imóvel, flácido e inquietamente despido de humanidade. O céu está ganhando uma coloração acinzentada, firme, há nuvens anunciando chuva e trovões para mais tarde; Miriam está chorando, convulsivamente, ancorada no muro ao lado do corpo inerte, com o sangue cobrindo o lado direito da face — é um homem, alto e moreno. Miriam observa, um pouco mais calma, os contornos do rosto do homem, não distingue nada de forma clínica, mas difusa e acelerada: olhos castanhos, cabelo crespo, nariz adunco, lábios grossos e arroxeados, queixo coberto por marcas e a pele pálida, opaca em todos os cantos. Miriam decide mover-se, preciso de ajuda, pensa ainda em choque; já devia ser oito horas da manhã e ninguém saiu de casa, há um silêncio quase palpável. Ela anda para mais perto do homem, agacha-se e observa se o peito dele demonstra qualquer indício de vida, lentamente encosta os dedos trêmulos e suados no pulso do homem, tateia em busca de alguma pulsação, por mais fraca e distante que seja; não encontra nada, chora pela desesperança que sente, pela fragilidade que é a vida. Começa a procurar algo nos bolsos e encontra alguns documentos: chamava-se Felipe, vinte e quatro anos e era originário da Bahia; ainda busca por um celular ou algum número que possa ligar, mas não acha coisa alguma; deve ter sido assaltado, pensa um pouco mais calma. Miriam levanta e vai até a casa mais próxima, uma casa azul de paredes altas e com flores na varanda, chama duas vezes, toca mais cinco a campainha e ninguém atende; tenta a casa ao lado e mais uma vez ninguém atende, temendo distanciar-se do rapaz não vai mais longe e desiste de acorrer àquela vizinhança. Tenta pegar o celular, mas esquece como funciona aquele aparelho indiferente e insensível aos tremores que a acomete. Senta-se no meio-fio tentando se acalmar mais uma vez, tentando a racionalidade que tantas vezes esteve com ela. Eu preciso de ajuda, alguém, por favor Deus, me ajuda, em teu nome eu me doo e peço ajuda, clama para si mesma como se não esperasse de fato algo divino, mais como um gesto mecânico. Pega mais uma vez o celular e liga para Marcela — a conhecera três meses atrás e se apaixonara
intensamente: Marcela é doce, gentil, inteligente
e bem humorada, a toca como nunca havia sido tocada e sempre a manda mensagens de bom dia com algum poema, o de hoje é "Sábado de Aleluia", de Ana Cristina César. Marcela não atende, deve estar dando aula, sussurra para a tela do celular. Decide ligar para Paulo, esquece que o amigo poeta foi assaltado na última quinta, e não recebe resposta — Paulo é um negro, baixo e extremamente adverso a política, um homo apoliticus como tantas vezes Miriam o descrevera, é um poeta inquieto, tímido e melancólico; Miriam se apaixonou por ele no mesmo instante que ele declamou para ela um de seus versos: "deito-me com Morfeu como se, em meus sonhos, pudesse te olhar pelos olhos dos santos e vestir tua nudez com a manta da minha luxúria". Miriam está com medo, se sentindo fraca, frágil e confusa; grita com toda energia que pode para que alguém apareça, diz que há um rapaz morto, mas ninguém responde. Observa mais uma vez o rapaz e percebe uma tatuagem no braço esquerdo, uma mancha lilás na parte inferior da camiseta branca, é um homem de ombros fortes, possui uma cicatriz na sobrancelha e um corte na têmpora direita; eu preciso fechar os olhos dele, pensa com uma dor subindo pela garganta, pois isso confirmaria a morte daquele jovem: sua alma poderia descansar em paz e não mais velar os vivos. Ao se aproximar novamente do homem, lembra de uma canção de sua infância, algo sobre um anjo bom beijando as faces rosadas das crianças bem comportadas; ninguém te prepara para a morte, quando não oferecem anestésicos ou eufemismos nos dão rascunhos especulativos da aniquilação, ela diz isso olhando para o corpo ali estendido, frio, como se confessasse alguma verdade misteriosa. Miriam teme que suas digitais fiquem impressa naquela massa gélida e já apodrecendo, sente a juventude daquele corpo sendo desmanchada, em um átimo olha para o membro do homem e fantasia sobre o tamanho e as experiências daquele sexo: o que acontece com o ser quando o corpo torna-se uma forma disforme qualquer? Miriam não sabe, mas teme a resposta. Miriam levanta, agora são dez horas e quarenta e cinco minutos, o céu desfez as nuvens de chuva, um sol escaldante começa a incidir sobre o corpo dos dois ali, um cachorro começa a latir, Miriam o escorraça; pega a bolsa que deixou cair, ajeita-se, liga para a polícia informando o ocorrido. Faz uma oração atropelada e senta-se para observar aquela coisa estirada aos seus pés. Miriam está indo embora.