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BERTRAND, D. Caminhos de semiótica literária. Bauru, Edusc: 2003.

Resumo histórico – As fontes da narratividade

“Os anos 60 foram marcados, nas ciências humanas, por uma verdadeira revolução na
reflexão sobre a narrativa. A publicação, em 1966, do número 8 da revista
Communications, sob o título “Recherches sémiologiques. L’analyse structurale du
récit”, constitui seu acontecimento de referência: encontram-se aí principalmente os
textos de R. Barthes (“Introduction à l’analyse structurale du récit”), A. J. Greimas, C.
Brémond, U. Eco, G. Genette, C. Metz, T. Todorov. O traço característico e comum a
esses diferentes estudos é um esforço de racionalização da ficção narrativa, que
ocasionou uma profunda reviravolta metodológica, levando à constituição da
narratividade, uma quase-disciplina conhecida também pelo nome de narratologia.”
(2003, p. 266)

“Podemos apresentar essa reviravolta como a passagem entre o que P. Ricoeur chama
de “inteligência narrativa”, que é trans-histórica, cronológica, inserida na evolução e nas
mudanças da tradição histórica da “elaboração da intriga”, para uma “racionalidade
semiótica”, concebida de maneira a-histórica como um aprofundamento dos
mecanismos formais produtores da narrativa, isto é, a busca de estruturas profundas
imanentes, cujas diferentes configurações na superfície dos textos não seriam mais que
manifestações particulares. A imanência, lembramos, significa a autonomia das formas
estruturas, seu funcionamento próprio, sua indiferença enquanto sistema aos dados
extralingüísticos.” (2003, p. 266)

“P. Rcoeur ilustra as transformações históricas da elaboração da intriga, mostrando


como, sobretudo na esteira dos trabalhos de G. Lukács, o advento do romance moderno
pode ser compreendido como uma inversão da hierarquia entre “intriga” e “caráter”.
Nas formas primitivas da narrativa, a intriga era englobante, enquanto os pensamentos,
os afetos e os “caracteres” que os enquadram (e que a semiótica desenvolverá como o
conceito de “papel temático” dos atores) lhe eram subordinados.” (2003 p. 266)

“A mudança metodológica introduzida pela narratologia consiste então em denunciar a


pertinência da cronologia, em substituir a história pela estrutura, em desprender-se da
interligência narrativa histórica em favor das coerções estruturais a-crônicas.” (2003, p.
267)

A fundação da narratividade: Propp

“A Morfologia do conto maravilhoso russo de V. Propp constitui o fundamento


inevitável de toda reflexão sobre a narratividade.” (2003, p. 269)

“Propp estabelece, como condição prévia, o conhecimento efetivo do objeto “conto” em


si mesmo, a análise de sua morfologia, isto é, de suas regularidades e variações formais:
trata-se de estabelecer a constância dos elementos (personagens e ações) e das relações
(encadeamento das ações) que constitui a forma do conto popular, ou segundo seus
próprios termos, de fazer a “descrição dos contos segundo suas partes constitutivas e as
relações dessas partes entre si e com o conjunto.” (2003, p. 270)

“A morfologia de Prpp caracteriza-se por quatro teses depreendidas da análise de uma


centena de contos de fadas eslavos.” (2003, p. 270)

“1. As unidades constituivas do conto são as funções. Elas definem-se pelo segmento da
ação que as denota: afastamento, interdição, fuga, transgressão, informação, engano,
etc. Tais funções são idênticas em todos os contos, qualquer que seja o revestimento
figurativo que as particulariza (cenário, personagens, lugares, tempos, etc.) As
personagens são, pois, eliminadas, constituindo apenas suporte das funções. E estas são
definidas unicamente do ponto de vista de sua significação no desenvolvimento da
intriga.” (2003, p. 271)

“2. O número das funções é limitado. As ações e as personagens podem ser


inumeráveis, multiformes, pitorescas; apóiam-se, entretanto, em um número finito de
funções: trinta e uma. [...] Essa limitação pode ser comparada ao número finito de
fonemas em um sistema fonológico.” (2003, p. 271)

