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Para uma leitura sociológica e política da "Questão coimbrã"

Autor(es): Homem, Amadeu Carvalho


Publicado por: Universidade Católica Portuguesa, Departamento de Letras
URL URI:http://hdl.handle.net/10316.2/23919
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MÁTHESIS 4 1995 89-102

PARA UMA LEITURA SOCIOLÓGICA


E POLÍTICA DA "QUESTÃO COIMBRÃ"

AMADEU CARVALHO HOMEM

Tem sido dito que a historiografia guarda a memória das grandezas e


misérias humanas. E acrescenta-se a isto a esperança da fidelidade à
reconstituição do passado. Mas desde logo se nos coloca o problema de
saber se a reconstituição do passado humano, operada com base nos
vestígios, nos fragmentos, nos testemunhos e nos documentos que foram
transferidos desse passado para o nosso presente não afectará gravemente
essa esperança de fidelidade.
Os patriarcas do positivismo histórico tentaram resolver a questão
através da proeminência atribuída ao testemunho escrito. Fizeram da
historiografia uma heurística de textos autênticos e desenvolveram técnicas
hermenêuticas que deveriam salvaguardar, em sua opinião, o rigor, a
notação exacta e a submissão narrativa ao que realmente teria acontecido.
É inegável que o positivismo retirou o conhecimento histórico das águas
paludosas da efabulação imaginária, e bem assim dos temores reverenciais
que assaltavam o espírito daqueles cronistas que afeiçoavam os factos às
simpatias e interesses dos senhores que serviam. O criticismo positivista re-
velar-se-á manifestamente útil para conferir a solidez da verosimilhança a
alguns dos meios de expressão historiográfica, nomeadamente à objectivi-
dade das conclusões relativas a certos domínios da história económica e da
história política. Porém, a sua impotência e inadequação revelar-se-ão tanto
mais claramente quanto mais acentuado for o nosso avanço para os terri-
tórios da história cultural e mental. Deveremos até dizer, em abono da ver-
dade, que estão hoje postas em causa estas especializações da historiografia.
A menos que nos desejemos claustrar em casulos microscópicos de in-
vestigação hiper-especializada, não subsistem dúvidas que os factos históri-
cos realmente significativos para o destino dos homens e das civilizações
comportam simultâneamente dimensões económicas, políticas e culturais.
Por outro lado, é provável que um positivista dogmático e estreito,
semelhante a muitos dos que se geraram ao calor do falso cientificismo do
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século XIX, nos viesse garantir que jamais o testemunho literário poderia
servir os esforços de sintetização histórica.
Alegaria ele que os literatos, cultivando provavelmente as amenidades
do subjectivismo artístico, não disporiam de creditação bastante para a
impassibilidade judicativa, tão do agrado dos historiadores. Se esta argu-
mentação fosse ouvida, um historiador dos nossos dias, razoavelmente
actualizado, não poderia deixar de lhe fazer notar que tal raciocínio
assentava num mal-entendido. Nunca se pediu a um escritor ou a um poeta
que escrevesse o seu romance ou produzisse a sua poesia com o mesmo
aparato probatório e com o mesmo rigor metodológico com que um
historiador redige a sua obra. Contudo, mal avisado andará qualquer
historiador que não encare o literato como um dos mais qualificados
avaliadores do histórico e o texto literário como um dos mais significativos
testemunhos de uma época. Esta evidência reforça a sua validade no interior
das chamadas "sociedades de opinião", nascidas do universo de transfor-
mações que marcaram a Época Contemporânea. As revoluções liberais que
triunfaram na Europa segundo o modelo da revolução francesa de 1789,
fazendo aluir os alicerces do autoritarismo aristocrático e da concentração
de poderes, libertaram o súbdito de antanho para o livre exame das
realidades políticas e da organização social. A um regime ancorado num
complexo de crenças, paternalmente impostas a partir de pontificados
espirituais e de chefias temporais indiscutíveis, sucedeu um outro, esteiado
no individualismo da cidadania, na diversidade dos juízos pessoais e na
questionação de valores outrora imutáveis. O homem liberal não deseja
apenas que a competição económica decorra num mercado liberto das
corveias e das imposições senhoriais do Antigo Regime. Reivindica,
também, que o "mercado das opiniões" funcione sem embaraços e que as
soluções sócio-políticas se imponham a partir de alargados consensos
maioritários. Assim, à sociologia da obediência sucedeu a sociologia do
contrato opinativo. Serão estes, em nossa opinião, os dois vectores que,
entre nós, terçam armas entre 1828 e 1834, respectivamente representados
pelo absolutismo monárquico de um José Agostinho de Macedo e de um
Fr. Fortunato de S. Boaventura e pelos liberalismos divergentes de um
Alexandre Herculano e de um Almeida Garrett. Por que meios se forma a
opinião no decurso do século XIX? Ela forma-se, obviamente, através de
todas as modalidades de convívio dos diversos círculos sociais. Mas
formar-se-á também através do periódico e do livro, meios tanto ou mais
importantes do que a sociabilidade convencional para os afortunados
burgueses possuidores de um mínimo de cultura mental. Exclui-se aqui
deliberadamente o elemento popular, já que este, a braços com elevadíssi-
mos índices de analfabetismo, se limitou a tomar como boa a opinião
ilustrada dos que o conseguiram arregimentar. Assim, os literatos foram,
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inquestionavelmente, os formadores da opinião pública e os expoentes da


