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Marilena Chauí

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Capítulo 3
As aventuras da metafísica

O cristianismo e a tarefa da evangelização


Ao surgir, o cristianismo era mais uma entre as várias religiões orientais; suas
raízes encontravam-se na religião judaica, isto é, numa religião que, como todas
as religiões antigas, era nacional ou de um povo particular. No entanto, havia
nele algo inexistente no judaísmo e nas outras religiões antigas: a idéia de
evangelização, isto é, de espalhar a “boa nova” para o mundo inteiro, a fim de
converter os não-cristãos e tornar-se uma religião universal.
Ora, como converter a essa religião pessoas de outras religiões, que possuíam um
passado e um sentido próprios para elas? Os evangelizadores usaram muitos
expedientes para isso, levando em conta as condições e a mentalidade dos que
deveriam ser convertidos. Para o nosso assunto, interessa apenas um tipo de
evangelização e conversão: o dos intelectuais gregos e romanos, isto é, daqueles
que haviam sido formados não só em religiões diferentes da judaica, como
também haviam sido educados na tradição racionalista da Filosofia. Para
convertê-los e mostrar a superioridade da verdade cristã sobre a tradição
filosófica, os primeiros Padres da Igreja ou intelectuais cristãos (são Paulo, são
João, santo Ambrósio, santo Eusébio, santo Agostinho, entre outros) adaptaram
as idéias filosóficas à religião cristã e fizeram surgir uma Filosofia cristã.
Sob vários aspectos, podemos dizer que o cristianismo, enquanto tal, não
precisava de uma filosofia:
? sendo uma religião da salvação, seu interesse maior estava na moral, na
prática dos preceitos virtuosos deixados por Jesus, e não em uma teoria sobre a
realidade;
? sendo uma religião vinda do judaísmo, já possuía uma idéia muito clara do que
era o Ser, pois Deus disse a Moisés “Eu sou aquele que é, foi e será. Eu sou
aquele que sou”;
? sendo uma religi ão, seu interesse maior estava na fé e não na razão teórica, na
crença e não no conhecimento intelectual, na Revelação e não na reflexão.
Foi, portanto, o desejo de converter os intelectuais gregos e os chefes e
imperadores romanos (isto é, aqueles que estavam acostumados à Filosofia) que
“empurrou” os cristãos para a metafísica.

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Convite à Filosofia
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As tradições metafísicas encontradas pelo cristianismo


Evidentemente, as duas grandes tradições metafísicas incorporadas pelo
cristianismo foram o platonismo e o aristotelismo. No entanto, como as obras de
Platão e Aristóteles haviam ficado perdidas durante vários séculos, antes de
incorporá-las o cristianismo tomou contato com três outras tradições metafísicas,
que formaram, assim, o conteúdo das primeiras elaborações metafísicas cristãs: o
neoplatonismo, o estoicismo e o gnosticismo.
O neoplatonismo, como o nome indica, foi uma retomada da filosofia de Platão,
mas com um conteúdo espiritualista e místico. Os neoplatônicos afirmavam a
existência de três realidades distintas por essência: o mundo sensível da matéria
ou dos corpos, o mundo inteligível das puras formas imateriais, e, acima desses
dois mundos, uma realidade suprema, separada de todo o resto, inalcançável pelo
intelecto humano, luz pura e esplendor imaterial, o Uno ou o Bem. Por ser uma
luz, o Uno se irradia; suas irradiações (que os neoplatônicos chamavam de
emanações) formaram o mundo inteligível, onde estão o Ser, a Inteligência e a
Alma do Mundo.
Dessas primeiras emanações perfeitas, seguiram outras, mais afastadas do Uno e,
por isso, imperfeitas: o mundo sensível da matéria, imagem decaída ou cópia
imperfeita do mundo inteligível. Por seu intelecto, o homem participa do mundo
inteligível. Purificando-se da matéria de seu corpo, desenvolvendo seu intelecto,
o homem pode subir além do pensamento e ter o êxtase místico, pelo qual se
funde com a luz do Uno e retorna ao seio da realidade suprema ou do Bem.
O estoicismo, embora muito diferente do neoplatonismo – pois negava a
existência de realidades separadas e superiores ao mundo sensível -, também
influenciou o pensamento cristão. Os estóicos afirmavam a existência de uma
Razão Universal ou Inteligência Universal, que produz e governa toda a
realidade, de acordo com um plano racional necessário, a que davam o nome de
Providência. O homem, embora impulsionado por instintos como os animais,
participa da Razão Universal porque possui razão e vontade.
A participação na racionalidade universal não se dá pelo simples conhecimento
intelectual, mas pela ação moral, isto é, pela renúncia a todos os instintos, pelo
domínio voluntário racional de todos os desejos e pela aceitação da Providência.
A Razão Universal é a Natureza; a Providência é o conjunto das leis necessárias
que regem a Natureza; a ação racional humana (própria do sábio) é a vida em
conformidade com a Natureza e com a Providência.
O gnosticismo era um dualismo metafísico, isto é, afirmava a existência de dois
princípios supremos de onde provinha toda a realidade: o Bem, ou a luz
imaterial, e o Mal, ou a treva material. Para os gnósticos, o mundo natural ou o
mundo sensível é o resultado da vitória do Mal sobre o Bem e por isso
afirmavam que a salvação estava em libertar-se da matéria (do corpo), através do
conhecimento intelectual e do êxtase místico. Gnosticismo vem da palavra grega

