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MÁTHESIS 4 1995 89-102
século XIX, nos viesse garantir que jamais o testemunho literário poderia
servir os esforços de sintetização histórica.
Alegaria ele que os literatos, cultivando provavelmente as amenidades
do subjectivismo artístico, não disporiam de creditação bastante para a
impassibilidade judicativa, tão do agrado dos historiadores. Se esta argu-
mentação fosse ouvida, um historiador dos nossos dias, razoavelmente
actualizado, não poderia deixar de lhe fazer notar que tal raciocínio
assentava num mal-entendido. Nunca se pediu a um escritor ou a um poeta
que escrevesse o seu romance ou produzisse a sua poesia com o mesmo
aparato probatório e com o mesmo rigor metodológico com que um
historiador redige a sua obra. Contudo, mal avisado andará qualquer
historiador que não encare o literato como um dos mais qualificados
avaliadores do histórico e o texto literário como um dos mais significativos
testemunhos de uma época. Esta evidência reforça a sua validade no interior
das chamadas "sociedades de opinião", nascidas do universo de transfor-
mações que marcaram a Época Contemporânea. As revoluções liberais que
triunfaram na Europa segundo o modelo da revolução francesa de 1789,
fazendo aluir os alicerces do autoritarismo aristocrático e da concentração
de poderes, libertaram o súbdito de antanho para o livre exame das
realidades políticas e da organização social. A um regime ancorado num
complexo de crenças, paternalmente impostas a partir de pontificados
espirituais e de chefias temporais indiscutíveis, sucedeu um outro, esteiado
no individualismo da cidadania, na diversidade dos juízos pessoais e na
questionação de valores outrora imutáveis. O homem liberal não deseja
apenas que a competição económica decorra num mercado liberto das
corveias e das imposições senhoriais do Antigo Regime. Reivindica,
também, que o "mercado das opiniões" funcione sem embaraços e que as
soluções sócio-políticas se imponham a partir de alargados consensos
maioritários. Assim, à sociologia da obediência sucedeu a sociologia do
contrato opinativo. Serão estes, em nossa opinião, os dois vectores que,
entre nós, terçam armas entre 1828 e 1834, respectivamente representados
pelo absolutismo monárquico de um José Agostinho de Macedo e de um
Fr. Fortunato de S. Boaventura e pelos liberalismos divergentes de um
Alexandre Herculano e de um Almeida Garrett. Por que meios se forma a
opinião no decurso do século XIX? Ela forma-se, obviamente, através de
todas as modalidades de convívio dos diversos círculos sociais. Mas
formar-se-á também através do periódico e do livro, meios tanto ou mais
importantes do que a sociabilidade convencional para os afortunados
burgueses possuidores de um mínimo de cultura mental. Exclui-se aqui
deliberadamente o elemento popular, já que este, a braços com elevadíssi-
mos índices de analfabetismo, se limitou a tomar como boa a opinião
ilustrada dos que o conseguiram arregimentar. Assim, os literatos foram,
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oficiais, que Ramalho Ortigão dará aos prelos o folheto Literatura de hoje.