única consciência social verdadeiramente operante.
É certo que não foi sem crédito de tempo e sem remoínhos de polémica
que muitos literatos viriam a convencer-se do papel que eles próprios
desempenhavam no tablado da ribalta social e política.
A famosa "Questão Coimbrã", travada por Antero de Quental e
Teófilo Braga contra os valores da tradição, concretizados na escola es-
tética dos seguidores de António Feliciano de Castilho, constitui um pri-
vilegiado momento de observação, para que nos possamos aperceber do
teor documental- histórico, portanto - das produções literárias. A refrega
estalou pelos fins de 1865. Por essa altura já se faziam sentir os efeitos
nocivos da política económica levada a cabo pelo Fontismo. A solvência
dos empréstimos que os diversos governos regeneradores entenderam
contraír no estrangeiro, para o financiamento da "política de melhoramen-
tos materiais", obrigou ao aumento progressivo da carga fiscal. Era pre-
visível, nestas circunstâncias, que o interregno regenerador, inicialmente
pacífico e consensual, viesse a ser posto em causa por vozes dissidentes,
defensoras de outras soluções para a disciplina social do país. Como é
sabido, as invectivas de Antero e Teófilo contra Feliciano de Castilho foram
provocadas pelo facto de por este lhes ter sido contestada a obscuridade
estilística das suas primeiras produções poéticas. Com efeito, o Poema da
Mocidade, de Manuel Pinheiro Chagas, apresentava em posfácio uma
"Carta do Ilmo e Exmo Sr. António Feliciano de Castilho ao Editor", na qual
Castilho gloriava o autor, emparceirando-o elogiosamente com Mendes
Leal, Tomás Ribeiro e Pereira da Cunha, e deprimia as "plásticas, estéticas,
filosofias e transcendências" em que mergulhavam os "engenhos juvenis"
dos dois açorianos. Tal provocação, aliás relativamente benévola, limitava-
-se a dar continuidade a outras objecções, anteriormente expendidas na
impressa do tempo por Manuel Pinheiro Chagas, Camilo Castelo Branco e
pelo próprio Feliciano de Castilho. Nelas se interpelava, sobretudo, o
prólogo filosófico com que abria o volume de versos intitulado Tempesta-
des Sonoras, de Teófilo Braga, e o hegelianismo que Antero de Quental
transportara para as suas Odes Modernas. Uma leitura menos atenta das
peças iniciais que deflagraram a polémica poderá suscitar a ideia de que nos
encontraríamos perante um conflito eminentemente intra-literário. Contu-
do, a circunstanciada ponderação do significado global deste confronto
obrigar-nos-á a reconhecer que outras implicações nele se desvelam. Não
foi necessário que Antero redigisse as Odes Modernas para que os vultos
intelectuais coevos lhe reconhecessem a heterodoxia de atitudes e a
desmesura das intervenções. Fora ele quem protagonizara, em 1862, a
retumbante evacuação da Sala dos Capelos da Universidade de Coimbra,
como forma visível de protesto da Sociedade do Raio, agremiação secreta
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que também fundara, contra o rigor disciplinar do Reitor Basílio Alberto de


Sousa Pinto. Fora ele, também, o redactor do "Manifesto dos estudantes da
Universidade de Coimbra à opinião ilustrada do país", através do qual
justificava o acto de rebelião académica e pedia para os amotinados "um
lugar no banquete das garantias liberais". Fora ele quem chefiara, nos fins
de 1863 e inícios de 1864, a contestação estudantil à transferência de
efectivos militares para a cidade de Coimbra, que o governo ordenara para
prevenir a ampliação de distúrbios universitários, provocados pela recusa
oficial de um perdão de exames. Fora ainda ele quem, na imediata sucessão
destes acontecimentos, convencera uma parte da academia a retirar para a
cidade do Porto, fazendo desse êxodo o símbolo de um protesto contra a
ameaça das forças militares. Teófilo Braga não alcançara tamanha notorie-
dade. Chegara a Coimbra com o aperto da magra mesada que seu pai lhe
estabelecera e tivera de angariar, pelos seus próprios meios, outros recursos
complementares de subsistência. Vivia um tanto distanciado das movimen-
tações académicas, no recolhimento de estudioso que lhe era imposto pela
escassez económica e pelo incoercível desejo de se afirmar. Embora tivesse
sido um dos signatários do manifesto estudantil elaborado por Antero, não
integrara a Sociedade do Raio e negara-se a acompanhar a fracção estudan-
til que demandara o Porto, por alturas do caso aberto pelo pedido de perdão
de acto. É esta mais discreta afirmação nos meandros do movimento
académico de reivindicação que explica, em nosso entender, a menor
severidade política com que vai ser julgado o seu envolvimento na "Questão
Coimbrã". Se compararmos o Bom senso e bom gosto, texto redigido sob
a forma de carta a Feliciano de Castilho com que Antero inaugura a querela,
com as Teocracias literárias, folheto com que Teófilo imediatamente
secundou o desforço anteriano, verificaremos que as razões teofilianas se
exprimem por formas bem mais contundentes, visando o desmantelamento
completo da figura moral de Castilho. Embora incisivo, o Bom senso e bom
gosto prima por considerações mais programáticas, por análises mais
vincadamente intelectuais e menos acentuadamente personalizadas. Aber-
to o combate, António Feliciano de Castilho incitou os escritores do seu
círculo doméstico e da sua privança à cruzada punitiva com que pretendia
restaurar o seu abalado prestígio. Acorreram à chamada alguns dos seus
mais indefectíveis admiradores, no número dos quais se contaram Manuel
Pinheiro Chagas, como seria de esperar, e ainda Manuel Roussado, Alberto
Osório de Vasconcelos, Eduardo Augusto Salgado, Freitas Oliveira, Brito
Aranha, Carlos Borges e Pedro Dinis, entre outros. Também o conselheiro
José Feliciano de Castilho Barreto e Noronha e Júlio de Castilho, respec-
tivamente irmão e filho de António Feliciano, se dispuseram a salvar os
ofendidos pergaminhos de fanulia. Choveram sobre os dois heresiarcas
conimbricenses uma infinidade de vitupérios, quer redigidos por esta frente
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concertada de resgate, quer oriundos de personalidades isoladas que, por


