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entrevista

Dr. Pedro Salomão José Kassab


Pedro Salomão José Kassab é uma figura ímpar na sociedade e cultura paulista e brasileira.
Talvez, essencialmente, um professor de Física que, aos 26 anos, se tornou diretor de colégio (e
exerce este cargo há 52 ininterruptos anos, até hoje). Formou-se em medicina pela Universidade
de São Paulo em 1953 e praticou cirurgia geral, experimental e dermatologia (esta última durante
36 anos, inicialmente no Hospital da Guarda Civil de São Paulo e depois no Hospital da Polícia
Militar de São Paulo). Hoje, aos 78 anos, permanece ativo como Diretor Geral do Liceu Pasteur em
São Paulo; membro do Conselho Estadual de Educação de São Paulo, que presidiu (2006-2008),
presidindo atualmente sua Câmara de Educação Superior; membro (há 28 anos) do Conselho de
Ética do CONAR Conselho Nacional de Auto-Regulamentação Publicitária; Vice-Presidente da FEI
– Fundação Educacional Inaciana Padre Sabóia de Medeiros; membro do Conselho Curador da
Fundação Antônio Prudente (Hospital do Câncer); membro da Academia Paulista de Educação e
Vice-Presidente da Associação Paulista de Fundações, tendo sido membro do Conselho Federal
de Medicina e do Conselho Nacional de Saúde. Talvez, de todas suas atividades, a que lhe deu mais
exposição pública foi sua atuação na Associação Médica Brasileira, durante 20 anos, dos quais
diretor das publicações e colaborador de Diretoria (2 anos), Secretário Geral (por 6 anos) e, em
seguida, Presidente (por 12 anos), entre 1961 a 1981; e, como se isto não bastasse, também foi
Presidente da Associação Médica Mundial por dois anos (1975 a 1977). Num final de tarde chuvo-
so do verão paulista, a RAS foi conversar com ele no vetusto casarão onde funciona o Liceu Pas-
teur há mais de 85 anos. Com sua característica fidalguia nos recebeu para mais de duas horas de
aula de história da medicina e previdência social no Brasil, bem como do associativismo médico. A
primeira pergunta não poderia deixar de ser sobre seus anos na Associação Médica Brasileira.

RAS – Destaque alguns aspectos Tavares Flores Soares, e reeleito em políticas, não puderam prosseguir além
relevantes de sua passagem pela 1965 e 1967. Depois, tornei-me Pre- da fase “piloto”, mas comprovaram a
AMB. sidente em eleição de 1969 e reeleito veracidade de nossas teses. Uma foi
PSJK – Iniciei atividade na AMB em em 1971, 1973, 1975, 1977 e 1979. em Goiânia, no âmbito da Previdência
1961, a convite do Dr. Sebastião Sam- Em 1974 fui eleito presidente da As- Social, que durou alguns meses, du-
paio, para cuidar da Revista e tomei a sociação Médica Mundial, para o pe- rante mandato do Ministro Jarbas Pas-
iniciativa de também idealizar um pe- ríodo 1975 a 1977, cargo em que já sarinho, com adesão de grande núme-
riódico para os médicos de todo o Bra- havíamos tido Antônio Moniz de Ara- ro de médicos locais, permitindo aos
sil; daí surgiu o (JAMB) Jornal da Asso- gão, de 1962 a 1964, competentíssi- usuários do sistema a aquisição, em
ciação Médica Brasileira. mo Presidente da AMB de 1959 a qualquer agência bancária, de uma
Quero lembrar que os irmãos Ka- 1961. Nossa grande bandeira no cam- guia para consulta. O plano incluía tam-
tayama me ajudaram bastante na pro- po médico-assistencial sempre foi a bém assistência hospitalar e exames
dução da Revista e do Jornal da AMB defesa da livre escolha para o atendi- subsidiários ao diagnóstico e tratamen-
e, depois, no estímulo à criação de re- mento à população; sem intermedia- to. O fator moderador, concebido para
vistas especializadas. A partir desse ções. Sempre fomos contra o assala- uso do sistema, estaria baseado em 3
trabalho e da organização de ações da riamento e credenciamento restrito de eixos: capacidade econômica e situa-
AMB, inclusive do Congresso Médico médicos para a finalidade assistencial. ção social da família do usuário; ordem
