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2 A sociedade civil
1 Introdução
A relação entre os mass media e a cidadania
Num contexto de reflexão crítica acerca dos passam por uma figura ressuscitada na teo-
processos de criação de significados e de ria política, a sociedade civil, a qual surge
transmissão de cultura, o qual tem vindo a como um terreno típico das sociedades oci-
proliferar no vasto campo de estudos que se dentais ameaçado pelos mecanismos da ló-
debruçam sobre as relações entre tecnologia, gica administrativa e económica e que se
comunicação e sociedade é difícil ignorar a apresenta como o locus para a expansão po-
mudança qualitativa introduzida pelas novas tencial da democracia nos regimes liberal-
tecnologias de comunicação. A abordagem democráticos efectivamente existentes. (cfr.
desta mudança tem vindo a centrar-se de um Arato e Cohen, 1995, viii). A tentativa de
modo particular no fenómeno da interacti- definição desta instância é devedora da refle-
vidade e suas particulares consequências no xão tocqueviliana e dos esforços teóricos de-
domínio, hoje tão discutido, das relações en- senvolvidos por Gramsci, de certo modo por
tre os novos media e cidadania. Este texto Habermas numa fase posterior à obra “Mu-
debruça-se, em primeiro lugar, sobre a ne- dança Estrutural da Esfera Pública”1 e, mais
cessidade de um conceito de sociedade civil
1
que se traduza na redinamização da cidada- Com efeito, os primeiros trabalhos de Habermas
nia; em segundo lugar, preocupa-se com a sobre o espaço público ainda apontam, em larga me-
dida para a identificação entre sociedade civil e soci-
dimensão simbólica e comunicacional deste edade burguesa, teorizando a esfera pública de certo
conceito, chamando a atenção para o papel modo como ideologia que, todavia, não se limitava a
2 João Carlos Correia
recentemente por Charles Taylor (1997, 263) de uma oposição cortante daquela em re-
e por Arato e Cohen no sentido de diluírem lação a estas. As noções que aqui par-
a tradicional identificação hegeliana e mar- tilho de sociedade política e de sociedade
xista entre a sociedade civil e a economia económica incluem esferas mediadoras atra-
burguesa (cfr. Arato e Cohen, 1995, 220 e vés das quais a sociedade civil pode ga-
seguintes). nhar influência sobre os processos político-
O que se defende hoje é um conceito de administrativos e económicos. Existe um pa-
sociedade civil que se ofereça como uma es- pel da sociedade civil que não está directa-
fera de interacção social localizada composta mente relacionado com a conquista do poder
pela esfera íntima, pela esfera das associa- nem com a gestão da economia mas com a
ções voluntárias, pelos movimentos sociais e geração de influência através da vida das as-
pelas formas de comunicação pública. Isto sociações democráticas e da discussão sem
implica distinguir a sociedade civil da soci- constrangimentos na esfera pública .
edade política composta apenas pelos parti- A diferenciação da sociedade política e da
dos, organizações e públicos políticos e de sociedade económica não implica também
uma sociedade económica composta por or- que a sociedade civil se refira a todos os fe-
ganizações de produção e de distribuição. As nómenos da sociedade que não estejam rela-
sociedades económica e política emergem cionados com o Estado e a Economia, mas
geralmente da sociedade civil, partilham al- apenas a modos de relação que incluam as-
gumas das suas formas de organização e de sociação consciente e a comunicação orga-
comunicação e institucionalizam-se através nizada. A sociedade civil não se confunde
de direitos políticos e de propriedade contí- com a totalidade do mundo da vida social.
nuos aos direitos próprios da sociedade civil. Refere-se às estruturas de socialização e as-
Porém, os actores da sociedade económica e sociação que possuam um certo grau de ins-
política estão directamente envolvidos com titucionalização (cfr. Arato e Cohen, 1995:
o poder estatal e com a produção económica, viii, ix e seguintes).