voluntária opção, entenderam igualmente dever pronunciar-se. No entanto,
ressalvadas as críticas exclusivamente literárias, ou fundamentalmente
estéticas, ou puramente filosóficas, que se distribuiram equitativamente por
ambos, foi sobretudo Antero a vítima das acusações que lhe assacavam
pretensos desvios de ortodoxia político-social. Neste sentido, as Odes
Modernas irão ser especialmente visadas. Isto em nada nos deverá sur-
preender, visto que, para além da fama de insubmissão que as suas
anteriores atitudes comprovavam, esta obra inseria uma "Nota sobre a
missão revolucionária da poesia". O autor apresentava a aspiração revolu-
cionária dos povos como a natural consequência da evolução espiritual
desencadeada a partir do grande evento francês de 1789. Conferir à poesia,
com esta explicitude e firmeza, uma função subversora dos valores domi-
nantes era contrariar o intimismo subjectivo que preponderava em meios
literários ultra-românticos e neo-clássicos, e dissentir, implicitamente, do
pontificado de Castilho. A imprensa periódica aproveitou o ensejo para
comentar a novidade. Assim, Alberto Sampaio, ao anunciar na Gazeta de
Portugal o aparecimento do livro, sublinhava o distanciamento desses
versos dos cânones em voga e inquiria sobre se o conteúdo era concorde
com a especificidade da arte. Por sua vez, um redactor anónimo do jornal
O Comércio do Porto, num artigo intitulado "Arte e Democracia", en-
carreirava as seguintes considerações: "[ ... ] o que é agora certo é que a
democracia exaltada já deu a Portugal um livro de poesias e que o espírito
revolucionário deste último Ocidente possui enfim um tomo de cantos
patrióticos para opor à poesia conservadora e à musa constitucional. São as
Odes Modema". Mais adiante o publicista registava "o entusiasmo verti-
ginoso que reina em todo o livro, e o alvoroço frenético com que o poeta se
atira a cantar a demolição de todos os elementos conservadores do corpo
social". Este jacobinismo de Antero não foi ignorado por Castilho. O nosso
"árcade póstumo", procurando aliciar para a sua causa os melhores trunfos,
manteve com o já consagrado Camilo Castelo Branco uma longa relação
epistolar, pressionando-o a intervir na contenda. Pressente-se, através
dessa correspondência, que o escritor de Ceide foi obrigado a sacrificar-lhe
umas quantas renitências de juízo. Eram muito cordatas as relações pes-
soais entre Camilo e Antero de Quental. Este contemplara-o, de resto, com
um exemplar das Odes Modernas, devidamente autografado e dedicado.
Somemos a isto a vera amizade que ligava Antero a António de Azevedo
Castelo Branco, sobrinho de Camilo, através do qual o escritor de Ceide
conhecera Quental, e encontramos justificadas as reservas tácitas a que
aludimos. Uma carta de António Feliciano de Castilho a Camilo, datada de
25 de Novembro de 1865, revela à saciedade que a implicação social
adstrita à contenda fora imediatamente percepcionada pelo nosso patriarca
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literário. Através dela, Castilho tenta quebrar a inércia de Camilo Castelo