de Fortaleza, de que fui coordenador, O paciente deve ter a liberdade de de grandeza das despesas previstas
em 1963, fui convidado a participar do escolher o seu médico com base na para os cuidados necessários; e a na-
processo eleitoral e fui eleito Secreta- confiança. Assim, pudemos participar tureza da doença. Na experiência-pi-
rio Geral da entidade, em 1963, para de duas grandes experiências por nós loto ainda não havia, no entanto, a pos-
Diretoria que teve a digníssima e de- sugeridas, neste sentido, que, infeliz- sibilidade do cadastramento necessá-
votadíssima Presidência de José Luiz mente, por fatalidade e circunstâncias rio para aplicação desse procedimen-
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to. A outra experiência de livre escolha te os integrantes de sua Diretoria, Co- estudo, utilizando o método reprográ-
que contou com o apoio da AMB foi o missões, Conselho Deliberativo e As- fico da época, o termo-fax. Nessa obra,
chamado Plano Nacional de Saúde, do sembléia de Delegados, ensejando um obrigatória para quem se debruce so-
então Ministro Leonel Miranda; em nos- trabalho que sempre foi muito expres- bre o tema, o grande educador, que não
so entendimento funcionou muito bem, sivo. era médico, identificou os problemas
durante tempo pouco maior que a de Importante marco da atividade da existentes no ensino médico norte-
Goiânia, nos municípios de Nova Fri- Associação Médica Brasileira foi a americano, ressaltando a precarieda-
burgo (RJ), Barbacena (MG) e Mossoró conscientização do Ministério da Edu- de do que era ministrado em grande
(RN). cação, quanto ao rigor necessário para parte de cerca de 250 escolas médi-
avaliação da qualidade do ensino mé- cas então existentes. No trabalho, que
dico e autorização de novas escolas foi apoiado pelo Colégio Americano de
O paciente médicas no país. Se não nos falha a
memória, havia, em 1969, 71 escolas
Cirurgiões e pela Associação de Hos-
pitais Norteamericanos, a seriedade do

deve ter a médicas autorizadas no Brasil, grande


parte das quais instaladas nos últimos
conteúdo foi tal que o número de es-
colas de medicina reduziu-se fortemen-
anos que precederam o início de nos- te, chegando em pouco tempo a cerca
liberdade de sa Presidência. Naquela fase, em que de 50 e poucas. Mesmo meio século
a Associação Médica Brasileira teve as depois, quando do estudo feito na AMB,
escolher o presidências ilustres e competentes de
José Luís Tavares Flores Soares e de
o número de faculdades nos Estados
Unidos era da ordem de uma centena.

seu médico Fernando Megre Veloso, em que esti-


vemos na Secretaria Geral, e durante
Houve três proposições feitas pela
AMB: imediata sustação de autoriza-
nossa Presidência, a Comissão de ções para novas escolas; criação de
com base na Educação Médica da Associação Mé- uma comissão do Ministério da Edu-
dica Brasileira já vinha estudando o cação, para análise desse problema; e
confiança. problema e suas implicações, contan-
do com o saber, a experiência e a de-
instituição de exame de Estado para
autorização ao exercício da Medicina.
dicação de personalidades como Hil- Houve plena receptividade, de parte do
Também quero destacar como im- ton Rocha, Roberto Santos, Horácio Ministro Jarbas Passarinho. A primei-
portante realização de nossas Direto- Kneese de Mello, Mário Rigatto, Fer- ra conclusão foi prontamente acolhi-
rias a aquisição da sede própria da nando Figueira, Guaraciaba Gama, da: havia cerca de 70 ou 71 escolas
entidade, na Rua São Carlos do Pinhal, Osvaldo Cardoso de Mello e outros autorizadas e apenas vieram a ser
em São Paulo, onde está até hoje, colegas. Desse trabalho resultou um aprovadas mais 2 ou 3, cujos proces-
numa localização privilegiada e valori- relatório que, no início de nossa Presi- sos estavam praticamente concluídos.