que pretendem controlar e gerir. Não podem
subordinar os critérios estratégicos e instru-
3 Sociedade civil como sociedade
mentais a padrões de integração normativa e
de comunicação aberta característicos da so- de comunicação
ciedade civil. A sociedade civil que aqui se configura pos-
A diferenciação da sociedade civil em re- sui cada vez mais uma conotação simbólica:
lação à sociedade económica e à sociedade a ligação entre a experiência comunicacional
política não significa, todavia, a existência e a experiência cívica ficou particularmente
ser ideologia porque continha uma promessa utópica evidente com o advento da modernidade
de realização da universalidade. É nesta ambiguidade quando se evidenciou a questão da legitimi-
estruturante que deve ser compreendida a afirmação dade, surgindo como elemento integrante do
de Habermas, segundo a qual a sua análise pretende exercício da cidadania, uma instância crítica
demonstrar a impossibilidade de conciliação dos im-
perativos económicos com o ideal de uma formação
independente do Estado que aspira a con-
discursiva da vontade (cfr. Habermas, 1997, 15). formar o poder e a transformá-lo. A socie-
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Cidadania, Comunicação e Literacia Mediática 3
dade civil está relacionada com um público ção da realidade social deixou de ser consi-
político que lhe é contíguo e que se relaci- derado como unilateral, unívoco e dirigista,
ona como instância mediadora com as so- estanque em relação às dinâmicas sociais em
ciedades política e económica competindo- que se inserem os próprios media. A cul-
lhe amplificar a pressão exercida pelos pro- tura dos meios de comunicação também é,
blemas, isto é, não apenas detectá-los e hoje, um lugar de intensa luta entre os di-
identificá-los mas também tematizá-los de ferentes dinamismos sociais e, por conse-
modo convincente e influente, apresentando- guinte, teoriza-se melhor como um terreno
os juntamente com soluções, de tal forma de disputa, aberto às vicissitudes da história
que sejam tomados em conta e resolvidos pe- do que apenas como um campo de domina-
las instituições representativas (cfr. Haber- ção” (Champagne, 2000:18). Nesta luta, os
mas, 1996, 362). O cerne institucional desta jornalistas e os media desempenham um pa-
instância é, pois, as associações voluntárias pel estratégico. A impossibilidade de pensar
e as redes associativas não dependentes do a história como um curso unitário é, em larga
estado e da economia, através das quais se medida, resultado da espectacular expansão
ancoram as estruturas comunicativas da es- dos mass media, os quais geram uma soci-
fera pública na componente social do mundo edade com diversas sub-culturas que tomam
da vida (cfr. Ibidem, 366). a palavra, gerando um pensamento fragmen-
A esfera pública, adstrita à sociedade ci- tário e arredio às interpretações unívocas e
vil, configura-se hoje, pela sua mediatiza- lineares (Vattimo, 1996, 78-79).
ção, como lugar de confronto entre a plura- Se é verdade, assim, que a influência dos
lidade de definições da realidade social. Por media na construção social da realidade é
um lado, a construção social da realidade de- um dado incontornável, não é menos verdade
corre de um modo em que os media adqui- que cada vez mais é obsoleto e irrealista opor
rem um papel cada vez mais firme. Neste os media aos agentes sociais, como se os pri-
quadro, a actividade dos media pode ser en- meiros ocupassem uma posição a-histórica,
tendida como tendo um “papel socialmente desligada das interacções concretas entre os
legitimado para produzir construções da rea- homens. Pelo contrário, hoje abre-se a possi-
lidade que são publicamente relevantes” (Al- bilidade de que os agentes sociais irem recor-
sina, 1996, 18). Embora esse processo de rendo aos próprios media, através de uma in-
construção social esteja profundamente rela- tervenção cada vez mais directa na descodi-
cionado com os constrangimentos, normas ficação, recepção activa e até na produção de
organizacionais e convenções narrativas de mensagens. De acordo com esta perspectiva,
que dependem os conteúdos e a prática dis- apesar de todas as dúvidas e perplexidades,
cursiva dos media, ele não decorre sem a podermo-nos encontrar, encontrarmo-nos se-
participação activa da audiência, nas diver- guramente, diante de novas transformações
sas interacções em que os indivíduos tomam estruturais nas quais os media poderão de-
parte na realidade da vida quotidiana, no de- sempenhar um papel estruturante acentuada-
curso da qual se organizam como comuni- mente reflexivo. Ao invés do que sucedeu
dade interpretativa. na tradição marxista ortodoxa e, depois, de
Por outro lado, esse processo de constru- um modo peculiar na complexa tradição er-
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6 João Carlos Correia
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8 João Carlos Correia
nos mecanismos simbólicos da sociedade ci- Champagne, Patrick (2000) “Os media, as
vil, a interpelação sobre os mecanismos de sondagens de opinião e a democracia”,
regulação que assegurem o pluralismo e a in AAVV, Os cidadãos e a sociedade de
equidade, o desenvolvimento de uma refle- informação, Lisboa, Imprensa Nacional
xão acerca do modo como o próprio jorna- Casa da Moeda.
lismo pode influenciar positivamente a vida
pública, o desenvolvimento de formas de li- Esterowikz, Anthony e tal (2000), “Jorna-
teracia mediática que impliquem a referên- lismo público e conhecimento público”
cia constante a una ideia de cidadania ac- in Revista de Comunicação e Lingua-
tiva, a emergência de possibilidades tecnoló- gens, no 27, Jornalismos 2000, Lisboa,
gicas que assegurem uma maior interactivi- Cosmos.
dade entre produtores e receptores – só tem Habermas, Jürgen (1996), Between facts and
sentido quando são encaradas como possibi- norms, Cambridge, MIT Press.
lidades de transformação das condições de
deliberação colectiva no sentido do aprofun- Misgeld, Dieter (1987), Education and cul-
damento da cidadania enraizada numa verda- tural invasion: Critical social theory,
deira vivência comunitária education as instruction and the “pe-
dagogy of opressed”, Cambridge, MIT
6 Bibliografia Press.
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