Branco, apelando para o seguinte argumento: "De feito existe já, como V.
Exa não pode ignorar, por muito retirado e ocupado que viva, uma escola
de gosto depravado, de insurreição permanente, e acintosa contra toda a boa
razão, todos os ditames do gosto, todos os modelos consagrados, e todas as
convenções recebidas e confirmadas pelo consenso universal". Estava,
assim, implantado na arena das letras um estandarte de cisão que acrescen-
tava ao confronto dos juízos de gosto os aditamentos emanados do cotejo
dos juízos de senso político. Apertado pelas insistências de António
Feliciano de Castilho, Camilo acabaria por redigir as suas Vaidades
irritadas e irritantes. Também esta magnífica prosa camiliana pretendeu
castigar outras impertinências de Antero de Quental, para além daquelas
que pudessem arrolar-se na tábua dos ditames da estética literária. Aí se
lastima que o autor das Odes Modernas tenha traçado "o panegírico de
Voltaire, de J. Jacques, de Diderot como fomentadores da Revolução" e que
tenha acendido "todas as lâmpadas em volta destes ídolos para que se não
vejam as cabeças de Luís XVI e Maria Antonieta, e as carretas dos
padecentes que passam".
Não deveremos pensar que as tensões trazidas à supuração no decurso
do pleito se circunscrevem ao mundo das preferências ou afinidades
subjectivas dos contendores. Antero de Quental já colocara a questão no
terreno da mais decantada objectividade, ao defender que a poesia era "a
modema voz da revolução". Este ponto de partida, deslocando o eixo da
polémica, facultava aos oponentes a abertura de um inquérito sobre a
natureza, significado e alcance da literatura. Disso se apercebeu, com a
maior clarividência, José Feliciano de Castilho Barreto e Noronha, irmão
de António Feliciano, que, numa das cartas dirigidas em fins de Dezembro
de 1865 ao Correio Mercantil do Rio de Janeiro, ponderava solenemente:
"Esta questão não é somente um debate entre a luz e as trevas, entre o
verdadeiro e o falso; é também um pleito, que vai encaminhar o futuro das
nossas letras por uma vereda de progresso, ou por um labirinto de incon-
veniências religiosas, sociais, literárias e poéticas". Com efeito, o desen-
volvimento da polémica permitirá distinguir claramente duas orientações:
a orientação maioritária, favorável ao círculo lisbonense, que continua a
conferir à literatura um estatuto estético e categorial descomprometido,
tanto quanto possível, dos anseios de reorganização social, e uma orien-
tação minoritária, identificada com a causa coimbrã, que pretende enca-
minhar a literatura para uma estética de intervenção, servida por novas
categorias ajustadas à apresentação e defesa de alternativas sócio-políticas.
Um dos mais estrénuos defensores de uma literatura, sobretudo de uma
poética, exclusivamente confinada aos cuidados do impressionismo lírico,
do devaneio emocional e da passionalidade subjectiva, medularmente di-
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vorciada, portanto, da confessionalidade ou da militância políticas, foi


Manuel Pinheiro Chagas. Quase ao mesmo tempo em que José Feliciano de
Castilho divulgava no Correio Mercantil, do Rio de Janeiro, o manifesto
maniqueu a que já aludimos, Pinheiro Chagas aproveitava as colunas do
Jornal do Comércio para, a pretexto de referências feitas ao livro Solidões,
de Ernesto Pinto de Almeida, derrancar vigorosamente o sestro filosofante
de certa "poesia social". Dizia, a este propósito: "A filosofia hegeliana,
ligando-se em monstruoso himeneu com a poesia, deu à luz um aborto, que
se chama simbolismo ou coisa assim, que nos anda impressionando com as
suas produções ermas de senso comum, e onde o sentimento, o frescor, o
lirismo e a paixão cedem o passo a umas rêvasseries filosóficas, que nem
Édipo, nem Hegel, nem Satanás seriam capazes de entender. A poesia, que
traduz simplesmente os íntimos afectos, os encantos da natureza, as
paisagens inundadas de luz, as almas inundadas de amor, é considerada
como uma burguesa parva, que não percebe a alta missão que tem a cumprir.
Apolo emancipou-se, fez-se leitor, e não sei mesmo se cabo da polícia. A
poesia vai dando em cantar as eleições municipais, e os impostos indirectos.
Esta formosa dona, que estávamos acostumados a ver sentada nos frague-
dos a devanear saudades, ou a cismar uns amores, está sendo um virago de
formas agalegadas, uma transição do anjo para o caporal, segundo a bela
frase de uma poesia francesa do Sr. Monteiro Teixeira. Isto é o que se chama
poesia social: tem por característica mais pronunciada um misto inex-
plicável de trivialismo e ênfase". E, depois de ridicularizar algumas
expressões contidas nas Odes Modernas de Antero, Manuel Pinheiro
Chagas sentenciava: "Quando a poesia entra nestas regiões abstractas, claro
está que temos a arte em completa decadência". Será à sombra de uma
perfeita identificação com esta leitura da arte poética que Eduardo Augusto
Salgado, um dos peões do exército castilhiano, qualificará as Odes como
"uma literatura-bombarda que enfada".
Parece-nos possível sustentar que as perspectivas conservadoras faziam
vencimento no panorama literário do tempo. Bastará comparar o prestígio
consolidado da maior parte dos vultos que acorreram ao chamamento de
António Feliciano de Castilho com a medíocre ou quase nula notoriedade
dos que se bateram na estacada de Teófilo Braga e Antero de Quental. Entre
estes, nem sempre foi possível salvaguardar a dignidade do debate e a altura
das razões. A intervenção de Elmano da Cunha, traduzida através de uma
Carta, saldou-se num ataque tão descabelado e excessivo a Feliciano de
Castilho que Antero se viu obrigado a demarcar-se, repudiando o seu
arrazoado. Foi sobretudo no âmbito de tertúlias académicas, identificadas
com um difuso sentimento jacobino, que vicejaram as solidariedades para
com os recalcitrantes conimbricenses. Em 1 de Dezembro de 1865 surgiu
o primeiro número da Revista de Coimbra, logo rotulada por Castilho como
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"um periódico arquipetisco" que forneceria "matéria para uma risota de


