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Pós-graduação
Departamento de Filosofia da Universidade de
São Paulo
Todo leitor de Thomas Mann conhece esta passagem. Ela está no capítulo XXV de
Doutor Fausto e narra o momento em que o diabo procura o compositor Adrian
Leverkuhn para firmar com ele um pacto, mostrar-lhe o caminho da nova linguagem
musical. Conversa tensa, que em dado momento é suspensa pela contemplação de
uma impressionante metamorfose. Nela, o diabo apresenta uma de suas
especialidades, a arte de mudar de figura. Não, agora ele não se parecia mais com um
rufião ou um marginal. Na verdade:
1
MANN, Thomas; Doutor Fausto, p. 335
2
Idem, p. 338
aparecera para Fausto, de Goethe, sob a forma de Hegel.É provavelmente pensando
nel que Mefistófoles dirá:
Os escritores alemães, ou pelos menos alguns dos melhores deles, são à sua
maneira bastante aristotélicos. Pois de onde viria esta peculiar tendência de associar a
dialética nascente em seu território à uma atividade infernal, se em algum momento
eles não tivessem passado os olhos pela Metafísica, de Aristóteles? Desde Aristóteles,
aquele que acredita poder suspender o princípio de não-contradição só pode nos
convidar a viver em um mundo no qual julgamentos não são mais possíveis, no qual a
desorientação caótica reina. Dizer que a contradição não é o índice de uma
impossibilidade do pensamento determinar objetos, como quer o partido da dialética,
é abrir as portas para a dissolução completa, dissolver o mundo enquanto estrutura
capaz de responder à exigências elementares de ordem. A desconfiança da dialética
como a expressão do desejo cego e diabólico de dissolver mundos vem de longe.
Goethe e Thomas Mann sabiam disso.
Assim, não é de se estranhar que, a partir de certo momento, a última versão
da dialética, esta que conhecemos pela alcunha de dialética negativa, fosse acusada
como representante maior dos que estavam envolvidos nas sanhas niilistas da
dissolução completa. Reduzindo o pensamento ao “uso ad hoc da negação
determinada”, como dizia Habermas, a última versão histórica da dialética nunca
ofereceria um horizonte de reconciliação ao alcance da vista. Seus olhos úmidos,
sombrios, um tanto avermelhados, como disse Mann, só poderiam expressar o
niilismo desse “espírito que sempre nega” e que nos convida a ir ao inferno, nem que
seja a este inferno frio do Grande Hotel Abgrund. Pois, se o diabo é um desses
fenômenos que se diz de muitas maneiras, o inferno também se declina de forma
generosa. Ele pode ser, por exemplo, este lugar no qual a ruína parece eterna e
insuperável, no qual estamos condenados à cantar a cantinela triste da finitude, lugar
no qual as condições da praxis transformadora encontram-se, por isto, completamente
impossibilitadas, não restando outra coisa a não ser o pensamento que denuncia toda
solução como uma traição, toda imanência como um recuo. Um inferno que mais
parece o mundo invertido depressivo produzido por uma teologia negativa. Esta
pareceria ser a estação final da longa e complexa história da dialética no pensamento
ocidental.
Bem, se propus este curso é porque valia a pena perguntar sobre o que
aconteceria se tal leitura corrente estivesse radicalmente errada. Errada não apenas no
que diz respeito à dialética negativa de Adorno, mas principalmente no que diz
respeito à esta tradição dialética que inicia a partir de Hegel. Erro que não seria
simples incompreensão em relação a esses textos (como se diz) incompreensíveis de
filósofos como Hegel e Adorno, no qual as orações subordinadas parecem entrar em
compasso de vertigem. Erro que seria, na verdade, um desesperado modo de defesa do
senso comum contra essa forma de pensamento capaz de mostrar como:
A aparição é o surgir e o passar que não surge nem passa, mas que é em si e
constitui a efetividade e o movimento da vida da verdade. O verdadeiro assim
é o delírio báquico, onde não há membro que não esteja ébrio; e porque cada
membro, ao separar-se, também imediatamente se dissolve, esse delírio é ao
mesmo tempo repouso translúcido e simples. Perante o tribunal desse
movimento, não se sustêm nem as figuras singulares do espírito, nem os
pensamentos determinados; pois aí tanto são momentos positivos necessários,
quanto são negativos e evanescentes3.
Esse delírio báquico, onde não há membro que não esteja ébrio, só pode
aparecer para um certo senso comum como palavreado de quem quer criar
movimentos que são, ao mesmo tempo, repousos translúcidos e simples, surgir e
passar que não surgem nem passam, evanescências que não são apenas
desaparecimentos mas, ao mesmo tempo, momentos positivos e necessários. No
coração desta dialética delirante encontra-se, na verdade, um desejo diabólico de
dissolver a segurança do mundo e, com ele, as figuras singulares do espírito e os
pensamento determinados.
Assim, alguém que quiser pensar de maneira dialética começará por se
perguntar se não é a partir de tal dissolução que se inicia a verdadeira filosofia, se a
filosofia, ao menos esta que a dialética defende, não seria exatamente o discurso
daqueles que não precisam de um mundo, ou seja, que não precisam disto que nos
permite nos orientar no pensamento a partir da imagem de uma totalidade meta-
estável que, se não está atualmente realizada, colocar-se-ia ao menos como horizonte
regulador da crítica. Talvez isto explique porque as paradas finais da dialética sempre
foram tão sumárias e econômicas. Todo leitor de Hegel já percebeu como as
discussões sobre o saber absoluto são não muito mais que uma dezena de páginas, de
que as discussões de Marx sobre a sociedade comunista não enchem mais do que
algumas frases e que os momentos de conciliação em Adorno quase nunca são
efetivamente postos. Na verdade, por mais que seus detratores não queiram ver, isto
se explica pelo fato da teleologia da dialética ser a própria imanência do movimento
que ela desvela. Movimento este que será a pulsação interna da experiência do
conceito.
Neste sentido, a dialética nunca poderia ser diagnosticada, como muitos os
fizeram, como a perpetuação da eterna melancolia dos que só veem possibilidades que
nunca se realizariam por completo, seja porque a efetividade social no capitalismo
impede toda reconciliação possível, seja porque os traumas históricos do século XX
exigem meditar infinitamente sobre a barbárie ou seja porque o pensamento assumiu
uma ontologia da inadequação. Há um equivoco fundamental de setores importantes
da filosofia contemporânea a respeito do que realmente significa a atividade negativa.
Pois, longe de ser uma figura moral da resignação diante do não realizado, longe de
ser o mantra de um culto teológico à impossibilidade, a negatividade é forma de não
esmagar a possibilidade no interior das figuras disponíveis das determinações
presentes ou, e este é o ponto talvez mais importante, no interior de qualquer presente
futuro que se coloque como promessa. Ou seja, a possibilidade não é apenas mera
possibilidade que aparece como ideal irrealizado. Ela é a latência do existente que nos
esclarece de onde a existência retira sua força para se mover. Neste sentido, a
negatividade dialética não é nem poderia ser expressão de alguma espécie de falta ou
privação, como vemos, por exemplo, na tradição da crítica deleuzeana à dialética
3
HEGEL, G.W.F.; Fenomenologia do Espírito,
hegeliana. Ela é manifestação do excesso do processo do conceito em relação às
possibilidades das determinações postas.
Por isto, se tal latência do existente deve ser compreendida como negatividade
é porque ela pede a desintegração do que se sedimentou ou do que procura se
sedimentar como presença. Esta é uma ideia fundamental da dialética: começa-se
pensando contra representações naturais que se sedimentaram principalmente em uma
estética transcendental, em um conceito representativo de espaço e tempo, e não será
por acaso que daremos atenção especial, em nosso curso, às discussões sobre a
compreensão dialética do tempo.
Ontologia em situação
Uma zona de sombra que, como veremos, pode ser expressa sob a forma de
possíveis que não são postos na determinação do objeto, como “desatualização” do
objeto posto, como pura indeterminação, entre outras figuras.
Para finalizar, gostaria ainda de voltar ao conceito de “ontologia em situação”
a fim de insistir como a dialética é sensível à modificação histórica dos sistemas de
ideias, ou se quisermos, ao que aparece ao pensamento com “representação natural”.
Ela é sensível à maneira com que o “campo das experiências possíveis” modifica-se
historicamente a partir de um sistema de causalidades múltiplas. Mas isto significa,
principalmente, que ela também modifica sua forma de construir a “unidade entre
crítica e apresentação da metafísica”. O sistema de posições e pressuposições da
dialética, aquilo que ela deve apenas pressupor e aquilo que se ela se vê em condições
de anunciar deverá necessariamente se modificar de acordo com as condições
históricas. Isto é o que devemos compreender, em última instância, como “ontologia
em situação”.
14
FAUSTO, Ruy; Marx – ló gica e política, op. cit., pp. 149-150
Podemos fornecer um exemplo sobre esta modificação do sistema de posições
e pressuposições da dialética a partir do problema da relação entre Estado e totalidade
em Hegel e Adorno. Sobre a teoria hegeliana do Estado, Adorno afirmará que Hegel
sabe muito bem como a sociedade civil é uma totalidade antagônica. Da mesma
forma, ele sabe que as contradições da sociedade civil não podem ser resolvidas
através de seu movimento próprio. Sabemos como, ao insistir que a distinção entre
sociedade civil e Estado é uma característica maior do mundo moderno, Hegel se
contrapõe a certas teorias liberais que compreendem o Estado apenas como a estrutura
institucional cuja função seria garantir e assegurar o bom funcionamento da sociedade
civil a partir de princípios de defesa dos indivíduos com seus interesses econômicos
particulares. Hegel não teria problemas em admitir que: “a sociedade civil é o
fundamento objetivo da emancipação dos cidadãos modernos e da subjetividade
moderna”15. Mas ele insistiria que, levando em conta apenas seu movimento próprio, a
sociedade civil, como expressão dos princípios do livre-mercado, tende
fundamentalmente à atomização social, à clivagem e à pauperização de largas
camadas da população. Lembremos deste famoso trecho dos Princípios da filosofia
do direito:
17
ADORNO, Tres estudos sobre Hegel,
18
ADORNO, Spä tkapitalismus oder Industriegesellschaft?, pp. 363-364
esforço imperturbável para conjugar a consciência crítica que a razão tem de si
mesma com a experiência crítica dos objetos19.
Aprende então o que quero dizer com o outro segmento do inteligível, daquele
que a razão (logos) atinge pelo poder da dialética, fazendo das hipóteses não
princípios, mas hipóteses de fato, um espécie de degraus e de pontos de apoio,
para ir até aquilo que não admite hipóteses, que é o princípio de tudo,
atingindo o qual desce, fixando-se em todas as consequências que daí
decorrem, até chegar à conclusão, sem se servir em nada de qualquer dado
sensível, mas passando das ideias uma às outras, e terminando em ideias21.
Na aula de hoje, gostaria de mostrar como Hegel inicia sua Ciência da Lógica
respondendo à pergunta : “por que uma ontologia do ser não é possível?”. Ou seja,
por que “ser” é uma categoria que não serve como fundamento para a determinação
normativa do que deve orientar nossa experiência do mundo. Devemos então nos
perguntar sobre qual problema a categoria de “ser” oferece, qual a natureza de sua
inadequação. Veremos como Hegel desenvolve a seguinte resposta: “Uma ontologia
do ser não é possível porque o ser é pura abstração”. O ser é exatamente aquilo do
qual se diz apenas uma tautologia auto-referencial (“O ser é aquilo que é”). Esta sua
indeterminação não é resultado de sua realidade superior em relação a todo ente,
como se estivéssemos diante de um Ens realissimus. Na verdade, para Hegel, ela é
apenas substancialização de ausência de realidade concreta.
Contra esta ausência de realidade, veremos em outras aulas como Hegel
propõe uma ontologia assentada no conceito de essência (Wesen), isto depois de
reconstruir a noção de essência através da absorção daquilo que Aristóteles entendia
por energeia (que pode ser traduzido por atividade, ato) e dynamis (potência,
movimento) no interior de uma teoria da reflexão. Hegel acredita que uma ontologia
do ser irá necessariamente transformar o fundamento em normatividade sem
temporalização, fundamento ligado à procura de expressão imediata do originário
pensado como pré-subjetivo. Falar de ser, seria para Hegel sempre retornar aos
domínios das identidades abstratas. Já a reconstrução hegeliana do conceito de
essência seria, ao menos para Hegel, dotado da possibilidade de compreender os
processos de temporalização. Tal forma hegeliana de desqualificar uma ontologia do
ser nos leva, necessariamente, a avaliar as críticas que, um século depois, Heidegger
fará à estratégia hegeliana. Como veremos, estará em confrontação duas maneiras
distintas de se pensar a temporalização das categorias da ontologia, ou seja, esta
maneira de pensar como a ontologia é capaz de dar conta do que se manifesta no
interior do tempo.
No entanto, se uma ontologia do ser não é possível, isto não significa que a
experiência da indeterminação do ser seja uma simples ilusão. Ela tem um conteúdo
de verdade, pois será a primeira manifestação de uma impossibilidade que servirá de
motor para o movimento dialético, a saber, a impossibilidade de pôr a identidade
imediata entre realidade (Wirklichkeit) e fenômeno (Erscheinung). A experiência da
indeterminação nos lembra que há algo que não se esgota nas formas atualmente
determinadas da presença. Em última instância, ela nos obrigará a reconstruir a
própria noção do que significa “determinar algo”. De uma certa forma, a
impossibilidade de uma ontologia do ser já é uma experiência com conseqüências
ontológicas. Isto talvez nos explique porque a impossibilidade de uma ontologia do
ser leva Hegel a afirmar algo como a possibilidade de uma ontologia que parte desta
que será a primeira categoria concreta da Ciência da Lógica, a saber, o devir.
Podemos dizer que uma ontologia que parte do devir não pode ser apenas uma
doutrina que substitua a centralidade do conceito de ser por um conceito de outra
natureza, como, no caso, o devir. Na verdade, sua operacionalidade deve ser diferente,
seus processos devem ser descritos de outra maneira. Trocar um conceito por outro
conservando a operacionalidade interna da teoria, seu modo de conceitualizar, não nos
leva muito longe. Por isto, podemos dizer que a ontologia tentada por Hegel tem por
característica principal procurar apreender os conceitos em seu processo de alteração.
Ela parte da defesa de que nenhum conceito isolado apreende adequadamente os
processos internos ao campo da experiência, mas tais processos podem ser
apreendidos através da passagem de um conceito a outro. Vale aqui o que dirá
posteriormente Adorno a respeito de Hegel: “Como cada proposição singular da
filosofia hegeliana reconhece sua própria inadequação à unidade, a forma exprime
então tal inadequação na medida em que ela não pode apreender nenhum conteúdo de
maneira plenamente adequada”31. Este movimento de passagem, que mostra a
insuficiência de conceitos pensados como descrição de objetos, é o fenômeno que
funda uma ontologia de caráter especulativo, como quer Hegel.
Uma maneira possível de compreender melhor este ponto passa pela tentativa
de compreender a natureza da estrutura peculiar da Ciência da Lógica com suas
divisões. Tal estrutura já nos introduz a certas especificidades do conceito hegeliano
de ser.
A primeira divisão com a qual nos defrontamos é a dualidade Lógica objetiva
(que engloba a Doutrina do ser e a Doutrina da essência) e a Lógica subjetiva
(Doutrina do Conceito). Grosso modo, a divisão não parece trazer maiores
dificuldades, já que ele parece indicar um movimento de internalização no qual a
tematização do ser (objeto da lógica objetiva), enquanto determinação aparentemente
exterior à forma do pensar, entra em movimento até se transformar em tematização do
conceito (objeto da lógica subjetiva). Ao alcançar a forma do conceito, o movimento
que animou as categorias ligadas ao ser, dará a forma para a re-organização dos
elementos da lógica tradicional (conceitos/formas do julgamento/modo s de
inferência). Ou seja, a passagem da lógica objetiva à lógica subjetiva descreveria, em
larga medida, o movimento através do qual a substância (o ser) é apreendida como
sujeito (o conceito), já que esta dualidade é inspirada da distinção sujeito/objeto.
No entanto, há duas peculiaridades importantes nesta divisão. Primeiro, a
lógica objetiva é dividida internamente a partir de duas noções (ser e essência).
Segundo, a lógica subjetiva não se contenta em apenas re-organizar os elementos da
lógica tradicional. Ela tem ainda uma longa subdivisão intitulada exatamente
“objetividade”, onde é questão de categorias normalmente vinculadas à filosofia da
natureza, como o “mecanismo”, o “quimismo” e a “teleologia” própria a organismos
biológicos (ou seja, os dispositivos de determinação da racionalidade dos fenômenos
nos campos da física, da química e da biologia). Como se não bastasse, a última
subdivisão, intitulada “A idéia”, dá espaço para a “vida”, assim como para a idéia do
verdadeiro (objeto da teoria do conhecimento) e do bom (objeto da moral) não dando,
curiosamente, desenvolvimento para a idéia do belo (objeto da estética). O que pode
se explicar se levarmos em conta que Hegel quer, na verdade, insistir na maneira com
que a Idéia unifica teoria e prática (o que o par verdadeiro/bom já parece dar conta).
De qualquer forma, fica claro como a tendência da lógica subjetiva é retornar à
exterioridade. Note-se que a Idéia não é nem uma categoria da subjetividade, nem da
objetividade. Ao contrário, ela é o que se encontra para além e para aquém da
distinção sujeito e objeto. Por isto, ela deve aparecer como superação destas
perspectivas particulares.
31
ADORNO, Drei studien über Hegel, p. 104
Analisemos pois o sentido da primeira destas “peculiaridades” na estrutura da
lógica hegeliana, a saber, a necessidade de dividir a lógica objetiva a partir das noções
de ser e essência. Ela é justificada por Hegel a partir da exigência de introduzir uma:
32
HEGEL, Wissenschaft der Logik I, p. 58
33
HÖ SLE, idem, p. 247
34
LONGUENESSE, Hegel et la critique de la métaphysique, p. 9
Mas antes de passar diretamente à Doutrina do ser, Hegel deve responder à
questão: Qual deve ser o começo da ciência? Como sabemos, já na Fenomenologia
Hegel criticava todo empreendimento filosófico que fizesse apelo a estratégias de
dedução transcendental a fim de assegurar o saber no campo prévio a toda e qualquer
experiência. Neste caso, o primeiro passo do saber fenomenológico consistia em
examinar a figura da consciência que procura afirmar a possibilidade da
imediaticidade entre pensar e ser. Era daí que Hegel partia no primeiro capítulo do
livro, este dedicado à Certeza sensível. Maneira hegeliana de proceder de forma
imediata a fim de ver se é possível um saber que tenha duas características
fundamentais: espontaneidade e caráter repentino (Plötzlichkeit)35. Saber que apreende
de maneira imediata seu objeto e que estabelece a possibilidade de operações
intuitivas aparentemente independentes de toda capacidade conceitual. Como dirá
Heidegger: “O saber imediato tem precisamente este traço em si, este modo de saber:
deixar o objeto completamente a si mesmo. O objeto se sustenta em si como o que
não tem necessidade alguma de ser para uma consciência, e é exatamente ao tomá-lo
como tal, como o que se dá em si que a consciência o sabe imediatamente” 36. É a
impossibilidade deste saber que deixa o objeto completamente a si mesmo que nos
levará aos caminhos trilhados pela Fenomenologia.
No entanto, a consciência acredita que o conteúdo concreto deste saber é “um
conhecimento de riqueza infinda, para o qual é impossível achar limite”. Este saber é
apresentado como uma certeza sensível (sinnliche Gewissheit), ou seja, certeza de que
a presença do ser se dá através da receptividade da sensibilidade. Presença integral do
ser, já que “do objeto nada ainda deixou de lado, mas o tem em toda a sua plenitude,
diante de si”. Presença que, por se dar através de uma intuição imediata, não se
completa através do desdobramento do espaço e do tempo ou da inspeção detalhada
de suas partes. Ao tematizar o que chama de certeza sensível, Hegel procura assim dar
conta de toda tentativa de pensar a tarefa filosófica como retorno à espontaneidade do
ser, retorno à origem muda graças a receptividade plena de uma intuição não-
dependente do trabalho do conceito. Retorno que Hegel descreve como a crença de
que é possível filosofar como quem dá um tiro com uma pistola.
Neste sentido, a Fenomenologia do Espírito e a Ciência da lógica se
encontram nos seus respectivos pontos de partida. Se a Fenomenologia inicia seu
trajeto através da tematização do saber imediato do puro ser, a Lógica também parte
do puro ser a fim de mostrar como ele equivale ao nada indeterminado.
Mas antes de apresentar suas reflexões sobre o ser, Hegel se pergunta porque
não começar pelo Eu, elevando com isto o princípio de subjetividade à condição de
fundamento da objetividade do saber e dando continuidade, desta forma, a uma
seqüência que conhecemos atualmente como “filosofias da consciência”, que tem em
Kant sua figura mais bem acabada, e que Hegel alude ao da maneira com que o “novo
tempo” (ou seja, a modernidade) elevou o Eu a condição de fundamento do saber. As
colocações de Hegel a este respeito são de extrema importância.
Hegel insiste que a primeira verdade que constitui a série do saber deve ser
uma certeza imediata (unmittelbar Gewisses). No entanto, há uma dificuldade
estrutural em tomar o Eu como o fundamento desta certeza imediata. Mas o Eu, ao
mesmo tempo em que procura afirmar-se como consciência-de-si imediatamente certa
de si mesma, é uma instância empírica envolta na “multiplicidade infinita do mundo”.
É isto que Hegel tem em mente ao afirmar : “mas Eu em geral é também, ao mesmo
tempo, um concreto, ou ainda, na verdade, o Eu é o que há de mais concreto – a
35
THEUNISSEN, Michael; Sein und Schein, p. 201
36
HEIDEGGER, A fenomenologia do espírito de Hegel, p. 92
consciência de si como um mundo infinitamente múltiplo” 37. Para ser fundamento, o
Eu deve se separar desta multiplicidade empírica. Isto exige um ato absoluto através
do qual o Eu se purifica de si mesmo como Eu abstrato (ou, se quisermos, como
sujeito transcendental). Isto significa elevar-se a esta perspectiva do puro saber onde a
diferença entre sujeito e objeto desaparece (já que o Eu aparece como fundamento
para a constituição de todo e qualquer objeto da experiência).
Mas Hegel insiste que este puro Eu não é um imediato acessível ao “Eu
ordinário” (gewöhnlich Ich). Mesmo assim, para não ser uma perspectiva arbitrária e
imposta de maneira não-reflexiva, seria necessário que: “o movimento dos Eus
concretos da consciência imediata até o puro saber fosse mostrado e apresentado neles
mesmos a partir de uma necessidade interna”38, como se o fundamento do saber fosse
gerado a partir da necessidade interna própria ao Eu empírico (caminho que, no
fundo, é o sentido da Ciência da experiência da consciência), e não como ruptura
radical em relação a toda e qualquer empiricidade do Eu psicológico. No entanto:
Esta é, sem dúvida, uma das afirmações mais conhecidas e polêmicas de Hegel. Antes
de comentá-la, notemos a peculiaridade que consiste em afirmar que a primeira
manifestação da qualidade é a indeterminação. Hegel reconhece que, por ser
indeterminado, o ser aparece como desprovido de qualidade; mas em-si o caráter de
indeterminação é posto como oposto da determinação ou do qualitativo. Por isto, o
ser: “faz da sua própria indeterminação sua qualidade”41.
Esta posição do ser como indeterminação aparece a Hegel porque o ser, como
começo, não pode referir-se a nada outro que ele mesmo, senão ele não seria começo,
isto no sentido da categoria mais imediata do saber. O ser é auto-referência imediata e
incondicional. No entanto, como a determinação é um processo relacional, só se
determina algo em relação a outro algo que é posto ao mesmo tempo, então esta auto-
referência imediata do ser só pode equivaler à absoluta indeterminação. Daí porque
Hegel pode dizer: “Qualquer determinação ou conteúdo que seriam postos nele como
diferentes, ou através do qual ele seria posto como diferente de um outro não lhe
permitiria manter-se em sua pureza”. De fato, o ser só passa à determinação quando
é posto em uma situação, ou seja, em um contexto (Zusammenhang) próprio à
existência. O que nos explica porque a segunda categoria da qualidade deve
necessariamente ser o Dasein (no sentido de existência, presença, ser-aí). Desprovido
de uma situação, abstraído de todo contexto ôntico, o ser só pode ser apreendido como
pura abstração:
Desta forma, Hegel procura criticar todo conceito pré-reflexivo de ser por
acreditar que isto significa fazer a filosofia determinar, como seu objeto privilegiado,
nada mais do que um vazio total, um X inexprimível que, por se subtrair a toda
predicação, advém um Ens realissimum.
Hegel dirá então que o ser: “é apenas a própria intuição pura, vazia”, ou seja, o
pensamento desprovido de objeto. Ao definir posteriormente o nada como “igualdade
simples consigo mesmo, vazio perfeito (vollkommene)”, Hegel admite que ele pode
40
HEGEL, Wissenschaft der Logik I, p. 82
41
HEGEL, idem, p. 82
42
HEGEL, Enciclopédia, par. 87
existir em nossa intuição ou pensamento. O que não deixa de nos remeter à noção
kantiana de ens imaginarium, uma intuição vazia sem objeto que Kant define nos
seguintes termos: “A simples forma da intuição, sem substância, não é em si um
objeto [determinado], mas a sua condição simplesmente formal (como fenômeno),
como o espaço puro e o tempo puro que são algo, sem dúvida, como formas da
intuição, mas não são em si objeto suscetíveis de intuição (ens imaginarium)”43. Neste
sentido, se aceitarmos a definição proposta do ser como forma da intuição vazia sem
objeto, como aquilo que nos permite nomear a forma do tempo puro e do espaço puro,
então chegaremos a uma situação estruturalmente similar àquela que encontramos no
primeiro capítulo da Fenomenologia do Espírito. Lá, vemos a consciência tomar a
pura forma do tempo e do espaço como ser de realidade mais elevada. De uma certa
forma, ela crê ser possível substancializar a pura forma do espaço e tempo, chamando
tal substancialização de “ser”. Mas ao tentar expressar tal forma pura da intuição, a
consciência fará a experiência contraditória da impossibilidade de tal expressão. Não
posso expressar a pura forma da intuição. Ao tentar, ou digo apenas nada ou coloco o
ser em relação, não tenho mais a pura forma da intuição, mas tenho um conteúdo
situado. Hegel dirá : não tenho mais o ser (Sein), mas apenas o ser-aí (Da-sein).
Hegel lembra que a consciência acredita ter muito mais do que o puro ser que
constitui a essência da sua certeza sensível: “Uma certeza sensível efetiva (wirkliche
sinnliche Gewissheit) não é apenas essa pura imediatez, mas é um exemplo da
mesma”44. Ou seja, a consciência acredita ter uma colocação em cena desta imediatez,
o que demonstraria que não estávamos diante de um puramente indeterminado. Esta
colocação em cena é operada através da capacidade que teria a consciência de indicar
o ser através de dêiticos como “isto”, “este”. Através deles, a consciência quer
indicar, de maneira ostensiva, a significação do ser que lhe aparece à intuição. No
entanto, o “isto” e o “este” produzirão a determinação diferenciadora da singularidade
do ser. Não estaremos mais exatamente diante do puro ser. Colocar em cena a
imediatez é necessariamente diferenciar, colocar o ser em relação e romper o
absoluto.
O que é interessante neste contexto será o saldo da experiência. Ao tentar
substancializar o que deveria ser simples condição formal para os fenômenos (a saber,
as formas pura da intuição), a consciência não cometia um simples equívoco. Na
verdade, ela procurava tematizar o incondicionado. Mas ao procurar o
incondicionado, ela apenas encontrou o indeterminado. Vai da astúcia de Hegel
afirmar que tal experiência não é um simples fracasso, mas deslevamento do excesso
que indica como toda estruturação de objeto será sempre assombrada pela
indeterminação. Pois a afirmação segundo a qual o ser é, de fato, nada, não mais nem
menos que nada, visa solapar a segurança ontológica do que deveria aparecer como
fundamento para o processo de determinação dos objetos. Tentemos compreender
melhor este ponto.