zada, o que foi feito com financiamen- dência, a Associação Médica Brasilei- Quando encerramos nosso período de
to da Caixa Econômica Federal. ra ofereceu ao Ministro Jarbas Passa- Presidência na Associação Médica
Ressaltamos também o apoio das rinho, que acabava de assumir o Mi- Brasileira, 12 anos depois, existiam
entidades médicas nacionais de nume- nistério da Educação. Como subsídio essas mesmas 73 escolas, salvo algu-
rosos países, filiadas à Associação para esse relatório, oferecemos o tra- ma pequena e irrelevante diferença. A
Médica Mundial, ao nos elegerem por balho de Abraham Flexner; não se ten- segunda sugestão também foi imedia-
aclamação Presidente da Associação do conseguido nas bibliotecas brasilei- tamente aceita; convidados para fazer
Médica Mundial, na Assembléia de ras esse texto, do início do século pas- parte da Comissão sugerida, preferi-
Tóquio, em 1974, enfatizando que de- sado, sobre o ensino médico na Amé- mos manter-nos nos termos do relató-
vemos esse apoio à atuação da Asso- rica do Norte, providenciamos sua ob- rio apresentado, que já traduzia o pen-
ciação Médica Brasileira, o que signifi- tenção no exterior (se não me equivo- samento de nossa entidade; a comis-
ca atuação de todos os colegas de co, foi conseguido no Canadá) e fize- são foi composta pelo Ministério com
nossa entidade nacional, especialmen- mos cópia para os participantes do professores de grande saber, dentre os
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quais alguns já referidos, com produ- confunda o que estamos dizendo com
ção de conclusões bastante coerentes Houve três o pensamento irônico, atribuído a Ber-
em relação ao estudo da AMB, motivan- nard Shaw, de que o conhecimento
do o cuidado que se passou a adotar. proposições geral é caracterizado por não se saber
A terceira proposição, de criação do nada a respeito de tudo, ao passo que
exame de Estado, não foi concretiza- feitas pela o especialista é aquele que sabe tudo
da; o Ministério da Educação identifi- a respeito de nada. Não é isto, pois o
cou como impropriedade, depois de
autorizar e reconhecer um curso minis-
AMB: que se pressupõe é que o profissional
esteja inicialmente preparado para re-
trado, submeter seus graduados a um
exame, lembrando já estarem avalia-
imediata solver grande parte dos casos em que
sua assistência é procurada. Obvia-
dos os médicos pelas faculdades em
que se teriam graduado. Durante o
sustação de mente, até em continuidade, ou seja,
até sem haver intervalo de tempo, o
período crítico, escrevemos vários tex- médico já dotado dessa formação ge-
tos traduzindo a preocupação da AMB autorizações ral, pode encaminhar-se à especializa-
com a qualidade da formação dos mé- ção. O exame de licenciamento para o
dicos. Em um deles, diante de uma es- para novas exercício, a meu ver, deve focalizar a
pécie de competição entre cidades, às suficiência necessária da formação
vezes de pequeno porte, para criação escolas; geral adquirida pelo profissional.
de faculdades de medicina em municí-
pios cujas características não compor-
tavam tudo que deve estar associado
criação de RAS – Apesar de sua grande expo-
sição como dirigente associativo o
ao ensino médico, colocamos o título
“Chafarizes, Fontes Luminosas e Es-
uma comissão senhor nunca assumiu cargo públi-
co eleito ou nomeado.