vinte anos", a qual foi considerada pelos lisboetas como o órgão dos
"mafomas" de Coimbra. Aí escreveram Teófilo Braga, Guimarães Fonse-
ca, Álvaro do Carvalhal, João Penha e Luís Jardim. As seduções políticas
do radicalismo trouxeram à liça dois dos redactores do jornal VozAcadémi-
ca, que se fizera notar pelo patrocínio concedido ao Congresso estudantil
de Liege. Falamos de Luciano Cordeiro e do açoriano Rui de Porto-Carrero.
O Congresso de Liege aproveitou a abertura social com que Napoleão III
pretendera aliciar as massas populares para o regime imperial instalado em
França a partir de 1852. Após a fase autoritária e cesarista do Segundo
Império francês, a vontade napoleónica orientou-se para a instauração de
um modelo político de liberdade condicionada, no qual as iniciativas
grupais poderiam ser admitidas, dentro dos limites dos mecanismos estatais
de homologação e vigilância. Os estudantes franceses promotores do
Congresso davam mostras de fidelidade ao idealismo socialista que im-
pregnara a revolução de 1848. Assim, imaginaram poder lançar, a partir de
Liege, os fundamentos de um movimento internacionalista estudantil que
consolidasse os laços de fraternidade da juventude estudiosa dos países
convocados. Luciano Cordeiro, na sua qualidade de director da Voz
Académica, recebeu um ofício explicativo de uma comissão local de
estudantes de Bordéus, que se apressou a divulgar na Gazeta de Portugal,
por se encontrar suspensa a publicação do seu jornal. As autoridades
imperiais não primaram pela complacência. Victor Duruy, ministro da
instrução, que granjeara uma fama bem funesta pelo rigor com que jugulara
a divulgação de ideias consideradas subversivas, deliberou punir os estu-
dantes franceses que usaram da palavra no Congresso de Liege, vedando-
-lhes a inscrição em todas as academias do país. O que nos importa realçar
é que uns quantos argumentadores pró-Castilho irão apresentar a dissidên-
cia de Coimbra como uma emanação deletéria deste espírito revolu-
cionário. Um dos filhos de António Feliciano de Castilho, Júlio de Castilho,
atacando a reivindicação anteriana de independência espiritual e de sub-
tracção ao princípio da autoridade, escreverá, numa objurgatória intitulada
O Senhor António Feliciano de Castilho e o Senhor Antero de Quental, esta
censura minimizadora: "Que bela figura faria o Sr. Quental no congresso
de Liege". O mesmo se pode encontrar numa das cartas escritas por José
Feliciano de Castilho ao Correio Mercantil do Rio de Janeiro. Nela procura
o irmão de António Feliciano demonstrar que Antero incorrera no crime de
deicídio, inerente à pregação de um pretenso ateísmo social. Inquire o autor:
"Será esta a doutrina da escola coimbrã ? Terá decretado a demissão de
Deus? Imitará o congresso dos rapazes em Liege ?". Foijá depois de Antero
de Quental ter publicitado a segunda peça com que interveio neste diferen-
do, peça subordinada ao título A dignidade das letras e as literaturas
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oficiais, que Ramalho Ortigão dará aos prelos o folheto Literatura de hoje.
Se bem ajuizamos, foi com o manifesto de Ramalho que a contenda ganhou
a sua mais acabada nitidez no plano das discrepâncias político-sociais. As
suas palavras irritaram profundamente os dois grupos. Antero sentiu-se
ofendido com a acusação de que os encómios tributados no seu segundo
texto ao drama Camões, de António Feliciano de Castilho, teriam sido
oriundos de uma reacção secundária de temor covarde. E como Ramalho se
negasse a apresentar-lhe as satisfações exigidas, acabou por procurar
reparações no campo da honra. Sempre zombeteiro, Camilo Castelo
Branco informava Castilho, em fins de Janeiro de 1866, referindo o
culminar da desavença: "Creio que se picarão a florete". O combate, de que
Antero saíu vitorioso, através de uma cutilada que Ramalho não pôde
aparar, aconteceu nas Arcas de Água, nos arredores do Porto. Mas a
Literatura de hoje também increpava duramente António Feliciano de
Castilho, considerando que este delinquira "perante o tribunal da equidade,
da razão e da honra literária", ao advogar na sua carta-posfácio, estampada
no Poema da Mocidade, que o ministro do Reino poderia nomear interina-
mente Manuel Pinheiro Chagas para a cadeira de Literatura Contem-
porânea do Curso Superior de Letras. Revertamos, porém, ao ponto que
mais nos interessa. O folheto de Ramalho constitui a superlativa defesa do
tradicionalismo político e da estabilidade social. Empunhando estes valo-
res, o futuro autor d' As Farpas procurará demolir, pedra a pedra, o bastião