43
KANT, Crítica da razão pura, B 347/A 291
44
HEGEL, Fenomenologia, par. 91
O puro ser e o puro nada são pois o mesmo. O verdadeiro não é nem o ser
nem o nada, mas que o ser passou no nada (übergegangen ist) e que o nada
passou no ser – não que ele passa. No entanto, ao mesmo tempo, a verdade não
é a indiferenciação entre os dois, mas que eles não são o mesmo, que eles são a
diferença absoluta, embora sejam inseparáveis e inseparados e que,
imediatamente, cada um desaparece em seu oposto. Sua verdade é pois este
movimento do imediato desaparecer de um no outro: o devir, um movimento
através do qual ambos são diferentes, mas através de uma diferença que
imediatamente se dissolveu (aufgelöst hat)45.
Este pequeno parágrafo sintetiza o que Hegel entende por movimento e identidade
dialética. Não se trata exatamente de dizer que “ser” e “nada” são termos que
designam o mesmo, um pouco como “Vênus” e “estrela Dalva” designam o mesmo.
Trata-se de dizer que eles alcançam uma identidade que é resultado de um
movimento. No entanto, trata-se de um peculiar “movimento imediato”, ou seja,
movimento que ocorre imediatamente a partir do momento em que um termo é posto,
já que não é possível ao ser pôr-se sem passar no seu oposto (passagem no oposto que
Hegel chama de Verkehrung - inversão). Esta é uma maneira de dizer que o conceito
de ser não tem realidade. Da mesma forma, o conceito de nada não tem realidade.
No entanto, a passagem do conceito de ser ao conceito de nada tem realidade. Esta
passagem não é alguma forma de nadificação do ser, mas de reconhecimento da
insuficiência de sua significação. A significação do ser demonstra sua inanidade
quando é posta.
Aqui, devemos entender melhor a idéia de posição. Tentemos, por exemplo,
interpretar uma afirmação como: “ser e nada são o contrário em toda a sua imediatez,
isto é, sem que em um deles já tinha sido posta uma determinidade, que contivesse
sua relação para com o outro” 46. Fica claro como a idéia de posição implica
determinar, isto no sentido de passar à dimensão concreta, ôntica, fenomenal. Ser e
nada são contrários quando não são postos, quando são imediatamente visados. Até
porque: “não há nada no céu e na terra que não contenham em si ser e nada” 47. Este é
um ponto fundamental para todo penasamento dialético: a passagem à existência, a
posição, sempre é um acréscimo em relação à determinação categorial, e não sua
mera repetição, como se da determinação à existência não houvesse processo.
Lembrem a este respeito da afirmação kantiana, segundo a qual cem táleres reais não
contém mais do que já está presente em cem táleres possíveis48.
Mas dizer isto implica afirmar que o próprio uso gramatical do verbo não pode
ser visto de maneira indiferente pela especulação filosófica. Talvez isto explique
porque Hegel fala a todo momento que a forma da proposição “O Ser é nada”, forma
de um julgamento de identidade, é inadequada para expressão a verdade especulativa:
“Sendo o conteúdo especulativo, então também a não-identidade do sujeito e do
predicado é momento essencial, mas isto não está expresso no julgamento” 49. Isto a
ponto de Hegel afirmar que o conteúdo especulativo só poderia ser apreendido através
de uma série de duas proposições contrárias (“O Ser é nada” e “O Ser não é nada”)
que apresentam uma antinomia.
45
HEGEL, idem, p. 83
46
Idem, Enciclopédia, par. 88
47
HEGEL, ibidem, p. 86
48
Para uma boa discussã o a este respeito a partir da afirmaçã o kantiana de ver FAUSTO, Ruy;
Marx: logique et politique,
49
Idem, Wissenschaft der Logik, p. 93
Todas estas colocações visam indicar que não é possível pensar o devir a partir
de uma gramática filosófica própria à entificação das categorias do entendimento.
Pois o devir deve aparecer como movimento interno ao ser, isto a ponto de todas as
utilizações do verbo “ser” no interior de proposições de identidade não poderem mais
expor igualdades tautológicas, mas, digamos, “proposições de devir”.
Esta afirmação do devir como verdade do ser é a maneira hegeliana de
introduzir a temporalidade no interior do ser. Por isto, ele define os momentos do
devir como “nascer e perecer” (Entstehen und Vergehen), além de determinar o devir
como a potência da inquietude que corrói o ser por levá-lo ao ponto de
evanescimento, o que fica claro em uma afirmação como: “O devir é o
desaparecimento/ o desvanescer do ser no nada e do nada no ser, assim como o
desaparecimento do ser e nada em geral (...) O resultado é o ser que desaparece
(Verschwundensein), mas não como nada”50. Ou seja, o devir é a categoria que
determina a significação do ser e do nada como passagem ao seu limite, o que nos
leva a superar o caráter limitado destas categorias e a problematizar uma gramática
que visa fazer referência a uma experiência que a todo momento lhe escapa. O que
pode nos explicar porque: “O devir é o primeiro pensamento concreto e, com isto, o
primeiro conceito; ao contrário, ser e nada são abstrações vazias”51.
Esta idéia do devir como dispositivo de formalização de determinações que
estão passando no seu limite diz muito a respeito de um conceito renovado de
determinação que parece animar as considerações hegelianas (e não devemos
esquecer que o título desta nossa seção é exatamente “determinidade”). Neste ponto,
devemos lembrar desta rápida, porém importante, consideração hegeliana sobre o
caráter dialético das “grandezas infinitamente pequenas”. Tais considerações devem
ser lidas juntamente com a idéia de que, como notaram alguns comentadores, o termo
que teria valor de termo nulo está ausente da doutrina hegeliana do Conceito 52. Isto
acontece porque, em Hegel, o termo negado nunca alcança o valor zero, já que esta
função do zero será criticada por Hegel como sendo um “nada abstrato” (abstrakte
Nichts). Neste sentido, o interesse hegeliano pelo cálculo infinitesimal, base para sua
reflexão sobre as grandeza infinitamente pequenas, estaria ligado à maneira com que
Hegel estrutura sua compreensão da negação como um impulso ao limite da
determinidade. A negação hegeliana nunca alcança o valor zero porque ela leva o
nada ao limite do surgir (Entstehen) e o ser ao limite do desaparecer (Vergehen). O
que nos explica porque ele afirma: “Estas grandezas foram determinadas de tal modo
que são em seu desaparecer, não antes de seu desaparecer, pois seriam grandezas
finitas, nem depois de seu desaparecer, senão seriam nada”53. Ou seja, elas são
pensadas no processo em que as determinações discretas deixam de conseguir se
referir às grandezas ou, se quiseremos, onde a distinção entre ser e nada deve dar
lugar a algo que Hegel deplora por não ter, por enquanto, termo melhor do que
“estado intermediário” (Mittelzustand) entre ser e nada. Na verdade, podemos dizer
que a noção de grandezas infinitamente pequenas forneceria a exposição deste
movimento no qual o ser está desaparecendo e onde o nada esta manifestando-se em
uma determinidade. Movimento cuja exposição exige uma outra compreensão do que
é um objeto, para além da idéia do objeto como pólo fixo de identidade, e de
determinação, para além da idéia de determinação como definição atributiva de
predicados limitadores.
50
Idem, p. 113.
51
Idem
52
DUBARLE et DOZ, Logique et dialectique, Paris: Larousse:, 1972, pp.134-145
53
HEGEL, idem, p. 111
Notemos ainda como Sartre criticará esta maneira hegeliana de pensar a
indissociabilidade entre ser e nada ao afirmar: “não é possível que ser e não-ser sejam
conceitos de mesmo conteúdo porque, ao contrário, o não-ser supõe um
encaminhamento irredutível do espírito: qualquer que seja a indiferenciação primitiva
do ser, o não-ser é esta mesma indiferenciação negada. O que permite a Hegel “fazer
passar” o ser no nada é que ele introduz implicitamente a negação na própria
definição do ser”54. A crítica fará escola e consiste em dizer que ser e nada não podem
ser tratados como similares já que o nada seria não-ser, negação do ser: “Ora, o ser é
vazio de toda determinação diferente da identidade consigo mesmo, mas o não-ser é
vazio de ser. Em uma palavras, o que se deve lembrar contra Hegel, é que o ser é o
não-ser não é”55. No entanto, é exatamente a crença de que o ser seria identidade
consigo mesmo o objeto da crítica hegeliana. Hegel insiste que tal identidade expressa
no conceito de ser é simplesmente uma abstração inefetiva, por isto, ao tentar afirmar
sua identidade ele passa necessariamente no nada. Ao menos neste sentido, a
passagem do ser ao nada é simplesmente a forçagem da diferença enquanto potência
de movimento.
54
SARTRE, Jean-Paul, L’être et le néant, p. 49
55
Idem, p. 50
56
HEIDEGGER, Martin; Marcas do caminho, Petró polis: Vozes, p. 444
57
Idem, p. 446
58
HEIDEGGER, Martin; Hegel, p. 44
Para compreender este modo de produtividade da subjetividade devemos
insistir que a interpretação de Heidegger deve partir de um pressuposto fundamental,
a saber, desde Descartes “sujeito” é o que se fala da mesma maneira. Hegel chegaria
apenas lá onde Descartes já havia definido a meta, a saber, compreender a essência do
que é como objeto disponível ao entendimento calculador de um sujeito, o mesmo
sujeito que diante de um pedaço de cera só verá res extensa. A terra firme que,
segundo Hegel, Descartes descobre é a compreensão do saber como: “certeza de si do
sujeito sabendo-se incondicionalmente”59. Compreensão que Hegel levará ao extremo
através de seu idealismo absoluto.
Em uma passagem célebre de seus cursos sobre Nietzsche, Heidegger insiste
que a estrutura da reflexão que nasce com o princípio moderno de subjetividade é
fundamentalmente posicional. Refletir é por diante de si no interior da representação,
como se colocássemos algo diante de um “olho da mente”. Seguindo os rastros de
texto cartesiano, ele nos lembra que, em várias passagens, Descartes usa cogitare e
percipere como termos correlatos. Um uso necessariamente prenhe de consequências.
De fato, Heidegger deve pensar aqui, primeiro, na maneira peculiar com que
Descartes utiliza o termo latim percipere. Ele raramente é utilizado para designar
processos sensoriais, como visão e audição (nestes casos, Descartes prefere utilizar o
termo sentire). Percipere designa, normalmente, a apreensão puramente mental do
intelecto, já que, em Descartes, é a inspeção intelectual que apreende os objetos, e não
as sensações. Assim, por exemplo, na meditação terceira, ao falar daquilo que aparece
ao pensamento de maneira clara e distinta, Descartes afirma: “todas as vezes que volto
para as coisas que penso conceber mui claramente sou de tal modo persuadido
delas ...”60. Mas, de fato, “penso conceber” é a tradução não muito fiel de percipere61.
Da mesma forma, Descartes, mais a frente falará de : “tudo aquilo que concebo clara e
distintamente”62 pelo pensamento. Mas, novamente, o termo “conceber” é uma
tradução aproximada de percipere, já que o texto latim diz: “illa omnia quae clare
percipio”. De onde se vê como percipere serve, nestes casos, para descrever o próprio
ato mental do pensamento.
Heidegger é sensível a este uso peculiar de percipere por Descartes pois a
reconstrução etimológica do termo nos mostra que ele significa: ‘tomar posse de algo,
apoderar-se (bemächtigen) de uma coisa, e aqui no sentido de dispor-para-si (Sich-zu-
stellen) [lembremos que Sicherstellen é confiscar] na maneira de um dispor-diante-de-
si (Vor-sich-stellen), de um re-presentar (Vor-stellen)”63. Desta forma, a compreensão
de cogitare por Vor-stellen (re-presentar/por diante de si) estaria mais próxima do
verdadeiro sentido deste fundamento que Descarte traz como terra firma da filosofia
moderna.
Tais aproximações permitem a Heidegger interpretar o cogitare cartesiano
como uma representação que compreende o ente como aquilo que é essencialmente
representável, como aquilo que pode ser essencialmente disposto no espaço da
representação. É assim que devemos compreender a frase-chave: “O cogitare é um
dispor-para-si do representável”64. Assim, cogitare não seria apenas um processo
geral de representação, mas seria um ato de determinação da essência do todo ente
como aquilo que acede a representação. Isto indicaria como todo ato de pensar é um
ato de dominar através da submissão da coisa à representação. O diagnóstico de
59
HEIDEGGER, Martin; Holzwege, p. 163
60
DESCARTES, Meditações, p. 108
61
Conforme o texto em latin: “Quoties vero ad ipsas res, que valde clare percipere arbitror ...”
62
ibidem, p. 116
63
HEIDEGGER, Nietzsche II
64
idem
Heidegger seria claro: “algo só é para o homem na medida em que é estabelecido e
assegurado como aquilo que ele pode por si mesmo, na ambiência (Umkreis) de seu
dispor, a todo instante e sem equívoco ou dúvida, reinar como mestre”65. Pois a
compreensão do pensamento como capacidade de articular representações, como
competência representacional impõe um modo específico de manifestação dos entes
ao pensamento. O ente será, a partir de agora, aquilo que aparece, para um sujeito
cognoscente, como objeto adequado de uma representação categorizada em
coordenadas espaço-temporais extremamente precisas. Neste sentido: “o homem se
coloca si mesmo como a cena (Szene) sobre a qual o ente deve a partir de agora se
apresentar (vor-stellen, präsetieren)”66. Daí porque Heidegger pode afirmar que o
cogito traz uma nova maneira da essência da verdade.
Nada disto é estranho a Hegel quando este insistir que a reflexão, enquanto
disposição posicional dos entes diante de um sujeito, não pode deixar de operar
dicotomias e divisões no interior do que se oferece como objeto da experiência entre
aquilo que é para-mim e aquilo que seria em-si, entre o que se dá através da
receptividade da intuição e aquilo que é ordenado pela espontaneidade do
entendimento com suas estruturas reflexivas de representação, entre o que é da ordem
do espírito e o que é da ordem da natureza, entre o que é acessível à reflexão e o que é
Absoluto.
No entanto, Heidegger acredita que Hegel não é capaz de dar uma resposta
adequada que possa superar tais divisões. Antes, ele seria apenas a culminação de um
longo projeto de determinação pela representação e de afirmação da destinação
técnica das coisas impulsionado pelo sujeito cartesiano. No interior deste modo de
determinação, a verdade seria sempre definida como adequatio intellectus rei, ou seja,
como adequação entre representações mentais e estados de coisa dotados de
acessibilidade epistêmica e autonomia metafísica. O sujeito seria, assim, o
fundamento de um modo de determinação por representação, modo no interior do
qual “objeto” seria apenas aquilo que ocorre às coisas quando elas se deixam
representar pelo sujeito. Dentro desta imagem do pensamento, o que não se deixa
representar não pode ser pensado. Preso no interior da representação, o sujeito só
pode relacionar-se à exterioridade do campo do representável através da
“negatividade”. A negatividade seria assim a última astúcia de um pensamento
incapaz de escapar da representação como único modo de determinação. Hegel admite
aquilo que Heidegger chama de “diferença ontológica” entre ser e ente, mas apenas
para reduzir o ser à imediaticidade indeterminada do nada.
Tudo se passa assim como se houvesse uma antropologia insidiosa a se
confundir com a modernidade, limitando as possibilidades do que há a ser
experimentado devido ao horizonte estabelecido por nossos processos de
racionalização. A possibilidade da filosofia abandonar uma época histórica marcada
pela metafísica e suas estruturas reificadoras (época que seria fundamentalmente
“metafísica do sujeito”) estaria vinculada à sua capacidade de acordar deste sono
antropológico, abandonando um projeto que culmina com o império da filosofia da
consciência. A reificação produzida pelas categorias metafísicas de nosso pensamento
exigiria uma crítica radical das estruturas que constituíram o que entendemos pura e
simplesmente por “pensamento racional”, isto para que um sentido originário do
logos possa ser recuperado. O que explica proposições como: “Se o homem quiser
voltar a se encontrar novamente nas cercanias do ser, então ele precisa antes aprender
a existir no sem-nome (...) Antes de falar, o homem precisa novamente deixar-se
65
idem
66
HEIDEGGER, Holzwege, p. 119
interpelar, correndo o risco de que, sob esse apelo, ele pouco ou raramente tenha algo
a dizer”67. Só assim, ele poderia: “libertar o ser no sentido grego, o ει ναι, da
referência ao sujeito, para, então, entregá-lo à liberdade de sua própria essência”68.
Assim, contra uma concepção correspondencialista de verdade como
adequação (ou contra seu complemento hegeliano através da ontologização da
inadequação), Heidegger se propõe a recuperar o conceito grego de aletheia (verdade
como desvelamento, a-lethe: não-esquecimento). Uma verdade que apenas eclode lá
onde a atividade subjetiva de determinação não é mais sentida. Nestas condições: “a
liberdade revela-se como o deixar-ser (Gelassenheit) do ente”69. Daí uma afirmação
como: “Deixar-ser o ente – a saber, como o ente que ele é – significa entregar-se ao
aberto e à sua abertura, na qual todo ente entra e permanece, e que cada ente traz, por
assim dizer, consigo. Esse aberto foi concebido pelo pensamento ocidental, desde o
seu início, como τα αληϑεα, o desvelado”70. Uma abertura que é deixar ser o que
aparece à racionalidade instrumental como acontecimento: “imprevisível e
inconcebível”71 ou, como dirá Heidegger, como Ereignis (acontecimento, evento,
ocorrência).
A primeira questão que podemos colocar diz respeito à correção deste modo
de leitura que assimila a subjetividade hegeliana ao sujeito cartesiano. Pois,
contrariamente a Descartes, para Hegel, pensar não é representar nem a verdade é
uma questão de adequação. O conceito não é uma representação previamente definida
em sua clareza e distinção, como o que se dispõe como o que há a ver, como imagem
de uma coisa na presença, mas um processo de reconstrução normativa a partir do
desdobramento da experiência, mesmo que Heidegger desqualifique o conceito
hegeliano de experiência como a confirmação da “etantidade do ente” que se desdobra
no campo da representação a si da consciência 72. Como veremos daqui a duas aulas, a
dialética desconhece representações porque, em seu interior, as relações entre
conceitos e objetos não se dão sob a forma de subsunções, por isto não é possível falar
em adequação entre conceito e objeto. As relações são pensadas a partir de negações
determinadas. Hegel chega mesmo a eleger o pensar representativo como objeto
maior de combate da dialética.
A segunda questão diz respeito à estratégia heideggeriana de dissociar ser e
sujeito a fim de abrir espaço à temporalidade fundamental do acontecimento.
Heidegger critica a estratégia hegeliana de compor uma historicidade pensada através
do desdobramento de negações determinadas pois, a seu ver, trata-se de uma
confirmação do que a consciência inicialmente projetara. Ou seja, trata-se de uma
historicidade sem acontecimento. Daí uma afirmação como: “o progresso na marcha
histórica da história da formação da consciência não é empurrado para a frente, em
direção ao ainda indeterminado, pela figura respectiva de cada momento da
consciência, mas ele é impulsionado a partir do objeto já proposto” 73. Esta é uma
crítica que fará escola e consiste a dizer que a história em Hegel é a teleologia do
Espírito que confirma a si mesmo no mundo e em uma progressão contínua.
67
Idem, Marcas do caminho, p. 332
68
Idem, p. 449
69
Idem, p. 200
70
Idem, p. 200
71
Idem, p. 205
72
“A experiência é a apresentaçã o do sujeito absoluto se desdobrando na representaçã o e assim
se apreendendo. A experiência é a subjetividade do sujeito absoluto” (HEIDEGGER, Martin;
Holzwege, p. 226)
73
Idem, Holzwege, p. 196
Dialética hegeliana, dialética marxista, dialética negativa
Aula 3
Os conceitos hegelianos de tempo e história
74
Ver, a este propó sito as relaçõ es entre criaçã o contínua e tempo descontínuo em WAHL, Jean;
Du rôle de l’idée d’instant dans la philosophie de Descartes, Paris: Alcan, 1920.
75
A este respeito, ver BODEI, Remo; Geometria delle passioni: paura, speranza, felicitá, op. cit., pp.
72-82
76
KOSELLECK, idem, pp. 306-327
uma coisa futura ou passada, de cuja realização temos alguma dúvida. O medo é uma
tristeza instável, surgida da ideia de uma coisa futura ou passada, de cuja realização
temos alguma dúvida”77. Pois se medo é a expectativa de um dano futuro que nos
coloca em risco, esperança é expectativa da iminência de um acontecimento que nos
colocaria no tempo providencial da imanência enfim desprovida de antagonismos
insuperáveis. Imanência própria à expectativa da concórdia da multiplicidade no seio
da comunidade. No entanto, se o medo é fonte da servidão política por ser: “o que
origina, conserva e alimenta a superstição” 78 da qual se serve o poder de estado para
impedir o exercício do desejo e da potência de cada um como direito natural, a
esperança mostrará seus limites por perpetuar um “fantasma encarnado da imaginação
impotente”79 aprisionada nas cadeias da espera. Neste sentido, ganha importância uma
afirmação como:
Supõe-se que quem está apegado à esperança, e tem dúvida sobre a realização
de uma coisa, imagina algo que exclui a existência da coisa futura e, portanto,
desta maneira, entristece-se. Como consequência, enquanto está apegado à
esperança, tem medo de que a coisa não se realize. Quem, contrariamente, tem
medo, isto é, quem tem dúvida sobre a realização de uma coisa que odeia,
também imagina algo que exclui a existência dessa coisa e, portanto, alegra-se.
E, como consequência, dessa maneira, tem esperança de que essa coisa não se
realize80.
77
SPINOZA, Bento; Etica, op. cit., p. 243
78
SPINOZA, Bento; Tratado teológico-político, Lisboa: Imprensa Nacional, 1988, p. 112
79
BODEI, Remo; idem, p. 78
80
SPINOZA, Bento; Ética, op. cit., pp. 243-245
esperança torna-se segurança”81. O que lhe leva a afirmar que o fim último do Estado
deve ser: “libertar o indivíduo do medo a fim de que ele viva, tanto quanto possível,
em segurança, isto é, a fim de que mantenha da melhor maneira, sem prejuízo para si
ou para outros, o seu direito natural a existir e a agir” 82. Desparecido o medo e a
esperança, ficamos enfim sob a jurisdição de nós mesmo, ficamos livres e seguros.
Compreendida neste contexto como: “alegria nascida de uma coisa passada
ou futura da qual foi afastada toda causa de dúvida” 83, a segurança pressupõe ausência
de dúvida que só pode aparecer quando: “a contingência é dobrada por nosso poder
sobre as circunstâncias”84. Ou seja, se a segurança é o afeto mais forte capaz de
superar o medo e a esperança, ele só se afirma quando a ação que se desdobra na
temporalidade for capaz de controlar a violência da contingência. Ela é o resultado de
duas operações centrais: a moderação das paixões em relação aos bens incertos da
fortuna, ou seja, o controle dos que “desejam sem medida” (cupiant sino modo), e a
conservação e ampliação das circunstâncias que estão sob nosso poder, o que fornece:
“os instrumentos de estabilização da temporalidade, ou seja, instituições políticas que
estão e permanecem em poder dos cidadãos e da coletividade” 85. Segurança é, assim,
indissociável da maneira com que o corpo político, pensado como multitude, desarma
a sujeição produzida pelos afetos de medo e esperança, enfrentando a contingência
através da partilha entre aquilo que não pode ser submetido ao engenho humano e
aquilo que pode a ele ser submetido através da institucionalização das condições que
permitem à esta mesma multitude a estabilização da temporalidade. Daí uma
afirmação clara como: “quanto mais nos esforçamos por viver sob a condição da
razão, tanto mais nos esforçamos por depender menos da esperança e por nos livrar do
medo, por dominar, o quanto pudermos, o acaso (fortunae), e por dirigir nossas ações
de acordo com o conselho seguro da razão”86.
Notemos como o tempo aparece assim como a potência fundamental do que
nos desampara. Medo e desamparo são, em seu sentido mais profundo, afetos
produzidos pela expectativa de amparo diante da temporalidade produzida por uma
contingência que nos despossui de nossa condição de legisladores de nós mesmos.
Mas que a contingência apareça aqui como problema central da dinâmica política dos
afetos, eis algo necessário para uma filosofia que não terá medo de afirmar: “nada
existe na natureza das coisas que seja contingente”87, já que tudo seria determinado,
pela necessidade da natureza divina, não apenas a existir, mas a existir e a operar de
uma maneira definida, só havendo determinação necessária. A noção de contingência
seria, na verdade, expressão de uma : “deficiência de nosso conhecimento”88 que, ou
não compreende a ordem das causas, ou não percebe como a essência em questão
comporta contradição e que, por isto, sua existência é impossível. Por isto, só a
imaginação faz com que consideremos as coisas como contingentes. Do ponto de
vista da razão, as relações são sempre necessárias89.
Este esvaziamento da dignidade ontológica da contingência leva a razão a
perceber as coisas sob a perspectiva da eternidade, já que: “os fundamentos da razão
81
SPINOZA, Bento; Ética, op, cit. p. 187.
82
SPINOZA, Bento; Tratado teológico-político, op. cit,. p. 367
83
SPINOZA, Bento; Etica, op. cit., p. 245
84
CHAUÍ, Marilena; idem, op. cit., p. 191
85
Idem, p. 172
86
Idem, p. 321
87
Idem, p. 53
88
Idem, p. 57
89
“É da natureza da razã o perceber as coisas verdadeiramente, a saber, como sã o em si mesmas,
isto é, nã o como contingentes, mas como necessá rias” (idem, p. 139)
são noções que explicam o que é comum a todas as coisas e que não explicam a
essência de nenhuma coisa singular; portanto, essas noções devem ser concebidas sem
qualquer relação com o tempo, mas sob uma certa perspectiva da eternidade” 90. É pela
recusa da temporalidade que o comum se desvela, que ele se apresenta como:
“totalidade infinita imóvel de coisas singulares em movimento”91. E se Spinoza afirma
que o amor excessivo por coisas que estão sujeitas a variações e da qual nunca
podemos dispor (possumus) só pode ser fonte de infortúnio, a razão nos leva a ideias
claras e distintas de afetos, colocando-nos mais próximo do conhecimento de Deus:
“conhecimento que gera um amor por uma coisa imutável e eterna, e da qual podemos
realmente dispor”92.
90
Idem, p. 141
91
BADIOU, Alain; L’être et l’évènement, Paris: Seuil, 1982, p. 135
92
SPINOZA, Bento; Ética, op. cit., p. 389
93
SPINOZA, Bento; Tratado teológico-político, op. cit., p. 312
da “sucessão de determinações opostas”94, como o faz Kant seguindo uma tradição
aristotélica, será pensar o movimento a partir da estabilidade do princípio de
contagem aplicado ao que se sucede, como Aristóteles que falava do tempo como: “o
número do movimento segundo o anterior-posterior”95. É esta estabilidade que se
expressa em afirmações como: “Toda mudança só é possível por uma ação contínua
da causalidade”96.
De certa forma, podemos dizer que é isto o que acontece em Spinoza, para
quem todas as relações, temporais ou não, devem ser pensadas sob a estabilidade
estrutural da causalidade e seu desvelamento retroativo imanente da univocidade da
substância ou, ainda, da conveniência (convenientiam) entre ideia e ideado97. Isto
implica afirmar que o modo da causalidade com suas ordens e sua constituição de
relações necessárias não mudará com o tempo, não será afetado por ele, não perderá
sua centralidade na determinação das relações e dos argumentos que a razão
reconhece como legítimos. Muito diferente seria se as coisas singulares modificassem
em continuidade a totalidade, operando mutações qualitativas na forma do tempo.