colas Médicas”. Recebemos cartas de
protesto de pessoas de algumas des-
do Ministério PSJK – Não foram poucos os con-
vites, sempre respeitáveis e até hon-
sas municipalidades por causa desse
artigo, traduzindo inconformismo por da Educação, rosos que tive durante meus manda-
tos e depois deles. Sempre os recusei,
sentirem seus interesses contrariados. por três razões. Primeiro, porque o diri-
para análise gente associativo ou classista repre-
RAS – O Sr. é favorável a um exa- senta associados que são motivados
me de ordem, semelhante ao da desse por diferentes linhas de pensamento,
OAB ? Para todos os médicos ou e até eventualmente vinculados a di-
apenas para a obtenção dos títulos problema; e ferentes correntes políticas, devendo
de especialistas? respeitá-las igualmente e não se colo-
PSJK – Parece-me necessário —
como já concluímos há 40 anos — o
instituição de car a serviço de uma delas; em segun-
do lugar, creio que o dirigente asso-
exame de Estado para licenciamento
ao exercício da profissão médica. Te-
exame de ciativo não deve aproveitar-se da ex-
posição que o cargo lhe dá para con-
nho a convicção de que esse exame
não deve estar voltado para caracteri-
Estado para seguir posições pessoais em atribui-
ções diversas, e até possivelmente
zação de exercício de especialidade e, conflitantes com seu mandato, duran-
sim, para a prática médica geral, pois autorização te o exercício deste; e, no meu caso,
o médico deve ter, solidamente cons- isto é, pessoalmente, porque me sen-
tituída, essa formação básica geral ao exercício tia no dever de não submeter minha
antes de encaminhar-se para especia- família às múltiplas dificuldades e até
lização, se isto vier a desejar. Não se da Medicina. sofrimentos inerentes à mudança do
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local de residência, nem às longas au- às aspirações, às necessidades e ao vidência (IAPB, dos bancários, IAPI, dos
sências que estes cargos habitualmen- saber contemporâneo; ou, mais sinté- industriários, IAPTEC, dos que trabalha-
te exigem. tica e precisamente, as políticas públi- vam em transportes e cargas, IAPFESP,
cas, de modo geral, não me parecem dos empregados em serviços públicos,
RAS – Como o senhor vê a atuação consagrar à saúde a “fatia” do esforço IAPC, dos comerciários e o IAPM, dos
do SUS hoje no Brasil? produtivo nacional que ela merece; e, Marítimos) e um serviço nacional de
PSJK – A idéia do SUS materializou- em função disso, é evidente que gran- atendimento domiciliar a urgências, o
se, sob a inspiração de racionalidade de parte dos casos não tem seu pron- SAMDU. Este sistema, que já era finan-
do uso dos recursos financeiros. Des- to atendimento com a qualidade dese- ciado pela contribuição de 7% sobre a
de o início de nossa atuação, assinalá- jável. Ainda que se consiga muitas ve- massa salarial, tanto dos empregados
vamos ser necessário juntar esses re- zes explicitar o que deve ser oferecido como dos empregadores, passou a re-
cursos, à maneira de um funil que re- à população, é óbvio que, até o momen- ceber 8% de cada parte (no caso dos
ceba correntes líquidas paralelas, ha- to, isto não tem sido equacionado, no bancários, o valor já era de 8%). Os
vendo uma única saída, para que tais sentido do como fazer. Analisando-se recursos eram insuficientes para os
meios financeiros fossem racionalmen- a fundo, é forçoso concluir que um sis- benefícios previdenciais e para assis-
te utilizados, sem que continuasse a tema em que não sejam utilizados para tência à saúde e continuaram insufi-
haver a imensa insuficiência individual o atendimento à saúde, racionalmen- cientes com o aumento que se fez. Era
de cada um deles e, portanto, com te, todos os recursos humanos e ma- visível o objetivo adicional da assistên-
melhor proveito de seu conjunto. Um teriais disponíveis na sociedade, devi- cia médica que já existia: prestar servi-
sistema de assistência à saúde preci- damente qualificados, torna-se vicioso ço aos afastados por doença ou por
sa caracterizar-se pela busca de boa pois, a par da demora e até precarie- acidente (os acidentes do trabalho ti-
qualidade, suficiência dos meios assis- dade dos serviços, multiplicam-se as nham contribuição adicional mas o
tenciais e presteza de atendimento, ações voltadas para o tráfico de in- seguro desses acidentes podia ser fei-
fundamentos estes profundamente fluência, a fim de serem obtidos, como to com empresas privadas). Tal objeti-
correlacionados e até interdependen- privilégios, tanto o direito de prestar vo complementar era o de restituir as
tes. Havia espantosa pulverização de serviços como o de ser beneficiário dos pessoas ao trabalho, o que diminui a
recursos nessa área, às vezes em ór- mesmos. Em tal situação, não se esta- despesa com o benefício concedido
gãos com finalidades originais não es- belecem os necessários vínculos en- durante o afastamento e, ao mesmo
pecíficas em prol da saúde, e outras tre os médicos e seus pacientes, rela- tempo, aumenta a receita da institui-
vezes com superposição de idênticas ção que é o pilar principal do atendi- ção de previdência.