radical em que Antero se entrincheirara. Para tal, Ramalho Ortigão tentará
definir, em meia dúzia de períodos concisos, a substância das concepções
anterianas: "O jovem académico convida os povos à revolta, afiançando-
-nos que vivemos todos na Revolução como os apóstolos viviam em Deus,
in eo vivimus et sumus. Qual é o grito desta revolta? Guerra ao trono, onde
só pode sentar-se um lobo e um tirano! Guerra ao altar, onde é preciso
derribar a cruz, despedaçar as santas imagens e beber o vinho da orgia
pelos vasos sagrados! Morte ao clero! Ódio eterno aos ricos, que represen-
tam a infâmia! Estas ideias constituem o espírito do livro do Sr. Antero de
Quental". Segue-se depois, em discurso cruzado, a contraposição entre as
excelências liberais das instituições pátrias e as soturnas violências da
Montanha revolucionária francesa: " [... ] A bandeira que o Sr. Quental vem
hastear com as suas mãozinhas tenras no solo do país mais livre e mais
liberal do mundo, é a mesma que o domínio do terror arvorou em França,
entre duzentos cadafalsos, em 1793". Além disto, em significativa sintonia
com os parentes de Castilho, Ramalho Ortigão ridiculariza o Congresso de
Liege, indo ao ponto de justificar a repressão oficial sobre os estudantes
oradores: "Há dias, seis estudantes do Quartier-Latin, enfastiados da última
canção de Mne. Théréza, da última ceia e da última polca, pegaram em si
e passaram-se do Mabille para o congresso de Liege, célebre reunião de
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sábios incipientes, com os quais Vítor Hugo por coisa nenhuma do mundo
se quis acamaradar, e a cujo grémio muito estranhei que o Sr. Antero de
Quental não levasse a luz do seu engenho empanada pela desconsideração
da pátria. [ ... ] Os seis estudantes de Paris disseram em prosa viloa exacta-
mente o mesmo que o Sr. Antero de Quental nos está dizendo em versos
maus. Vejamos agora como em Paris, que é uma terra onde se pensa, se
entendeu e apreciou a obra dos universitários. A imprensa deixou a infância
tagarelar à sua vontade em Liege, e não disse uma palavra acerca das ideias
novas expostas ali pelos representantes do Quartier-Latin. O ministro da
Instrução pública, talvez a única pessoa que leu as actas do congresso, o que
entendeu foi: que os seis universitários tinham incorrido nas penas da lei por
haverem enunciado sentimentos subversivos da ordem social, do regime do
Estado e da religião do seu país. Neste sentido foi expedida uma portaria ao
director da universidade, e vinte e quatro horas depois os seis inovadores
eram perpetuamente riscados das academias de França, recebendo as res-
pectivas famílias aviso oficial para mandarem retirar de Paris os académi-
cos expulsos, ensinando-lhes em suas casas os deveres de bons cidadãos e
de bons cristãos". E Ramalho conclui, neste contexto, a sua palinódia, no
jeito paternalista e pedagógico que sempre caracterizou a sua escrita, com
o mais ático, com o mais clássico, com o mais cerzido louvor à paciente
Tradição e à superioridade virtuosa do seu programa estético: "Levante o
revolucionário coimbrão as mãos a Deus, e em vez de se queixar agradeça
à Providência o tê-lo colocado num país onde felizmente se não pensa como
em França. [... ] Não, o ideal da poesia não é Ulisses, o incendiário; é Eneias,
o pio, fugido às chamas, levando a espada no punho, a resignação na alma,
e aos ombros o seu velho pai e os seus venerados penates ; salvando,
guardando e reconstituindo para a posteridade, para a imortalidade e para
a glória, as tradições da fanu1ia, as da religião e as da pátria ... " . A catilinária
desfechada por Ramalho contra o "Robespierre coimbrão" suscitou várias
reacções de desagrado por parte daqueles que já se tinham solidarizado com
os "heréticos" e mesmo por parte de outras individualidades, ainda não
formalmente comprometidas, mas defensoras de novos rumos de combate
para a produção literária. Entre os primeiros, importa referir novamente o
nosso já conhecido Rui de Porto-Carrero, que reagiu doloridamente às
palavras com que Ramalho Ortigão desqualificara o Congresso de Liege.
Assim, num folheto publicado em 1866, sob o título Lisboa, Coimbra e
Porto e a questão litteraria, o autor procurou sobretudo infirmar as
imputações de infantilismo e irresponsabilidade que Ramalho dirigira aos
promotores daquele encontro académico internacional. Escandalizado,
Porto-Carrero perguntava: "Como se podem chamar sábios incipientes aos
obreiros da mais santa e tutelar divisa deste século - Liberdade? [... ]
Chamar tagarelas, crianças e sábios incipientes aos operários da nova
LEITURA SOCIOLÓGICA E POLÍTICA DA «QUESTÃO COIMBRû 99

