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Há uma mulher encostada perto da igreja. Evoé pela escadaria,


banho de ervas e bênção do Bonfim; cristãos impiedosos
resmungam os tambores de Candomblé exaltando expurgo lusitano;
indígenas armam-se com tintas e lanças, ladeira abaixo o
sincretismo grita "Pai Oxum" e Seu Emanuel - português amante do
Brasil - reconta a história da Bahia nos sambas de roda. O padre
Antônio confessou aos fiéis o amor de Cristo por Salvador; soldados
vieram de Itapuã reclamando o lugar de patrícios protetores da
nação - exigiram monumento como dos Bandeirantes e mostraram
carta como prova de sua nobreza:
"Sob vossas cabeças um céu se espanta pela negligência com que
tratam a voz da autoridade e máximo respeito...".
Um estardalhaço rompeu as grades da prefeitura: as pessoas
exigiam soluções para o golpe militar que estava se instaurando em
Salvador. Não houve notícias do prefeito, havia saído para um
encontro em Paris e só voltaria mês que vem.
Há uma mulher sentada perto do Farol, ela olha indecisa para um
rapaz negro. Ela levanta-se e o abraça por trás, eles sorriem e ela
ralha com ele por ter demorado tanto; Thiago, ela o chama com um
sotaque carioca. Eles observam confusos o banho de pipoca e a
panelada política que os cerca, correm para uma pousada próxima
e se hospedam por dois dias.
"Senhoras e senhores, crianças e meus prezados jovens detenho
aqui, em minhas mãos, a verdadeira voz do povo e ela diz:
“Todo poder aos militares brasileiros, uni-vos, ó população de todo
o mundo, e lutai para uma nação forte e livre de pestilências
transgressoras da vontade de nosso Senhor Deus’", o soldado
segura um papel pardo e o levanta para a multidão na praça.
Thiago grita para que a mulher feche rápido as janelas:
"Eles virão atrás de nós, Débora".
Ela fecha lentamente as cortinas: um toque no tecido áspero, uma
frase inaudível, o silêncio de ambos, os gritos do povo, o povo
levantado tochas e multidões seguindo para o centro; um
centímetro ainda resta de cortina, uma ótima olhada. A visão da
janela é uma fagulha, um vislumbre, um ponto, uma forma, uma
imagem acústica, a estampa assimétrica de rosas, uma
unilateralidade.

09:39
"Encontrei ao acaso o vão de nós,
delatei-me no prosaísmo".
Ando lendo sentimentações; hoje sentei-me na calçada e um
arrepio desesperado tomou forma em mim: o ar ficando mais
espesso, o céu revolto, os menores barulhos audíveis... O mundo é
um monstro tedioso, uma lâmina perfurante que arranha circular e
cíclica. 80’s songs and a countryside view through the window. Last
night i woke up at 4am e rasbiquei centímetros de poesia lusitana:
"Aos fatos a inexatidão,
os cantos de nossas conversas
seguram o tênue:
meandyou sob um sol escaldante
e eu te amo mais
quando tudo amansa e os
nossos corpos casam-se".

09:51
Querido diário:
amargura e crise das nove --- expurgo
do velhos escritos --- falação e
um cigarro LA para o último
sinal: o toque de recolher badala
cinco vezes e depois é catarse:
corpos ensandecidos pela calçada --- arranjo
matrimonial e desemprego --- dez em ponto
e a carne ainda no congelador --- matadouro
454 clandestino do outro lado da rua. Minha
tia morreu ontem, chorei alguns segundos e fiz-me de rancoroso
pelo mundo; uma dor de barriga desatou. Débora elevadíssima in
high heels me espera na porta do hotel, arranhei um sotaque
britânico e meti um s’il vous plâit meio desarranjado. Querido
Ricardo:
Minha mãe vai morrer soon, don’t make
a surprise face! It is not a big thing.
Sadness of seventeen: o mundo meio
blasé. Onze e dois na ponta do relógio de parede; it is time to
measure the infinite by the sounds of your words.

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