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LUZES NA CIDADE,

notas sobre o ensaio "O que são essas luzes" de Rodrigo


Lages e Silva.1

Fernando Fuão

Há uma luz que nos cega desde o iluminismo, o humanismo que não
permite ver nossa situação dita humana; uma luz sutil encobre nossa
condição pré-humana, de animal: às vezes na forma de macaco, ás vezes
de cavalo, ou até mesmo de um miserável inseto.

Eís o inseto e sua condição tão similar ao humano, sua propriedade, eís
o homem e seu outro símil; exatamente aquele inseto vulgar que se vê
atraído pelas luzes e que tolamente se dirigia a elas sem saber que
morrerá por isso. O inseto ignora, e se dirige numa fatalidade
irremediável, como se fosse de sua própria natureza banhar- se na luz
até afogar-se de prazer. Mais do que um simples seducco, a luz, às
vezes, parece ser a sedução suprema. A sedução da luz não é somente
irradiar e evidenciar os corpos com seu brilho, mas a luz, sobretudo atrai
e faz tudo gravitar em torno dela como satélites, como esferas, como
insetos, como a gente.

Essa gravitação, ou essa gravidade em outras palavras pode ser


compreendida também como um movimento, uma aceleração provocada
por essa gravitação para quem vive torno as luzes, uma lei. Assim o
tempo nas cidades se acelera, não se sabe bem o porque dessa
aceleração, mas a luz que dela irradia cada vez mais contribui para a
aceleração. O homem do campo conhece essa diferença. Os seres das
grandes cidades são em tudo apressados, nervosos, rápidos.

Orbital é garantia de movimento. Orbitar é morar em torno das luzes,


girando sem parar.

Uma Verdade! A luz é luciferiana. A eletricidade ilumina diferentemente


do candeeiro ou da lamparina como já havia observado Gaston
Bachelard, essa ideia de iluminação que vem de fora para dentro é a
mesma que o projetor cinematográfico produz e de suas variantes, é a

1 Lages e Silva, Rodrigo. O que são essas luzes, em Baptista, Luis Antonio; Ferreira,
Marcelo. Por que a cidade, escritos sobre experiência urbana e subjetividade. Editora
da UFF, Niterói, 2012.
mesma luz que erradia e se despeja nos monitores de tv ou mesmo do
computador, a mesma luz contida no poste de luz ou na vitrine da loja.

Somos adictos da luz elétrica, ela nos seduz tal como já o fazia o antigo
fogo, os lares, os deuses lares, a lareira. Em torno do fogo, da luz nos
reunimos, somos como aqueles insetos ávidos que se reúnem na luz e
giram em torno dela ou do fogo ate queimar.
A luz inventa um novo modo de viver a cada lumen. Ao contrario do céu
em sua infinitude distante, a cidade para Rodrigo Lages, quando era
criança, era 'uma grandeza convidativa'.

A luz inventada por nós ilumina, sem queimar, sem destruir, mas talvez
devêssemos desconfiar dessa ilusão, a luz ainda que não queime, arde
na constelação das conjunções, da comunidade; ao mesmo tempo que
reúne e promove o encontro, espanta o medo e os fantasmas das
sombra; ela também desperta o isolamento do ser através do
encantamento e do sua segurança.

Uma vez iluminado o ser se sente seguro, suficiente. Fico enfeitiçado,


enfeitiçado como uma criança que brincam sem parar em torno ‘a
chama de uma vela’.

Vista de cima, num voo aéreo a cidade é todo um espetáculo, o sublime


da natureza da cidade, a cidade é Ur, esta se tornando uma ur (a cidade
luz), o (ur)bano. O aceno aceso das luzes.

A luz elétrica, vejamos, se tornou uma grande aliada do materialismo e


também da igreja católica, ligou o consumo com a religiosidade, com
seu esclarecimento ocultou a natureza, o brilho do silencio da noite, o
brilho da natureza, das estrelas, das constelações, do cosmos. E assim,
endereçou à um novo céu, que não é esse cheio de estrelas, mas um
outro céu muito além do além, que nos deixa mesmo uma certa dúvida
de sua existência.

Essa luz sempre vem acompanhada de um estranho ruído, um ruído que


nos torna surdo a tudo na natureza.

Talvez por isso os surrelistas clamavam por 'mais luz', mas essa luz não
era aquela que vinha de fora mas sim de dentro, a luz que brotava da
noite, das trevas. A iluminação.