Neste caso, como veremos mais a frente, não teríamos apenas tempo formal, mas um
regime muito específico de tempo concreto. Por isto, é correto dizer que a imanência
própria ao governo da multitude é um devir sem tempo. É este devir sem tempo que
aparece como contraposição ao tempo linear do medo e da esperança. A sua maneira,
este devir sem tempo trará ainda outra consequência política importante por
fundamentar o horizonte de concórdia prometido pela paz social.
Neste ponto, podemos medir a distância que separa Spinoza e Hegel.
A crítica da duração
É claro aqui como Hegel recusa a noção de que haveria uma pura forma do
tempo, assim como uma pura forma do espaço, estabelecidas como condição geral de
possibilidade para o movimento e a mudança. Tomadas como formas puras da
intuição, tempo e espaço são, segundo Hegel, abstrações da exterioridade ou, se
quisermos pecar por certo anacronismo, são reificações. Não pode haver dedução
transcendental das categorias de tempo e espaço, o que não é de se estranhar para uma
filosofia na qual: “toda constituição transcendental é uma instituição social” 99. O que
aparentemente é confirmado quando Hegel afirma que a temporalidade (Zeitliche) é
uma determinação objetiva das coisas, e não uma determinação subjetiva do sujeito
que as apreende. “O processo das próprias coisas efetivas produz o tempo” 100 (macht
also der Zeit), isto não apenas no sentido da mudança que percebemos nas coisas, sua
94
KANT, Immanuel; Crítica da razão pura, Lisboa: Calouste Gulbenkian, B 291/ A461
95
ARISTÓ TELES, Physique – livres I-IV, Paris: Belles Lettres, 2012, 219b
96
ARANTES, Paulo; Hegel: a ordem do tempo, Sã o Paulo: Hucitec, 2000, p. 114
97
SPINOZA, Bento; Ética, op. cit., p. 79
98
HEGEL, G.W.F.; Enzyklopädie, op. cit., par. 258
99
BRANDOM, Robert; Tales of the mighty dead,
100
HEGEL, G.W.F.; idem, par. 258
geração e destruição, nos revelar a existência do tempo, um topos clássico que insiste
como, se as coisas não mudassem nem se movessem, não seria para nós possível
perceber o tempo que passa. Se devemos afirmar que o processo das próprias coisas
efetivas produz o tempo é por tal processo concreto fazer o tempo nascer e perecer,
modificar seu modo de passagem, paralisá-lo ou acelerá-lo, tirá-lo, por exemplo, do
regime da sucessão para colocá-lo no interior de uma dinâmica de simultaneidades. O
tempo é engendrado pelo processo das coisas porque o próprio tempo é uma
processualidade formalmente cambiante. Há uma plasticidade fundamental do tempo,
o que talvez nos explique porque Hegel se vê na necessidade de afirmar que o próprio
tempo é o devir, o nascer e o perecer. Problema de plasticidade cuja centralidade não
deve nos estranhar, já que é o problema da estrutura de um tempo em revolução que
se coloca no centro da reflexão filosófica de Hegel. Se é fato que: “a Revolução
Francesa permanecerá o centro decisivo da filosofia hegeliana: o evento que cristaliza
a intemporalidade da experiência histórica” 101 há de se lembrar que um tempo em
revolução é, no seu ponto de vista estrutural, tempo que abandonou a ilusão da
estaticidade de suas determinações formais, que engendra outras categorias de
movimento e mudança a partir do processo efetivo das coisas.
Mas se assim for, o que dizer desta tendência muda da dialética hegeliana em
procurar superar o tempo em direção à eternidade do conceito; movimento que, ao
menos exteriormente, parece recuperar a defesa spinozista de que a razão concebe
necessariamente sob a perspectiva da eternidade? Pois não é possível esquecer como
Hegel afirma claramente: “o próprio tempo é eterno em seu conceito”, assim como ele
não temerá construir uma aparente oposição entre tempo e conceito já presente em
célebre passagem do capítulo final da Fenomenologia do Espírito:
101
COMAY, Rebecca; Mourning sickness: Hegel and the french revolution, Stanford University
Press, 2010, p. 5
102
HEGEL, G.W.F.; Phänomenologie des Geistes, Hambrugo: Felix Meiner, 1988, p. 324
103
HEGEL, G.W.F.; Enzyklopädie, op. cit., par. 247
104
Idem, par. 259
A este respeito, não é mero acaso a insistência na desqualificação da
permanência própria às reflexões hegelianas sobre o tempo e a história. Basta
lembrarmos do sentido de uma afirmação como: “Os Persas são o primeiro povo
histórico, porque a Pérsia é o primeiro império que desapareceu (Persienist das erste
Reich, das vergangen ist)”105 deixando atrás de si ruínas. Esta frase de Hegel diz
muito a respeito daquilo que ele realmente entende por “progresso” no interior de sua
filosofia da história. O progresso é a consciência de um tempo que não está mais
submetido à simples repetição, mas que está submetido ao desaparecimento.
“Progresso” não diz respeito, inicialmente, a uma destinação, mas a uma certa forma
de pensar a origem. Pois, sob o progresso, a origem é o que, desde o início, aparece
marcada pela impossibilidade de permanecer. “Origem” é, na verdade, o nome que
damos à consciência da impossibilidade de permanecer em uma estaticidade
silenciosa. Por isto, a verdadeira origem, esta que aparece na Pérsia, é caracterizada
por um espaço pleno de ruínas, por uma mistura entre tempo e fogo que tudo
consome.
O ato de desaparecer é assim compreendido como a conseqüência inicial da
história. Colocação importante por nos lembrar que as ruínas deixadas pelo
movimento histórico são, na verdade, modos de manifestação do Espírito em sua
potência de irrealização. Se os persas são o primeiro povo histórico é porque eles se
deixam animar pela inquietude e negatividade de um universal que arruína as
determinações particulares. Notemos como este desaparecimento não é a afirmação
sem falhas da necessidade de uma superação em direção a perfectibilidade. Na
verdade, há uma pulsação contínua de desaparecimento no interior da história. Esta
pulsação contínua faz parte, de certa forma, do próprio telos da história. Assim, ela
realiza sua finalidade quando este movimento ganha perenidade, quando ele não é
mais vivenciado como perda irreparável, mas quando a desaparição, paradoxalmente,
nos abre para uma nova forma de presença, liberada do paradigma da presença das
coisas no espaço. O que explica porque Hegel dirá: “ Deve-se inicialmente descartar
o preconceito segundo o qual a duração seria mais valiosa do que a desaparição” . Só
as coisas que tem a força de desaparecer permitem que se manifeste um Espírito que
só constrói destruindo continuamente suas determinações finitas.
Isto fica claro se fizermos uma leitura atenta do capítulo dedicado ao Espírito
na Fenomenologia do Espírito. Lá vemos como a história do Espírito é um peculiar
movimento de explicitação das rupturas e insuficiências. Não por acaso, o Espírito
hegeliano se manifesta através de figuras como Antígona (com sua exposição da
desagregação da substância normativa da polis), o sobrinho de Rameau (com sua
exposição da desagregação da substância normativa do ancien régime), o jacobinismo
(com sua afirmação de uma liberdade meramente negativa) e a bela alma (com sua
exposição trágica dos limites da moralidade). Se elas desempenham papéis centrais na
narrativa da história do Espírito é porque tal narrativa é fascinada pelos momentos no
quais o próprio ato de narrar depara-se com sua impossibilidade, depara-se com a
desagregação da língua, com a violência seca de uma morte indiferente e com o
impasse sobre a norma. Neste sentido, vale a compreensão de Gérard Lebrun:
105
HEGEL, G.W.F.; Vorlesungenüber die Philosophie der Geschichte, p. 215
sua morte que dá razão à história (...) do ponto de vista da história do mundo,
os estados são apenas momentos evanescentes106.
A temporalidade concreta
106
LEBRUN, Gérard ; L’envers de la dialectique, Paris : Gallimard, 2007, p. 33
107
HEGEL, G.W.F.; Enzyklopädie, op. cit., par. 247
108
HEGEL,G.W.F.; Enzyklopädie, op. cit., par. 259
109
HEGEL, G.W.F.’ Vorlesungen über die Philosophie der Geschichte, op. cit., p. `104
não haver nada mais a esperar não significa que, a partir de agora, acontecimentos
serão desprovidos de história ou a história será desprovida de acontecimentos. Não há
nada mais a esperar porque os impossíveis podem agora se tornar possíveis, já que
relações contraditórias foram reconstruídas no interior de um mesmo processo em
curso. Neste sentido, podemos lembrar do que está pressuposto na própria construção
hegeliana do conceito de “história universal”, desta história que é o progresso na
consciência da liberdade.
Aceitar que exista algo como uma “história universal”, parece implicar que a
multiplicidade de experiências históricas e temporais devam se submeter a uma
medida única de tempo. Como dirá Koselleck, trata-se da consequência necessária da
definição da história como “coletivo singular”. Definição que teria permitido que: “se
atribuísse à história aquela força que reside no interior de cada acontecimento que
afeta a humanidade, aquele poder que a tudo reúne e impulsiona por meio de um
plano, oculto ou manifesto, um poder frente ao qual o homem pôde acreditar-se
responsável ou mesmo em cujo nome pôde acreditar estar agindo”110. Parece ser de
fato algo desta natureza que Hegel teria em mente ao falar do espírito do mundo como
“alma interior de todos os indivíduos”, como um corpo social unificado na
multiplicidade de seus espaços nacionais pelas mãos de plano que é a versão
secularizada da Providência.
No entanto, a figura do círculo de degraus, ao mesmo tempo, simultâneos e
passados não permite pensar unificações temporais redutíveis a um plano geral
unívoco a partir do qual todos os devires se extrairiam. Melhor pensar no advento de
um tempo definido como a relação entre tempos que são incomensuráveis sem serem
indiferentes entre si, o que não é sem relação com o fato dos espaços nacionais
animados pelo espírito do mundo não poderem, por sua vez, ser submetidos a um
plano comum de paz eterna sem darem lugar a decisões soberanas marcadas pela
contingência. Os espaços nacionais que compõem a história universal entram em
relação sem garantia alguma de paz e estabilidade111.
Da mesma forma, tempos incomensuráveis mas não indiferentes
interpenetram-se em um processo contínuo de mutação. Algo muito diferente da
universalidade produzida pelo primado do tempo homogêneo, mensurável e abstrato
da produção capitalista global, tão bem descrita por Marx. Neste sentido, falar em
“história universal” implica simplesmente defender que temporalidades
incomensuráveis não são indiferentes. Tal interpenetração de temporalidades
incomensuráveis significa abertura constante àquilo que não se submete à forma
previamente estabilizada do tempo, o que faz da totalidade representada pela história
universal, do presente absoluto que ela instaura, uma processualidade em contínua
reordenação, por acontecimentos contingentes, da forma das séries de elementos
anteriormente postos em relação. Daí sua plasticidade cambiante.
Neste sentido, podemos dizer que as relações entre os momentos obedecem a
um processo de transfiguração da contingência em necessidade, que não implica
negação simples da contingência. Em Hegel, a contingência não é vista como fruto de
um “defeito de nosso conhecimento”, mas é integrada como momento de um processo
de constituição da necessidade a partir de uma historicidade retroativa. Hegel
determina a contingência como uma “necessidade exterior” 112, já que é acontecimento
110
KOSELLECK, idem, p. 52
111
Cf. a conhecida crítica de Hegel à paz eterna de Kant em HEGEL, G.W.F.; Grundlinien der
Philosophie des Recht, Frankfurt: Suhrkamp, 1986, par. 333
112
HEGEL, Vorlesungen über die Philosophie der Weltgeschichte – Band 1: Die Vernunft in der
Geschichte, op. cit., p. 29
que aparece como causado por outra coisa que si mesmo, não se integrando na
imanência de uma “necessidade interior” que põe suas próprias circunstâncias. No
entanto, esta exterioridade não é um erro a respeito do qual devemos abstratamente
negar, mas um momento necessário resultante do fato da imanência não estar
imediatamente posta, dela ser construída retroativamente a partir da liberalidade da
razão em procurar integrar retroativamente o que se produziu a partir de
acontecimentos contingentes.
Tal liberalidade exige, no limite, pensar a totalidade posta pela história
universal como um sistema aberto ao desequilíbrio periódico, pois a integração
contínua de novos acontecimentos inicialmente experimentados como contingentes e
indeterminados reconfigura o sentido dos demais anteriormente dispostos. Se
quisermos, podemos afirmar que um belo exemplo deste movimento é a maneira com
que Hegel lembra que o Espírito pode “desfazer o acontecido” (ungeschehen machen
kann113) reabsorvendo o fato em uma nova significação. É só em uma totalidade
pensada como processualidade em plasticidade formal contínua que o acontecido
pode ser desfeito e que as feridas do Espírito podem ser curadas sem deixar
cicatrizes114. Neste ponto, é difícil não concordar mais uma vez com Lebrun, para
quem: “Se a História progride é para olhar para trás; se é progressão de uma linha de
sentido é por retrospecção (...) a ‘Necessidade-Providência’ hegeliana é tão pouco
autoritária que mais parece aprender, com o curso do mundo, o que eram os seus
desígnios”115.
Por outro lado, isto pode nos explicar porque não há tempo formal nem mero
devir sem tempo em Hegel, mas uma espécie muito específica de temporalidade
concreta. Pois não se trata de definir as formas gerais da experiência do tempo com
sua normatividade imanente limitadora dos modos possíveis de experiência da
consciência. Trata-se de explicar como as formas temporais são empiricamente
engendradas e modificadas através da interpenetração contínua e da integração
retroativa de temporalidades descontínuas que foram, por sua vez, produzidas pelo
“processo das coisas efetivas”. O tempo não aparece assim como uma normatividade
transcendental. Ele é um campo de relações plasticamente reconfigurado ( nas suas
dimensões de passado, presente e futuro) a partir do impacto de acontecimentos
inicialmente contingentes.
Glorificar o existente
113
HEGEL, Fenomenologia do Espírito II, Petró polis: Vozes, 1991, p. 139 .
114
“As feridas do espírito sã o curadas sem deixar cicatrizes. O fato nã o é o imperecível, mas é
reabsorvido pelo espírito dentro de si; o que desvanece imediatamente é o lado da singularidade
(Einzelnheit) que, seja como intençã o, seja como negatividade e limite pró prio ao existente, está
presente no fato” (idem, p. 140 – traduçã o modificada)
115
LEBRUN, O avesso da dialética, Sã o Paulo: Companhia das Letras, 1988, p. 34-6.
116
ADORNO, Theodor; Dialética negativa, op. cit., p. 252
permanente”117, ou seja, consciência desperta do que foi necessário perder, e do que
ainda é necessário, no interior do processo histórico de racionalização social. Pois
pode parecer que uma filosofia a procura de explicar como os “homens históricos”
[geschichtlichen Menschen], ou ainda, os “indivíduos da história mundial”
[welthistorischen Individuen] serão aqueles cujos fins particulares não são postos
apenas como fins particulares, mas que submeteram tais fins à transfiguração,
permitindo que eles contenham a “vontade do espírito do mundo” [Wille des
weltgeistes] só poderia nos levar a alguma forma de justificação do curso do mundo,
como temia Adorno em sua Dialética negativa, repetindo uma crítica já feita por
Nietzsche em sua Segunda consideração intempestiva118 e por Marx quando acusa
Hegel de “glorificar o existente”119. Pois sendo a vontade do Espírito do mundo aquilo
que se manifesta através do querer dos homens históricos, então como escapar da
impressão de que, retroativamente, a filosofia hegeliana da história constrói a
universalidade a partir daquelas particularidades que conseguiram vencer as batalhas
da história? Como dirá Nietzsche: “quem aprendeu inicialmente a se curvar e a
inclinar a cabeça diante do ‘poder da história’ acaba, por último, dizendo ‘sim’ a todo
poder”120.
Escapa-se desta impressão, entretanto, explorando melhor duas características
fundamentais da ação histórica em Hegel, a saber, sua natureza inconsciente e sua
força de recuperar o que parecia perdido, de reativar oportunidades perdidas que
pareciam petrificadas, isto através da reabertura do que está em jogo no presente.
Sobre este segundo ponto, lembremos como, quando o Espírito sobe à cena e narra a
história, sua prosa é radicalmente distinta da prosa dos indivíduos que testemunham
fatos. Primeiro porque o Espírito não testemunha; ele totaliza processos revendo o que
se passou às costas da consciência. Ele é a coruja de Minerva que rememora, que só
alcança voo depois do ocorrido. Uma totalização que não é mera recontagem,
redescrição, mas construção performativa do que, até então, não existia. Pois um
relato não é apenas uma relato. Ele é uma decisão a respeito do que terá visibilidade e
será percebido daqui para a frente, por isto as acusações que vem na filosofia
hegeliana uma forma de “passadismo” erram completamente de alvo.
A este respeito, lembremos de, por exemplo, Vittorio Hösle, para quem o
passadismo de Hegel mostraria como: “filosofia é recordação, olhar retrospectivo ao
passado, não prolepse e projeto do que há de vir, do que há de se tornar realidade, E,
na medida em que o que deve ser não está ainda realizado, não pode interessar à
filosofia; ela apenas deve compreender o que é e o que foi. A pergunta kantiana “Que
devo fazer?” não tem, assim, nenhum lugar dentro do sistema hegeliano. Uma
resposta a ela poderia no melhor dos casos rezar assim: “Reconheça o racional na
realidade””121. Nada mais distante da perspectiva que gostaria de defender, pois tal
posição pressupõe que “recordar” equivale a redescobrir fatos que foram arquivados
117
Idem, p. 266
118
“Chamou-se, com escá rnio, esta histó ria compreendida hegelianamente o caminhar de Deus
sobre a terra; mas um Deus criado por sua vez através da histó ria. Todavia este Deus se tornou
transparente e compreensível para si mesmo no interior da caixa craniana de Hegel e galgou
todos os degraus dialeticamente possíveis de seu vir a ser até a sua auto-revelaçã o: de modo que,
para Hegel, o ponto culminante e o ponto final do processo do mundo se confundiriam com a sua
pró pria existência berlinense” (NIETZSCHE, Friedrich; Segunda consideração intempestiva, Rio de
Janeiro: Relume Dumará , 2003, p. 72)
119
MARX, Karl; O Capital- volume I, Sã o Paulo: Boitempo, p. 91
120
Idem, p. 73
121
HÖ SLE, Vittorio; O sistema de Hegel: O idealismo da subjetividade e o problema da
intersubjetividade, Belo Horizonte: Loyola, 2006, p. 468.
na memória social. Se é verdade que, para Hegel, filosofia é recordação, vale lembrar
que todo ato de rememoração é uma reinscrição do que ocorreu a partir das pressões
do presente122. Rememorar é ainda agir, e não simplesmente chegar depois que a
realidade já perdeu a sua força. Antes, é mostrar como o passado está em perpétua
reconfiguração, redefinindo continuamente as possibilidades do presente e futuro.
Neste sentido, ignorar a força de decisão da descrição do passado é operar com a
ficção da história como um quadro estável “do que realmente ocorreu”, “wie es
eigentlich gewesen”, como dizia Ranke. No entanto, seremos mais fieis a Hegel se
afirmarmos que o passado é o que está perpetuamente ocorrendo, pois ele não é
composto de uma sucessão de instantes que são desconexos entre si. Ele é composto
por momentos em retroação.
Tudo parece passar, nada permanecer. Todo viajante já sentiu tal melancolia.
Quem esteve diante das ruínas de Cartago, Palmira, Persépolis, Roma sem
entregar-se a observações sobre a transitoriedade dos impérios e dos homens,
sem cobrir-se de tristeza por um vida passada, forte e rica?124.
O cosmo, o mesmo para todos, não o fez nenhum dos deuses nem nenhum dos
homens, mas sempre foi, é e será fogo sempre vivo, acendendo-se segundo
medidas e segundo medidas apagando-se131.
131
HERÁ CLITO; Fragmentos contextualizados, Rio de Janeiro: Odysseu, 2012, p. 135
Dialética hegeliana, dialética marxista, dialética adorniana
Aula 4
A processualidade da essência e o problema da contradição em Hegel
132
HEGEL, Wissenschaft der Logik I, p. 58
133
LEBRUN, A paciência do conceito, p. 324
134
HEGEL, WL II, p. 13
135
LONGUENESSE, Hegel et la critique de la métaphysique, p. 9
Este comentário é de extrema importância por evidenciar que a passagem à
essência é um aprofundamento através do qual aquilo que parece existir por si nas
´coisas´ revela-se como sempre constituído e organizado em um pensamento
unificado. É desta maneira que devemos compreender a primeira frase da Doutrina da
Essência: ‘A verdade do ser é a essência” 136. Um essência que parece estar “por trás”
do ser, em um Hintergrund que constitui (ausmach) o ser. Ou ainda, que parece
“anterior” ao ser, em um passado que não deixa de ressoar na própria maneira com
que o particípio passado do verbo ser em alemão (gewesen) contém uma referência à
essência (Wesen). Um estranho passado descrito por Hegel como: “o passado, mas o
ser passado desprovido de tempo (zeitlos)”137. Como uma anterioridade que nunca
passa e que, por isto, modifica radicalmente nossa concepção de presente, já que:
“aquilo que passou nem por isto é negado abstratamente, mas apenas superado: e por
isto, ao mesmo tempo, conservado”138.
No entanto, se retornarmos ao comentário de Longuenesse, veremos que
entramos em uma idéia maior do livro: a essência não é da ordem de um em-si
independente do pensamento. Ela é a da ordem da reflexão. Da porque a primeira
parte do livro deve necessariamente chamar-se: “A essência como reflexão em si
mesma”. A reflexão é a essencialidade que constitui o ser. Ou seja, ao afirmar que a
verdade do ser é a essência e ao determinar a essência como reflexão, Hegel, à sua
maneira, está dizendo não haver nada anterior ou mesmo exterior à reflexão.
Proposição que parece a realização última do chamado “idealismo absoluto” do qual
ele seria o representante.
Fica claro que a verdadeira questão decisiva do livro gira em torno da
compreensão do que Hegel se refere quando fala em “reflexão”. Pois costumamos
compreender a reflexão como um procedimento meramente subjetivo do pensar
vinculado à auto-observação de operações de nossa própria mente. Lembremos, por
exemplo, do que diz Locke a respeito da reflexão: “A mente, recebendo as idéias de
fora, quando volta sua visão para si mesma e observa suas ações sobre as idéias que
tem, produz daí outras idéias que são tão capazes de ser objetos de sua contemplação
quanto qualquer outra que ela recebe de coisas exteriores” 139. Ou seja, se sensações
são idéias cuja fonte são objetos externos, reflexão é: “the notice which the mind
takes of its own operations” e que produz idéias a partir do sentido interno.
Trago esta citação de Locke apenas para insistir na peculiaridade da noção
hegeliana de reflexão. Noção que, em hipótese alguma, pode ser confundida
simplesmente com esta auto-apreensão que a mente faz de suas próprias operações,
como se ela estivesse diante de um espelho. Metáfora especular fundamental para a
própria constituição da noção moderna de consciência. Embora Hegel conserve esta
metáfora especular na compreensão da reflexão, não é difícil imaginar que Hegel não
pode aceitar distinções entre sensação e reflexão tais como estas pressupostas por
Locke. Pois trata-se de mostrar como: “a reflexão é o que pelo qual algo enquanto
algo é”140. Ou seja, a reflexão não apenas observa as operações da mente, mas ela põe
os objetos com os quais a consciência se depara. De uma certa forma, ela é o
movimento das próprias “coisas”. Daí porque o que mais interessa Hegel nesta
136
HEGEL, WL II, p. 13
137
HEGEL, WL II, p. 13
138
HEGEL, Enciclopédia I, par. 112
139
LOCKE, An essay concerning human understanding, Book II, Chapter VI
140
HAAS, Bruno, Die freie Kunst, p. 53
metáfora especular seja o fato do imediato se cindir e se mediatizar, colocando-se
como um outro141.
No entanto, mesmo assim ainda não saímos necessariamente de uma
perspectiva idealista clássica. Pois podemos dizer que a reflexão, ao apreender as
operações do próprio pensar, simplesmente põe as condições de possibilidade para
que um objeto seja, para que ele apareça à consciência. Como se a reflexão fosse
exatamente aquilo que nos permite falar do que aparece, eleva-lo à condição de
nomeável no interior de uma linguagem humana, já que a reflexão revelaria a forma
do que há a ser pensado (em uma operação na qual a forma aparece no lugar da noção
de essência). É assim que, por exemplo, podemos interpretar a afirmação canônica de
Kant: ‘A reflexão não tem que ver com os próprios objetos, para deles receber
diretamente conceitos; é o estado de espírito em que, antes de mais, nos dispomos a
descobrir as condições subjetivas pela quais podemos chegar a conceitos”142.
No entanto, a proposição de Hegel é mais ousada. Trata-se de dizer: a reflexão,
enquanto movimento próprio da essência, não é apenas a posição das condições
subjetivas para a constituição de tudo o que é determinado e condicionado por um
sujeito. Ela é o movimento do que é absoluto e incondicionado. A ideia de que a
reflexão subjetiva está de um lado e o mundo objetivo de outro parte do pressuposto
de que a constituição da estrutura da reflexão é, de certa forma, anterior ao mundo,
autônoma a ele. Como lembrou bem John McDowell, mais correto seria dizer que
mundo e reflexão, de certa forma, nascem ao mesmo tempo. Não é por outra razão
que a Doutrina da Essência deve caminhar para a tematização do absoluto enquanto
realidade. Mas há aqui uma contradição a respeito da qual Hegel demonstrava-se
cônscio ao menos desde seu Diferença entre os sistemas filosóficos de Fichte e
Schelling:
Hegel chega a falar que, para superar tal contradição de só poder pensar o
condicionado ao pôr uma multiplicidade infinita de condições e relações, a reflexão
deve dar para si mesma a lei de seu auto-aniquilamento. Podemos dizer que a Ciência
da Lógica realiza o que já estava posto neste escrito de juventude. Pois, de uma certa
141
Diz Hegel: “O termo ´reflexã o´ é empregado inicialmente [a propó sito] da luz, quando em sua
propagaçã o em linha reta encontra uma superfície especular e é por ela relançada para trá s.
Temos pois aqui um duplo: primeiro, um imediato, um ente; e segundo, o mesmo enquanto
mediatizado ou posto. Ora, é esse exatamente o caso quando refletimos ou (como também se
costuma dizer) nachdenken [refletir, considerar – colocar diante] sobre um objeto, enquanto aqui
nã o é mesmo o objeto que conta em sua imediatez. Mas queremos conhecê-lo enquanto
mediatizado” (HEGEL, Enciclopédia, par. 112)
142
KANT, Crítica da razão pura B 316
143
HEGEL, Diferença entre os sistemas filosóficos de Fichte e Schelling, p. 41
forma, a reflexão, para se pôr como movimento do que é absoluto e infinito, deverá
aniquilar aquilo que serve como fundamento para seus modos de determinação. É
exatamente isto que veremos neste capítulo fundamental dedicado às determinações
de reflexão, a saber, a identidade, a diferença e a contradição. Pois modificado o
sentido do que compreendemos por identidade, diferença e contradição são as bases
gerais das operações de reflexão, tal como ela é compreendida pelo entendimento, que
se encontrarão aniquiladas. Neste momento, aquilo que Hegel compreende por
reflexão especulativa poderá se impor, o que permitirá a apreensão do absoluto sem a
necessidade do recurso a alguma forma de intuição imediata ou de posição do pré-
reflexivo.