civilização, aos apóstolos da grande ideia de fraternidade, aos jovens que


crêem no futuro e amam o trabalho, é coroar as revoluções em que se
derramava sangue; é querer apresentar por guia ao presente, ao futuro, as
ignorantes, ridículas e risíveis ideias da antiguidade; é alfim querer, sem
motivo, enterrar-se no lamaçal do ridículo, e esperar pelas gargalhadas dos
Mefistófeles !". E o nosso encolerizado académico acabava por sentenciar:
"A pura democracia é a divisa deste século, a ela se devem sujeitar os que
nela vivem". Companheiro de Rui Porto - Carrero na redacção da folha Voz
Académica, Luciano Cordeiro preferirá omitir o seu nome no escrito
apologético Delenda Tibur, dirigido em sub-título " aos homens da cigarra
e do ermo" e dedicado" a todos os Ramalhudos Ortigões e à escola do á-
bê-cê repentino". Nele se fustigam os" vultos burguêsmente ordeiros e de
clássica sisudez, que [... ] se acreditavam piamente senhores de parcos
terrenos da literatura pátria". Mas as ironias de Ramalho também encontra-
ram oponente fora do círculo estudantil. É o caso do publicista Satan, nome
de combate de João Félix Rodrigues, que acompanhou e comentou os
lances mais emotivos do conflito no jornal O Português, em folhetins
unificados pela comum designação" A literatura em barulho". No folhetim
de 25 de Março de 1866 este jornalista irá caír a fundo sobre a tónica
conservadora do discurso produzido por Ramalho Ortigão, apresentando,
entre outras, as seguintes considerações: "Custa-nos também ver chamar
horrível, detestável e ignóbil à bandeira de Voltaire, e de Rousseau, e à
bandeira dos filósofos do século XVIII, como lhe chama o Sr. Ramalho
Ortigão no seu opúsculo. Quem lançou no mundo tão grandes ideais, quem
foi tão ousado como Helvécio em filosofia, como Rousseau em política,
como Raynal em moral, como Lamétrie em religião, como o Abade de
Saint-Pierre em questões sociais, quem escreveu como Montesquieu,
Sieyes, Laharpe e Voltaire, devia merecer mais consideração a um crítico
da força do Sr. Ramalho Ortigão. [... ] Não compreendemos também como
o Sr. Ramalho Ortigão se julgou autorizado a chamar traidor a Maximiliano
Robespierre. Robespierre foi um terrível e sanguinário fanático político,
mas não foi um traidor. Traidor a quem? O homem que morreu, para não
consentir que fosse violada a soberania da Convenção, não pode ser taxado
de traidor. O fanatismo, como o de Robespierre, pode ser um erro e um
crime, mas não é nunca uma traição. [... ] Trata também o Sr. Ramalho
Ortigão de ridicularizar o congresso de Liege. Houve desvarios de lin-
guagem, ousadia de ideias; mas, através de tudo isso, nota-se ali uma grande
liberdade, e a par dela grande talento e sublimes aspirações. Duvidais que
a insurreição seja em certos casos um direito? No caso afirmativo, sois
reaccionários. Entendeis que a infalibilidade e a intolerância papal po-
de viver por muito tempo, e não são prejudiciais à Humanidade? Então
abraçais o progresso da Idade Média. Condenais os estudantes de Liege,
100 AMADEU CARVALHO HOMEM

dizendo que a imprensa de Paris não disse uma palavra acerca das ideias
novas, expostas ali pelos representantes do Quartier-Latin. Não sabeis que
essas ideias incomodam o Segundo Império, e que em França não há
liberdade de imprensa, senão aquela que concede Luís Napoleão? Estudai
a legislação francesa sobre a imprensa, lede o que a tal respeito diz M.
Maurice Block, e falai depois. Condenais o congresso de Liege porque o
ministro da Instrução Pública de França expediu ordem ao director da
Universidade para que fossem perpetuamente riscados das academias de
França os seis estudantes franceses que falaram no dito congresso! Custa
a crer que um talento, como o de Ramalho Ortigão, se curve tão servilmente
diante da política retrógrada de Napoleão III, e que faça obra por ela, para
condenar as ideias e aspirações de mancebos de superior inspiração".
Não podem restar dúvidas que a "Questão Coimbrã" acabou por
assumir, a par do seu concludente significado estético e literário, um
cambiante vincadamente político e social. Quando uma pugna deste jaez se
transfere das páginas impressas para os cenáculos parlamentares é porque
este matiz não escapou aos homens esclarecidos daquela época. Com
efeito, o assunto viu-se erigido à altura de relevante matéria pública quando
Tomás Ribeiro, em discurso proferido na Câmara dos Deputados, em
Janeiro de 1866, lastimou a emancipação "de todos os respeitos" e a
proclamação de independência de "mancebos [... ] que deviam por sua
pouca idade e experiência ser modestos". Advirta-se ainda que esta memo-
rável querela galgou as próprias fronteiras nacionais e que, mesmo no
Brasil, foi percepcionada como um diferendo entre filosofias políticas.
Assim, os prelos da Tipografia Perseverança, do Rio de Janeiro, editam em
1866 um opúsculo assinado por um tal Arqui-Zero, presumível peseudó-
nimo de Paulo José de Faria Brandão, no qual se exalta, em estilo
grandiloquente, o raiar do sol democrático e a alvorada do radicalismo
liberal: "Portanto, Humanidade, erguei-vos! Filhos do povo, saudai a
aurora do dia de amanhã, que vos traz mais um raio de luz para vos alumiar
no caminho do progresso! Abandonai essa coorte de sátrapas de gravata
branca, e com eles as suas doutrinas, subversivas da vossa autonomia.
Empecei e refreai o giro a esse carro que abre caminho sobre os vossos
peitos, assoalhando a estrada com os mártires da grandiosa ideia de
democracia, do santo princípio da liberdade".
Vistas as coisas por este prima, poderemos considerar a "Questão
Coimbrã" como uma espécie de antecâmara anunciadora das tensões
histórico-políticas e histórico-sociais que irão esmaltar as evoluções futu-
ras. A rebelião dos dois expoentes conimbricenses cedo abandonará o
limbo da expressividade literária para se librar no céu contingente de
opções militantes alternativas. O ataque à vigente cultura cartista, aqui
exemplarmente ilustrado, prolongar-se-á ainda nas Conferências Demo-
LEITURA SOCIOLÓGICA E POLITICA DA «QUESTÃO COIMBRû 101