E foi assim com Restif de la Bretonne que caminha por Paris a noite, o
personagem Gaspard de la nuite de Aloysius Bertrand, assim se
seguiram todos os surrealistas: Breton, Eluard, Aragon, e inclusive
Walter Benjamin, sempre em busca do acaso, do inusitado; das colisões
das imagens, que acabariam gerando a teoria estética do schock, que
evidentemente não era elétrico.

Ai que felicidade quando falta luz na cidade e podemos ver o céu


estrelado à noite. A luz da cidade tudo o que faz é nos cegar, escurece a
luz das estrelas, da lua, nos tapa a infinitude do cosmos e da natureza,
e de alguma maneira também nossa pequenez, como inseto ou poeira.

Não é a noite que nos cega, que nos tira a visão, mas a luz do sol que
transforma a Terra numa redoma, numa casa iluminada nos impedindo
de nos estabelecer topologicamente na imensidão do cosmos. É o sol
que nos impede de entendermos que estamos sempre dentro, imersos e
submersos no liquido universal.

Beleza feérica, esférica beleza que não altera a orbita. Orbi-tante,


orbital, essa beleza brilha mais na noite das trevas, quando não há luar,
quando a cidade em seu pânico apagão mostra toda a sua
espectralidade fantasmagórica de sua arquitetura esbranquiçada e
espelhada.
Espetáculo enfeitiçante da cidade iluminada.

Mas não sejamos ingênuos de ignorar as virtudes das luzes. Essas luzes
atraem porque significa muita coisa, a própria vida. São caminhos e
pontos de chegada, orientações, lares, em outros termos mais
existênciais, nos dirigimos para UR cidade porque ela tem respostas às
doenças e enfermidades, respostas que as cidades do interior não
podem dar conta com suas tênues luzes.

Esse dia artificial significa a potência de trabalhar, trabalho, mais


trabalho, tanto de dia como de noite, 24 hours, significa possibilidade de
emprego, e talvez signifique em ultima instância a possibilidade do
encontro amoroso, de viver as potências sexuais que no interior são
reprimidas. A cidade quanto mais iluminada, portanto, se torna também
signo de liberdade, libertação.

Curiosamente todo o trabalho de Michel Foucault partia da questão da


saúde, da medicina, da clínica e assim entrecruzou com outras varias
áreas: como a linguagem, a arquitetura, direito, entre outras. Foucault
aproximou do tema da cidade via medicina, sem entretanto explicar que
muitos dos sofrimentos e suplícios que presenciara ali contidos nos
hospitais acompanhando seu pai médico, não foram gerados na própria
cidade, mas vinham dos povoados do interior em busca de uma
salvação, que nem sempre encontrara.
Há uma correlação direta entre número de habitantes de uma cidade e a
quantidade de luz que essa cidade irradia, e quanto mais irradiante mais
atraente é, nenhuma transcendência na máxima filosófica que todo ser é
um ser de luz. Todas essas luzes são a outra representação dos seres
humanos.

Em ultima análise, a expressão da cidade é o querer viver, a mais vida, a


animação, a anima mundi concentrada; a recriação das eternas fogueira
por todos os lados para espantar os animais e demônios.

Entretanto, essa luz cria, em simultaneidade de espaço e tempo, o


ocultamento, o não enfrentamento com os espectros, os fantasmas.
Haveríamos sim de fazer uma hautologia como sugeriu Derrida, uma
hautologia de quais espectros estamos escondendo ao acender todas as
luzes de casa e da cidade; e quais recriamos domesticados como a
virtualidade digital.

E assim para acabar com os nossos medos, a solidão e a violência, cada


vez mais aumentamos a potência e número de luzes, de lâmpadas. Há
um sentido consentido nesse sem sentido, que espanta o medo, mas não
efetivamente a violência mas empurrando-a para os lugares menos
reluzentes da cidade.
Nenhuma luz produzida pelo homem pode ser realmente orientadora,
apenas orbitalmente escravizante, enfeitiçante. O grande feitiço.

Como escreve Rodrigo Lages e Silva, "Ninguém sabe tão bem como a
criança que a cidade à noite não é apenas o que a luz do dia ofusca, mas
um desvio para a insuportável retidão da estrada".

Rodrigo, ainda aponta um ponto comum que se despeja e se abre


através da relação luz/medo. "Hoje o medo é o afeto primordial, depois
apostam no consumo, e essas coisas entre outras foi transformando a
cidade num ambiente asfixiante...No fundo compreendi que não é mais
preciso viver no isolamento de um palácio de luz à beira da estrada para
sentir a desolação dos que 'vivem sem cidade'. É nos ascéticos
cruzamentos das grandes metrópoles que ese isolamento vai se instalar.
A essa realidade respeitosamente chamarei doravante de 'confinamento
do presente'."

OOO

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