Para o entendimento, esta reflexão especulativa própria à essência equivale à
pura negatividade, pois: “a determinação da essência tem um outro caráter do que as
determinidades do ser”144. Ela é pura negatividade por anular incessantemente todas as
determinidades próprias ao ser. Mas esta anulação não é simplesmente a abstração de
todo predicado do ser. Antes, ela é o que Hegel chama de movimento reflexivo no
interior do próprio ser. É pensando nesta força de corrosão própria à essência que
Hegel poderá falar da “natureza negativa da essência”145. Proposição fundamental,
pois se a essência tem uma natureza negativa (o que implica dizer que ela não está
simplesmente em uma situação na qual ela aparece como negativa, mas que ela é
‘negatividade em si” [Negativität an sich]146), então será um movimento de
confrontação incessante do que aparece ao entendimento como determinado. O que
nos explica uma afirmação como:
144
HEGEL, WL II, p. 15
145
HEGEL, WL II, p. 21
146
HEGEL, WL II, p. 22
147
HEGEL, WL II, p. 15
148
HEGEL, WL II, p. 39
aferrada ao senso comum] se distingue da que unicamente merece o nome de
filosofia”149. Neste sentido, a identidade concreta será a negação absoluta como:
Por isto, Hegel dirá que: “a identidade é também em si mesma absoluta não-
identidade”151. Podemos entender melhor este ponto se levarmos a sério as crítica que
Hegel apresenta na nota 2 “Primeira lei originária do pensamento, proposição da
identidade”. Aqui, Hegel apresenta três críticas distintas, porém complementares, que
visam mostrar como a proposição A=A é uma tautologia vazia, desprovida de
conteúdo e sem valor algum para o conhecer. Os três argumentos usados por Hegel
são:
toda enunciação da identidade imediata é uma contradição performativa;
a experiência não fornece o fundamento da identidade
não é possível definir a significação de A=A a partir da pretensa analiticidade
da proposição.
Primeiro, Hegel procura mostrar como sempre enunciamos a clivagem ao
tentar pôr a igualdade imediata a si. Pois sendo a identidade imediata, a exclusão da
essencialidade da diferença é um processo constitutivo de sua própria determinação.
Mas, ao afirmar que a identidade e a diferença são diferentes: “Eles [a consciência
comum] não vêem que já dizem que a identidade é algo de diverso; pois dizem que a
identidade é diversa em relação à diversidade” (HEGEL, 1986b, p. 41). Com isto,
produz-se uma passagem da negação exterior à negação internalizada resultante do
reconhecimento da posição da diferença ser momento essencial e interno ao processo
de posição da identidade. Daí porque Hegel pode dizer que a verdade é apenas a
unidade da identidade e da diversidade.
Notemos ainda esta estratégia, tipicamente hegeliana, de medir a verdade de
proposições lógicas fazendo apelo à pragmática da fala. Ao falarmos sobre a
identidade, sempre somos obrigados a pressupor a diferença como dado primeiro e
definidor. Pôr a identidade exige pressupor a diferença. Ou seja, invertermos a ordem
lógica e colocamos o reconhecimento da diferença como lei originária do pensar, já
que “a identidade de uma entidade consiste em um conjunto de seus traços
diferenciais” (ZIZEK, 1999, p. 135). Ela é momento de uma separação em relação a
um processo no qual a diversidade desempenha papel fundante.
Por outro lado, Hegel afirma que a identidade não é um dado de alguma forma
derivado de experiência imediatamente acessível à consciência. Não há um
componente factual orientando o uso de enunciados do tipo A=A. Na verdade, a
experiência fornece apenas a relação da identidade do Um com a multiplicidade da
diversidade. Daí porque: “o concreto e a aplicação é justamente a relação do idêntico
simples a algo de variado distinto dele” 152. Ou seja, a aplicação expõe o esforço do
pensar em unificar o que não tem identidade imediata em si mesmo. Por isto que:
149
HEGEL, Enciclopédia, § 115
150
HEGEL, WL II, p. 40
151
HEGEL, WL II, p. 41
152
Isto talvez nos explique porque Hegel afirma que: “Nenhuma consciência pensa, nem tem
representaçõ es, nem fala segundo essa lei [da identidade]; e nenhuma existência, seja de que
espécie for, existe segundo ela. O falar conforme esssa suposta lei da verdade (um planeta é – um
planeta; o magnetismo é – o magnetismo; o espírito é – um espírito) passa, com razã o, por uma
tolice: essa sim é uma experiência universal” (HEGEL, Enciclopédia, par. 115
“expresso como proposição, o concreto seria inicialmente uma proposição
sintética”153. A posição da proposição de identidade já é, segundo Hegel, uma
modificação da experiência, já que esta nos mostra, na verdade, a unidade da
identidade com a diversidade.
Mas podemos dizer que A=A, enquanto proposição analítica seria
independente da experiência, o que sabemos, ao menos desde Quine, que não é
exatamente o caso, já que sabemos que um dos dogmas fundamentais do empirismo
é: “a crença em certa divisão fundamental entre verdades analíticas, ou fundadas em
significados independemente de questões de fato, e verdades sintéticas, ou fundadas
em fatos”154. Por isto, Hegel deve lembrar que mesmo a forma proposicional da
proposição já diz mais do que afirma. Este é uma maneira astuta de dizer que a
analiticidade de proposições do tipo A=A são um problema. Para chegar a tal
compreensão especulativa da proposição, Hegel compreende toda proposição a partir
de sua forma geral (S é P) que coloca as diferenças categoriais quantitativas entre a
particularidade do sujeito e as predicações de universais e rompe, assim, com a
sinonímia pressuposta entre sujeito e predicado155.
Quando digo, por exemplo “uma rosa é uma rosa” vê-se que a expectativa
aberta pela enunciação “uma rosa é ...”, na qual o sujeito aparece como forma vazia e
ainda não determinada, como “algo em geral”, como “som privado de sentido” 156, é
invertida ao final da proposição. A rosa que aparece na posição de sujeito é um caso
particular, uma determinação empírica. Rosa que, em si mesmo, é apenas negação –
acontecimento contingente desprovido de sentido – enquanto que a rosa presente no
predicado aparece inicialmente como “representação universal”157 abstrata que
forneceria a significação (Bedeutung) do sujeito. Podemos mesmo afirmar que ela é
extensão de um conjunto ainda vazio. Para Hegel, ao enunciar “uma rosa é uma
rosa”, dizemos que o conjunto é idêntico a um de seus elementos, dizemos que o
singular é o universal. Esta é a interpretação que podemos dar à afirmação: “Já a
fórmula da proposição está em contradição com ela [a proposição A=A], pois uma
proposição promete também uma diferença entre sujeito e predicado; ora, esta não
fornece o que sua própria forma exige”158. Ou seja, a posição da identidade produz
necessariamente uma contradição. O que nos explica por que Hegel afirma: “Se
alguém abre a boca e promete indicar o que é Deus, a saber Deus é – Deus, a
expectativa encontra-se enganada pois ela esperava uma determinação diferente”159.
Hegel teria compreendido a existência, na forma geral da proposição, de uma
cisão estrutural entre o regime geral de apresentação e a designação nominal do
acontecimento particular. Pois o primeiro momento da afirmação “o singular é o
universal” põe a inessencialidade do singular e a realidade do universal. Uma rosa
será sempre uma rosa. É o predicado que põe o sujeito e, a partir do momento em que
o sujeito (ainda indeterminado) é posto, ele se anula: o que era predicado advém
153
HEGEL, WL II, p. 43
154
QUINE, Dois dogmas do empirismo, p. 231
155
Esta maneira de levar em consideraçã o as diferenças categoriais quantitativas expressas na
forma geral da proposiçã o é o que faz a especificidade da teoria hegeliana do julgamento, isto a
ponto de Hegel afirmar que se deve: “ver como uma falta de observaçã o digna de surpresa que,
nas ló gicas, nã o encontramos indicado o fato de que em todo julgamento exprime-se tal
proposiçã o: ‘o singular é um universal’" (HEGEL, Encyclopédie, op. cit., par. 166).
156
HEGEL, Fenomenologia I, p. 21
157
HEGEL, Encyclopédie¸ tome 1, op.cit, p. 245.
158
HEGEL, Encyclopédie, p. 163.
159
HEGEL, WL I, p. 44.
sujeito. Devido à forma geral da proposição, o ato de enunciação da identidade
produz sempre a posição de uma alienação. Pois: “Se dizemos também: ‘o
efetivamente real é o Universal’, o efetivamente real como sujeito desaparece
(Vergeht) em seu predicado”160.
Pode parecer que Hegel faça aqui uma confusão entre predicação e
identidade, como já dissera Russell. Ele parece negligenciar que há ao menos dois
empregos diferente do termo “é”. Frege nos lembra que “é” pode ter ao menos duas
funções (Cf. FREGE, Ecrits logiques et philosophiques, Paris: Seuil, 1971, p. 129)
"é" pode ter a função de forma lexical de atribuição a fim de permitir a predicação de
um conceito a um objeto. Assim, em ‘uma rosa é odorante’, ‘odorante’ é a predicação
conceitual de um nome de objeto (rosa). Mas, por outro lado, “é” pode ter a função de
signo aritmético de igualdade a fim de exprimir a identidade entre dois nomes de
objeto (como no caso da proposição “A estrela da manhã é Vênus”) ou a auto-
igualdade de um nome de objeto a si mesmo (“Vênus é Vênus”). Nos parece que, na
verdade, a dialética deve, em uma certa medida, confundir predicação e identidade.
Normalmente, diríamos que algo e idêntico quando é intercambiável em qualquer
condição cognitiva possível, como seriam, por exemplo, “solteiro” e “homem não
casado”. Mas: “não há garantia de que a concordância extensional de ‘solteiro’ e
‘homem não casado’ se baseie no significado em vez de se basear meramente em
questões de fato acidentais, como acontece com a concordância entre ‘criaturas com
coração’ e ‘criaturas com rins’161. Uma relação de definição, assim como uma relação
de sinonimia, pressupõe o reconhecimento anterior do uso, ou seja, um ajustamento
em relação a casos empíricos convenientes. Esta passagem em direção a empiria é
vista por Hegel como um caso de predicação.
Tais colocações permitem a Hegel dizer que a proposição de identidade contém mais
do que ela visa, pois contém sempre a enunciação da diferença como seu pressuposto.
Hegel afirma que a diferença conhece dois momentos distintos: a diversidade
(Verschiedenheit) e a oposição.
A diversidade é a diferença pensada a partir da reflexão exterior. Por isto: “os
diversos estão em relação um com o outro não como identidade e diferença, mas
apenas como diversos em geral que são indiferentes um em relação a outro e em
relação à sua determinidade”. De uma certa forma, a diversidade é um gênero de
retorno à imediaticidade, um momento de recaída no empirismo de quem afirma que
“Todas as coisas são diversas” ou que “Não existem duas coisas que sejam iguais uma
à outra”. Tais proposições não deixam de se referir ao princípio leibniziano de
identidade dos indiscerníveis (se X e Y tem as mesmas propriedades, então eles são
idênticos).
Hoje diríamos que os termos sob a noção de diversidade estão dispostos como
um multiplicidade pura, ou seja, estrutura cujos elementos não tem função
subordinada, mas são estruturados por relações recíprocas que não podem ser
compreendidas como relações de oposição. Hegel compreende esta determinação da
diferença como pura multiplicidade uma determinação deficiente. Sua deficiência
vem do fato de Hegel insistir que toda posição da diversidade, para ser minimamente
estruturada, exige a ação de comparação entre termos. Tal comparação pede a
160
HEGEL, Fenomenologia I., op.cit, p. 55
161
QUINE, De um ponto de vista lógico, p. 52
presença de uma espécie de “terceiro termo” comum que permita a estruturação de
relações de igualdade e desigualdade. Este terceiro termo, que permite a comparação
mas está para além dos elementos comparados, acaba por nos obrigar a passarmos da
diversidade à oposição. Pois a simples diversidade é indemonstrável. A afirmação de
que todas as coisas são diversas é algo que a experiência não pode garantir. O que a
experiência me fornece são arranjos locais de diferenciação.
No entanto, segundo Hegel: “a diferença não tem de ser apreendida
simplesmente como diversidade exterior e indiferente, mas como diferença em si; e
que por isto compete às coisas, nelas mesmas, serem diferentes” 162. Maneira de
afirmar que a diferença não deve ser apenas o resultado de uma distinção entre termos
e elementos, como se fosse algo produzido de forma contingente. Ela deve ser o modo
de relação interna dos termos e elementos. Daí esta afirmação surpreendente de que
compete à coisas serem, nelas mesmas, diferentes. Ou seja, a diferença deve ser uma
determinação ontológica das coisas. Por isto, devemos passar da diferença à
contradição, já que, para Hegel, a contradição é esta figura da diferença em si.
Por outro lado, Hegel chega a pensar a possibilidade de uma multiplicidade
que não seja estruturada a partir de um princípio geral de medida, mas através de algo
mais próximo daquilo que Wittgenstein chamou de semelhanças de família: “porque
as diversas semelhanças entre os membros de uma família, constituição, traços faciais,
cor dos olhos, andar, temperamento, etc. sobrepõem-se e cruzam-se [umas às
outras]”163. No entanto, isto não modifica o problema central, que consiste em afirmar
que a diferença deve necessariamente resolver-se na posição da igualdade e da
desigualdade. Posição que, por sua vez, transforma a diversidade em oposição 164, já
que no interior de uma relação de semelhança de família opera-se a partir de uma
comparação opositiva entre dois elementos onde tal comparação é determinante para a
posição da identidade, mesmo que apenas sob um de seus aspectos.
Sobre a oposição Hegel dirá que, nela, identidade e diferença são momentos da
diferença mantidos no interior dela mesma. Isto está enunciado na seguinte definição
hegeliana da relação de oposição:
Cada um é ele mesmo e seu outro, o que faz com que cada um tenha sua
determinidade em si mesmo, e não em um outro. Cada um relaciona-se a si
mesmo como se relacionando a um outro. Isto tem dois sentidos: cada um está
em relação com seu não-ser como suprimindo este outro, assim seu ser-outro é
apenas um momento interno ao si. Mas, por outro lado, o ser-posto se
transformou em um ser, um subsistir indiferente (...) consequentemente, cada
um é apenas na medida em que seu não-ser é.
166
Como vemos na afirmaçã o: “Quando enunciamos o nã o-ser, nã o enunciamos algo contrá rio ao
ser, mas apenas algo de outro” (PLATÃ O, Sofista, 257b)
Dialética hegeliana, dialética marxista, dialética adorniana
Aula 5
A processualidade da essência e o problema da contradição em Hegel
(continuação: Deleuze, leitor de Hegel)
Sobre a contradição
167
ARISTOTELES; Metafísica, 1005b 19
168
ARISTOTELES, Metafísica, IV, 4, 15-20
caos, ou seja, para dominá-los; e isso na medida que lhes impõe a forma do que é livre
de contradição, uniforme e a cada vez o mesmo”169.
Como vocês devem imaginar, Hegel não quer ir a Mégara ficando em casa, ele
não quer dizer que podemos afirmar algo e seu contrário de todo e qualquer objeto da
experiência ao mesmo tempo e sob o mesmo aspecto. Pois uma coisa é determinar a
contradição como princípio lógico-argumentativo, como impossibilidade do nosso
uso ordinário da linguagem em suas expectativas comunicacionais; outra coisa é
determinar a contradição como princípio metafísico, como algo da ordem do ser
enquanto ser ou, ainda, da essência. É claro que Hegel em momento algum quer
colocar em questão o princípio de não-contradição como princípio lógico-
argumentativo, mas ele quer colocar em questão toda tentativa de elevar o princípio
de não-contradição á condição de princípio metafísico. “Para Hegel e para Heráclito, a
´contradição´ é o elemento do ser, de modo que já distorcemos tudo se falamos em
uma contradição do falar e do dizer, em vez de em uma oposicionalidade do ser” 170.
Insistir na contradição como elemento do ser significa que não se trata de limitar a
linguagem filosófica ao horizonte da dimensão comunicacional da linguagem. A
linguagem filosófica não é uma comunicação no interior da qual processo
informações a partir de um certo grau de previsibilidade. Ela é tematização de
experiências que, do ponto de vista da consciência aferrada ao senso comum, são
impossíveis e mesmo impensáveis. Do ponto de vista da consciência aferrada às
representações naturais do senso comum, a contradição vale como a contingência, a
abnormalidade e a doença (cf. HEGEL, 1986b, p. 75).
Hegel via como preconceito lógico acreditar que a contradição não seria uma
determinação tão essencial quanto a identidade. Para ele, não há apenas contradição
lógica, mas também algo que devemos chamar de “contradição objetiva”, certamente
um dos conceitos mais importantes de todo pensamento dialético. Pois, na verdade,
face à contradição, a identidade seria apenas a determinação do ser morto: “Algo é
vivente apenas na medida em que contém em si a contradição (Widerspruch in sich
enthält) e é esta força [que consiste] em apreender em si e a suportar a contradição"
(HEGEL, 1986b, p. 76). Mas o que pode significa a noção de conter em si a
contradição? Hegel utiliza exemplos orgânicos para mostrar como algo pode conter
em si mesmo aquilo que lhe nega. Ele chega a afirmar que a contradição é a raiz de
todo movimento (que produz Trieb und Tätigkeit) e de toda vida, já que o movimento
é pensado como impulso em direção à superação de uma contradição posta, de uma
inadequação interna. Daí porque ele pode dizer: “o negativo em sua determinação
essencial é o princípio de todo automovimento” 171. Notemos, no entanto, que
reconhecer o princípio de um auto-movimento necessário não implica afirmar o
caráter contraditório de tudo o que é. Afinal, a passagem da potência ao ato, por
exemplo, não implica contradição, embora implique certa forma de negação e de
contrariedade.
No entanto, Hegel dirá claramente: “O que em geral move o mundo é a
contradição e é ridículo dizer que a contradição não se deixa pensar”172. Este é ponto,
a meu ver, central: afirmar que o que se move, move-se através da contradição. Ele
implica afirmar que “movimento” não é o desenvolvimento progressivo de uma
identidade previamente assegurada, nem pode ser simplesmente pensado a partir da
dinâmica de passagem da potência ao ato. Não há nada de contraditório no fato de que
169
HEIDEGGER, Nietzsche I, p. 460
170
HEIDEGGER, idem, p. 465
171
HEGEL, WL II, p. 76.
172
HEGEL, Enziklopädie, par. 119
algo em potência tornou-se ato ou no fato de que uma substância expressa seus
possíveis em seus atributos, que os atributos de uma substância são as atualizações em
devir de seus possíveis. No entanto, a princípio parece que é da passagem entre
potência e ato que Hegel fala ao tematizar contradições como: “Algo move-se a si
mesmo não enquanto está aqui neste agora e em outro agora depois, mas enquanto
está e não está aqui neste agora, enquanto é igual e não é igual a este aqui” (HEGEL,
1986b, p. 76). Pois estar em movimento parece ser ocupar potencialmente o outro
agora, o outro aqui; logo, por me projetar em direção ao outro aqui, já o conteria em
mim mesmo. No entanto, volto a insistir, se assim fosse, não haveria razão alguma
para falar em contradição, no máximo deveríamos falar de contrariedades. Na
verdade, estaremos mais próximo de Hegel se aceitarmos que a contradição não é
entre este agora e o agora posterior, mas entre a compreensão representacional da
presença e a compreensão dialética da presença. A compreensão representacional da
presença a define a partir de oposições, identidades próprias à disponibilidade de
sucessões vinculadas às determinações do espaço. Já a compreensão dialética da
presença tem uma profunda relação de contradição com o pensar representativo, já
que implicar pensar a presença a partir da simultaneidade espectral do tempo.
Compreender que, agora, estou e não estou aqui, implica transformar essencialmente
o que entendemos por presença, como pensamos a presença.
Por isto, podemos dizer que o movimento dialético não é mera modificação,
mas é a destruição da identidade inicialmente posta. Daí porque: “a diferença em
geral é a contradição em si”173. Para Hegel, a contradição é a determinação do ser a
partir do primado da diferença. Pois contradição não é mera oposição, mas negação da
totalidade da identidade inicial através do movimento da identidade realizar-se como
exceção de si, da totalidade encarnar-se em um termo que a nega. O que não poderia
ser diferente para alguém que define o movimento da essência como uma auto-
negação. Definir tal auto-negação como atualização do movimento da essência
significa que esta destruição da identidade posta não é fruto de um acidente, mas a
realização da essência, ou mesmo a integração do acidente no interior da essência. Se
fosse um acidente meramente exterior, não haveria contradição. O que se move,
move-se por destruição de si e por inscrição desta destruição em um movimento de
“retorno em si” (Rückkehr in sich selbst) que modifica retroativamente o termo inicial
finito e limitado, ao invés de assegurá-lo em sua identidade inicial. Esta é a maneira
hegeliana de afirmar que algo tem em si a própria causa do que lhe transforma. Ter
em si a própria causa do que lhe transforma não é expressar a imanência de um devir
que se desdobra no interior da totalidade da substância. Antes, ter em si a própria
causa do que lhe transforma é integrar uma exceção que só poderá ser encarnada por
uma totalidade, só pode ser integrada à condição da totalidade modificar o que
determina seu regime de relações. Daí porque é necessário falar em contradição como
condição para o movimento.
Notemos como a função desta reflexão filosófica sobre o conceito de
contradição não se resume à noção de que o pensamento crítico deve ser capaz de
indicar as contradições reais no seio da vida social a fim de expô-las tendo em vista
uma possível superação. Pois ao dar à contradição um caráter ontológico, a própria
noção de “superar a contradição” deve ser radicalmente revista. Conhecemos um uso
tradicional desta noção de superação, por exemplo, através da exposição marxista da
contradição entre meios de produção e forças produtivas tendo em vista uma
superação em direção à sociedade reconciliada. No entanto, neste caso, notem como a
contradição serviria apenas para indicar a existência de situações de crise a serem
173
HEGEL, Wissenschaft der Logik II, p. 65
superadas já que a contradição é o que não pode permanecer como tal. Ela é índice
de uma crise que deve ser explicitada a fim de produzirmos uma situação na qual não
existam mais crises. Não é difícil perceber como, neste ponto, temos um pensamento
para o qual a contradição continua sem ter realidade ontológica alguma, pois se trata
de um pensamento assombrado pela possibilidade de retornar à identidade.
Neste sentido, há de se tirar as consequências do fato de Hegel dar à
contradição um estatuto claramente ontológico. Zizek está certo ao afirmar: “a figura
mais elementar da reversão dialética reside na transposição de um obstáculo
epistemológico para a coisa em si, como sua falha ontológica (o que nos parece
incapacidade de conhecer a coisa indica uma rachadura na coisa em si, de modo que
nosso próprio fracasso em atingir a verdade plena é indicador da verdade)” 174. Isto
significa que a contradição não pode ser eliminada, nem é explicitada para ser
eliminada. O que a dialética faz é transformar a contradição, de limite ao pensamento
e ação, à condição de intelecção de realidades nas quais as determinações nunca são
completas, nas quais elas estão em um devir contínuo de alteração da estrutura de suas
formas. O que a dialética faz é transformar a realidade (Wirklichkeit) em “atividade
absoluta”.
No entanto, a identidade reinstaurada que conserva a contradição não é a
perpetuação de um movimento incessante de auto-ultrapassagem, como se
devêssemos conservar a identidade negada para que ela fosse continuamente exposta
em sua finitude e inadequação. Maneira de perpetuar uma determinação finita que
teria como função simplesmente confessar continuamente sua própria impotência.
Esta não é a atividade absoluta da realidade que Hegel tem em mente. Pois isto
implicaria confundir dois movimentos distintos em Hegel: a umschlagen e a
Aufhebung. O primeiro movimento é uma passagem incessante nos opostos, uma
reversão contínua de uma determinação em seu outro. O segundo movimento é uma
superação que suspende o ritmo de tais passagens incessantes, pois implica produção
de uma nova forma de determinação. O primeiro movimento nos leva ao que Hegel
chama de infinito ruim por ser a perpetuação infinita do limite, a afirmação infinita do
limite em sua impotência. O infinito é aqui meramente potencial, pois é a expressão
de um para além que nunca se encarna, como uma essência que nunca está presente,
mas que continuamente apresenta sua ausência a fim de marcar a realidade com o selo
do que está sempre em falta consigo mesmo.
Já a Aufhebung expressa um movimento que é o caminho para a atualização de
uma infinitude verdadeira, pois ela opera com negações determinadas. As negações
determinadas tem por característica assumir que a posição de dois termos em relação,
por mais incomensuráveis que sejam inicialmente, produz a modificação recíproca na
natureza das identidades de ambos. Mas para que este processo seja apreendido, como
veremos mais a frente, é necessário que a própria ideia de determinação mude e
abandone sua natureza representacional. Ela advém uma determinação infinita. Neste
sentido, podemos dizer que a reconciliação, para um pensamento que determina a
contradição de forma ontológica, não pode ser a suspensão pura e simples da
negatividade. Seria mais correto dizer que, para a dialética, a reconciliação é a
situação na qual não é mais necessário negar a negatividade, pois acedemos a um
novo regime de determinação na qual é possível dar forma à processualidade contínua
do devir com suas alterações formais estruturais. Só conseguiremos pensar a
reconciliação de forma dialética quando abandonarmos a ideia de que reconciliações
indicam telos, a aproximação de uma imagem de suspensão de antagonismos e
174
ZIZEK, Slavoj; Menos que nada: Hegel e a sombra do materialismo dialético, Sã o Paulo:
Boitempo, 2013, p. 26
conflitos. Para a dialética, a reconciliação não significa a antecipação filosófica de um
destino, mas a compreensão efetiva de que as condições para a atividade já estão
dadas, que o que anteriormente era posto como impossível já é possível. Daí este
movimento peculiar de afirmação que a reconciliação se realiza quando
compreendemos que ela já ocorreu. Ou seja, a reconciliação não diz respeito à
antecipação formal de um destino, mas ao redimencionamente efetivo da ação.
Ter a contradição em si
Alto é o que não é baixo, alto é determinado apenas a não ser baixo, e só é na
medida em que há baixo; e inversamento, em uma determinação encontra-se
seu contrário". Mas : "alto e baixo, direita e esquerda, também são termos
refletidos em si, algo fora da relação [itálico meu]; mas apenas lugares em
geral (HEGEL, 1986b, p. 71).
175
É neste sentido que compreendemos a afirmaçã o de Longuenesse: “o que resta, segundo
Hegel, uma descoberta inestimá vel, é a tensã o entre a unidade do Eu penso e a multiplicidade do
nã o pensado, ou nã o completamente unificado pelo pensamento. Todo objeto (pensado) porta
em si tal tensã o, é por isto que todo objeto porta em si a contradiçã o" (LONGUENESSE, 1981, p.
51). Uma contradiçã o: « entre sua inscriçã o em uma unidade racional e sua irredutibilidade à
unidade” (ibidem, p. 52).
176
HEGEL, WL II, p. 79
conceito é dependente da compreensão de que: “o não-ser do finito é o ser do
absoluto”177.
A crítica deleuzeana
Uma das crítica mais contundente a esta forma de pensar a diferença a partir
da contradição vem de Deleuze. Deleuze tende a compreender que a posição de Hegel
não é essencialmente diferente da maneira que Aristóteles define a diferença e a
determinação. Esta articulação é fundamental para Deleuze poder afirmar que o que
temos em Hegel ainda é uma forma de pensamento da representação. Como não há
possibilidade de pensar a diferença no interior da representação, a não ser como
diferença opositiva que se acomoda a um quadro estruturado de representações, esta é
a forma de Deleuze afirmar que a dialética hegeliana é um pensamento da identidade,
incapaz de pensar a produtividade da diferença.