Se bem ajuizamos, foi com o manifesto de Ramalho que a contenda ganhou
a sua mais acabada nitidez no plano das discrepâncias político-sociais. As
suas palavras irritaram profundamente os dois grupos. Antero sentiu-se
ofendido com a acusação de que os encómios tributados no seu segundo
texto ao drama Camões, de António Feliciano de Castilho, teriam sido
oriundos de uma reacção secundária de temor covarde. E como Ramalho se
negasse a apresentar-lhe as satisfações exigidas, acabou por procurar
reparações no campo da honra. Sempre zombeteiro, Camilo Castelo
Branco informava Castilho, em fins de Janeiro de 1866, referindo o
culminar da desavença: "Creio que se picarão a florete". O combate, de que
Antero saíu vitorioso, através de uma cutilada que Ramalho não pôde
aparar, aconteceu nas Arcas de Água, nos arredores do Porto. Mas a
Literatura de hoje também increpava duramente António Feliciano de
Castilho, considerando que este delinquira "perante o tribunal da equidade,
da razão e da honra literária", ao advogar na sua carta-posfácio, estampada
no Poema da Mocidade, que o ministro do Reino poderia nomear interina-
mente Manuel Pinheiro Chagas para a cadeira de Literatura Contem-
porânea do Curso Superior de Letras. Revertamos, porém, ao ponto que
mais nos interessa. O folheto de Ramalho constitui a superlativa defesa do
tradicionalismo político e da estabilidade social. Empunhando estes valo-
res, o futuro autor d' As Farpas procurará demolir, pedra a pedra, o bastião
radical em que Antero se entrincheirara. Para tal, Ramalho Ortigão tentará
definir, em meia dúzia de períodos concisos, a substância das concepções
anterianas: "O jovem académico convida os povos à revolta, afiançando-
-nos que vivemos todos na Revolução como os apóstolos viviam em Deus,
in eo vivimus et sumus. Qual é o grito desta revolta? Guerra ao trono, onde
só pode sentar-se um lobo e um tirano! Guerra ao altar, onde é preciso
derribar a cruz, despedaçar as santas imagens e beber o vinho da orgia
pelos vasos sagrados! Morte ao clero! Ódio eterno aos ricos, que represen-
tam a infâmia! Estas ideias constituem o espírito do livro do Sr. Antero de
Quental". Segue-se depois, em discurso cruzado, a contraposição entre as
excelências liberais das instituições pátrias e as soturnas violências da
Montanha revolucionária francesa: " [... ] A bandeira que o Sr. Quental vem
hastear com as suas mãozinhas tenras no solo do país mais livre e mais
liberal do mundo, é a mesma que o domínio do terror arvorou em França,
entre duzentos cadafalsos, em 1793". Além disto, em significativa sintonia
com os parentes de Castilho, Ramalho Ortigão ridiculariza o Congresso de
Liege, indo ao ponto de justificar a repressão oficial sobre os estudantes
oradores: "Há dias, seis estudantes do Quartier-Latin, enfastiados da última
canção de Mne. Théréza, da última ceia e da última polca, pegaram em si
e passaram-se do Mabille para o congresso de Liege, célebre reunião de
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sábios incipientes, com os quais Vítor Hugo por coisa nenhuma do mundo
se quis acamaradar, e a cujo grémio muito estranhei que o Sr. Antero de
Quental não levasse a luz do seu engenho empanada pela desconsideração
da pátria. [ ... ] Os seis estudantes de Paris disseram em prosa viloa exacta-
mente o mesmo que o Sr. Antero de Quental nos está dizendo em versos
maus. Vejamos agora como em Paris, que é uma terra onde se pensa, se
entendeu e apreciou a obra dos universitários. A imprensa deixou a infância
tagarelar à sua vontade em Liege, e não disse uma palavra acerca das ideias
novas expostas ali pelos representantes do Quartier-Latin. O ministro da
Instrução pública, talvez a única pessoa que leu as actas do congresso, o que
entendeu foi: que os seis universitários tinham incorrido nas penas da lei por
haverem enunciado sentimentos subversivos da ordem social, do regime do
Estado e da religião do seu país. Neste sentido foi expedida uma portaria ao
director da universidade, e vinte e quatro horas depois os seis inovadores
eram perpetuamente riscados das academias de França, recebendo as res-
pectivas famílias aviso oficial para mandarem retirar de Paris os académi-
cos expulsos, ensinando-lhes em suas casas os deveres de bons cidadãos e
de bons cristãos". E Ramalho conclui, neste contexto, a sua palinódia, no
jeito paternalista e pedagógico que sempre caracterizou a sua escrita, com
o mais ático, com o mais clássico, com o mais cerzido louvor à paciente
Tradição e à superioridade virtuosa do seu programa estético: "Levante o
revolucionário coimbrão as mãos a Deus, e em vez de se queixar agradeça
à Providência o tê-lo colocado num país onde felizmente se não pensa como
em França. [... ] Não, o ideal da poesia não é Ulisses, o incendiário; é Eneias,
o pio, fugido às chamas, levando a espada no punho, a resignação na alma,
e aos ombros o seu velho pai e os seus venerados penates ; salvando,
guardando e reconstituindo para a posteridade, para a imortalidade e para
a glória, as tradições da fanu1ia, as da religião e as da pátria ... " . A catilinária
desfechada por Ramalho contra o "Robespierre coimbrão" suscitou várias
reacções de desagrado por parte daqueles que já se tinham solidarizado com
os "heréticos" e mesmo por parte de outras individualidades, ainda não
formalmente comprometidas, mas defensoras de novos rumos de combate
para a produção literária. Entre os primeiros, importa referir novamente o
nosso já conhecido Rui de Porto-Carrero, que reagiu doloridamente às
palavras com que Ramalho Ortigão desqualificara o Congresso de Liege.
