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No dia 9 de julho de 1932, o presidente Getúlio Vargas registrava em seu diário pessoal que a

crise política responsável por arrastar o país em estado de tensão há meses parecia ter
chegado ao fim. Após terminar o jantar, saiu do Palácio do Catete em direção à Praia do
Flamengo, local de suas caminhadas noturnas pela cidade do Rio de Janeiro, então capital da
República. O passeio seria interrompido por uma notícia que chegava de São Paulo: ao
contrário dos prognósticos de Vargas, os paulistas decidiram pegar em armas para destituir
seu governo.

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Comemorado com um feriado estadual (além dos monumentos e nomes de ruas e avenidas
espalhados por todo o estado de São Paulo), o episódio de guerra civil representa o ápice da
sucessão de conflitos que marcaram as primeiras décadas republicanas no Brasil.

Mais do que monótonos retratos em preto e branco de cavalheiros que estiveram à frente do
governo federal, a história da primeira metade do século 20 é repleta de violência,
desrespeitos à Constituição, traições políticas e um pequeno grupo de pessoas decidindo pelo
destino de milhões de brasileiros. Qualquer semelhança não é mera coincidência...

Da monarquia à oligarquia

Sob o lema da ordem e do progresso, o golpe militar que destronou a monarquia brasileira em
1889 buscava dar ares modernizadores ao país que ainda há pouco era uma economia
sustentada pela escravidão. Em 1891, a Constituição republicana afirmava que o voto passava
a ser "universal", com eleições livres para a escolha dos próximos presidentes. A liberdade do
sufrágio contava com um não tão pequeno detalhe: mulheres, analfabetos e pessoas sem
renda comprovada eram proibidas de votar. Sem contar o fato que o pleito era a descoberto
— o eleitor recebia um comprovante que assinalava qual era o candidato de sua preferência.

O pequeno colégio eleitoral daqueles primeiros anos de República favorecia os grupos políticos
aliados do poder econômico: fundado em 1873 ainda durante a monarquia, o Partido
Republicano Paulista (PRP) ganhou protagonismo nacional — a legenda era liderada pelos
donos das fazendas de café, insumo que praticamente sustentava a balança comercial
brasileira de exportações.

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Para manter a hegemonia nacional, o PRP aliou-se com os membros do Partido Republicano
Mineiro (PRM), que controlavam um dos maiores colégios eleitorais do Brasil. A chamada
"política do café-com-leite" aconteceria até a eleição de 1930, quando um gaúcho nascido na
pequena cidade de São Borja transformaria de maneira definitiva a história política do país.

Getúlio Vargas em 1930 (Foto: Reprodução)

Getúlio Vargas em 1930 (Foto: Reprodução)

Revolucionário de São Borja

Filho de um general que lutou na Guerra do Paraguai e membro de uma família que controlava
a política local de São Borja, Getúlio Dornelles Vargas não tinha grandes predicados de
revolucionário. Formado em Direito, era um dos ferrenhos defensores do Partido Republicano
Rio-Grandese — alinhado ao governo federal. Após exercer mandatos de deputado estadual e
federal, assumiu o Ministério da Fazenda durante o mandato do presidente Washington Luís e
tornou-se governador (cujo cargo na época recebia o nome de "presidente") do Rio Grande do
Sul em 1928.

Seu perfil governista seria deixado de lado a partir de 1929, quando começaram as costuras
políticas para a próxima eleição presidencial, que ocorreria em 1930. Washington Luís, ex-
governador de São Paulo pelo PRP, mostrava-se determinado a apoiar seu correligionário
paulista Júlio Prestes. Como resposta, mineiros, gaúchos e paraibanos decidiram lançar uma
frente encabeçada por Getúlio Vargas.

De perfil conciliador, o governador gaúcho tentou estabelecer acordos com os paulistas para
que a disputa presidencial não fracionasse os interesses estaduais. Nada feito: no dia 1º de
março de 1930, as eleições presidenciais ocorrem e Júlio Prestes é considerado o vencedor do
pleito. Os oposicionistas afirmam que a votação não teria validade, já que diversas denúncias
de fraude eleitoral pipocavam pelos estados de federação.

A briga política atingiria seu ápice no dia 26 de julho: o paraibano João Pessoa, companheiro
derrotado da chapa de Vargas, fora assassinado no Recife. A morte de Pessoa, considerado um
inimigo das oligarquias locais, torna-se o estopim de uma revolta de grandes proporções: os
tenentistas, membros do Exército de patentes mais baixas que lideraram rebeliões na década
de 1920, garantiram o braço armado da rebelião contra Washington Luís.

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Com início em outubro de 1930, a revolta se espalhou pelo Brasil, com um saldo de dezenas de
mortos. Com trajes militares, Getúlio Vargas subiu em um trem no Rio Grande do Sul com
destino ao Rio de Janeiro. As tropas fiéis a Washington Luís foram derrotadas em diferentes
estados — São Paulo, o principal bastião de apoio do governo federal, não reagiu aos rebeldes
com a intensidade alardeada. Sob pressão, Washington Luís foi destituído e Júlio Prestes
sequer assumiria o cargo: com grande comoção popular, Vargas seria nomeado o presidente
da República.

Cartaz paulista de 1932 (Foto: Reprodução)

Cartaz paulista de 1932 (Foto: Reprodução)

O ditador de São Borja

Com o apoio do movimento militar dos tenentistas, Getúlio Vargas consolidaria a "Revolução
de 1930" suspendendo a Constituição, fechando o Congresso Nacional e instituindo
"interventores" nos estados — que substituíram os governadores eleitos. Enquanto liderava o
governo provisório com poderes ditatoriais, Vargas afirmava que uma nova Constituição
respaldaria os desejos da maior parte dos brasileiros: voto secreto e universal, afastando o
poder das oligarquias locais.

Atacando diretamente a estrutura de poder que beneficiara o PRP e o núcleo de poder paulista
de décadas, São Paulo marcou posição contra Vargas. Na noite de 23 de maio de 1932, uma
massa de manifestantes armados de porretes e barras de ferro se dirigiram à Praça da
República, no centro da cidade de São Paulo: o objetivo era destruir a sede do Partido Popular
Paulista (PPP), que era apoiador do governo getulista.

Os manifestantes não contavam que o local não estava vazio: nas primeiras tentativas de
invadir a sede do PPP, tiros foram disparados do interior do imóvel. A batalha terminaria
apenas no amanhecer do dia seguinte, com o saldo de 13 mortos. A imprensa da época,
entretanto, destacaria a morte do auxiliar de escritório Euclides Miragaia, do comerciário
Antônio Américo Camargo Andrade, do fazendeiro Mário Martins de Almeida e do ajudante de
farmárcia Dráusio Marcondes de Sousa (que tinha 14 anos de idade). A sigla com o nome dos
mortos entraria para a história: MMDC.

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