Deleuze inicia afirmando que a tendência hegemônica, desde Aristóteles,
consiste em pensar a determinação a partir de quatro princípios: a identidade em
relação ao conceito, a analogia entre julgamentos, a oposição entre os predicados de
um mesmo sujeito ou entre sujeitos exteriores e a semelhança entre os objetos
percebidos. Estes quatro princípios serão a base do que compreendemos por
representação. Representar algo é determiná-lo a partir de princípios de oposição,
identidade, semelhança e analogia. No interior deste modo de disposição que funda
aquilo que Deleuze chama de “representação orgânica”, a diferença distingue-se da
diversidade e da alteridade, aparecendo submetida à oposição, que é elevada à
condição de diferença fundamental.
Aristóteles afirma que é diferente aquilo que difere do outro a partir de um
elemento particular, sendo necessário a existência de um elemento idêntico que
construa um campo de equivalência possível. Este elemento comum pode ser o gênero
ou a espécie. Duas coisas são distintas em gênero quando não há matéria comum ou
geração recíproca, como é o caso de coisas de categorias diferentes. Elas são distintas
em espécie quando são idênticas segundo o gênero.
Sabemos que Aristóteles distingue quatro tipos de oposição: contrariedade,
contradição, relação e privação. É na contrariedade que Aristóteles verá a “diferença
perfeita”, já que a contrariedade representa a diferença máxima no interior do gênero
(“branco” e “preto”, “pedestre” e “alado”, etc,). Por “gênero” entendamos o que
constitui a unidade e a identidade de dois seres e que diferencia estes seres de uma
maneira que não é simplesmente acidental. “Animal” define minha unidade com um
cão, ao mesmo tempo que “animal” diferencia-se em mim e no cão de forma não
acidental, pois nos distingue em espécies. Ou seja, esta diferença no interior do gênero
divide-o, produzindo espécies que tem, entre si, relações de contrariedade (como
“mamíferos pedestres” e “mamíferos alados”). Desta forma, percebemos como a
diferença aparece como especificidade que divide o que permanece comum, a saber, o
gênero. Ela é um operador que permite a conservação da identidade conceitual do
gênero, inscrevendo-se no conceito indeterminado do gênero.
Esta “diferença específica”, ou seja, que determina espécies, é compreendida
por Deleuze como modo de não apresentar um conceito de diferença, mas de
submeter a experiência da diferença às limitações representacionais do conceito,
transformando-a em predicado de uma espécie. Daí porque ele precisa insistir que:
”confunde-se a determinação de um conceito próprio de diferença com a inscrição da
177
HEGEL, WL II, p. 80
diferença no conceito em geral”178. Neste sentido, ao falar que procura uma diferença
desprovida de conceito, Deleuze insiste que há uma experiência exterior ao modo de
determinação de predicações conceituais que deve ser recuperada a fim de nos
livrarmos de uma imagem do pensamento que para nos aparece com o peso do senso
comum.
Por outro lado, a relação dos gêneros entre si desconhece um terceiro termo
comum, por isto Aristóteles afirma que os seres de gêneros distintos são
incomunicáveis. Ele dirá então que: “entre uma coisa e as coisas fora de seu gênero,
não há diferença concebível”179. O ‘único termo comum possível seria “ser”. No
entanto, Aristóteles afirma que, na dimensão da distinção entre gêneros, há uma
equivocidade radical do ser, isto enquanto as espécies são unívocas em relação ao
gênero.
Levando isto em conta, podemos dizer que a crítica deleuzeana à Hegel pode
ser sintetizada na seguinte frase: “Hegel, assim como Aristóteles, determina a
diferença por oposição dos extremos ou dos contrários” (DELEUZE, 2000, p. 64), o
que implica reduzir a contradição hegeliana a uma forma radicalizada de
contrariedade. Se aceitarmos a leitura de Deleuze poderíamos explicar porque, na
Ciência da Lógica, a diversidade (como diferença exterior e multiplicidade não-
estruturada) deve necessariamente resolver-se na posição da igualdade e da
desigualdade para daí advir oposição180. Poderíamos ainda compreender tentativas,
como a de Robert Brandom, de definir a negação determinada como a simples
reflexão sobre as conseqüências de assumirmos o caráter estruturante de relações de
incompatibilidade material. Lembremos do que ele afirma: “Hegel aceita o princípio
medieval (e spinozista) omni determinatio est negatio. Mas a mera diferença ainda
não é a negação que a determinidade exige de acordo com esse princípio.
Essencialmente, a propriedade definidora da negação é a exclusividade codificada no
princípio de não-contradição: p exclui-se de não-p; eles são incompatíveis”
(BRANDOM, 2002, p. 179). Assim: “o conceito de incompatibilidade material ou,
como Hegel o designa, de ´negação determinada´ é seu mais fundamental instrumento
conceitual” (BRANDOM, 2002, p. 180).
No entanto, tais leituras não são corretas. Hegel não pensa os pólos opostos a
partir de relações de exterioridade, o que impossibilita a tentativa de reduzir a
contradição a uma forma de incompatibilidade material. Deleuze sabe disto, por isto
dirá que, para além do modo “orgânico” de representação marcado pela aplicação
estrita dos quatro princípios anteriormente mencionados, há ainda um modo da
representação tentar englobar o que lhe nega, englobar o “sentimento” da infinitude.
Trata-se daquilo que Deleuze chama de representação “orgiástica” e que conhecemos
simplesmente por dialética em sua matriz hegeliana. Por representação orgiástica,
Deleuze compreende o conceito enquanto operador de internalização do que lhe
aparece inicialmente como diferença exterior. Daí porque a noção de limite se
modifica: “Ela não designa mais os limites da representação finita, mas ao contrário a
matriz na qual a determinação finita não cessa de desaparecer e de nascer, de se
absorver e se desdobrar na representação orgiástica”181.
178
idem, p. 48
179
ARISTOTELES, Metafísica, X, 4, linea 26
180
Na verdade, nã o pode haver multiplicidade nã o-estruturada para Hegel. A simples posiçã o de
uma proposiçã o como: “Nã o há duas coisas que sejam completamente idênticas” já pressupõ e um
dispositivo de contagem que organiza a diversidade a partir da estrutura de uma multiplicidade
numérica.
181
DELEUZE, idem, p. 62
Deleuze insiste que a maneira que Hegel dispõe de criticar a representação
consiste em salvá-la, ou seja, em conservá-la como fundamento a partir do qual o que
não se conforma à representação é posto como negativo. Daí porque a determinação
finita (a representação) não cessa de desaparecer (já que ele se confronta
incessantemente com o que lhe nega) e de nascer (já que ela permaneceria como
fundamento dos modos de orientação do pensamento). É isto que Deleuze tem em
mente ao afirmar que a dialética só pode descobrir o infinito deixando subsistir a
determinação finita: “dizendo o infinito da determinação finita, representando-a não
como dissolvida ou desaparecida, mas como dissolvendo-se e a ponto de desaparecer,
ou seja, também como engendrando-se ao infinito”182.
No fundo, esta maneira de só pensar o infinito como desaparecimento infinito
da determinação finita seria fruto de uma espécie de “sono antropológico” hegeliano.
Hegel seria ainda preso à antropologia da consciência, ou seja, aos limites cognitivos
da consciência psicológica. Por isto, desde de sua resenha crítica ao livro de Jean
Hyppolite, Lógica e existência, Deleuze se pergunta: “não podemos fazer uma
ontologia da diferença que não teria que ir até a contradição porque a contradição
seria menos do que a diferença, e não mais? A contradição não seria apenas o aspecto
fenomenal e antropológico da diferença?”183. Anos depois, em Nietzsche e a filosofia,
Deleuze acusará a dialética de ser “uma mistura bizarra de ontologia e antropologia,
de metafísica e de humanismo” 184. Esta insistência na dialética hegeliana como
pensamento dependente dos limites de uma antropologia (tema heideggeriano por
excelência) vem da compreensão da consciência-de-si como uma consciência presa às
determinações representacionais de uma consciência empírica. Pois seria para uma
consciência presa ainda à representação que tudo não pensável sob a forma da
representação só pode ser uma contradição, ou seja, uma impossibilidade do
pensamento que só se apresenta como negatividade diante da clareza do pensamento
representacional. Daí porque Deleuze afirmará que a Fenomenologia hegeliana é, no
fundo, uma fenomenologia da consciência infeliz, tema que ele traz das leituras
hegeliana de Jean Wahl. Como se ela fosse prisioneira da cisão própria à consciência
infeliz entre a efetividade e a essência.
No entanto, tal interpretação é dificilmente sustentável. Primeiro, porque se
para a consciência a contradição é o impensável, para o Espírito ela é índice de
verdade. O Espírito não é uma consciência hipostasiada, mas outra forma de
pensamento, radicalmente distinta da forma de pensamento que define a consciência.
A Fenomenologia do Espírito não é uma antropologia da consciência, nem a
consciência infeliz é seu destino final, o que seria bizarro já que Hegel criou tal figura
da consciência para dramatizar as clivagens próprias à consciência moral kantiana,
que ele critica185. Por isto, o fundamento ao qual a contradição é reportada não pode
ser considerado: “uma maneira de tomar particularmente a sério o princípio de
identidade, dando-lhe um valor infinito, tornando-o coextensivo ao todo e, assim,
fazendo-o reinar sobre a própria existência”186. Ao contrário, o ir ao fundamento é
182
DELEUZE, idem, p. 63
183
DELEUZE, Gilles; L’île déserte, p. 23
184
DELEUZE, Gilles; Nietzsche et la philosophie, p. 210
185
O que Derrida compreendeu bem ao afirmar: “a Fenomenologia do Espírito nã o se interessa
por qualquer coisa a que possamos chamar simplesmente o homem. Ciência da experiência da
consciência, ciência das estruturas da fenomenalidade do espírito relacionando-se com ele
mesmo, ela distingue-se rigorosamente da antropologia. Na Enciclopédia, a seçã o intitulada
Fenomenologia do Espírito vem depois da Antropologia e excede muito explicitamente os limites
desta” (DERRIDA, Jacques; Margens da filosofia, Campinas: Papirus, 1986, p. 156).
186
DELEUZE, Gilles; Différence et répétition, p. 70
uma desarticulação do anteriormente fundado. As oposições, quando vão ao
fundamento (Grund), caem todas no abismo (Abgrund).
Sabemos que fundar é determinar o existente através da sua relação a um
padrão que me permite orientar no pensamento. Por exemplo, ao mobilizar estruturas
categoriais como a causalidade, a modalidade para assegurar a inteligibilidade dos
fenômenos, determino a forma do existente. A partir deste recurso à forma como
fundamento posso garantir e clarificar o critério do verdadeiro e do falso, do correto e
do incorreto, do adequado e do inadequado. Mas a aplicação de todas estas estruturas
aos fenômenos depende de uma decisão prévia e tácita sobre princípios lógicos gerais
de ligação e unidade capazes de constituir objetos da experiência e fundar proposições
de identidade e diferença. Estes princípios de ligação (Verbindung) e unidade são
derivados do Eu como unidade sintética de apercepções, que aparece assim como o
verdadeiro fundamento das determinações. No entanto, a problematização de tais
princípios é o verdadeiro objeto da dialética. Por exemplo, quando Hegel constrói um
Witz ao dizer que, para a consciência, “o ser tem a significação do seu” (das Sein die
Bedeutung das Seinen hat)187, ele tem em vista o fato de que ser objeto para a
consciência significa estruturar-se a partir de um princípio interno de ligação e
unidade que é modo da consciência apropriar-se do mundo, constituir o mundo a
partir de sua imagem, o que permite a Hegel ignorar a relevância das distinções
kantianas entre receptividade e espontaneidade. A dialética precisa pois aceder a um
fundamento não mais dependente da forma auto-idêntica do Eu, o que é possível
através da superação dos modos naturalizados de determinação, através a fragilização
das imagens de mundo que orientam e constituem nosso campo estruturado de
experiências188.
O problema do infinito
A aparição é o surgir e o passar que não surge nem passa, mas que é em si e
constitui a efetividade e o movimento da vida da verdade. O verdadeiro assim
é o delírio báquico, onde não há membro que não esteja ébrio; e porque cada
membro, ao separar-se, também imediatamente se dissolve, esse delírio é ao
mesmo tempo repouso translúcido e simples. Perante o tribunal desse
movimento, não se sustêm nem as figuras singulares do espírito, nem os
193
(HEGEL, Wissenschalft der Logik I, p. 160)
pensamentos determinados; pois aí tanto são momentos positivos necessários,
quanto são negativos e evanescentes194.
194
HEGEL, G.W.F.; Fenomenologia do Espírito,
Dialética hegeliana, dialética marxista, dialética adorniana
Aula 6
Sujeito e reconhecimento em Hegel
196
HEGEL, G.W.F. ; Grundlinien der Philosophie des Recht, Frankfurt: Suhrkamp, 1996, § 7.
197
idem, § 6
198
HONNETH, Axel ; Lutte pour reconnaissance, Paris: Cerf, 2000, p. 30.
199
HONNETH, Axel; Sofrimento da indeterminação, Sã o Paulo: Esfera Pú blica, 2007, p. 102
confrontação com algo que só se põe em experiências de negatividade e des-
enraizamento que se assemelham à confrontação com o que fragiliza nossos contextos
particulares e nossas visões determinadas de mundo. A astúcia de Hegel consistirá em
mostrar como o demorar-se diante desta negatividade é condição para a constituição
de um pensamento do que pode ter validade universal para os sujeitos.
Sendo assim, as tensões internas à teoria hegeliana do reconhecimento
também não podem ser pensadas a partir de dualidades como esta proposta por
Habermas ao afirmar:
Ontogêneses e conflitos
No entanto, parece que Hegel estaria assim entrando com os dois pés em
alguma forma de relativismo que submete expectativas universalizantes de verdade à
contingência de contextos marcados por interesses e desejos particulares. A não ser
201
HEGEL, G.W.F.; Fenomenologia do Espírito, op. cit., p. 120
202
PIPPIN, Robert; Hegel´s idealism: The satisfaction of self-consciousness, Cambridge University
Press, 1989, p. 148
que Hegel seja capaz de mostrar que os interesses práticos não são guiados pelo
particularismo de apetites e inclinações mas que, ao se engajar na dimensão prática
tendo em vista a satisfação de seus desejos, os sujeitos realizam necessariamente as
aspirações universalizantes da razão. Lembremos ainda que, por não admitir
distinções estritas entre empírico e transcendental, Hegel não está disposto a operar
rupturas entre desejo patológico e vontade livre cujo reconhecimento seria o
fundamento para a constituição do universo dos direitos. Há algo da universalidade
da vontade livre que já se manifesta no interior do desejo.
O sujeito intui no objeto sua própria falta (Mangel), sua própria unilateralidade
– ele vê no objeto algo que pertence à sua própria essência e que, no entanto,
lhe falta. A consciência-de-si pode suprimir esta contradição por não ser um
ser, mas uma atividade absoluta203.
A colocação não poderia ser mais clara. O que move o desejo é a falta que
aparece intuída no objeto. Um objeto que, por isto, pode se pôr como aquilo que
determina a essencialidade do sujeito. Ter a sua essência em um outro (o objeto) é
uma contradição que a consciência pode suprimir por não ser exatamente um ser, mas
uma atividade, isto no sentido de ser uma reflexão que, por ser posicional, toma a si
mesma por objeto e, neste mesmo movimento, assimila o objeto a si. Esta experiência
da falta é tão central para Hegel que ele chegar a definir a especificidade do vivente
(Lebendiges) através da sua capacidade em sentir falta, em sentir esta excitação
(Erregung) que o leva à necessidade do movimento; assim como ele definirá o sujeito
como aquele que tem a capacidade de suportar (ertragen) a contradição de si mesmo
(Widerspruch seiner selbst) produzida por um desejo que coloca a essência do sujeito
no objeto.
Mas, dizer isto é ainda dizer muito pouco. Pois se o desejo é falta e o objeto
aparece como a determinação essencial desta falta, então deveríamos dizer que, na
consumação do objeto, a consciência encontra sua satisfação. No entanto, como
sabemos, não é isto o que ocorre:
Na verdade, para entender o que Hegel tem em vista na sua noção de desejo como
falta, não devemos compreender a falta como privação, como carência ou
simplesmente como transcendência, mas como manifestação da infinitude. Esta
infinitude pode ser ruim, se a satisfação do desejo for vista como consumo reiterado
207
Idem, 210b
208
LEAR, Jonathan; Eros and Unknowing: the psychoanalytic significance of Plato's Symposium In:
Open minded, Harvard University Press, 1998, p. 163.
209
MORTLEY, Robert ; Désir et différence dans la tradition platonicienne, Paris: Vrin, 1988, p. 81
210
Como lembrou muito bem Paulo Arantes em ARANTES, Paulo; Um Hegel errado mas vivo In:
Revista Ide, Sã o Paulo, n. 21, 1991
211
HEGEL, G.W.F.; Fenomenologia do Espírito, op. cit, p. 209.
de objetos que produzem um gozo (Genuss) que é apenas submissão narcísica (ou
“egoísta”, se quisermos usar um termo hegeliano) do outro ao Eu. Mas ela será
infinitude verdadeira quando confrontar-se com objetos liberados de determinações
finitas.
Lembremos inicialmente que, para Hegel, a falta aparece como modo de ser da
consciência em um contexto histórico preciso. Contexto marcado pela
problematização do que serve de fundamento às formas de vida da modernidade.
Hegel compreende a modernidade como o momento histórico no qual o espírito
"perdeu" a imediatez da sua vida substancial, ou seja, nada lhe aparece mais como
substancialmente fundamentado em um poder capaz de unificar as várias esferas
sociais de valores. Daí diagnósticos clássicos de época como:
“[Nos tempos modernos] Não somente está perdida para ele [o espírito] sua
vida essencial; está também consciente dessa perda e da finitude que é seu
conteúdo. [Como o filho pródigo], rejeitando os restos da comida, confessando
sua abjeção e maldizendo-a, o espírito agora exige da filosofia não tanto o
saber do que ele é, quanto resgatar por meio dela, aquela substancialidade e
densidade do ser [que tinha perdido]”212.
Esta noite, este nada vazio que contém tudo na simplicidade desta noite, uma
riqueza de representações, de imagens infinitamente múltiplas, nenhuma das
quais lhe vem precisamente ao espírito, ou que não existem como efetivamente
presentes (...) É esta noite que descobrimos quando olhamos um homem nos
olhos, uma noite que se torna terrível, é a noite do mundo que se avança diante
de nós213.
Afirmações desta natureza servem a vários mal entendidos. Hegel não está dizendo
que a liberdade é apenas o nome que damos para um vontade construída a partir da
internalização de “dispositivos disciplinares” travestidos de práticas de auto-controle.
Não é qualquer submissão a um senhor que produz a liberdade, mas apenas a um
senhor que seja capaz de realizar exigências incondicionais de universalidade. Isto nos
explica porque, para Hegel, as grandes individualidades capazes de submeter um povo
produzem, necessariamente, o sentimento de que o trabalho do Espírito é sem medida
comum com toda e qualquer política finita, com todo cálculo utilitarista baseado em
“meu” sistema de interesses egoístas. Por sinal, a maior de todas as ilusões consiste
exatamente em ver na crítica hegeliana do egoísmo uma estratégia astuta de
esvaziamento do particular. Hegel pode criticar o egoísmo porque não há nenhuma
individualidade neste “ego”, já que não há nada de individual no interior de um
sistema de interesses construído, na verdade, a partir de identificações e internalização
de princípios de conduta vindos de uma outra consciência determinada. Por isto, a
“dissolução da singularidade da vontade” pode aparecer como “liberação”.
Lebrun serve-se destas características da filosofia hegeliana para afirmar que a
formação da consciência-de-si é apenas a dissolução de um indivíduo definido como o
que se anula, renúncia incessante de si, ascese permanente. Pois: “ganhar uma
218
HEGEL, G.W.F., Fenomenologia do Espírito, op. cit., pp. 128-129
219
Idem, Enciclopédia das ciências filosóficas, op. cit., § 435
determinação acaba sempre por ser renúncia a uma diferença que me individualizava,
advir um pouco mais meu ser verdade na medida em que sou um pouco menos meu
ego”220. Neste sentido, tremer diante do mestre absoluto seria tomar consciência da
impotência de princípio que representa a singularidade natural. Como se a liberação
hegeliana fosse um passe de mágica no qual o sentimento de fraqueza se transforma
em legitimação da incapacidade de resistir. Assim: “em troca de seus sofrimentos, é o
gozo do universal que se oferece à consciência – belo presente ...” 221. Não estamos
muito longe de Deleuze vendo a dialética hegeliana como “idéia do valor do
sofrimento e da tristeza, valorização das ‘paixões tristes’ como princípio prático que
se manifesta na cisão, no dilaceramento”222.
No entanto, podemos fornecer uma interpretação diferente. Basta estarmos
mais atentos para o sentido que Hegel dá a esta despossessão de si produzida pela
internalização da morte como senhor absoluto. Neste contexto, a morte não é
destruição simples da consciência (e toda confusão neste sentido deve ser fortemente
rechaçada como um equívoco profundo), não é um simples despedaçar-se (zugrunde
gehen), mas é modo de ir ao fundamento (zu Grund gehen). Pois a confrontação com
a morte é experiência fenomenológica que visa exprimir o acesso ao caráter
inicialmente indeterminado do fundamento, que visa exprimir como: “A essência,
enquanto se determina como fundamento, determina-se como o não-determinado
(Nichtbestimmte) e é apenas a superação (Aufheben) de seu ser determinado
(Bestimmtseins) que é seu determinar”223. O que pode ser entendido da seguinte
maneira: a indeterminação do fundamento vem do fato dele servir de substrato
comum entre determinações opostas, daí porque Hegel poderá afirmar que o
fundamento implica a identidade entre a identidade e a diferença (die Einheit der
Identität und des Unterschiedes). Mas sendo o Eu o princípio sintético que fornece o
fundamento da experiência, assim como o princípio de ligação e unidade que
determina o modo de articulação entre o fundamento e aquilo que ele funda, então
pensar a verdadeira essência do fundamento como o que tem seu ser em um outro
(sein Sein in einen Anderen hat) exige a confrontação com um estado de diferenças
não submetidas à forma do Eu.
Vemos assim como a confrontação com a morte permite à consciência-de-si
compreender o Espírito como aquilo que se expressa na multiplicidade de suas
determinações fragilizando-as todas, levando-as a confrontar-se com uma potencia do
pré-pessoal e do indeterminado que nos permite, inclusive, recompreender o que vem
a ser a diferença. A diferença não será aquilo que determina a distinção entre
entidades conceitualmente articuladas, como Deleuze imputa a Hegel. A diferença em
Hegel é esta potência interna da in-diferença que corrói toda determinação. Ela será
esta expressão do ser que nos leva a afirmar, com Scott Fitzgerald, que: “toda vida é
um processo de demolição”. Demolição que ocorre quando desvelamos esta “franja de
indeterminação da qual goza todo indivíduo”224. Não se trata exatamente de um ganho
de determinação e positividade, mas da assunção de um risco vinculado à
confrontação com aquilo que se coloca enquanto puramente indeterminado. Nestas
condições, submeter-se a um Senhor absoluto que dissolve tudo aquilo que parecia
fixo e determinado nada tem a ver com uma a dinâmica psicológica da resignação, do
ressentimento ou da necessidade da repressão.
220
LEBRUN, Gerard ; L’envers de la dialectique, op. cit., p. 100
221
idem, p. 211
222
DELEUZE, Gilles ; Nietzsche et la philosophie, op. cit., p. 224
223
HEGEL, G.W.F.; Wissenschaft der Logik II, Frankfurt: Suhrkamp, 1986, p. 81
224
DELEUZE, Gilles ; Différence et répétition, 5 ed., Paris: PUF, 2000, p. 331
Dialética hegeliana, dialética marxista, dialética adorniana
Aula 7
Trabalho como movimento da essência em Marx
Na aula de hoje, daremos início ao segundo módulo do nosso curso, a saber, este
dedicado a aspectos da dialética em Marx. É importante começar salientando a
dimensão de “aspectos” pois não se trata de procurar dar conta da dialética marxista
em três encontros. Diria que se trata de qualificar articulações importantes da
articulação entre Marx e Hegel, isto a fim de mostrar como a visão que afirma existir
rupturas profundas no conceito de dialética utilizado pelos dois deve ser criticada.
Certamente, vocês conhecem, por exemplo, a leitura de Louis Althusser, para quem
entre Marx e Hegel passava uma espécie de corte epistemológico presente no interior
dos próprios textos de Marx. Pois o jovem Marx estaria, no fundo, ainda preso à
temática de uma filosofia do sujeito herdada da filosofia hegeliana e da
fenomenologia da perda da consciência através de seus processos de exteriorização.
Filosofia historicista cuja temática da alienação da falsa consciência seria o exemplo
maior de uma maquinaria humanista. Marx só se tornaria Marx quando ele
abandonasse os problemas centrados na filosofia do sujeito para operar uma “guinada
estruturalista” que nos levaria em direção a O capital. Um abandono que não seria
apenas de temáticas, mas de concepção de dialética. Althusser recusa radicalmente a
ideia exposta pelo próprio Marx: “A mistificação que a dialética sofre nas mãos de
Hegel não impede em absoluto que ele tenha sido o primeiro a expor, de modo amplo
e consciente, suas formas gerais de movimento (allgemeinen Bewegungsformen).
Nele, ela se encontra de cabeça para baixo. É preciso desvirá-la, a fim de descobrir o
cerne racional dentro do invólucro místico”. Para ele, não se trata de “desvirar” a
dialética hegeliana, mas de simplesmente abandoná-la. Como ele dirá: “as estruturas
fundamentais da dialética hegeliana, tais como a negação, a negação da negação, a
identidade dos contrários, a “superação”, a transformação da quantidade em
qualidade, a contradição etc., possuem em Marx uma estrutura diferente desta que
elas possuem em Hegel”225.
A diferença se daria principalmente por Marx ter pretensamente abandonado a
antropologia filosófica de Hegel. Abandonada tal antropologia, as estruturas
fundamentais da dialética não poderiam mais ser compreendidas como o movimento
através do qual a consciência opera, graças à reflexividade de seus conceitos, a
exteriorização de si e a interiorização de um mundo traz as marcas de sua própria
atividade constitutiva. A crítica não poderia mais ser crítica da alienação da
consciência, mas crítica da economia política com sua descrição dos modos de
produção e suas descontinuidades históricas.
No entanto, aqui poderíamos nos perguntar sobre o quanto tal tema de um
“antropologismo” a guiar a dialética hegeliana é, de fato, defensável. Tal tema, da
forma como ele se apresentou no pensamento francês contemporâneo, é tributário do
estruturalismo e da crença de que o sujeito é, de certa forma, uma determinação
completa da estrutura. Neste sentido, toda compreensão que parta da perspectiva dos
sujeitos agentes será necessariamente ideológica e marcada pelo desconhecimento. O
próprio conceito de sujeito, com suas ilusões de agência a partir das representações de
sua consciência, é o conceito ideológico por excelência por impedir a compreensão
225
ALTHUSSER, Louis; Pour Marx, p. 92
das determinações estruturais da ação. Por outro lado, esta perspectiva da agência dos
sujeitos traria em seu bojo a naturalização de um conceito essencialista de homem
com seus regimes de praxis e reflexão. Ao naturalizar um conceito essencialista de
homem que passa pela descontinuidade dos modos de produção conservando seus
atributos essenciais, a dialética hegeliana seria ideologia por excelência.
A meu ver, tal leitura é dificilmente sustentável. Ela precisa abandonar a
discussão sobre alienação em Marx por não saber como lidar com determinações
ontológicas que permanecem no horizonte da crítica da economia política marxista e
de sua crítica do trabalho. A natureza determinante dos modos de produção não
implica que tudo o que opera na transformação de tais modos são contradições
funcionais. Neste sentido, proponho começar a reler Marx a partir de discussões sobre
a centralidade da categoria de trabalho e da alienação no trabalho.