Assim, num folheto publicado em 1866, sob o título Lisboa, Coimbra e
Porto e a questão litteraria, o autor procurou sobretudo infirmar as
imputações de infantilismo e irresponsabilidade que Ramalho dirigira aos
promotores daquele encontro académico internacional. Escandalizado,
Porto-Carrero perguntava: "Como se podem chamar sábios incipientes aos
obreiros da mais santa e tutelar divisa deste século - Liberdade? [... ]
Chamar tagarelas, crianças e sábios incipientes aos operários da nova
LEITURA SOCIOLÓGICA E POLÍTICA DA «QUESTÃO COIMBRû 99
dizendo que a imprensa de Paris não disse uma palavra acerca das ideias
novas, expostas ali pelos representantes do Quartier-Latin. Não sabeis que
essas ideias incomodam o Segundo Império, e que em França não há
liberdade de imprensa, senão aquela que concede Luís Napoleão? Estudai
a legislação francesa sobre a imprensa, lede o que a tal respeito diz M.
Maurice Block, e falai depois. Condenais o congresso de Liege porque o
ministro da Instrução Pública de França expediu ordem ao director da
Universidade para que fossem perpetuamente riscados das academias de
França os seis estudantes franceses que falaram no dito congresso! Custa
a crer que um talento, como o de Ramalho Ortigão, se curve tão servilmente
diante da política retrógrada de Napoleão III, e que faça obra por ela, para
condenar as ideias e aspirações de mancebos de superior inspiração".
Não podem restar dúvidas que a "Questão Coimbrã" acabou por
assumir, a par do seu concludente significado estético e literário, um
cambiante vincadamente político e social. Quando uma pugna deste jaez se
transfere das páginas impressas para os cenáculos parlamentares é porque
este matiz não escapou aos homens esclarecidos daquela época. Com
efeito, o assunto viu-se erigido à altura de relevante matéria pública quando
Tomás Ribeiro, em discurso proferido na Câmara dos Deputados, em
Janeiro de 1866, lastimou a emancipação "de todos os respeitos" e a
proclamação de independência de "mancebos [... ] que deviam por sua
pouca idade e experiência ser modestos". Advirta-se ainda que esta memo-
rável querela galgou as próprias fronteiras nacionais e que, mesmo no
Brasil, foi percepcionada como um diferendo entre filosofias políticas.
Assim, os prelos da Tipografia Perseverança, do Rio de Janeiro, editam em
1866 um opúsculo assinado por um tal Arqui-Zero, presumível peseudó-
nimo de Paulo José de Faria Brandão, no qual se exalta, em estilo
grandiloquente, o raiar do sol democrático e a alvorada do radicalismo
liberal: "Portanto, Humanidade, erguei-vos! Filhos do povo, saudai a
aurora do dia de amanhã, que vos traz mais um raio de luz para vos alumiar
no caminho do progresso! Abandonai essa coorte de sátrapas de gravata
branca, e com eles as suas doutrinas, subversivas da vossa autonomia.
Empecei e refreai o giro a esse carro que abre caminho sobre os vossos
peitos, assoalhando a estrada com os mártires da grandiosa ideia de
democracia, do santo princípio da liberdade".
Vistas as coisas por este prima, poderemos considerar a "Questão
Coimbrã" como uma espécie de antecâmara anunciadora das tensões
histórico-políticas e histórico-sociais que irão esmaltar as evoluções futu-
ras. A rebelião dos dois expoentes conimbricenses cedo abandonará o
limbo da expressividade literária para se librar no céu contingente de
opções militantes alternativas. O ataque à vigente cultura cartista, aqui
exemplarmente ilustrado, prolongar-se-á ainda nas Conferências Demo-
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BillUOGRAFIA SUMÁRIA