cráticas do Casino Lisbonense, promovidas pelo Cenáculo anteriano, em


1871. Antero de Quental sedimentava, por então, à lareira de Proudhon,
a sua convicção socialista; Teófilo Braga, convidado pelo seu conterrâneo
para nelas intervir, preparava-se para refazer toda a sua disciplina mental
sob o influxo do positivismo comtiano e para oferecer ao republicanismo
em gestação um contributo inestimável. Ao Cenáculo lisboeta de Antero
acorreria Ramalho Ortigão, olvidando generosamente a cutilada do com-
bate das Arcas de Água e tecendo com Eça de Queirós o projecto que se
cumpriria com a publicação da primeira série d'As Farpas. Ora, estes
caderninhos farpados são a prova mais irretorquível de que a Literatura
oferece aos historiador um manancial insubstituível de verificações fac-
tuais, de certeiros diagnósticos e de pertinentes prognósticos, indispen-
sáveis ao seu trabalho. Conhecemos pelo labor arquivístico e pela intimi-
dade com as fontes históricas directas a repartição dos rendimentos, as taxas
de casamentos e óbitos, o regime da propriedade, os sistemas de aforamento
e de arrendamento e as mil coisas que a gravidade dos registos inertes nos
pode proporcionar. Mas ficamos a conhecer melhor a mentalidade do
deputado de província com a leitura da Queda de um anjo, de Camilo
Castelo Branco; mas prescrutamos com maior justeza as motivações, as
ambições, as futilidades, as apostas e as frustrações das diversas classes
sociais oitocentistas com as impressivas descrições d'As Farpas de Eça e
Ramalho, e com as nervosas imprecações d' Os Gatos de Fialho de Almei-
da; mas caracterizamos mais rigorosamente o radicalismo jacobino de
certas "carbonárias" lisbonenses através dos romances de Abel Botelho;
mas apercebemo-nos mais nitidamente das patologias da vivência urbana
através da soberba galeria tipológica tracejada por Eça de Queirós; mas
compreendemos sem dificuldade o fundamento emocional da rejeição anti-
dinástica pelas estrofes catalépticas do Renegado ou da Traição de Gomes
Leal; mas isolamos com maior acuidade as asfixias aporéticas do Ultimato
de 1890 através do discurso feito por Antero de Quental quando assumiu a
presidência da Liga Patriótica do Norte, ou através da magistral descrição
com que o Irkan do jornal Pontos nos ii, ou seja, com que Fialho de Almeida
nos descreve o revolucionarismo abortado da chamada "campanha dos
apitos", ou ainda através da indignação incendiária com que Guerra
Junqueiro redigiu os versos do Finis Patriae, da Pátria ou do Caçador
Simão.
A História oferece à Literatura a riqueza da sua pretendida exactidão,
do seu escrúpulo imparcial, do seu distanciamento emotivo, da sua carte-
siana racionalidade, do seu sentido de medida e de sistemática suspeição.
Mas é a Literatura que cumula a História, pelo menos a História que hoje
se quer fazer, com o nervo da sondagem em profundidade, com a vertigem
do virtual possível, com o sangue da generalização plástica, com a seiva do
102 AMADEU CARVALHO HOMEM

desejo apenas balbuciado, em suma, com os adereços do reino imaginário


que Alice foi encontrar do outro lado do espelho, reino ignoto e sonhado de
que se nutre, sem que disso nos apercebamos, a Verdade intemporal e defi-
nitiva.

BillUOGRAFIA SUMÁRIA

Bom Senso e Bom Gosto. Questão Coimbrã (colectânea organizada


por ALBERTO F'ERREIRA), Lisboa, Portugália Editora, 1966-1970 (4 vols.).
Castilho e Camilo. Correspondência trocada entre os dois escritores,
Coimbra, Imprensa da Universidade, 1924.
Anthero de Quental. ln Memoriam, Porto, Mathieu Lugan Editor, 1896.
CÂMARA REys, As questões morais e sociais na literatura. III. Ramalho
Ortigão, Lisboa, Seara Nova, 1941.
RICARDO JORGE, Ramalho Ortigão, Lisboa, 1915.
AMADEU CARVALHO HOMEM, "Antero de Quental e Teófilo Braga. Um
exercício comparativo", INSUlANA, Ponta Delgada, 1991, pp. 128-144.

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