Enquanto categoria que descreve o princípio de atividade capaz de produzir as
transformações no interior do campo da experiência, o trabalho é a expressão
fundamental do que, na filosofia hegeliana, compreendemos como essência. Ele
seguirá um processo de exteriorização e retorno à si que marca os movimentos
próprios às determinações de reflexão. Esta exteriorização não segue, no entanto, as
dinâmicas expressivistas de uma consciência-de-si que se procura fazer-se intuir no
mundo a partir da pressuposição de uma unidade simples originária, como gostaria de
mostrar.
Comecemos por nos perguntar por que uma certa tradição dialética viu, no
trabalho, algo mais do que a reiteração de processos disciplinares que nos levariam,
necessariamente, a modelos cada vez mais evidentes de reificação social e de
sofrimento psíquico. Por que tal tradição insistiu, para além da estrutura disciplinar da
autonomia, em lembrar que o trabalho deveria também ser compreender como modelo
fundamental de expressão subjetiva no interior de realidades sociais
intersubjetivamente partilhadas, isto a ponto de elevá-lo (juntamente com o desejo e a
linguagem) a condição de um dos eixos de constituição daquilo que podemos entender
por “forma de vida”? Tal aposta no trabalho como processo emancipatório de
reconhecimento era, de fato, possível e necessária ou não passava da expressão dos
equívocos de filosofias tão fascinadas pelas dinâmicas de transformação que tendiam
a negligenciar como atividades socialmente avalizadas funcionam fundamentalmente
como processos de reiteração de sujeições?
Partamos, para isto, da definição do trabalho como modelo de exteriorização
(Entäusserung) do sujeito sob a forma de um objeto. Lembremos, a este respeito, da
famosa comparação de Karl Marx, certamente um dos pensadores modernos que
melhor configurou certa via ainda hegemônica na caracterização do trabalho:
Identidades
241
Lembremos de uma boa síntese feita por Postone: “O objetivo da produçã o no capitalismo nã o
sã o os bens materiais produzidos nem os efeitos reflexivos da atividade do trabalho sobre o
produtor, é o valor ou, mais precisamente, o mais-valor. Mas, valor é um objetivo puramente
quantitativo, nã o existe diferença qualitativa entre o valor do trigo e das armas. Valor é
puramente quantitativo porque, como forma de riqueza, ele é um meio objetivado: ele é a
objetivaçã o do trabalho abstrato – do trabalho como meio objetivo de aquisiçã o de bens que nã o
produziu” (POSTONE, Moishe; idem, p. 210)
242
A respeito deste trecho de Marx, Fausto dirá : “a mobilidade do trabalhador nã o realiza o
universal que é ao mesmo tempo singular, o universal nã o é outra coisa aqui que uma sucessão de
singularidades ou de particularidades” (FAUSTO, Ruy; Marx: logique et politique, Paris: Publisud,
1986, p. 114). De fato, mas poderíamos ainda nos perguntar sobre que tipo de determinaçã o uma
universalidade que é ao mesmo tempo singular deve ter. Em que condiçõ es a universalidade é
posta no campo das singularidades? Insistiria que a universalidade que se singulariza implica,
neste caso, recusa a determinar o singular como uma determinaçã o completa, sendo que a
incompletude de sua determinaçã o é forma de indicar a integraçã o do indeterminado enquanto
seu momento pró prio. Neste sentido, é verdade que tal determinaçã o só é incompleta para o
entendimento, mas seu gênero de posiçã o nada tem a ver com as determinaçõ es já determinadas
como possíveis. Tentarei indicar o desdobramento deste tempo através de certa leitura do que
podemos entender por “vida do gênero” em Marx.
essas, por sua vez, são independentes dos indivíduos e aparecem, apesar de
geradas pela sociedade, como condições naturais, i.e., incontroláveis pelos
indivíduos). A determinidade (Bestimmtheit) que, no primeiro caso, aparece
como uma limitação pessoal do indivíduo por parte do outro, aparece no
segundo caso desenvolvida como uma limitação coisal do indivíduo por
relações dele independentes que repousam sobre si mesmas243.
Gattungsleben
É neste contexto que uma intuição fundamental do jovem Marx pode ser
recuperada, a saber, esta, tão presente no idealismo alemão, que consiste em pensar a
expressão subjetiva na dimensão do trabalho a partir do paradigma da produção
estética. Como se a produção estética pudesse fornecer o horizonte normativo de toda
e qualquer atividade não alienada. Lembremos, neste sentido, de uma afirmação
como: “O animal forma (formiert) apenas segundo a medida e necessidade da espécie
a qual ele pertence, enquanto o homem sabe produzir segundo a medida de qualquer
espécie, e sabe considerar, por toda a parte, a medida inerente ao objeto; o homem
também forma, por isso, segundo as leis da beleza”244. Esta caracterização do homem
como “ser sem espécie definida”, “ser sem medida adequada”, de onde se segue sua
possibilidade de produzir segundo a medida de qualquer espécie, abre a possibilidade
para uma indiferença genérica em relação à determinação própria à toda espécie na
suas relações de transformação do meio-ambiente, o que lhe leva a encontrar a medida
inerente ao próprio objeto. Liberado da condição de ser apenas objeto para-um-outro,
o objeto pode ser expressão daquilo que, no sujeito, não se reduz à condição de ser
para-um-outro. Daí porque encontrar a medida inerente ao objeto é, ao mesmo tempo,
superar a alienação do sujeito. E o que, no sujeito, não se reduz à tal condição de ser
para-um-outro, é o que nele não se configura sob a forma de espécie alguma, não tem
imagem de espécie alguma pois é sua “vida do gênero” (Gattungsleben) que se
objetifica no objeto trabalhado245.
243
MARX, Karl; Grundrisse, op. cit., p. 111
244
MARX, Karl; Manuscritos econômico-filosóficos, op. cit., p. 85 [trad. modificada]
245
O termo vem de Feuerbach que, ao procurar estabelecer distinçõ es entre humanidade e
animalidade, dirá : “De fato é o animal objeto para si mesmo como indivíduo – por isto ele tem
sentimento de si – mas nã o como gênero – por isto, falta-lhe a consciência, cujo nome deriva de
saber. Onde existe consciência existe também a faculdade para a ciência. A ciência é a consciência
dos gêneros. Na vida, lidamos com indivíduos, na ciência com gêneros. Mas somente um ser para
o qual seu pró prio gênero, sua quididade, torna-se objeto , pode ter por objeto outras coisas ou
seres de acordo com a natureza essencial deles” (FEUERBACH, Ludwig; A essência do
cristianismo, Petró polis: Vozes, 2007, p. 35)
No entanto, diferente do que encontramos em Aristóteles, o gênero do qual o
homem faz parte é desprovido de toda e qualquer archai. Por isto, ele não pode
constituir uma “natureza humana” como sistema de normas a definir a orientação da
praxis. Um gênero desprovido de archai, sem origem nem destino. Mas, e há de se
salientar isto com toda força, esta monstruosidade de um gênero que se objetifica sem
ser espécie alguma definida, gênero que imediatamente se determina e que prenuncia
a produção própria aos “indivíduos histórico-universais” de A ideologia alemã, não é
apenas a afirmação de que o homem só age de maneira não alienada apenas quando
age conscientemente como “ser social”, ou seja, reconhecendo que sua essência é seu
“ser social” genérico e historicamente determinado. Se assim fosse, a afirmação da
vida do gênero não seria nada mais que uma apropriação reflexiva da universalidade
situada de minhas condições históricas, assim como da substância comum às relações
intersubjetivas que me constituíram e que se expressa silenciosamente nos objetos que
trabalho. O que nos levaria a uma especularidade muito bem descrita
involuntariamente por Feuerbach ao falar, não por acaso, da especificidade da
Gattungsleben humana:
Tal perspectiva talvez faça justiça de forma mais adequada à dimensão estética
da reflexão marxista sobre o trabalho. De fato, podemos dizer que é como portador
da vida do gênero que o sujeito trabalha segundo “as leis da beleza”. Pois as leis da
beleza não são estas que fundam as formas humanas em uma arché, um pouco como a
afirmação de Feuerbach parece nos levar a acreditar. Esta leitura seria
necessariamente conservadora a respeito das questões próprias à forma estética e
radicalmente defasadas mesmo diante do estado da crítica na estética romântica tardia
à época de Marx. Mais correto seria afirmar que as leis da beleza são estas que se
quebram diante da expressão do gênio, temática fundamental da estética romântica.
Não por acaso, a raiz latina da palavra alemã Gattung é o latim genus e o grego
génos. Genus partilha com genius a raiz gen que indica engendrar, produzir.
Giorgio Agamben tem um pequeno texto sobre o conceito de gênio que pode
auxiliar nas consequências desta estética da produção a animar o jovem Marx e, como
gostaria de defender, pressuposta mesmo no Marx de maturidade. Agamben lembra
que os latinos chamavam Genius ao deus ao qual todo homem é confiado sob tutela
na hora do nascimento. Resultado da afinidade etimológica entre gênio e gerar. Por
isto, Genius era, de uma certa forma, a divinização da pessoa, o princípio que rege e
exprime toda sua existência. No entanto, Agamben faz questão de insistir a respeito
de um ponto de grande importância para nós:
Mas esse deus muito íntimo e pessoal é também o que há de mais impessoal
em nós, a personalização do que, em nós, nos supera e excede. “Genius” é a
nossa vida, enquanto não foi por nós originada, mas nos deu origem. Se ele
parece identificar-se conosco, é só para desvelar-se, logo depois, como algo
mais do que nós mesmos, para nos mostrar que nós mesmos somos mais e
menos do que nós mesmos. Compreender a concepção de homem implícita em
Genius equivale a compreender que o homem não é apenas Eu e consciência
individual, mas que, desde o nascimento até a morte, ele convive com um
elemento impessoal e pré-individual247.
248
A histó ria da sonata româ ntica é a problematizaçã o cada vez maior de seu desenvolvimento é
o melhor exemplo desta forma que flerta a todo momento com sua pró pria informidade. Para
uma aná lise do desenvolvimento da forma sonata, ver ROSEN, Charles; Sonata forms, Nova York:
W.W. Norton and Company, 1988.
249
ESPOSITO, Roberto; Communitas, op. cit., p. XIV
250
MARX, Karl; A ideologia alemã, Rio de Janeiro: Civilizaçã o Brasileira, 2007. p. 61
251
Cf. POSTONE, idem, p. 151
mundo por meio do ‘trabalho’”252. Por isto, ao menos dentro de tal perspectiva, não
faria sentido falar do trabalho como categoria de contraposição ao capitalismo, já que
ele estaria organicamente vinculado às estruturas disciplinares de formação da
natureza utilitária das relações próprias à individualidade liberal e seus direitos de
propriedade, expressando apenas amplos processos de reificação.
As discussões a respeito do trabalho e sua alienação raramente estiveram
dissociadas da estrutura de determinação da relação sujeito/objeto sob a forma da
propriedade. Mesmo quando elas estiveram ligadas às exigências de apropriação da
produção e seus produtos pelos produtores imediatos, ela se limitava a uma discussão
sobre os destinos da propriedade253. Para além da inegável importância política do
problema da espoliação, há uma discussão sobre a estrutura dos processos de
reconhecimento no interior do trabalho que se faz urgente. Normalmente, pensamos o
trabalho como a produção do que me é próprio, do que é a confirmação especular de
minhas próprias determinações, mesmo que tal próprio não seja o indivíduo isolado,
mas o “ser social”, a “consciência de classe” 254. Neste sentido, passar do indivíduo ao
ser social, à consciência de classe não implica, necessariamente, uma mudança
ontológica se a crítica ao trabalho na sociedade capitalista limitar-se à critica à
destinação da propriedade ou sua forma de manifestação. Pois sendo propriedade
privada ou coletiva, cooperação de indivíduos livres ou sujeição de trabalhadores
assalariados, não se muda o fator fundamental: minha atividade deve produzir o que
me confirma no interior da esfera do próprio. Ela me assegura no espaço do familiar.
Assim, proletário ou capitalista, são os afetos do sujeito burguês e suas exigências de
identidade que continuam a nos guiar e a guiar, inclusive, os móbiles da crítica 255.
Como o burguês que dispõe, no interior de sua home, os objetos que contam seus
feitos pessoais, suas pequenas idiossincrasias, viagens exóticas e lembranças, a
consciência que trabalha parece querer transformar a natureza à sua volta em uma
grande home decorada por objetos que são a expressão de sua própria história. Ela
quer o afeto da segurança do reencontro. Pois a propriedade é, no fundo, um afeto;
um afeto de segurança e amparo. Assim, quando o trabalho aliena-se de seu trabalho,
252
Idem, p. 99
253
No fundo, vale neste caso a afirmaçã o precisa de Esposito: “Que se deva apropriar-se do nosso
comum (através do comunismo e do comunitarismo) ou comunicar o nosso pró prio (através da
ética comunicativa) o resultado nã o muda: a comunidade continua duplamente vinculada à
semâ ntica do próprio” (ESPOSITO, Roberto; Communitas: origine e destino della comunitá, Turim:
Einaudi, 1998, p. IX)
254
De nada adianta afirmar, por exemplo: “que a consciência de classe nã o é a consciência
psicoló gica de cada proletá rio ou a consciência psicoló gica de massa no seu conjunto, mas o
sentido, que se tornou consciente, da situação histórica de classe” (LUKÀ CS, Gyorg; História e
consciência de classe, op. cit., p. 179). A pergunta correta é: qual a distinçà o formal entre a
consciência do sentido na consciência de classe e na consciência psicoló gica? O que é o “sentido”
nestes dois casos, a nã o ser a apropriaçã o reflexiva do regime de causas no interior de uma
totalidade de relaçõ es representá veis, totalidade no interior da qual a representaçã o determina a
forma geral do que há a ser apreendido? Nã o seria prova de ingenuidade dialética deixar de
começar por se questionar sobre os limites da experiências impostos pela forma da
representaçã o?
255
Daí, por exemplo, este horizonte de transparência absoluta que opera no recurso à crítica do
desvelamento da totalidade em Lukà cs. Lembremos, neste sentido, do peso determinista de
afirmaçõ es como: “As se relacionar a consciência com a totalidade da sociedade, torna-se possível
reconhecer os pensamentos e os sentimentos que os homens teriam tido numa determinada
situaçã o de sua vida, se tivessem sido capazes de compreender perfeitamente esse situaçã o e os
interesses dela decorrentes, tento em relaçã o à açã o imediata, quanto em relaçã o à estrutura de
toda a sociedade conforme esses interesses” (LUKÀ CS, Gyorg; História e consciência de classe, Sã o
Paulo: Martins Fontes, 2003, p. 141)
submetendo-o à dominação de uma força estranha, a crítica insistirá que tal
estranhamento precisaria desaparecer por completo. Nada deve ser estranho ao
homem que se reencontra a si mesmo no interior do trabalho. Como dizia o liberal
Locke, que parece ter neste debate a palavra final, aquilo no qual trabalho é meu, é-
me próprio.
Melhor seria, no entanto, compreender como o trabalho é a produção do
impróprio, como há um estranhamento que não é simplesmente alienação, mas
abertura ao que não se dispõe diante de mim como aquilo que se submete a meu
tempo, meu espaço, minha forma, minhas relações de causalidade. Eliminar toda
forma de estranhamento, ou compreender todo estranhamento como alienação a ser
superada, é transformar o trabalho em forma maior de domínio de um mundo no qual
tudo se transforma à semelhança da consciência. Por mais paradoxal que isto possa
parecer, superar o trabalho alienado é indissociável da capacidade de permitir que o
estranhamento circule como afeto do mundo do trabalho. Estranhamento não como
Entfremdung (uma péssima escolha de tradução, dessas que é difícil perdoar), mas
como unheimlichkeit. Há uma espoliação no mundo do trabalho que não é apenas a
espoliação econômica do mais-valor, mas é espoliação psíquica do afeto de
estranhamento. O mesmo afeto que define a possibilidade de relação do sujeito a si
para além das ilusões de transparência reconquistada pela consciência.
Dialética hegeliana, dialética marxista, dialética adorniana
Aula 9
Proletário como sujeito político em Marx
Genealogia do proletariado
Para compreender melhor este ponto, há de se insistir que uma situação define a
emergência do proletariado, a saber, sua despossessão. De fato, conforme definido da
Constituição Romana, proletário é a última das seis classes censitárias, classe
composta por aqueles caracterizados por, embora sendo livres, não terem propriedade
alguma ou por não terem propriedades suficientes para serem contado como cidadão
com direito a voto e obrigações militares. Sua única possessão é a capacidade de
procriar e ter filhos. Reduzidos assim à condição biopolítica a mais elementar, à
condição de reprodutor da população, os proletários representam o que não se conta.
Daí uma colocação importante de Jacques Rancière: “Em latim, proletarii significa
“pessoa prolífica” – pessoa que faz crianças, que meramente vive e reproduz sem
nome, sem ser contada como fazendo parte da ordem simbólica da cidade” 256. Até o
final do século XVIII, proletário designa o que é “mal, vil” ou, em francês, como
sinônimo de “nômade”, de sem lugar.
É no bojo da Revolução Francesa, e principalmente depois da Revolução de
1830, que o termo será paulatinamente acrescido de conotação política, agora para
descrever os que só possuem seu salário diário pago de acordo com a necessidade
básica de auto-conservação, sejam camponeses ou operários, e que devem ser objetos
de ações políticas feitas em nome da justiça social. Neste sentido, os proletários não
são ainda o nome de um sujeito político emergente, mas o nome de um ponto de
sofrimento social intolerável, um “significante central do espetáculo passivo da
pobreza”257. Exemplo claro neste sentido é o uso do termo feito por Saint-Simon. É
entre os saint-simonistas que a dicotomia entre proletários e burgueses será descrita
pela primeira vez ainda que em um horizonte de reconciliação possível de interesses.
Neste sentido, mais do que cunhar o uso social do termo, o feito de Marx
encontra-se em vincular o conceito de proletariado a uma teoria da revolução ou,
antes, a uma teoria das lutas de classe que é a expressão da “história da guerra civil
mais ou menos oculta na sociedade existente” 258. Daí porque Marx falará, a respeito
dos saint-simonistas e de outros socialistas “crítico-utópicos”: “Os fundadores desses
sistemas compreendem bem o antagonismo de classes, assim como a ação dos
elementos dissolventes na própria sociedade dominante. Mas não percebem no
proletariado nenhuma iniciativa histórica, nenhum movimento político que lhes seja
peculiar”259. Pois trata-se de levar às últimas consequências o fato de que: “o
proletariado romano viva à custa da sociedade, ao passo que a sociedade moderna
vive à custa do proletariado”260.
A sua maneira, Marx partilha com Hobbes a compreensão da vida social como
uma guerra civil imanente. No entanto, como não se trata de pensar as condições para
a formação da sociedade como associação de indivíduos, mas parar de pensar a vida
256
RANCIÈ RE, Jacques; “Politics, identification and subjectivation” in: RAJCHMAN, John; The
identity in question, Nova York: Routledge, 1995, p. 67
257
STALLYBRASS, Peter; “Marx and heterogeneity: thinking the lumpemproletariat” In:
Representations, vol 0, n. 31, p. 84
258
MARX, Karl e ENGELS, Friedrich; Manifesto Comunista, Sã o Paulo: Boitempo, p. 50
259
Idem, p. 66
260
MARX, Karl e ENGELS, Friedrich; O 18 do brumário, op. cit., p. 19
social a partir da elevação do indivíduo como célula elementar, esta guerra não será a
expressão da dinâmica concorrencial entre indivíduos desprovidos de relações
naturais entre si. Ela será uma guerra de classes no interior da qual uma das classes
aparece como o conjunto daqueles que nada mais dispõem. Por isto, uma guerra que
só pode levar não a vitória de uma classe sobre outra, mas à destruição do princípio
que constitui as classes, a saber, o trabalho e a propriedade como atributo fundamental
dos indivíduos. O que explica porque Marx deverá ser claro:
261
MARX, Karl e ENGELS, Friedrich; A ideologia alemã, op. cit., p. 98
262
Idem, Manifesto Comunista, p. 43
263
Idem, p. 45
264
Idem, p. 51
No entanto, tal desordem produzida pela burguesia e sua escalada global não é
apenas o anúncio da destruição. Ela é a produção involuntária de novas relações que
tem em seu germe a forma de outro mundo:
265
Idem, A ideologia alemã, p. 58
266
MARX, Karl; A ideologia alemã, Rio de Janeiro: Civilizaçã o Brasileira, p. 58
267
MARK, Karl; Manifest der Kommunistischen Partei in
http://www.marxists.org/deutsch/archiv/marx-engels/1848/manifest/1-bourprol.htm
bohème”268 e que Marx define como “lumpemproletariado” 269. Vale a pena discutir
melhor este ponto porque não foram poucos aqueles que tentaram, desde Bakunin,
transformar o conceito de lumpemproletariado no verdadeiro conceito com força
revolucionária em Marx.
Tal como acontece com o conceito de proletariado, o conceito de
lumpemproletariado não descreve imediatamente um agente econômico, mas um tipo
de sujeito político, ou antes, uma espécie de anti-sujeito político. Lembremos da
estranha extensão que o termo toma no 18 do brumário:
Difícil não ler esta série descrita por Marx com seus literatos e amoladores de tesoura
sem se lembrar da Enciclopédia fantástica de Borges. Pois o que totaliza esta série não
é a suposta analogia entre seus elementos a partir do desenraizamento social. A este
respeito, lembremos como em Luta de classe na França, Marx chega a descrever a
própria aristocracia financeira como “o renascimento do lumpemproletariado nos
cumes da sociedade burguesa”. Há um lumpemproletariado no baixo nível do estrato
social e no alto nível, sendo os do alto nível perfeitamente enraizados à escroqueria
funcional do capitalismo financeiro.
O que os une é, na verdade, uma certa concepção de improdutividade, uma
diferenciação entre trabalho produtivo e trabalho improdutivo, mas diferenciação
concebida do ponto de vista da produtividade dialética da história. Pois o
lumpemproletariado é uma massa desestruturada cuja negatividade não se coloca
como contradição em relação às condições do estado atual da vida. Neste sentido, ele
é a representação social da categoria de negatividade improdutiva. Por isto, trata-se de
uma massa que pode ganhar homogeneidade desde que encontre um termo unificador
que lhe dará estabilidade no interior da situação política existente. Tal termo, no 18 do
brumário, não é outro que Napoleão III, “o chefe do lumpemproletariado”. Aquele
que dá homogeneidade a tal heterogeneidade social, a história mesma repetida como
farsa e que deve se confessar enquanto farsa para poder se manter.
No entanto, há de se insistir como o modelo de estabilização produzido por
Napoleão III é uma espécie de estabilização na anomia. Através de Napoleão III, a
heterogeneidade do lumpemproletariado permanece radicalmente passiva, permanece
como ação anti-política, pois acomoda-se à gestão do desenraizamento social, seus
crimes romantizados não se transformam em ação de transformação social. Na
verdade, essa desestruturação e indefinição anômica do lumpemproletariado é própria
de quem ainda conserva a esperança de retorno da ordem, ou que não é capaz de
conceber nada fora de uma ordem que ele mesmo sabe estar completamente
comprometida. O que faz suas ações políticas serem apenas “paródias” de
268
MARX, Karl; O 18 brumário de Luis Bonaparte, Sã o Paulo: Boitempo, 2011, p. 91
269
Ver, por exemplo, THOBURN, Nicholas; “Difference in Marx: the lumpenproletariat and the
proletarian unamable”; Economy and Society Volume 31 Number 3 August 2002: 434–460
270
MARX, Karl; O 18 do brumário, op. cit., p. 91
transformações, “comédias”, ou ainda, “mascaradas”: todos termos usados por Marx
no 18 de brumário para falar de revoluções que são, na verdade, tentativas de
estabilização no caos. O lumpemproletariado representa uma negatividade que não
pode ser integrada no processo dialético porque ele representa o congelamento da
negatividade em uma espécie de cinismo social. O lumpemproletariado representa
uma negatividade que não produz processo histórico algum.
Já o caso do proletariado é marcado pela ausência de qualquer expectativa de
retorno. O proletariado é uma heterogeneidade social que simplesmente não pode ser
integrada sem que sua condição passiva se transforme em atividade revolucionária.
Por isto, ao ser desprovido de propriedade, de nacionalidade, de laços a modos de
vida tradicionais e de confiança em normatividades sociais estabelecidas, ele pode
transformar seu desamparo em força política de transformação radical das formas de
vida, o que Marx deixa claro quando afirma esperar:
271
MARX, Karl; A ideologia alemã, op. cit., p. 58
272
MARX, Karl; A ideologia alemã, op. cit., p. 56
273
BADIOU, Alain; O século, Aparecida: Ideias e letras, 2007, p. 108
274
MARX, Karl; A ideologia alemã, op.cit., p. 98
275
MARX, Karl; Crítica da filosofia do direito de Hegel – introdução, Sã o Paulo: Boitempo, 2005, p.
156
fundamento e conservar algo desta indeterminação276. Seu papel de redenção
(Erlösung) só pode ser desempenhado à condição de assumir sua natureza de
dissolução (Auflösung). Como dirá Balibar, o advento do proletário como sujeito
político é o aparecimento de um: “sujeito como vazio”277 que não é, em absoluto,
privado de determinações práticas. Trata-se de uma ideia presente também em
Jacques Rancière, para quem: “os proletários não são nem os trabalhadores manuais
nem as classes trabalhadoras. Eles são a classe dos não-contados, que só existe na
própria declaração através da qual eles se contam a si mesmos como os que não são
contados”278. Essa manifestação de um vazio em relação às determinações identitárias
atuais leva-nos a compreender que o reconhecimento de si só é possível à condição de
uma crítica profunda de toda tentativa de reinstaurar identidades imediatas entre
sujeito e seus predicados.
Se este for o caso, então poderemos dizer que a luta de classes em Marx não é
simplesmente um conflito moral motivado pela defesa das condições materiais para a
estima simétrica entre sujeitos dispostos a se fazerem reconhecer a partir da
perspectiva da integralidade de suas personalidades. Pois é assim que Axel Honeeth
define o que Marx compreenderia por “luta de classes”. Na verdade, Honneth serve-
se, entre outros, dos estudos de historiadores como E.P. Thompson e Barrington
Moore a fim de afirmar que a estrutura motivacional das lutas da classe operária
baseou-se, principalmente: “na experiência da violação de exigências localmente
transmitidas de honra”279, já que, mais importante do que demandas materiais teria
sido o sentimento de desrespeito em relação a formas de vida que clamam por
reconhecimento. Por procurar desde há muito defender tal perspectiva, Honneth pode
afirmar que, em Marx:
276
Sobre este ponto da filosofia hegeliana, tomo a liberdade de remeter ao meu SAFATLE,
Vladimir; Grande hotel abismo: para uma reconstrução da teoria do reconhecimento, Sã o Paulo:
Martins Fontes, 2012.
277
BALIBAR, Etienne; Citoyen sujet et autres essais d’anthropologie philosophique, Paris: PUF,
2011, p. 260.
278
RANCIÈ RE, Jacques; La mésentente: politique et philosophie, Paris: Galilée, 1995, p. 63
279
Idem, p. 131.
280
HONNETH, Axel; Kampf um Anerkennung: Zu moralischen Grammatik sozialer Konflikte,
Frankfurt: Suhrkamp, 1992, p. 233
degradação cultural é fenomenologicamente secundária”281, já que conflitos por
redistribuição não poderiam ser compreendidos como independentes de toda e
qualquer experiência de desrespeito social. Mas, ao reduzir a integralidade das lutas
sociais às demandas pela afirmação das condições para a formação da identidade
pessoal, sua perspectiva anula por completo uma dimensão fundamental para a
compreensão da luta de classe, ao menos para Marx, a saber, a força de des-identidade
própria ao conceito marxista de proletariado.