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Marilena Chauí
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gnosis, que significa: conhecimento. Para os gnósticos, o conhecimento


intelectual pode, por si mesmo, alcançar a verdade plena e total do Bem e afastar
os poderes materiais do Mal.
Que fez o cristianismo nascente?
Adaptou à nova fé várias concepções da metafísica neoplatônica, disso
resultando os seguintes pontos doutrinários:
? separação entre material-corporal e espiritual-incorporal;
? separação entre Deus-Uno e o mundo material;
? transformação da primeira emanação neoplatônica (Ser, Inteligência, Alma do
Mundo) na idéia da Trindade divina, pela afirmação de que o Deus-Uno se
manifesta em três emanações idênticas a ele próprio: o Ser, que é o Pai; a
Inteligência, que é o Espírito Santo; a Alma do Mundo, que é o Filho;
? afirmação de que há uma segunda emanação, isto é, aquela que vem da luz da
Trindade e que forma o mundo inteligível das puras formas ou inteligências
imateriais perfeitas, que são os anjos (arcanjos, querubins, serafins, etc.);
? modificação da idéia neoplatônica quanto ao mundo sensível pela afirmação de
que o mundo sensível ou material não é uma emanação de Deus, mas uma
criação: Deus fez o mundo do nada, como diz a Bíblia, no livro da Gênese;
? admissão de que a alma humana participa da divindade, mas não diretamente, e
sim pela mediação do Filho e do Espírito Santo, e que o conhecimento intelectual
não é suficiente para levar ao êxtase místico e ao contato com Deus, sendo
necessária a graça santificante, que o crente recebe por um mistério divino.
Do estoicismo, o cristianismo manteve duas idéias:
? a de que existe uma Providência divina racional, que governa todas as coisas e
o homem;
? a de que a perfeição humana depende de abandonar todos os apetites, impulsos
e desejos corporais ou carnais, entregando-se à Providência. Essa entrega, porém,
não é, como pensavam os estóicos, uma ação deliberada de nossa vontade guiada
pela razão, mas exige como condição a fé em Cristo e a graça santificante.
O gnosticismo será considerado uma heresia e, por isso, rejeitado. No entanto, o
cristianismo conservará do gnosticismo duas idéias:
? que o Mal existe realmente: é o demônio;
? que a matéria ou a carne é o centro onde o demônio, isto é, o Mal, age sobre o
mundo e sobre o homem.
Alguns séculos mais tarde, o cristianismo tomou conhecimento de algumas das
obras de Platão e de algumas das obras de Aristóteles que haviam sido
conservadas e traduzidas por filósofos árabes, como Averróis, Avicena e Alfarabi

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Convite à Filosofia
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e comentadas por filósofos judeus como Filon de Alexandria e Maimônides.


Reunindo essas obras e as elaborações precedentes, baseadas nas três tradições
mencionadas, o cristianismo reorganizou a metafísica grega, adaptando-a às
necessidades da religião cristã.
A metafísica cristã
Embora a metafísica cristã seja uma reelaboração da metafísica grega, muitas das
idéias gregas não poderiam ser aceitas pelo cristianismo. Vejamos alguns
exemplos:
? para os gregos, o mundo (sensível e inteligível) é eterno; para os cristãos, o
mundo foi criado por Deus a partir do nada e terminará no dia do Juízo Final.
? para os gregos, a divindade é uma força cósmica racional impessoal; para os
cristãos, Deus é pessoal, é a unidade de três pessoas e por isso é dotado de
intelecto e de vontade, como o homem, embora superior a este, porque o intelecto
divino é onisciente (sabe tudo desde toda a eternidade) e a vontade divina é
onipotente (pode tudo desde toda a eternidade);
? para os gregos, o homem é um ser natural, dotado de corpo e alma, esta
possuindo uma parte superior e imortal que é o intelecto ou razão; para os
cristãos, o homem é um ser misto, natural por seu corpo, mas sobrenatural por
sua alma imortal;
? para os gregos, a liberdade humana é uma forma de ação, isto é, a capacidade
da razão para orientar e governar a vontade, a fim de que esta escolha o que é
bom, justo e virtuoso; para os cristãos, o homem é livre porque sua vontade é
uma capacidade para escolher tanto o bem quanto o mal, sendo mais poderosa do
que a razão e, pelo pecado, destinada à perversidade e ao vício, de modo que a
ação moral só será boa, justa e virtuosa se for guiada pela fé e pela Revelação;
? para os gregos, o conhecimento é uma atividade do intelecto (o êxtase místico
de que falavam os neoplatônicos não era algo misterioso ou irracional, mas a
forma mais alta da intuição intelectual); para os cristãos, a razão humana é
limitada e imperfeita, incapaz de, por si mesma e sozinha, alcançar a verdade,
precisando ser socorrida e corrigida pela fé e pela Revelação.
Essas diferenças – e muitas outras que não foram mencionadas aqui –
acarretaram muitas mudanças na metafísica herdada dos gregos. O problema
principal para os cristãos foi o de encontrar um meio para reunir as verdades da
razão (Filosofia) e as verdades da fé (religião), isto é, para reunir novamente
aquilo que, ao nascer, a Filosofia havia separado, pois separara razão e mito. De
modo bastante resumido, podemos dizer que os aspectos que passaram a
constituir o centro da nova metafísica foram os seguintes:
? provar a existência de Deus e os atributos ou predicados de sua essência. Para a
metafísica grega, a divindade era uma força imaterial, racional e impessoal
conhecida por nossa razão. Para a metafísica cristã, Deus é uma pessoa trina ou

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