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A «CONSTITUIÇÃO» DA UNIÃO EUROPEIA

Todas as sociedades têm uma constituição. É através dela que é definida a estrutura do seu sistema político,
ou seja, a constituição rege as relações dos membros da sociedade entre si e face ao todo, fixa os objetivos
comuns e define o processo a seguir para a adoção das decisões vinculativas. A constituição da UE, que é uma
união de estados para a qual foram transferidas tarefas e funções bem definidas, deve, por isso, poder responder às
mesmas questões que a constituição de um estado.
As comunidades de estados regem-se por dois princípios fundamentais: o primado do direito («rule of law»)
e a democracia. Toda a ação da União, para ser consonante com os princípios fundamentais do direito e da
democracia, deve ter legitimidade jurídica e democrática: criação, organização, competências, funcionamento,
papel dos Estados-Membros e suas instituições, papel do cidadão.
A «constituição» da UE, depois do fracasso do Tratado que estabelece uma Constituição para a Europa de 29
de outubro de 2004, e tal como antes acontecia, não foi como a maioria das constituições dos seus Estados-Membros
consagrada num documento constitucional coerente. Resulta antes da soma de normas e valores fundamentais que os
responsáveis encaram como vinculativos. Estas normas resultam quer dos próprios textos dos tratados europeus e dos
atos jurídicos aprovados pelas instituições da União, quer de usos e costumes consagrados.

A natureza jurídica da União Europeia

Determinar a natureza jurídica significa classificar juridicamente, em termos gerais, uma organização com
base nas respetivas características. Foi isto que foi feito em dois acórdãos fundamentais de 1963 e 1964 que fazem
parte da jurisprudência do Tribunal de Justiça e que, apesar de terem sido proferidos quando existia a CEE, continuam
a ter como antes validade jurídica para a União Europeia na sua atual configuração.

O processo Van Gend & Loos

Neste processo, a empresa de transporte neerlandesa Van Gend & Loos intentara uma ação num tribunal dos
Países Baixos contra a administração aduaneira neerlandesa, por esta ter cobrado direitos aduaneiros majorados à
importação de um produto químico proveniente da República Federal da Alemanha. A empresa considerava haver
uma violação do artigo 12.º do Tratado CEE, que proíbe a introdução de novos direitos aduaneiros e o aumento dos já
existentes no mercado comum. O tribunal neerlandês suspendeu o procedimento e apresentou um pedido de decisão
prejudicial ao Tribunal de Justiça, para que este esclarecesse o alcance e a interpretação jurídica do artigo invocado do
Tratado CE.
O Tribunal de Justiça aproveitou a ocasião para fixar certos aspetos fundamentais da natureza jurídica
da CEE. No acórdão proferido a propósito pode ler-se:

«O objetivo do Tratado CEE, que consiste em instituir um mercado comum cujo funcionamento diz diretamente
respeito aos nacionais da Comunidade, implica que este Tratado seja mais do que um acordo meramente gerador
de obrigações recíprocas entre os Estados contratantes. Esta conceção é confirmada pelo preâmbulo do Tratado,
que, além dos governos, faz referência aos povos e, mais concretamente, pela criação de órgãos investidos de
poderes soberanos cujo exercício afeta quer os Estados-Membros, quer os seus nacionais [...] Daqui deve concluir-se
que a Comunidade constitui uma nova ordem jurídica de direito internacional, a favor da qual os Estados
limitaram, ainda que em domínios restritos, os seus direitos soberanos, e cujos sujeitos são não só os Estados-
Membros, mas também os seus nacionais.»

O processo Costa vs. ENEL


Um ano mais tarde, o processo Costa vs. ENEL deu ao Tribunal de Justiça a possibilidade de aprofundar ainda
mais a sua análise. Em causa estavam os seguintes factos: em 1962, a Itália nacionalizou a produção e a distribuição
de eletricidade, tendo transferido o património das empresas do setor para a sociedade ENEL. Enquanto acionista da
sociedade atingida pela nacionalização, a Edison Volta, Flaminio Costa viu-se privado de dividendos a que tinha
direito e recusou-se a pagar uma fatura de eletricidade de 1926 liras italianas. Perante o «Giudice Conciliatore» de
Milão, Flaminio Costa justificou a sua conduta fazendo valer, designadamente, o facto de que a lei da nacionalização
violava uma série de disposições do Tratado CEE. O Tribunal de Milão apresentou então ao Tribunal de Justiça um
pedido de decisão prejudicial relativamente à interpretação de algumas disposições do Tratado CEE. No seu acórdão,
o Tribunal de Justiça estabeleceu, a propósito da natureza jurídica da CEE:

«Diversamente dos tratados internacionais ordinários, o Tratado CEE institui uma ordem jurídica própria que é
integrada no sistema jurídico dos Estados-Membros a partir da entrada em vigor do Tratado e que se impõe
aos seus órgãos jurisdicionais nacionais. Efetivamente, ao instituírem uma Comunidade de duração ilimitada, dotada
de instituições próprias, de capacidade jurídica, de capacidade de representação internacional e, mais especialmente,
de poderes reais resultantes de uma limitação de competências ou de uma transferência de atribuições dos Estados
para a Comunidade, estes limitaram, ainda que em domínios restritos, os seus direitos soberanos e criaram,
assim, um corpo de normas aplicável aos seus nacionais e a si próprios.»

O Tribunal de Justiça sintetiza do modo que se segue as conclusões finais alcançadas na sequência de pormenorizadas
deliberações.

«Resulta do conjunto destes elementos que ao direito emergente do Tratado, emanado de uma fonte autónoma, em
virtude da sua natureza originária específica, não pode ser oposto em juízo um texto interno, qualquer que seja, sem
que perca a sua natureza comunitária e sem que sejam postos em causa os fundamentos jurídicos da própria
Comunidade. A transferência efetuada pelos Estados, da sua ordem jurídica interna em benefício da ordem
jurídica comunitária, dos direitos e obrigações correspondentes às disposições do Tratado implica, pois, uma
limitação definitiva dos seus direitos soberanos, sobre a qual não pode prevalecer um ato unilateral ulterior
incompatível com o conceito de Comunidade.»

Contém toda uma teoria geral das relações entre o DUE e o Direito Interno, bem como a justificação da
superioridade da ordem jurídica da UE sobre as ordens jurídicas nacionais, deduzida em termos que, embora
esclarecidos e desenvolvidos em acórdãos posteriores, jamais foram ultrapassados.

Tribunal fornece o princípio que fundamenta a aplicabilidade do DUE em 2 pontos:

 Natureza específica da ordem jurídica comunitária – Tratado CEE institui uma ordem jurídica própria,
integrada na ordem jurídica dos Estados-membros e que se impõe às suas jurisdições, pois limitaram-se os
direitos soberanos dos Estados-membros, transferindo-os para a UE, criando assim um corpo de direito
aplicável aos seus cidadãos e a eles próprios.
 Exigências próprias da ordem jurídica comunitária – força executiva do Direito Comunitário não poderia
variar de um Estado-membro para outro, ao sabor das legislações internas, sem pôr em perigo a realização das
finalidades do Tratado ou provocar uma discriminação proibida pelos mesmos.

Uma vez proclamado o princípio, o TJUE não cessou de o confirmar e explicitar, sublinhando que o primado
se manifesta em relação a todas as normas nacionais, quaisquer que elas sejam, anteriores ou posteriores,
tornando inaplicáveis de pleno direito todas as disposições nacionais existentes.

À luz destes dois acórdãos fundamentais do Tribunal de Justiça, são os seguintes os elementos que
conjuntamente conferem características específicas e singularidade à natureza jurídica da CE:

 a estrutura institucional, que garante que o processo de elaboração das decisões na UE é também marcado
ou influenciado pelo interesse geral da Europa, isto é, os interesses da União que emergem dos objetivos;
 a transferência de competências verificada para as instituições da União num grau mais importante do que
em outras organizações internacionais e que abrange domínios nos quais os Estados-Membros geralmente
conservam a respetiva soberania;
 a criação de uma ordem jurídica própria, independente da dos Estados-Membros;
 a aplicabilidade direta do direito da União, que garante que as regras do direito da UE devem desenvolver a
plenitude do seu efeito de uma forma completa e uniforme em todos os Estados-Membros e que tais
disposições são fonte de direitos e de obrigações, quer para os Estados-Membros, quer para os respetivos
cidadãos;
 o primado do direito da União, que impede qualquer revogação ou alteração da legislação da União pelo
direito nacional e garante o primado do direito comunitário em caso de conflito com o direito nacional.