Insistamos neste ponto lembrando de um importante trecho do Manifesto
Comunista:
281
Idem, p. 171
282
MARX, Karl e ENGELS, Friedrich: Manifesto Comunista, op. cit., p. 50
283
HEGEL, GWF; Fenomenologia do Espírito – vol. II, Rio de Janeiro: Petró polis, 1992, p. 33
284
A este respeito, ver, entre outros COHEN, G.A.; Self-ownership, freedom and equality, Cambridge
University Press, 1995
“o limite dentro do qual um [cidadão] pode mover-se de modo a não
prejudicar o outro é determinado pela lei do mesmo modo que o limite entre
dois terrenos é determinado pelo poste da cerca. Trata-se da liberdade do
homem como mônada isolada recolhida dentro de si mesma (…) A aplicação
prática do direito humano à liberdade equivale ao direito humano à
propriedade privada”285.
A liberdade, para Marx, passa pela liberação do sujeito de sua condição de indivíduo
que se relaciona a outro indivíduo tal como dois terrenos separados pelo poste da
cerca. Estaremos sendo fiéis ao espírito do texto de Marx se afirmarmos que, através
da luta de classes, uma experiência social pós-identitária pode encontrar lugar.
Podemos mesmo dizer que “proletariado” é a nomeação política da força social de
desdiferenciação identitária cujo reconhecimento pode desarticular por completo
sociedades organizadas a partir da hipóstase das relações gerais de propriedade.
Que esta força de desdiferenciação própria ao conceito de proletariado tenha ganhado
evidência graças a marxistas franceses, como Badiou, Balibar e Rancière, isto
demonstra como algo do descentramento próprio ao conceito lacaniano de sujeito
alcançou a política através de ex-alunos de Louis Althusser. No entanto, tal
descentramento tem sua matriz na noção de “negatividade” própria ao sujeito
hegeliano. Assim, por ironia suprema da história, algo do conceito hegeliano de
sujeito acaba por voltar a cena através da influência surda em operação nos textos de
ex-alunos deste anti-hegeliano por excelência, a saber, Louis Althusser.
Por esta razão, o proletariado não pode ser imediatamente confundido com a
categoria de povo. Falta-lhe a tendência imanente à configuração identitária e
limitadora que define um povo. O proletariado funciona muito mais como uma
espécie de anti-povo, isto no sentido da potência sempre vigilante do que permanece a
lembrar a provisoriedade das identidades, estados e nações, assim como da pulsação
constante de integração do que se afirma inicialmente como exceção não-contada.
Esta é uma maneira de aceitar proposições como:
A coisa toda seria muito simples se houvesse apenas a infelicidade da luta que
opõe ricos e pobres. A solução do problema foi encontrada muito cedo. Basta
suprimir a causa da dissensão, ou seja, a desigualdade de riquezas, dando a
cada um uma parte igual de terra. O mal é mais profundo. Da mesma forma
que o povo não é realmente o povo, mas os pobres, os pobres por sua vez não
são realmente os pobres. Eles são apenas o reino da ausência de qualidade, a
efetividade da disjunção primeira que porta o nome vazio de ‘liberdade’, a
propriedade imprópria, o título do litígio. Ele são eles mesmo a união
distorcida do próprio que não é realmente próprio e do comum que não é
realmente comum286
289
ENGELS e alli, idem, p. 122
290
KOSELLECK, Reinhart; Futuro passado: contribuição á semântica dos tempos históricos, Rio de
Janeiro: Contraponto, 2006, p. 54
291
Idem, p. 37
292
Idem, p. 69
dos acontecimentos é impredicável pois sem referência com o horizonte de
expectativas da consciência histórica, por isto ela é expressão de um tempo
desamparado, marcado exatamente pela contingência. Talvez isto explique porque,
por exemplo, várias tentativas de encarnação da Revolução, com sua maiúscula de
rigor, no processo revolucionário concreto, ou seja, várias tentativas de encarnação da
força insurgente da esperança em políticas de governo serão indissociáveis de uma
certa imunização produzida pela necessidade de apelar à circulação social do medo,
compondo com ele uma dualidade afetiva indissociável. Ela se transforma em prova
do corolário: “não haverá esperança sem medo”. Medo que expressa a
impossibilidade da encarnação, pois expressão do desvio e da traição sempre à
espreita contra o corpo social produzido pela esperança. Medo do retorno do tempo e
dos atores que já deveriam estar mortos. O corpo social por vir da esperança não se
sustenta, por isto, sem a necessidade de imunização constante, sem a necessidade de
ações violentas periódicas de “regeneração do corpo social” (BODEI, Idem, p. 426),
em suma, sem a transmutação contínua da esperança em medo. A história das grandes
revoluções, seja a francesa com seu “grande medo”293, seja a russa com seus
“expurgos”, apenas para ficar em dois dos melhores exemplos, nos mostra isto bem.
Contra esta passagem incessante nos opostos complementares da esperança e
do medo, muitos acreditaram dever retirar a política de toda dimensão do porvir,
produzindo um esfriamento das paixões através da recusa de qualquer ruptura
desestabilizadora profunda de nossos conceitos já em circulação de democracia.
Como se o tempo histórico das revoluções fosse uma simples aporia tão bem descrita
por Hegel quando, ao falar da passagem da insurreição e da mobilização ao governo
no jacobinismo, lembrava: “o [simples] fato de ser governo o torna facção e
culpado”294; resultado necessário de um liberdade que não é capaz de superar seu
primeiro impulso negativo.
Mas talvez seja possível liberar a política transformadora de toda atividade de
projeção temporal, dando-lhe um temporalidade concreta. Neste sentido, gostaria de
fornecer uma interpretação ao problema da revolução em Marx que possa responder a
acusação de que sua filosofia da história seria animada por uma “metanarrativa” que
parece fundir a multiplicidade das identidades coletivas em uma unidade compacta.
293
LEFEVRE, Georges; La grande peur de 1789, Paris: Armand Colin, 1970
294
HEGEL, G.W.F.: Fenomenologia do Espírito
295
MARX, Karl; O 18 de brumário, p. 25
A colocação de Marx era precisa por problematizar um ponto fundamental da
dialética como processualidade referente à necessidade da repetição. A frase Hegel,
dita a respeito da morte de César, era: “de fato, uma revolução política é geralmente
sancionada pelos homens quando ela se repete. Assim, Napoleão sucumbiu duas
vezes e duas vezes foram afastados os Bourbons. Através da repetição, o que apareceu
inicialmente como possível e contingente adquire realidade e permanência”296. Nota-
se claramente aqui como a revolução é definida como uma forma específica de
repetição a partir de um acontecimento que aparece inicialmente como contingente,
como meramente possível no sentido de poder ter sido de outra forma, poder ter
ocorrido ou não. Uma revolução é repetição de um acontecimento contingente, mas
uma repetição feita de forma tal que transforma a contingência, transforma o que até
então não aparecia para uma situação como fruto de uma causalidade necessária, em
necessidade. Neste sentido, podemos falar em, “revolução” porque tal transformação
só é possível à condição do acontecimento produzir uma contradição formal com a
situação presente. O acontecimento é impensável no interior da situação presente, ele
não obedece ao regime de necessidade do que está imediatamente posto. Repeti-lo é
inscrevê-lo em uma nova estrutura simbólica.
Tentemos compreender melhor este ponto. Lembremos, inicialmente, como
Hegel define a contingência: “essa unidade da possibilidade e da efetividade
(Wirklichkeit) é a contingência (Zufälligkeit). O contingente é um efetivo que, ao
mesmo tempo, é determinado apenas como possibilidade, cujo outro ou oposto
também é” (HEGEL, 1986, p. 230). A contingência é unidade da possibilidade e da
efetividade porque, embora existente, ela conserva a marca do que poderia não ser, do
que é mera possibilidade. O outro de si, sua inexistência, seu oposto, era igualmente
possível. Daí porque ela é, aos olhos de Hegel, o espaço de uma contradição maior: “o
contingente não tem fundamento, porque é contingente, e da mesma forma tem um
fundamento, porque como contingente, é”. Sua existência não tem fundamento por
estar corroída pela situação de mero possível, ela é vizinha do não-ser, como dizia
Aristóteles, mas ao mesmo tempo tem alguma forma de fundamento por participar da
efetividade posta. Assumir a existência efetiva da contingência é, para Hegel,
confrontar-se como o que é uma: “interversão posta imediata” (gesetzte unvermittelte
Umschlagen), ou seja, com uma passagem contínua entre opostos que nunca se
estabiliza e que por isto abre a experiência a uma “absoluta inquietude do devir”
(absolute Unruhe des Werdens).
Hegel poderia, por exemplo, recusar dar a contingência alguma forma de
dignidade ontológica e professar um necessitarismo absoluto nos moldes daquele que
encontramos em Spinoza. Mas se ele fizesse isto, não haveria mais dialética, pois não
haveria mais produtividade da contradição. Hegel deve admitir que todo
acontecimento se apresenta inicialmente como contingente e tal apresentação não é
simplesmente um “defeito de nosso entendimento”. Ela é a expressão do fato da
essência estar em uma relação de exterioridade consigo mesma, dela se manifestar
como uma espécie de exceção de si. É nesta exceção, nesta excepcionalidade que uma
outra ordem começará por entrar em contradição com a situação normal para depois
afirmar-se.
Mas notemos um ponto. A contingência é absoluta inquietude do devir apenas
para uma filosofia, como a hegeliana, que ao recusar distinções ontológicas estritas
entre contingência e necessidade, procura compreender como o necessário se
engendra a partir da efetividade, como a efetividade produz a necessidade, produz um
“não poder ser de outra forma”. O que não significa que a realidade atual deva ser
296
HEGEL, G.W.F.; Vorlesungen ü ber die Philosophie der Geschichte, p. 242
filosoficamente completamente justificada, como já se criticou Hegel em mais de uma
vez. Antes, significa compreender como fenômenos contingentes, por não
encontrarem lugar na determinação necessária da realidade atual, transfiguram-se em
necessidade ao inaugurar processualidades singulares.
Assim, por exemplo, o assassinato de César – tópico fundamental no trecho da
Filosofia da História citado acima - aparece inicialmente como a anulação de uma
individualidade que parecia colocar em risco a forma da República, como a anulação
de algo que poderia ter sido de outra forma. Diante da situação representada pela
República Romana e sua institucionalidade, um acontecimento como César era
puramente contingente, colocando-se em contradição com a situação normal.
Eliminando-o, a necessidade da situação normal se restabeleceria. No entanto, o
assassinato de César produz sua repetição sob a forma simbólica de Césares que
retornam instaurando um novo regime de necessidade e de temporalidade no qual a
perda produzida no passado é apenas uma forma de abrir uma temporalidade espectral
que dará ao presente a espessura de novas camadas. Esta repetição é a prova de que a
forma da República havia sido esvaziada de sua substância. Ela não passava de um
mero formalismo.
Diria que esse processo de integração processual das contingências é a base
estrutural da compreensão de revolução presente em Marx. No entanto, ele
complexificado por Marx ao estabelecer a existência de um modo de repetição
histórica que é apenas a expulsão do que aparecia como a potência de transformação
de um acontecimento. Uma revolução sempre desencadeia um sistema de repetições,
mas há de se saber como e o que se repete. É importante para Marx operar tal
distinção no interior do conceito de repetição histórica para dar conta de um processo
bem descrito no capítulo III do 18 de brumário:
297
Idem, pp. 55-56
A descrição de Marx é clara na sua caracterização de revoluções que seguem
linhas ascendentes e outras que seguem linhas descendentes. No primeiro caso, os
sujeitos políticos se sucedem através de um movimento no qual o informulado pelo
sujeito precedente, o que ele não é capaz de enunciar sem se destruir, impulsiona uma
transformação ainda maior em relação ao que era a situação normal de partida. No
segundo caso, os sujeitos políticos se sucedem através de um movimento no qual o
informulado posto inicialmente pelo partido proletário é cada vez mais afastado até
que, em um movimento descendente contínuo, o processo termina nas baionetas das
Forças Armadas.
Sugiro que para entender esta clivagem entre linha ascendente e linha
descendente, devemos adentrar na forma com que Marx estabelece, ao menos, dois
regimes distintos de repetição histórica. Lembremos inicialmente como Marx insiste
que: “a tradição de todas as gerações passadas é como um pesadelo que comprime o
cérebro dos vivos” pois, no momento em que parecem empenhados em criar algo
nunca visto, os homens reavivam espíritos do passado, tomam emprestado os seus
nomes a fim de representar as novas cenas da história mundial, abrindo uma dinâmica
de identificações históricas. Por exemplo, foi com figurinos romano e fraseologia
romana que a Revolução Francesa se realizou como ereção da moderna sociedade
burguesa. Mas ela reviveu tal tempo para ocultar aos agentes históricos: “a limitação
burguesa do conteúdo de suas lutas”298. Neste sentido, seguiria Guillaume Silbertin-
Blanc a fim de lembrar que: “Jamais la « révolution bourgeoise » nʼaurait pu avoir
lieu, si elle avait dû être faite par des bourgeois. Dʼabord, elle ne put être
révolutionnaire quʼen étant dʼabord populaire et « de masse », donc à la condition de
transfigurer son contenu de classe particulier dans les formes idéologiques dʼune
émancipation universelle capables dʼexalter lʼenthousiasme bien au-delà des seules
fractions de la bourgeoisie, et de mobiliser le peuple en masse dans les affrontements
contre les forces contre- révolutionnaires intérieures et extérieures. Mais elle ne fut
jamais faite par la bourgeoisie en un autre sens encore: la bourgeoisie de 1789 comme
classe révolutionnaire, ne fut jamais révolutionnaire en tant que bourgeoise, mais
seulement en tant quʼelle sʼhéroïsa, se transfigura elle-même et, littéralement,
sʼhallucina dans les rôles grandioses dʼune tradition romaine quʼavaient déjà idéalisée
théoriquement, si lʼon peut dire, les philosophes des Lumières, dans des figures
héroïques où ses caractères bourgeois lui devenaient méconnaissables”299.
Neste sentido, a repetição aparece como uma forma de “ilusão necessária”,
uma astúcia que só poderia produzir, ao final, formas de decepção histórica. A
ressurreição dos mortos serve aqui para glorificar as novas lutas, exaltar na fantasia as
missões recebidas e para redescobrir o espírito da revolução. Mas aqui se abre uma
ambiguidade importante. Quando os fantasmas do passado são chamados, eles não
voltam mais para o passado. Ninguém ressuscita os mortos sem se deixar invadir por
eles, sem fazer com que as promessas não realizadas no passado, voltem a assombrar
os vivos, criando uma profunda instabilidade que impulsionará a Revolução em uma
linha ascendente. Não é apenas o heroísmo da Roma antiga que é convocado a fim de
permitir à burguesia alucinar seu próprio papel histórico. São também as promessas
quebradas à plebe, os tribunos assassinados, as revoltas sufocadas, em suma, o que
ficou na histórica como derrota a espera de outra oportunidade e é isto que impulsiona
a Revolução em linha ascendente. Pois ressuscitar os mortos é aproximar-se de outro
tempo, não é apenas trazer os mortos para o presente, mas também presentificar o
tempo do passado em sua integralidade. O tempo da Revolução é uma temporalidade
298
Idem, p. 27
299
SILBERTIN-BLANC, Guillaume; Pensée politique en temps inactuels, p. 64
outra; é, para usar um conceito hegeliano, um “presente absoluto”. Há um outro
tempo a assombrar o presente e ele só deixará de assombrá-lo quando não houver
mais presente tal como até agora houve. Pois as rupturas nos modos de produção que
as Revolução proletárias procuram realizar são modificações que, como bem lembra
Balibar, modificam: “a base econômica, as superestruturas jurídicas e políticas, as
formas da consciência social”300. Neste contexto, “formas da consciência social”
significa o modo de determinação dos sujeitos e de sua experiência espaço-temporal.
As configurações de sujeitos vão juntamente com os modos de produção.
No entanto, Marx fala que: “não é do passado, mas unicamente do futuro, que
a revolução social do século XIX pode colher sua poesia” 301. A princípio, parece que
Marx está a dizer que não se trata mais de recorrer a memórias históricas para
travestir burgueses de césares, insensibilizando a sociedade em relação ao real
conteúdo dos processos de transformação social. Como Marx insistirá, ao invés da
fraseologia histórica superar o verdadeiro conteúdo do processo revolucionário, era o
conteúdo que deveria enfim superar a fraseologia. No entanto, talvez Marx fale que é
apenas do futuro que a revolução poderá colher sua poesia porque não há figuras no
passado que possam dar forma à subjetividade política revolucionária pois o que uma
revolução faz ressoar é exatamente aquilo que, no interior do passado, ficou sem
forma e figura, aquilo que ficou sem lugar. A poesia da revolução é a poesia do que
não se inscreveu no tempo da história. Neste sentido, tem razão Walter Benjamin
quando afirma: “O historicismo se contenta em estabelecer um nexo causal entre
vários momentos da história. Mas nenhum fato, meramente por ser causa, é por isso
um fato histórico. Ele se transforma em fato histórico postumamente, graças a
acontecimentos que podem estar dele separados por milênios”302. Ou seja, a revolução
é este processo que reconstrói o tempo a partir da capacidade de “extrair uma época
determinada do curso homogêneo da história”303. Tal extração pode, inclusive,
paralisar o tempo em uma configuração saturada de tensões que se cristaliza como
uma mônada. Assim, o tempo pode paralisar-se em uma saturação contínua, fazendo
com que os múltiplos instantes na história sejam o mesmo instante em repetição, até
que tal pressões de tensões produza a emergência de um novo sujeito.
Por exemplo, sabemos como Marx dirá que as revoluções do século XVIII são
intensas e tem vida curta, enquanto as revoluções do século XIX (1830, 1848) estão
em constante auto-crítica, parecem interromper sua marcha para começar tudo de
novo, para zombar da debilidade de suas primeiras tentativas. Elas “recuam
repetidamente ante a enormidade ainda difusa de seus próprios objetivos até que se
produza a situação que inviabiliza qualquer retorno”304. O que significa tais recuos e
interrupções? Podemos dizer que eles são os processos que paulatinamente produzem
o sujeito revolucionário através da consciência de sua ausência completa de lugar.
Marx, por exemplo, lembra como é recorrente este processo no qual o proletariado
abre mão de revolucionar o velho mundo para se lançar a: “experimentos doutrinários,
bancas de câmbio e associações de trabalhadores” 305. Como se o proletariado
acreditasse que os problemas sociais que enfrenta poderão ser resolvidos através da
conservação reajustada dos modos atuais de produção, dos modos atuais de narrativa
e de dramatização política. Ao fazer isto, eles só poderão produzir uma repetição
300
BALIBAR, Etienne; “Concepts fondamentaux du matérialisme historique”, In: ALTHUSSER,
Louis (org.); Lire le Capital, p. 424
301
MARX, Karl; 18 de brumário, p. 28
302
BENJAMIN, Walter; Sobre o conceito de histó ria, p. 232
303
idem, p. 231
304
MARX, Karl; O 18 de brumário, p. 30
305
Idem, p. 35
histórica como paródia da revolução. Repetição como aprisionamento em um tempo
morto no qual o que retorna, retorna sob a forma da impotência social.
Assim, por exemplo, incapaz de assumir sua condição de completa
despossessão o proletariado francês em 1848 deixou-se apreender pelo imaginário
burguês da Revolução Francesa. Esperando pela repetição de Napoleão, ele terá que
se contentar com um Napoleão caricaturado, até que assuma sua condição de
expressão de um sujeito político sem figura e que, por isto, não pode mais se
representar sob a forma dos antigos atores. Enquanto isto não acontecer, sobe à cena
do político estes que não acreditam que poesia alguma virá do futuro porque são
movidos pela nostalgia de uma antiga ordem ou pela acomodação complacente à
desordem do presente. Movidos por uma negatividade improdutiva, sua espera por
transformações será, no fundo, espera por uma restauração. Vimos na aula passada
como tal anti-sujeito político é o que Marx chama de “lumpemproletariado”. Volto a
insistir, o lumpemproletariado é composto por todos os desenraizados que não são
capazes de se engajar em um processo de contradição com a situação normal. Sua
negatividade não chega à contradição. Neste sentido, o conceito de
lumpemproletariado traduz, acima de tudo, uma posição política diante de um
processo revolucionário.
Dentro deste processo, há de se sublinhar como ele se estabiliza através do
deslocamento do poder para uma caricatura, a saber, Napoleão III. Vendo-se na
incapacidade de unificar o poder em suas mãos, a burguesia francesa permite a
produção de uma espécie de dominação estatal que paira acima das classes. A figura
da estabilização através de um personagem que representa apenas o próprio vazio do
poder, que permite a coesão do estado por não exigir mais convicção alguma em
relação ao estado.
Neste sentido, podemos dizer que uma revolução é, acima de tudo, o processo
de emergência de novos sujeitos políticos. Esta emergência é a condição para que o
acontecimento contingente possa se transformar em necessidade. Sem tal emergência
acontecimentos se seguirão um após o outro sem que nenhuma sequência de
transformações se inicie. No entanto, tais sujeitos são produzidos por acontecimentos.
Daí porque todo acontecimento ocorre, ao menos duas vezes. A repetição do
acontecimento é levada a cabo por outros sujeitos.
Falta a aula 10
Dialética hegeliana, dialética marxista, dialética adorniana
Aula 11
A categoria de sujeito em Adorno
Em vários momentos, deve ter ficado claro como a dialética não é uma ontologia do
ser, mas uma filosofia do sujeito. O conceito de sujeito lhe é absolutamente central e
deveríamos agora nos perguntar a razão para tal centralidade. Esta centralidade fica
evidente na recuperação adorniana da dialética. Podemos mesmo dizer que, do início
até o fim, a filosofia adorniana não será outra coisa que uma complexa teoria do
sujeito que procura desdobrar suas conseqüências nos campos da reflexão sobre a
teoria do conhecimento, a estética, a moral e a teoria social. Ou melhor, uma teoria do
sujeito que só pode se configurar através das passagens da filosofia em direção a
campos empíricos do saber. Não seria difícil mostrar que, neste ponto, Adorno acaba
por mostrar sua profunda solidariedade com a tradição dialética inaugurada por Hegel,
já que a filosofia de Hegel é, a sua forma, também uma longa elaboração a respeito da
reconstrução possível da categoria de sujeito. Uma construção que também exige a
dispersão conceitual do fazer filosófico.
A primeira razão que podemos dar para este insistência na conservação da
categoria de sujeito é a defesa de que “sujeito” é o nome que damos para uma
experiência radical de não-identidade. A defesa do primado da não-identidade pede a
reflexão sobre a estrutura da categoria de sujeito. Desde Hegel, a reflexão cuja
atividade constitui a categoria do sujeito não é definida como auto-reflexão,
capacidade de auto-apreensão de si no interior de uma consciência especular. Ela é
um movimento necessário de alienação e retorno. Esta reflxividade dá ao sujeito sua
característica principal, a saber, sua dinâmica de implicação. Sujeito é o nome que
damos para um movimento de implicação com o que não se deixa pensar sob a forma
da identidade. Notemos ainda que Adorno prefere falar em não-identidade, ao invés
de, por exemplo, diferença, para insistir na natureza do movimento que permite o
redimensionamento do campo da experiência. Tal movimento não parte da eliminação
pura e simples das expectativas de organização próprias ao sujeito, como se fosse
possível suspendê-las por decreto e colocar-se diretamente na perspectiva do infinito.
Ele é dialético por levar tais expectativas a seu ponto de exaustão, a levar a identidade
até o ponto no qual ela confessa sua impossibilidade. Como se o sujeito fosse
necessariamente animado por um movimento de auto-superação de si.
Tal compreensão do sujeito como regime de implicação com uma experiência
de não-identidade explica porque, ao começar sua descrição das categorias de uma
lógica dialética (na segunda parte de Dialética Negativa), Adorno comece não com
uma consideração sobre o ser ou mesmo sobre o sujeito, mas com o “algo” (Etwas)
como “caráter coisal não idêntico ao pensamento” 306. Não partir do “algo” é, para
Adorno, aceitar a: “dominação do conceito que gostaria de permanecer constante ante
seus conteúdos”307. No entanto, se quisermos uma dialética materialista, há de se
pensar o processo de alteração do conceito pelo não imediatamente conceitual.
“Sujeito” é o nome que damos para a implicação com tal processo, para a capacidade
de ser afetado pelo pensamento de tal processo. Por isto, ele nos mostra como:
306
ADORNO, Dialética negativa, p. 119
307
Idem, p. 121
O que quer que a palavra venha algum dia a trazer consigo em termos de
experiência , só é exprimível em configurações do ente, não por meio da
alergia em relação a ele, de outro modo o conteúdo da filosofia se transforma
em resultado irrisório por um processo de subtração não diverso do que
outrora a certeza cartesiana do sujeito, da substância pensante308.
310
ADORNO e HORKHEIMER, ibidem, p. 24
311
Neste sentido, sigamos a afirmaçã o: “Sempre que as energias intelectuais estã o
intencionalmente concentradas no mundo exterior (...) tendemos a ignorar o processo subjetivo
imanente à esquematizaçã o e a colocar o sistema como a coisa mesma. Como o pensamento
patoló gico, o pensamento objetivador contém a arbitrariedade do fim subjetivo que é estranho à
coisa” (idem, p. 180)
312
HEIDEGGER, Martin; Essais et conférences, p. 35
313
Um belo exemplo deste trabalho nos é fornecido por DEWS, Peter, Adorno, pós-estruturalismo
e crítica da identidade In: ZIZEK, Slavoj, Um mapa da ideologia, Rio de Janeiro: Contraponto, 1996,
pp. 51-71. Tomo a liberdade de também remeter ao meu: SAFATLE, Vladimir; Espelhos sem
imagens: mimesis e reconhecimento em Lacan e Adorno, Revista Trans/form/açã o, vol. 28 (2),
2005, pp. 21-47
fornecem a perspectiva que fundamenta a crítica à esta mesma situação? Como o que
nasce no interior de uma situação pode servir de ponto de fuga, como perspectiva que
me permite criticar esta própria situação? Como se dá esta passagem tensa entre
filosofia e teoria do capitalismo? Como é possível, por exemplo, articular a crítica do
sujeito como locus da identidade imediata e a compreensão de que: “a ideologia é a
forma originária da ideologia”314? Todas estas questões só podem ser respondidas
através de uma leitura atenta do texto adorniano.
Partamos, a este respeito, de uma consideração adorniana fundamental. Para
Adorno, o conceito de sujeito é o espaço de uma ambiguidade entre “o momento da
individualidade humana – chamada egoidade por Schelling”315 e uma determinação de
universalidade. Adorno insiste várias vezes como o sujeito transcendental é uma
abstração do Eu empírico, que tentar salvar seu conceito é como transformar o
condicionado em incondicionado. É importante insistir neste ponto para denunciar o
caráter ideológico de certa ideia de autonomia. Pois:
Adorno chega mesmo a falar que o que Kant chama de “enformação” (Formierung) é
deformação ou, ainda, chega mesmo a falar de um “cativeiro interiorizado” a fim de
sublinhar o caráter de coerção de tais condições formais da experiência. “O cativeiro
categorial da consciência individual reproduz o cativeiro real de cada indivíduo”, dirá.
Ou seja, os limites da estrutura atual da experiência são a expressão das condições
materiais para a reprodução de um regime de funcionamento da vida social. O
capitalismo tem sua forma de tempo e de espaço, assim como ele tem seus regimes de
320
ADORNO, Dialética negativa, p. 127
321
Idem, p. 128
322
ADORNO, Palavras e sinais, p. 199
323
Idem, p. 188
324
Idem, p. 191
identidade. Toda determinação transcendental é uma instituição social e isto não pode
ser esquecido por toda crítica social que não queira ser filosoficamente ingênua. Há
algo que não é aplicação de método, mas abertura à experiência em sua capacidade de
transformação.
