evidenciava o nome, Sen no
Tsuki, também conhecido como “Mil Luas”. Ela ajeitou seu casaco e conferiu a pulseira que
adornava seu pulso, um aglomerado de esferas negras com símbolos prateados. Sentiu os
inúmeros pares de olhos seguindo seus movimentos na escuridão, embora não
conseguisse distinguir com exatidão de onde vinham.

Os passos alcançaram o bar. Antes de entrar seus sentidos foram golpeados por um aroma
azedo, torceu o nariz e então se dirigiu ao balcão. O local era rebaixado e pouco atraente,
as mesas de bilhar estavam preenchidas com rostos indesejados e a fumaça dos cigarros
estava por toda a parte.

— Bom, pelo menos parece que a bebida e a comida barata estão garantidas - disse
pra si ao sentar no balcão.
O barman deu uma boa olhada de rabo de olho enquanto pegava uma cerveja. Ela
percebeu o movimento e negou a bebida apontando para a garrafa de algum destilado
qualquer.
— Me sirva esse primeiro. Se eu permanecer por mais de uma hora, então eu pego
sua cerveja - Virou o conteúdo do copo de uma vez sem fazer careta — Ainda estou
tentando entender porque diabos a Torre do Obelisco me mandou para um antro pulguento
desses.
A menção chamou a atenção do barman, que não demonstrou nenhuma reação,
apenas sorriu de canto, sem nada dizer. Em seu ombro esquerdo descansava um pano
amarelado com uma mistura de manchas marrons e vermelhas, o tecido parecia não ter
contato com a água em um bom tempo. Puxou-o, fingindo limpar o balcão de madeira
rústica repleto de marcas e arranhões.
— Cadê a porra da música? — A reclamação anônima se fez presente no fundo do
bar e com ela outras vozes se juntaram ao protesto, frustradas.
Assim que a confusão se formou, uma mulher gorda correu em passos lentos e
alcançou, esbaforida, a velha jukebox. Ligou o som no outro canto do bar, causando um
grande estrondo e algumas interferências. Logo a voz de um longínquo Axl Rose se fez
presente no ambiente, arrancando a aprovação de alguns dos velhos que jogavam um
carteado sobre a mesa de bilhar. Uma voz grave juntou-se ao coro:
“Say: Live and let die

Live and let die

What does it matter to ya?

When ya got a job to do

Ya got to do it well

You got to give the other fella a hell”

O homem alto sentou-se a um banco de distância da mulher, que saboreava


devagar o segundo copo de gim. Agora apenas acompanhava o ritmo da música com um
pé inquieto.

— O de sempre — ergueu o indicador para o barman.

De dentro do sobretudo marrom tirou um largo envelope negro, e deixou-o no banco


vazio, percebendo que havia atraído a atenção da morena sentada à sua direita. Encarou o
copo oferecido pelo barman, mas não o tocou. Levantou-se e saiu, deixando sobre o balcão
um cheque dobrado.

— Curioso — ela pensou alto, pegando o envelope. — Fique com o troco. — disse
deixando uma nota de cinquenta ao lado do copo vazio e saiu da espelunca, grata por ter
sido breve.
Uma corrente de ar frio arrancou de seu corpo um espasmo involuntário. Puxou
mais a jaqueta e inspirou lentamente, esperando que o odor azedo se desgrudasse de suas
narinas e de sua mente. Nesse momento seus olhos se fixaram no gato branco que
passeava a alguns metros de si, e que ao perceber sua presença, cruzou seu caminho tão
rápido quanto um raio.

— Isso não é nada bom.

Aprendera que o gato branco sempre fora um mau presságio para pessoas como
ela. Podia sentir que algo estava muito errado naquele cenário, mas decidiu ignorar a
intuição. Era seu ponto fraco, afinal. Seus instintos ultimamente estavam pregando peças e
causando problemas.
Alcançou a moto, sentando-se, e abriu o envelope de uma vez, revelando um
pedaço de sulfite completamente vazio.

— O que..?

Não teve tempo de completar o pensamento, pois o celular chamou sua atenção ao
tocar aquela música irritante que sempre se esquecia de trocar.
— Alô?

— Recebeu a encomenda? — a voz do outro lado era séria, como sempre.

— Sim, mas... Houve algum engano, está vazio.

— Não deveria ser uma surpresa, afinal você sabe muito bem o que acontece
quando acontece uma falha tão crítica, certo?

— Mas...

— O obelisco agradece pelos serviços prestados. O contrato agora está desfeito.

Ouviu uma risada familiar ecoando no fundo da ligação, mas antes que pudesse se
dar conta do que estava acontecendo, algo gelado atravessou suas costelas. De seus
lábios, um líquido grosso fez o caminho lento até a parte baixa de seu pescoço. Sentiu o
corpo caindo da moto, já desobediente aos seus comandos.
E antes que seus olhos se fechassem vislumbrou o sorriso sádico do barman que
contemplava sua mais recente obra de arte.

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