finalidades, praticadas separada e de- mento. Não havendo condições para Quanto aos trabalhadores rurais,
sordenadamente, conduzindo àquela isto, fica fatalmente prejudicada a pos- cerca de três anos depois da Lei Or-
insuficiência de cada uma delas e, ob- sibilidade de bom funcionamento. gânica criou-se o FUNRURAL, preven-
viamente, a desperdícios do que já era do-se que os produtores rurais contri-
pouco. Nesse quadro, presenciava-se RAS – O que significa a junção de buíssem com 1% da produção. O elen-
a peregrinação fatigante e frequente- todos os recursos num grande fu- co de benefícios previstos era muito
mente infrutífera dos pacientes e de nil? grande, abrangendo dentre eles assis-
seus responsáveis, sem que pudessem PSJK – A Lei Orgânica da Previ- tência médica. A evidência da pouca
resolver seus problemas de saúde. Pelo dência, de 1960, introduziu pela pri- produtividade do setor era a existên-
que tenho observado, não são percep- meira vez a esperança de assistência cia de quase dois terços da população
tíveis na atuação do SUS os sucessos médica gratuita aos filiados do siste- vivendo na área rural, o que correspon-
desejados, na busca contínua de qua- ma previdencial, com a superficial apa- dia a uma baixa produtividade e insu-
lidade, apesar de haver, dentro das rência de ser um direito; mas o fez “na ficiência indiscutível de 1% dessa pro-
condições existentes, esforços com medida do possível” e sem criar recur- dução. Além disso, o Brasil tinha cerca
essa intenção; por outro lado, é notó- sos para que isto acontecesse. Havia de 4 milhões de propriedades rurais, o
ria a carência de recursos que possam na área federal, além do IPASE dos ser- que tornava impraticável o recolhimen-
proporcionar serviços correspondentes vidores federais, seis institutos da Pre- to da cotização fixada e, na proporção
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em que se conseguisse receber, o va- ções de caridade, filantropia ou assis- tos da física, da química, da biologia
lor cotizado seria insuficiente até para tência social, gratuitamente, e por mé- molecular, da genética e da informáti-
as despesas de arrecadação e manu- dicos que atendiam a solicitações, fun- ca. Nascem continuamente as novas
tenção do FUNRURAL. Duas providên- damentados na solidariedade hu- tecnologias, que exigem mais recursos,
cias amenizaram o problema: a cotiza- mana; havia, ainda, os que custeavam tanto para investimentos como para a
ção passou a ser de 2% sobre a pro- a própria assistência enquanto dispu- consequente ampliação de custeios.
dução e o recolhimento passou a ser nham de poupança ou rendimento de Se o gestor não puder acompanhar o
de responsabilidade do comprador ru- seu trabalho. A essa época, preconi- que se cria a partir da ciência e da tec-
ral. Este último aspecto tinha grande závamos a união de todos esses recur- nologia, não saberá como participar de
relevância, porque o número de princi- sos — qualquer deles insuficiente indi- decisão. O gestor ser médico é impor-
pais compradores da maior parte da vidualmente — para um sistema unifi- tante, mas não imprescindível; se não
produção rural era da ordem de 40 mil cado, repetindo exaustivamente a com- for médico, deverá conhecer as neces-
(cem vezes menor que o número de paração com o funil, a cuja boca che- sidades e a conduta dos profissionais
propriedades rurais) e sua localização gassem esses recursos paralelos, uti- e ter seu indispensável apoio para
mais concentrada, reduzindo muito os lizando-se a saída única para o custeio compreender as opções, a fim de ser
gastos na arrecadação. assistencial. Àquela época iniciavam- bem sucedido.