A UE constitui, pois, uma entidade autónoma, dotada de direitos soberanos e de uma ordem jurídica
independente dos Estados-Membros que se impõe, quer aos Estados-Membros, quer aos respetivos cidadãos nos
domínios da competência da União Europeia.
As características da UE deixam também claro os seus pontos comuns e as suas diferenças em relação às
organizações internacionais tradicionais e às estruturas de tipo federal.
A UE não é uma estrutura acabada, mas antes um «sistema em construção» cujos contornos finais não estão
ainda definidos.
O único ponto comum entre as organizações internacionais tradicionais e a União Europeia reside no facto de
a UE também ter nascido de tratados internacionais. No entanto, a União já se afastou bastante destas raízes do direito
internacional. Isto porque os atos fundadores da UE levaram à criação de uma União autónoma dotada de direitos
soberanos e competências próprias. Os Estados-Membros abdicaram de parte dos seus poderes soberanos em prol
desta União e transferiram-nos para a UE para que possam ser exercidos conjuntamente.
As diferenças da União Europeia em relação às organizações internacionais correntes aproximam-na de uma
estrutura estatal. A renúncia por parte dos Estados-Membros a uma parte da respetiva soberania em favor da UE
constitui um dos elementos que permitiram concluir que a estrutura da União já se identificava com a de um estado
federal. Todavia, esta conceção não atende ao facto de as competências das instituições da UE estarem circunscritas à
realização dos objetivos consagrados pelos tratados e a certos domínios para os quais possuem competências definidas
especificamente. Estas instituições não podem, por isso, fixar livremente os respetivos objetivos (como acontece num
estado soberano) nem responder a todos os desafios que se colocam atualmente a um estado moderno. À UE falta a
plenitude de competências que caracteriza os estados soberanos e a faculdade de instituir novas competências (a
chamada competência das competências).
Consequentemente, a UE não é nem uma organização internacional «clássica» nem uma associação de
estados, mas uma entidade que se situa a meio caminho entre estas formas tradicionais de associação entre estados
com direitos de soberania. Em termos jurídicos, consagrou-se a delimitação desta posição especial graças ao conceito
de «organização supranacional».

Processo Simmenthal

Pedido dirigido ao Tribunal de Justiça nos termos do artigo 177. ° do Tratado CEE, pelo Pretore de Susa
(Itália), destinado a obter, uma decisão a título prejudicial sobre a interpretação do artigo 189 ° do Tratado CEE e,
mais precisamente, sobre as consequências da aplicabilidade direta do direito comunitário em caso de conflito
com disposições eventualmente contrárias de direito nacional.

Duas questões prejudiciais relativas ao princípio da aplicabilidade direta do direito comunitário, tal como
enunciado no artigo 189 ° do Tratado, a fim de determinar as consequências decorrentes desse princípio em caso de
contradição entre uma norma de direito comunitário e uma disposição posterior de direito interno.

O Pretore, julgando a cobrança das referidas taxas incompatível com as disposições de direito comunitário,
ordenou à Administração das Finanças do Estado que restituísse os direitos indevidamente cobrados, acrescidos dos
respetivos juros. A tal se opôs a Administração das Finanças.

Entendeu o Pretore que a questão que lhe era colocada era a da contradição entre certas normas comunitárias e
uma lei nacional posterior.

Colocou ao Tribunal duas questões:

1. As disposições comunitárias diretamente aplicáveis devem, independentemente de quaisquer normas ou


práticas internas dos Estados-membros, produzir plena e totalmente os seus efeitos e serem
uniformemente aplicadas nas ordens jurídicas destes últimos, para que possam também ser garantidos
os direitos subjetivos criados na esfera jurídica dos particulares, conclui-se que o alcance destas normas
deve ser entendido de forma a que eventuais disposições nacionais ulteriores, contrárias às normas
comunitárias, devam ser consideradas inaplicáveis de pleno direito, sem que seja necessário esperar a sua
revogação pelo próprio legislador nacional ou por outros órgãos constitucionais.
2. Em relação com a questão precedente, e partindo do princípio que o direito comunitário admite que a
proteção dos direitos subjetivos, constituídos pelas disposições comunitárias «diretamente aplicáveis», possa
ser diferida até ao momento da revogação efetiva pelos competentes órgãos nacionais, de eventuais medidas
de direito interno contrárias àquelas normas comunitárias, deve esta revogação ser total e plenamente
retroativa, de forma a evitar que os direitos subjetivos em causa sofram qualquer prejuízo?