Adorno insiste em pensar a partir de uma dialética entre sujeito e objeto que afirma:
“a separação entre sujeito e objeto é real e aparente” 325. Verdadeira por expressar uma
situação concreta atual e aparente por não poder ser hipostasiada como invariante. No
entanto, uma separação radical leva o sujeito a “esquecer o quanto ele mesmo é
objeto”326. Ou seja, ignorar como não apenas o objeto é mediado pelo sujeito, mas
como o sujeito é mediado pelo objeto leva, paradoxalmente, o objeto da experiência a
ser nada mais que uma projeção de um sujeito constituinte. Adorno precisa andar em
uma linha tênue entre aqueles que recusam, ao mesmo tempo, um estado originário de
indiferenciação genérica entre sujeito e objeto, assim como uma separação ontológica
entre os dois. Daí uma afirmação importante como:
A colocação é clara: há uma espécie de síntese não identitária entre sujeito e objeto
que é resultado de um processo, que é uma produção, antes de ser o desvelamento de
uma unidade indiferenciada que muito se criticou como pressuposição da dialética
hegeliana. Esta síntese não tem a forma de uma comunicação entre sujeitos, mas de
um entendimento entre o que tem realidades ontológicas distintas, a saber, homens e
coisas. Tentemos entender melhor este ponto, assim como entender como tal ponto
nos abre para uma relação importante entre dialética hegeliana e dialética negativa.
De fato, há uma proximidade nem sempre relevada a respeito da dialética entre
sujeito e objeto em Hegel e Adorno. Proposição que pode parecer inicialmente
disparatada e ir na contramão de várias asserções explícitas do próprio Adorno. Pois
em mais de um momento, Adorno age como quem afirma que Hegel não pode levar a
dialética sujeito-objeto às suas reais conseqüências. Daí a necessidade de afirmações
como:
325
Idem, p. 182
326
Idem, p. 183
327
Idem, p. 184
328
ADORNO, Três estudos sobre Hegel
Adorno reconhece o momento de verdade da crítica hegeliana da oposição entre a
consciência que concede forma e a simples matéria. Ele sabe que a construção da
consciência-de-si como unidade especulativa entre sujeito e objeto abre espaço para
pensarmos a partir da própria coisa, já que ela não é relegada à condição de simples
matéria impensada. Neste sentido, Adorno insiste que, para Hegel:
Esta mediação por meio dos extremos é, no entanto, a maneira com que a própria
dialética negativa funciona. O que demonstra quão equivocada são perspectivas que
procuram diferenciar a dialética hegeliana e a dialética adorniana a partir da pretensa
distinção entre seus modelos de mediação330. Tanto é assim que Adorno dará um
nome para tal mediação por meio dos extremos e nos próprios extremos que estaria
entre operação na dialética entre sujeito e objeto: mimese. Mas Adorno aproxima, de
maneira explícita, negação determinada hegeliana e mimese, como vemos em uma
afirmação como:
Assim, longe de se reduzir a uma relação meramente projetiva entre sujeito e objeto, a
dialética hegeliana reconhece afinidades miméticas que modificam a identidade dos
dois pólos. Mas isto significa necessariamente reconhecer que o sujeito encontra, no
interior de si mesmo, um “núcleo do objeto”332, isto no sentido de uma opacidade
própria à resistência do que se objeta à apreensão integral da consciência 333. Este
reconhecimento, por sua vez, é a maneira com que uma certa reconciliação opera na
dialética negativa todas as vezes que Adorno fala da relação entre sujeito e objeto
como uma “comunicação do diferenciado”334.
Mas, da mesma forma que é impossível, ao mesmo tempo, guardar o bolo e
comê-lo, não é possível dizer, ao mesmo tempo, que “o sujeito-objeto hegeliano é
sujeito” e que “o conceito especulativo hegeliano salva a mimese por meio da
autoconsciência do Espírito”. Pois no primeiro caso temos uma projeção irrefletida,
enquanto no segundo ainda temos uma projeção, mas submetida à dupla reflexão de
329
Idem
330
Como em O’CONNOR, Brian; Hegel, Adorno and the concept of mediation, Bulletin of the Hegel
Society of Great Britain (39/40):84-96.
331
ADORNO, Três estudos sobre Hegel
332
ADORNO, Palavras e sinais: modelos críticos II, Petró polis: Vozes, 1995, p. 188
333
O que leva Adorno a afirmar que: “a construçã o do sujeito-objeto possui uma duplicidade
insondá vel. Ela nã o se contenta em falsificar ideologicamente o objeto e em transformá -lo no ato
livre do sujeito absoluto, mas também reconhece no sujeito o elemento objetivo que se apresenta
e com isso restringe anti-ideologicamente o sujeito” (ADORNO, Dialética negativa, p. 290)
334
ADORNO, Palavras e sinais, op. cit., p. 184. Neste sentido, é correto dizer que a dialética
negativa nos remete a uma relaçã o sujeito-objeto que se situa: “nã o apenas para além de suas
identidades, mas também para além de suas diferenças” (RICARD, La dialectique de T.W.Adorno,
Laval Théologique et Philosophique, 55, 2 (junho, 1999), p. 271.
quem compreende a necessidade de internalizar o momento de resistência do objeto à
organização conceitual.
Neste sentido, lembremos como o pensamento mimético, para Adorno, não é
um modo de pensamento marcado pela crença na força cognitiva das relações de
semelhança e de analogia. A imitação própria ao pensamento mimético é,
principalmente, compreendida como a capacidade transitiva de se colocar em um
outro e como um outro. A mimese seria modo de superar a dicotomia entre eu e outro
(seja tal dicotomia construída na forma sujeito/objeto, conceito/não-conceitual ou
cultura/natureza) através da identificação com aquilo que me aparece como oposto.
Ela é, neste contexto, internalização das relações de oposição, transformação de um
limite externo em diferença interna. Não a mera imitação do objeto, mas a assimilação
de si pelo objeto. Por isto, Adorno descreverá a mimese como um regime de mediação
por meio dos extremos e nos próprios extremos 335. Mediação capaz de construir um
modelo de reconciliação que o filósofo chamará de “comunicação do diferenciado”.
Se Adorno afirma que o conceito especulativo hegeliano salva a mimese, o
que pressupõe a idéia de que a racionalidade mimética e a racionalidade conceitual
não tem entre si uma relação de negação simples, é porque afirmações como: “O Eu é
o conteúdo da relação e a relação mesma, defronta um Outro e ao mesmo tempo o
ultrapassa; e esse Outro, para o Eu, é apenas ele próprio” 336 não podem simplesmente
significar a submissão da relação sujeito-objeto à estrutura projetiva do sujeito. Se o
Eu é ao mesmo tempo a forma e o conteúdo da relação é porque algo da opacidade do
conteúdo à forma já é interno ao próprio Eu. Esta mediação por meio dos extremos da
forma e do conteúdo já é uma mediação interna ao Eu. O que implica internalização
da alteridade para o âmago do Eu337.
É assim que podemos ler uma afirmação como: “A consciência-de-si é a
reflexão, a partir do ser do mundo sensível e percebido; é essencialmente o retorno a
partir do ser-Outro”338. Podemos compreender tal passagem da consciência-de-si pela
alteridade do ser do mundo sensível percebido, com seu posterior retorno, levando em
conta como, na certeza sensível e na percepção, a consciência teve a experiência de
resistência do objeto às tentativas de aplicação do conceito à experiência. No próprio
campo da experiência, ela confrontou com algo que negava a aplicação do conceito à
experiência, tendo a experiência de uma diferença em relação ao conceito, uma
diferença vinda do objeto. Retornar de seu ser-Outro é assim internalizar tal diferença,
re-orientando não apenas as relações ao objeto, mas também as relações de identidade
no interior do si mesmo.
Tal reconhecimento de si no que há de opaco no objeto parece-me uma
operação central na estratégia hegeliana, já que ela nos leva ao capítulo final da
Fenomenologia. Neste momento central de reconciliação, Hegel apresenta um
335
A respeito do conceito adorniano de mimese, tomo a liberdade de remeter ao meu
“Reconhecimento e dialética negativa”, In: SAFATLE, Vladimir; A paixão do negativo: Lacan e a
dialética, Sã o Paulo: Unesp, 2006.
336
HEGEL, Fenomenologia, par. 166
337
Este modelo de reconciliaçã o dialética foi bem compreendido por Zizek quando afirma,
explorando a via complementar, que a reconciliaçã o deve ser pensada como a duplicaçã o de duas
separaçõ es: “o sujeito tem de reconhecer em sua alienaçã o da substâ ncia a separaçã o da
substâ ncia consigo mesma. Essa sobreposiçã o [e o que se perdeu na ló gica feuerbachiana-
marxista da desalienaçã o na qual o sujeito supera sua alienaçã o reconhecendo-se como o agente
ativo que pô s o que aparece para ele como seu pressuposto substancial” (ZIZEK, Menos que nada,
p.101). No entanto, Zizek nã o leva em conta como este modelo é operativo na dialética negativa
de Adorno.
338
HEGEL, Fenomenologia, par. 167
julgamento infinito (unendlichen Urteil)339 capaz de produzir a síntese da dialética
entre sujeito e objeto. Trata-se da afirmação: “o ser do eu é uma coisa (das Sein des
Ich ein Ding ist); e precisamente uma coisa sensível e imediata (ein sinnliches
unmittelbares Ding)”. Desta afirmação, segue-se um comentário: “Este julgamento,
tomado assim como imediatamente soa, é carente-de-espírito, ou melhor, é a própria
carência-de-espírito”, pois se compreendemos a coisa sensível como uma predicação
simples do eu, então o eu desaparece na empiricidade da coisa – o predicado põe o
sujeito: “mas quanto ao seu conceito, é de fato o mais rico-de-espírito” 340. Trata-se de
afirmações de importância capital pois nos demonstram que, ao menos na
Fenomenologia, o término do trajeto especulativo só se dá com o julgamento: “o ser
do eu é uma coisa”. Aqui se realiza o reconhecimento de que: “a consciência de si é
justamente o conceito puro sendo-aí, logo empiricamente perceptível (empirisch
wahrnehmbare)"341. Mas se trata de uma modalidade de reconhecimento que só se
efetiva quando o sujeito encontra, em si mesmo e de maneira determinante, um núcleo
do objeto. Encontro que não é subsunção simples do objeto, mas insistência na
racionalidade do movimento do Espírito em integrar continuamente o que
inicialmente aparece como opaco às determinações de sentido. Tais colocações devem
ser levadas em conta para compreendermos melhor a processualidade própria à
totalidade hegeliana. Colocações que o próprio Adorno reconhece sua pertinência ao
afirmar:
Por mais que nada possa ser predicado de um particular sem determinidade e,
com isso, sem universalidade, o momento de algo particular, opaco, com o
qual essa predicação se relaciona e sobre o qual ela se apóia, não perece. Ele
se mantém em meio à constelação; senão a dialética acabaria por hipostasiar a
mediação sem conservar os momentos da imediaticidade, como aliás Hegel
perspicazmente o queria342.
339
Hegel definiu o julgamento infinito como uma relaçã o entre termos sem relaçã o: “Ele deve ser
um julgamento, conter uma relaçã o entre sujeito e predicado, mas tal relaçã o, ao mesmo tempo,
nã o pode ser” (HEGEL, Science de la logique III, p. 123). No entanto: “o julgamento infinito, como
infinito, seria a realizaçã o da vida incluindo-se (erfassenden) a si mesmo” (HEGEL, PhG, p.233)
340
HEGEL, Fenomenologia II, p. 209.
341
HEGEL, Science de la logique III, op.cit, p. 307
342
ADORNO, Dialética negativa, p. 273
Dialética hegeliana, dialética marxista, dialética adorniana
Aula 12
Tempo histórico e tempo musical em Adorno
Esta é a última aula de nosso curso. Durante este semestre, procurei fornecer
chaves de leitura que poderiam nos orientar na recompreensão da experiência
dialética a partir de Hegel. Na verdade, este curso foi a tentativa de elaborar uma
questão simples apenas em aparência, a saber, em que as “dialéticas” que conhecemos
no começo do século XIX, em meados do século XIX e em meados do século XX
participam de uma partilha tensa e produtiva de uma mesma experiência de
pensamento? Em que tais dialéticas se aproximam, qual o sentido em insistir em tais
proximidades? Por que não seria melhor selar o diagnóstico da descontinuidade e do
distanciamento?
Tais perguntas foram colocadas já em nossa primeira aula a fim de permitir a
defesa de uma hipótese fundamental de trabalho. Ela insistia que a exploração de
linhas de continuidade entre dialética hegeliana, dialética marxista e dialética negativa
era possível porque a dialética hegeliana seria a dialética necessária para as
possibilidades históricas da experiência no início do século XIX, assim como a
dialética marxista o seria para o final do século XIX e a dialética adorniana o seria
para meados do século XX. Como uma ontologia cujo sistema de posições e
pressuposições modifica-se a partir de configurações históricas determinadas, sem
com isto modificar sua compreensão estrutural da processualidade contínua do
existente, ou seja, como “ontologia em situação”, a dialética reorienta-se
periodicamente em um movimento que leva em conta as transformações de suas
situações históricas. O que não poderia ser diferente para um pensamento que mesmo
nunca aceitando distinções estritas entre ontológico e ôntico, nunca abriu mão da
potencialidade crítica da verdade em relação ao campo de experiências entificado pelo
senso comum. A crítica se mede a partir das configurações historicamente
determinadas de bloqueio.
Neste sentido, falar em “ontologia em situação” equivaleria a falar de uma
ontologia que seja o campo de exposição do processo de crítica das próprias
categorias ontológicas produzidas por uma situação sócio-histórica, como ser,
essência, identidade, diferença, entre tantas outras. Por isto que podemos dizer, por
exemplo, sobre Hegel: “a lógica hegeliana é a ideia metódica, que se fundamenta, da
unidade entre crítica e apresentação da metafísica” 343. Ou seja, ela é ao mesmo tempo
a apresentação de categorias da metafísica e a crítica de sua insuficiência. Uma
metafísica paradoxal que se realiza como crítica das categorias metafísicas ou, ainda,
como explicitação de significações em seu ponto de esgotamento. Vimos este ponto
através de um exemplo privilegiado, a saber, a maneira com que a dialética, de Hegel
a Adorno, auto-compreende-se como discurso de crítica à categoria fundamental da
ontologia: a categoria de ser.
No entanto, contrariamente ao que muitas vezes se defendeu, a dialética não é
apenas o movimento de dissolução das categorias da ontologia. Esta crítica que
organiza as categorias ontológicas a partir de seu esgotamento, de suas contradições
internas, ou seja, de sua incapacidade em abarcar o campo das experiências a respeito
343
THEUNISSEN, Michael; Sein und Schein: die kritische Funktion der Hegelschen Logik, Frankfurt:
Surhkamp, 1994, p. 16
das quais ela se propunha abarcar, não nos leva necessariamente a uma crítica geral da
ontologia. Ela nos leva, paradoxalmente, a uma certa ontologização da negatividade
da crítica, isto no sentido de compreender o movimento contínuo de dissolução da
estabilidade formal do sistema de ideias próprio a situações sócio-histórica
determinadas como sendo a própria manifestação das “formas gerais de movimento” a
respeito das quais fala Marx em seu reconhecimento de filiação a Hegel. Tal
movimento é, de certa forma, ontologizado, o que dá à dialética sua peculiar pulsação
entre ceticismo desenfreado e compreensão de suas dissoluções como processos
racionalmente orientados não em direção a um telos finalista, como muitas vezes se
afirmou, mas em direção a um modelo anti-predicativo de determinação que tentei
apresentar quando foi questão da discussão a respeito do conceito de sujeito em
Hegel, em Marx (através da noção de proletariado) e de Adorno. Ou seja, a
positividade da dialética nunca esteve ligado à orientações normativas
teleologicamente asseguradas, mas a compreensão da estrutura de processualidades
abertas.
Este modelo de leitura tem uma função importante para a interpretação do
pensamento de Theodor Adorno. Como vimos, não foram poucos os comentadores
que procuraram ver, na dialética negativa, uma certa forma de pensamento da aporia.
A leitura mais corrente vê a dialética negativa como uma certa forma de “amputação”
da dialética hegeliana. Como se a dialética negativa fosse uma dialética amputada do
momento positivo-racional de síntese. Amputação resultante, principalmente, da
pretensa liberação da negação determinada de sua função estruturadora no interior da
noção hegeliana de totalidade. Pois, em Hegel, a negação determinada seria, ao menos
segundo esta perspectiva, o movimento de constituição de relações entre conteúdos da
experiência tendo em vista a produção de uma totalidade acessível ao saber da
consciência. Ao passar de um conteúdo da experiência a outro através de negações
determinadas, compreendendo com isto que o resultado das negações não é a
anulação do conteúdo anterior mas a revelação de como ambos os conteúdos estavam
em profunda relação de interdependência, a consciência teria as condições de fazer a
experiência de como a determinação de um conteúdo só é completamente possível
através da atualização da rede de negações que o define. Ou seja, ela compreenderia o
verdadeiro sentido do adagio spinozista: Omni determinatio est negatio344. Tal
atualização da rede de negações que determinam conteúdos da experiência seria
exatamente o que Hegel compreenderia por posição da totalidade do saber. Uma
posição que, por sua vez, determinaria a negatividade como astúcia que visa mostrar o
caráter limitado dos momentos parciais da experiência, pois tais parcialidades seriam
superadas pelo desvelamento da funcionalidade de cada momento em uma visão
acessível do todo.
Já a dialética negativa adorniana, enquanto “prática ad hoc da negação
determinada”345, acabaria na aporia de uma crítica totalizante da razão incapaz de se
orientar a partir de um horizonte concreto de reconciliação, beirando assim o niilismo
desenfreado. Isto quando ela não for acusada de simplesmente não ser dialética. Basta
lembrarmos, a este respeito, do comentário de Robert Pippin: “ A ´dialética negativa´
simplesmente não é dialética, mas uma filosofia da finitude e uma demanda para o
reconhecimento de tal finitude. O ´não-idêntico´ desempenha um papel retórico
344
Comentadores como Robert Brandom compreenderam claramente este ponto mas, devido a
uma apreensã o nã o-dialética da negaçã o determinada como simples relaçã o de oposiçã o, eles
tendem a ver, no força determinante da negaçã o hegeliana, apenas uma figura mais rebuscada da
incompatibilidade material (Ver BRANDOM, Robert; Tales of the mighty death, Harvard
University Press, 2002, p. 180)
345
HABERMAS. O discurso filosófico da modernidade, Sã o Paulo: Martins Fontes, 2002, p. 183
estranhamente semelhante à identificação kantiana da Ding an sich contra os
idealistas posteriores”346. A referência a Kant não é extemporânea porque,
aparentemente, seria possível ver a dialética transcendental como uma espécie de
dialética negativa, já que ela também é uma crítica da totalidade, mas através da
exposição das ilusões produzidas pelo uso transcendente das idéias transcendentais. O
que talvez nos explique porque esta leitura da dialética negativa como uma filosofia
da finitude de ares kantianos será encontrada em várias tradições de interpretação.
Lembremos, por exemplo, de Alain Badiou, para quem: “o que Adorno retém de Kant
é a irredutibilidade da experiência, a impossibilidade de dissolver a experiência na
pura atividade do conceito. Subsiste um elemento totalmente irredutível de limitação
passiva, exatamente como em Kant a passividade, que é a prática do sensível, é
irredutível”347.
No entanto, o que se desprende do texto adorniano é algo totalmente diferente.
Como deveria ser diferente o pensamento de alguém que afirma, claramente: “a
reflexão filosófica assegura-se do não-conceitual no conceito” 348, ou seja, ela integra o
não-conceitual como momento do desenvolvimento do conceito. Há de se notar, por
exemplo, que não existe conceito da dialética hegeliana que Adorno simplesmente
abandone. Totalidade, mediação, síntese, Espírito (compreendido em chave não-
metafísica como trabalho social): nenhum destes conceitos será objeto de uma
negação simples por parte de Adorno. Levando isto em conta, podemos dizer que a
dialética negativa de Adorno é o resultado não exatamente do abandono de certos
conceitos e processos da dialética hegeliana, ou ainda, da amputação desta. Na
verdade, a dialética negativa será o resultado de um conjunto de operações de
deslocamento no sistema de posições e pressuposições da dialética hegeliana. Isto
pode nos explicar esta peculiar operação na qual vemos todos os conceitos hegelianos
em operação na dialética adorniana, mas sem poder mais serem postos tais como eles
eram postos por Hegel, sem poder serem atualizado no interior das situações pensadas
por Hegel. Pois Adorno sabe que, em certas situações, pôr um conceito de maneira
direta é a melhor forma de anulá-lo. Deixá-lo em pressuposição é, às vezes, a melhor
maneira de reconstruir sua força crítica. Como ele dirá:
346
PIPPIN, Robert; “Negative ethics: Adorno on the falsehood of bourgeois life” In: The
persistence of subjectivity: on the Kantian aftermath, Cambridge University Press, 2005, p. 116.
347
BADIOU, Alain; « La dialectique negative d’Adorno » In : Cinq leçons sur le ‘cas’ Wagner, Paris :
Nous, 2010, p. 65
348
ADORNO, Dialética negativa, op. cit., p. 18
349
ADORNO, Três estudos sobre Hegel
explicitação da linguagem filosófica. Esta confiança é talvez o verdadeiro ponto
fundamental de diferença entre Hegel e Adorno.
Se aceitarmos a interpretação que proponho, será necessário afirmar que os
conceitos ligados ao momento “positivo-racional” da dialética não desaparecerão do
pensamento adorniano. Eles deverão permanecer em pressuposição, isto a fim de
recusar as conciliações em circulação na vida social contemporânea e, com a pressão
do irreconciliável, abrir caminho para o advento de outra reconciliação. Pois, e este
ponto é de suma importância: “a antecipação filosófica da reconciliação é um atentado
contra a conciliação real”350, já que, ao pôr abstratamente a reconciliação, a
especulação filosófica, no fundo e de maneira insidiosa, apoia-se nas figuras concretas
de reconciliação atualmente presentes na vida social. O que, segundo Adorno, deixa a
reflexão indefesa para evitar a obrigação de justificar o curso atual do mundo e
perpetuar falsas reconciliações.
Ela deve ser construída enquanto perspectiva crítica que permite nos livrarmos
da tendência a simplesmente confirmar a mera facticidade. Encontramos assim mais
uma vez o receio adorniano de uma reflexão sem recurso algum à totalidade se
transformar na afirmação positivista da ilusão do dado bruto. Por outro lado, a história
universal e, com isto, o Espírito do mundo devem ser negados a fim de salientar
como, até agora, a unidade entre os vários momentos históricos se deixa ler apenas
como aprofundamento progressivo dos mecanismos de dominação da natureza e, por
fim, de dominação da natureza interior. Isto leva Adorno a afirmar: “não há nenhuma
história universal que conduza do selvagem à humanidade. Mas há certamente uma
que conduza da atiradeira à bomba atômica” 356. É certamente uma consciência desta
natureza que levará Adorno a definir o Espírito do mundo como catástrofe
permanente.
Mas há de se colocar alguns parênteses neste aparente niilismo para o qual a
universalidade do processo histórico seria apenas a perspectiva de denúncia de uma
falsa totalidade cada vez mais inexorável. A definição do Espírito do mundo como
catástrofe permanente pressupõe um sofrimento social advindo da consciência de algo
ainda não-realizado na história. Se os sujeitos não medissem a efetividade com a
promessa do que não se realizou, dificilmente a configuração do presente poderia ser
vivenciada como catastrófica. Neste sentido, a estratégia adorniana baseia-se na
pressuposição de uma experiência histórica em latência, que insiste como uma carta
não entregue. Notemos, a este respeito, que nem sempre o Espírito do mundo aparece
a Adorno como a consciência da catástrofe. Levemos a sério, por exemplo, a seguinte
afirmação:
353
ADORNO, Minima moralia, Sã o Paulo: Atica, 1993, p. 9
354
Para uma crítica hegeliana da crítica adorniana ao destino do individuo em Hegel, ver
SOUCHE-DAGUES, Denise; Logique et politique hégélienne, Paris: Vrin, 1995
355
ADORNO, Dialética negative, op. cit., p. 266
356
Idem
favoráveis, tal como o período durante e logo após a Revolução Francesa,
indivíduos medianos foram elevados muito acima de si mesmos357.
Note-se aqui (e nisto não poderíamos ser mais hegelianos) que a história
universal, quando se realiza como expressão do Espírito do mundo, eleva os
indivíduos acima de si mesmos por abrir espaço a uma ação social que não é
meramente individual, mas promessa de realização de uma universalidade capaz de
fazer a institucionalização da liberdade avançar. O exemplo da Revolução Francesa
não poderia ser mais evidente neste sentido. Se assim for, então não devemos nos
perguntar se é lícito ou não pressupor, em Adorno, algo como o Espírito do mundo.
Ele precisa estar pressuposto para dar à crítica uma orientação normativa. Melhor
seria se perguntar porque toda tentativa atual de afirmá-lo só pode obscurecê-lo.
Neste ponto, Adorno age como que maprendeu claramente a lição de Freud,
referência maior para a antropologia filosófica que anima todas suas considerações
sobre a história universal desde o primeiro capítulo da Dialética do Esclarecimento.
Pois Freud nos lembra como o processo de desenvolvimento social e maturação
individual é pago com a constituição de um passado recalcado no qual encontramos as
marcas da brutalidade da dinâmica de racionalização social. Não é outro o tema geral
de O mal-estar na civilização. A incapacidade de rememorar tal passado, integrando-
o em um novo arranjo do presente, é fonte maior de patologia e sofrimento. Na
verdade, patologia de quem luta para não ouvir a pressão de uma vida racional que
ainda não se realizou, e que só pode se realizar se souber como integrar aquilo que
ficou para trás no processo de racionalização social.
Assim, a impossibilidade de afirmar a história como horizonte de realização
institucional progressiva da liberdade não aparece como expressão de alguma forma
de niilismo. Ela é condição para que o que ainda não encontrou espaço no interior de
uma história que impôs certa figura do humano e da humanidade, ou seja, que
constituiu uma antropologia determinada, possa ser reconhecido em sua potência de
transformação. É da astúcia do Espírito do mundo, reconstruído pela dialética
negativa, se voltar para o que ainda não tem história a fim permitir à história
continuar.
A reconciliação musical
Uma afirmação como esta demonstra, primeiro, que Adorno reconhece como a
totalidade em Hegel não se confunde com uma sistematicidade absoluta. Ele sabe que
o momento imediato não desaparece simplesmente na mediação, o que não poderia
ser diferente já que a relação entre o conceito e o não-conceitual é decisiva tanto no
conceito adorniana quanto no hegeliano de mediação. O que Adorno salienta outras
vezes, ao afirmar, por exemplo, que:
366
idem, p. 314
367
Idem, p. 314
368
Idem, p. 319
369
ADORNO, Três estudos sobre Hegel
contraste (do tipo antecedente/conseqüente), elemento na sequência inexorável de um
desenvolvimento motívico ou ainda momento de um pensamento serial alargado.
Neste sentido, apreender o detalhe musical como uma “unidade relativamente
plástica” significa procurar o motor de seu desenvolvimento dinâmico não na
submissão a um esquema (seja ele a noção de série ou às constantes formais da
linguagem musical tonal), mas no conflito irredutível do material com a forma.
Conflito que encontra sua forma primordial no estilo tardio de Beethoven.
Desta maneira, tudo se passa como se o pensamento se servisse da estética
para pensar aquilo que lhe é interditado em outras esferas da vida social. Através da
reflexão sobre a forma musical, problemas filosóficos de forte capacidade de indução
de transformações sociais, como a possibilidade de uma totalidade que não seja
simplesmente a afirmação autárquica do princípio de identidade, são recuperados. O
que não deve nos surpreender, já que:
Contra a comunidade
373
ROSEN, Charles; Beethoven’s piano sonatas, Yale University Press, 2002, p. 240