A par do sistema previdencial do se os procedimentos visando a unifi-
âmbito nacional, existia a previdência cações, como ocorreu com os IAPs, e RAS – O problema da saúde no Bra-
dos Estados, que geralmente não tinha os procedimentos para assegurar a sil é da falta de recursos ou da falta
atribuições médico-assistenciais. Ha- especificidade de recursos para assis- de gestão?
via no entanto, como ainda há, o Mi- tência à saúde, distinguindo-se das PSJK – A quantidade de recursos
nistério da Saúde, as Secretarias de pensões, aposentadorias e outros be- deve representar o que o país pode e
Saúde dos Estados e muitas vezes dos nefícios previdenciais. Sempre houve, deve destinar para o setor. Pressupõe-
municípios, ou órgãos com atribuições no entanto, a barreira do “quanto pos- se que o gestor sempre utilize com
assistenciais nas unidades federativas. sível”, o que, a nosso ver, caracteriza- rendimento máximo esses recursos.
Acrescentavam-se os serviços de as- va, desde a Lei Orgânica da Previdên- Nesse sentido, creio que o país está
sistência médica existentes em orga- cia Social, de 1960, a adoção de sis- carente de ambos.
nizações para as quais havia contribui- tematização que negava prioridade à
ção compulsória, muitas vezes presta- saúde. Por outras palavras, para a pres-
doras de assistência médica, como era tação de assistência à saúde destina-
o caso do SESI e assemelhados. Sindi- vam-se sobras; era isto que correspon- Não se
catos e outras organizações corpora- dia ao “quanto possível”.
tivas, tanto de empregadores como de estabelecem os
empregados, em muitos locais do país, RAS – Mudando de assunto, quais
ofereciam assistência médica. Certas as competências que o administra- vínculos entre
empresas faziam o mesmo, às vezes dor de saúde deve ter no Brasil de
com grande significação financeira, hoje? os médicos e
como já era o caso da Petrobrás, Ban- PSJK – Creio que, dentre as várias
co de Brasil e outras empresas públi- competências necessárias, deve-se seus
cas, mas era também o de muitas em- acrescentar hoje a necessidade de
presas privadas. Já havia entidades atualização tecnológica constante, pacientes, que
que ofereciam sistema de mutualismo para o gestor poder participar compe-
e podemos exemplificar com o das tentemente da tomada de decisões é o pilar
Classes Laboriosas, o Centro Trasmon- sobre alternativas que se ofereçam aos
tano e outras. Muitas famílias e pes- investimentos e desenvolvimento so- principal do
soas recorriam à assistência prestada cial. A medicina e a assistência à saú-
por hospitais universitários, por institui- de beneficiam-se com os conhecimen- atendimento.
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RAS – E com relação à educação? sino e avanço educacional no país. Em para progressividade da melhora, pou-
Como estamos em relação ao sis- primeiro lugar, é necessário um esfor- co se conseguirá e haverá desalento.
tema de ensino? ço no sentido de melhorar as condi- A boa orientação recomenda adoção
PSJK – A educação tudo permeia. É ções da formação de professores, tan- de projeções que proporcionem contí-
a base para a evolução e o desenvolvi- to quantitativamente como, sobretudo, nuo progresso e não o apregoamento
mento individual, familial, das comunida- qualitativamente. Parece incrível, mas imediato de data para êxito total, do tipo
des e das nações. A formação de pes- ainda existem professores leigos no contido na promessa “saúde para to-
soas conscientes, competentes, hábeis Brasil. Em grande parte, a formação de dos no ano 2000”, que se proclamou
e dedicadas, responsáveis por seus atos, professores tem deixado muito a de- há mais de 30 anos e sem que se te-
é essencial não só para a evolução das sejar. O segundo elemento que consi- nha sequer vislumbrado, até 2009, se
ciências, possibilitando novas descober- dero importante, nas presentes circuns- e quando haverá resultados que este-
tas e invenções, mas também, para sua tâncias sociais, é a presença da crian- jam próximos desse ideal. As metas
multiplicação, ensino e divulgação. Quan- ça e do jovem em tempo integral na devem ser reais e exequíveis e assim
to mais educadas as pessoas, haverá escola. Isso é absolutamente desejá- apregoadas, sem criar ilusões não fun-
melhor aprendizagem, mais preparação vel, porém sabemos que, com os limi- damentadas, sem enganar.