Competência do Tribunal de Justiça:

Representante do Governo italiano - de acordo com a sua prática constante, o Tribunal considera-se competente para
conhecer de um pedido de decisão prejudicial, apresentado nos termos do artigo 177. °, enquanto o mesmo não for
retirado pelo órgão jurisdicional que o formulou, ou enquanto o mesmo não for anulado, em recurso, por uma
instância jurisdicional superior. Tal efeito não poderá decorrer do referido acórdão, já que este foi proferido no âmbito
de procedimentos estranhos ao litígio que deu origem ao recurso interposto para o Tribunal, que não poderá, por esse
motivo, considerar os seus efeitos face a terceiros.

Quanto ao mérito da questão

Com a primeira questão pretende-se, essencialmente, que sejam especificadas as consequências da


aplicabilidade direta de uma disposição de direito comunitário em caso de incompatibilidade com uma
disposição posterior da legislação de um Estado-membro. A aplicabilidade direta, assim perspetivada, implica
que as normas de direito comunitário produzam a plenitude dos seus efeitos, de modo uniforme em todos os
Estados-membros, a partir da sua entrada em vigor e durante todo o período da respetiva vigência.

Assim, estas disposições constituem uma fonte imediata de direitos e obrigações para todos os seus
destinatários, quer se trate de Estados-membros ou de particulares.

Por força do princípio do primado do direito comunitário, as disposições do Tratado e os atos das
instituições diretamente aplicáveis têm por efeito, nas suas relações com o direito interno dos Estados-membros, não
apenas tornar inaplicável de pleno direito, desde o momento da sua entrada em vigor, qualquer norma de direito
interno que lhes seja contrária, mas também - impedir a formação válida de novos atos legislativos nacionais,
na medida em que seriam incompatíveis com normas do direito comunitário.

Qualquer órgão jurisdicional nacional pode, sempre que considerar necessário para o julgamento da
causa, solicitar ao Tribunal de Justiça que se pronuncie, a título prejudicial, sobre uma questão de
interpretação ou de validade relativa ao direito comunitário.

Qualquer juiz nacional tem o dever de, no âmbito das suas competências, aplicar integralmente o direito
comunitário e proteger os direitos que este confere aos particulares, considerando inaplicável qualquer disposição
eventualmente contrária de direito interno, quer seja esta anterior ou posterior à norma comunitária.

É, assim, incompatível com as exigências inerentes à própria natureza do direito comunitário, qualquer
norma da ordem jurídica interna ou prática legislativa, administrativa ou judicial, que tenha por consequência
a diminuição da eficácia do direito comunitário, pelo facto de recusar ao juiz competente para a aplicação deste
direito, o poder de, no momento dessa aplicação, fazer tudo o que é necessário para afastar as disposições legislativas
nacionais que constituam, eventualmente, um obstáculo à plena eficácia das normas comunitárias.

O juiz nacional responsável, no âmbito das suas competências, pela aplicação de disposições de direito
comunitário, tem obrigação de assegurar o pleno efeito de tais normas, decidindo, por autoridade própria, se
necessário for, da não aplicação de qualquer norma de direito interno que as contrarie, ainda que tal norma
seja posterior, sem que tenha de solicitar ou esperar a prévia eliminação da referida norma por via legislativa
ou por qualquer outro processo constitucional.

Com a segunda questão, pretende-se essencialmente saber — no caso de se admitir que a proteção dos
direitos conferidos pelas disposições comunitárias possa ser diferida até ao momento da eliminação efetiva, pelos
órgãos nacionais competentes, de eventuais medidas de direito interno contrárias — se essa eliminação deve, em todos
os casos, ser plena e totalmente retroativa, de forma a evitar que os direitos em causa sofram qualquer prejuízo.

Resulta da resposta dada à primeira questão que o juiz nacional tem obrigação de assegurar a proteção dos
direitos conferidos pelas normas da ordem jurídica comunitária, sem que tenha de solicitar ou esperar a prévia
eliminação efetiva, pelos órgãos nacionais competentes, de eventuais medidas de direito interno que constituíssem um
obstáculo à aplicação direta e imediata das normas comunitárias.

O TRIBUNAL DE JUSTIÇA DECLARA:

O juiz nacional responsável, no âmbito das suas competências, por aplicar disposições de direito
comunitário, tem obrigação de assegurar o pleno efeito de tais normas, decidindo, por autoridade própria, se
necessário for, da não aplicação de qualquer norma de direito interno que as contrarie, ainda que tal norma
seja posterior, sem que tenha de solicitar ou esperar a prévia eliminação da referida norma por via legislativa
ou por qualquer outro processo constitucional.

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