“3. A ordem de sucessão das funções é limitada.Elas se implicam umas às outras;


algumas podem ser reagrupadas por pares (proibição/violação; combate/vitória)
exibindo uma estrutura paradigmática; outras encadeiam-se em sequências (traição –
pedido de socorro – decisão do herói – partida para a busca) formando blocos
sintagmáticos concatenados, “pré-moldados”.” (2003, p. 272)

“A diferença formal entre os contos resulta da seleção operada por cada um no estoque
das funções disponíveis.” (2003, p. 272)

“As personagens se definem ela distribuição das funções que lhes são atribuídas e que
constituem sua “esfera de ação”. (2003, p. 273)

A lógica dos papeis: Brémond

“Invertendo assim o primado de Propp, que enfraquecia a personagem em proveito da


função, de que ela era apenas o suporte, Brémond parte das personagens e procura
formalizar seus papéis intencionais. O conceito central de papel é definido como a
atribuição a uma personagem-sujeito de um processo-predicado eventual, em ato ou
não, acabado ou inacabado: por intermédio do predicado, portanto, o papel se incorpora
à seqüência elementar e, ligadas por seus respectivos papeis, as personagens se mostram
por isso mesmo interdependentes. Nessa perspectiva, a narrativa não se constrói, como
em Propp, sobre uma seqüência de ações, “mas sobre uma organização de papéis
narrativos.” (2003, p. 275)

A semiótica narrativa: Greimas

“Na base da semiótica narrativa desenvolvida por Greimas e sua escola encontra-se o
projeto de desenvolver precisamente uma “sintaxe narrativa”. Ela tem como núcleo o
conceito de actante, obtido de um lado por uma redução paradgmática das funções
proppianas e, de outro lado pela consideração de que uma sintaxe narrativa deve, para
ser válida, ser exclusivamente enraizada nas propriedades da linguagem. É portanto no
discurso em si mesmo, e não nas hipóteses sobre a ação que se encontra o princípio de
sua construção. O conceito de actante é assim emprestado à sintaxe estrutura, frásica, de
Louis Tesnière, que compara a frase a um pequeno drama, “espetáculo que o homo
loquens se dá a si mesmo”, implicando: um processo (o verbo), um actante (o
substantivo) e circunstâncias (por exemplo o advérbio).” (2003, p. 278)

“Sob o nome de Enunciado Narrativo, ela é então simplesmente definida como uma
“relação-função entre ao menos dois actantes.” (2003, p. 278)

Elementos de narratividade

“Um actante Destinador, actante soberano (rei, providência, Estado, etc.) fonte e
garantia dos valores, transmite-os, por intermédio de um actante objeto, a um actante
Destinatário: é a categoria da cominicação. O Sujeito (que pode se fundir com o
destinatário) tem por missão conquistar esse Objeto, “entrar em conjunção” com ele: é a
categoria da busca. Nesse fazer, o sujeito é contrariado pelo Oponente e apoiado pelo
actante Adjuvante: é a categoria polêmico-contratual.” (2003, p. 288)

“A fim de livar-se das coerções típivas de um universo narrativo de referência e de


munir-se de um instrumento de maior alcance, a semiótica foi adotando
progressivamente uma segunda fórmula do dispositivo actancial [...] reduzido a três
posições relacionais: a do sujeito (em relação com seus objetos valorizados), a do
destinador (em relação com o sujeito destinatário que ele manipula e sanciona levando
em conta os valores investidos nos objetos) a do objeto (mediação entre o destinador e o
sujeito).

O programa narrativo

“O programa narrativo articula dois enunciados básicos: os enunciados de estado e os


enunciados de fazer. estes têm a função de transformar os estados. Os enunciados de
estado, por sua vez, se fundamentam nos predicados elementares de “ser” e “ter”. A
narrativa mínima se baseia assim na transformação de um “estado de coisas”, pela
privação ou pela aquisição, que resultam de um predicado de ação.” (2003 p. 291)
“O programa narrativo desgina então a operação sintáxica elementar que promove a
transformação de um enunciado de estado em outro enunciado de estado, pela mediação
de um enunciado de fazer.” (2003, p. 291)

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