para o trabalho, mais saúde, menos des- tes orçamentários dos vários níveis de
vios de conduta, mais cultura e melhor governo, ainda não é possível atender RAS – Deixe uma mensagem final
convívio social. Devido a sua relevância, a todos. E mais: ainda não existem para os nossos leitores.
o ensino é regulamentado obedecendo equipamentos e espaços físicos sufi- PSJK – Louis Portes, médico fran-
a regras sociais e critérios estabelecidos cientes para isso. Em terceiro lugar, é cês, disse certa vez que o ato médico
pela ciência pedagógica, que definem os necessário haver a aproximação da é o encontro entre uma confiança (a
vários segmentos educacionais (infantil, escola com as famílias, incentivar a do paciente) e uma consciência (a do
ensino básico, ensino médio, formação presença dos pais no ambiente esco- médico). Em nosso entender, isto re-
técnica, tecnológica e superior, especia- lar, com a apresentação de temas, pa- sume a essência da assistência médi-
lização e outros passos da pós-gradua- lestras e atualizações. Educação deve ca. O atendimento não pode estar me-
ção). O ensino não se limita às regras ir além do aspecto ensino e de apenas diado pelo tráfico de influências que se
preestabelecidas, surgindo varias moda- valorizar a escolarização e o aprendi- estabelecem no credenciamento ou
lidades de ensino livre e complementar. zado das disciplinas ou matérias minis- assalariamento do médico e, sim, pela
Com o advento da Internet, hoje obser- tradas, mas propiciar formação para esperança e confiança do paciente que
vamos a popularização da educação a comportamento ético, contribuir para busca os cuidados profissionais e, em
distancia e possibilidade de se “frequen- a formação do caráter e da personali- resposta, pela consciência e compe-
tar” cursos de atualização ou de espe- dade. Corolário inerente ao que está tência do médico. Fugir disto sempre
cialização até no exterior, sem sair de dito é a gênese de melhores condições foi fonte de problemas para o bom fun-
casa. O importante é identificar qualida- morais e materiais para o professor e cionamento de qualquer sistema de
de e saber escolher. todo o pessoal educacional. saúde, pelo obscurecimento das pes-
Com base em um planejamento soas do paciente e do médico, entes
RAS – O que poderia ser feito para competente, devemos encarar a reali- humanos, e perda de sua identidade e
melhorar o ensino no país? dade de que, em educação, os resulta- da valorização da relação entre ambos;
PSJK – Dar-lhe precedência nas dos são sempre progressivos e nunca o sistema fica com um vício de origem
políticas públicas e transformar edu- plenamente imediatos. Entendo que que o prejudica, em qualquer estágio
cação em prioridade nacional efetiva- deva ser dada toda ênfase ao ensino de desenvolvimento em que ele se
mente, mas temos observado que isso básico e à pré-escola, ensejando ple- encontre, pois a ação médico-assisten-
ocorre com mais frequência nos dis- na escolarização às crianças e aos jo- cial não pode estar afastada de suas
cursos das campanhas eleitorais do vens. A melhora da pré-escola e do bases éticas e tal despersonalização
que nos governos. Além disso, quero ensino básico propiciará a do ensino não é compatível com os princípios
destacar três elementos fundamentais superior. Se se pretender melhorar tudo morais inerentes que devem estar pre-
para a melhoria das condições de en- do dia para a noite, sem planejamento sentes na Medicina.
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