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O espírito cético já tinha raízes profundas na antiguidade. Remontava aos sofistas, à escola megárica de
Euclides e à escola cínica de Antístenes, marcada pelo seu nominalismo, que depois foi aproveitado pelo
estoicismo. O velho ceticismo, porém, encontrou sua expressão maior em Pirro de Elis (c. 360 – 270).
Pirro, que, como Sócrates, nada escreveu, levou vida austera e compreendeu o ceticismo como via que
conduz à ataraxia: a imperturbabilidade do ânimo. O ceticismo foi penetrando, aos poucos, na própria
escola de Platão, a academia. De fato, desde Arcesilau (315-240) a academia platônica se voltara
decididamente para a orientação cética (média academia). Ele ensinara que o critério para a vida prática e
o único móvel da vontade não é a verdade, mas é unicamente a probabilidade. Cem anos mais tarde,
Carnéades fundou a terceira ou nova academia, radicalizando e aperfeiçoando o probabilismo de Arcesilau.
Depois de sua participação na embaixada dos filósofos a Roma influiu no pensamento de Cícero e de Sexto
Empírico. Para ele, o conhecimento é um processo pelo qual representações prováveis corroboram outras
representações prováveis. Certezas, nós nunca alcançamos. Negou que se pudesse, partindo do mundo,
chegar à conclusão da existência de Deus, devido ao mal que existe no mundo. O ceticismo acadêmico,
portanto, negou a possibilidade de um conhecimento apodítico, evidente e definitivo, de algo verdadeiro,
apenas admitiu a investigação infinita e a possibilidade de um conhecimento apenas provável. Seu método
consistia em reduzir as opiniões a um determinado número de possibilidades e ponderar sua probabilidade.
O ceticismo pirrônico, por sua vez, foi retomado por Enesidemo de Cnossos, no século I d.C, e por Sexto
Empírico, no último quartel do século II d. C. Como médico, negou que se pudesse conhecer a etiologia
das enfermidades e se ateve única e exclusivamente ao conhecimento adquirido por meios empíricos (daí
o seu nome). Procurou refutar, passo a passo, a lógica, a física e a ética e mostrar a inconsistência das
mathémata, ou seja, os conhecimentos das artes liberais: gramática, retórica, aritmética, geometria,
astronomia e música.
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Este termo é usado por alguns historiadores da filosofia para designar o platonismo intermediário entre o
platonismo cético dos acadêmicos e o neoplatonismo, ou seja, entre Antíoco de Ascalão (séc. I) e Plotino
(séc. III). São contados como filósofos mesoplatônicos: Eudoro de Alexandria, Moderato de Cádis,
Numênio de Apamea, Nicômaco de Gérasa, Plutarco. Este mesoplatonismo rejeitava o ceticismo dos
acadêmicos e era eclético: aberto às influências do estoicismo e dos pitagóricos. Procurava adaptar o
pensamento platônico à linguagem da filosofia aristotélica. Por outro lado, antecipa, em relação ao
neoplatonismo, a característica do monismo (o Um como princípio de tudo) em oposição ao dualismo
platônico. Entretanto, não distingue o Ser do Um, como faz Plotino. Os filósofos mesoplatônicos tendem a
interpretar a doutrina de Platão como uma revelação divina e consideram como fim prático da filosofia o
tornar-se semelhante a Deus. A realidade provém do Um pelo três (tríades) e se estrutura hierarquicamente.
1
Os medievais latinos conheciam de Platão apenas a primeira parte do “Timeu” (na
tradução e comentário de Calcídio) e, além disso, o “Menon” e o “Fedon”. Os outros
diálogos platônicos e as “Enéadas”, de Plotino, ficaram desconhecidos. De Proclo eles
conhecem algumas obras (Elementatio theologica, De decem dubitationibus, De
providentia et fato, De malorum subsistientia; o comentário ao “Parmênides” foi
traduzido por Guilherme de Moerbecke na segunda metade do século XIII; A
“Elementatio physica”, embora traduzida na segunda metade do século XII, ficará
ignorada até o ano de 1300) 3.
Vejamos mais de perto uma história das fontes do platonismo na Idade Média
latina agora.
3
De Mottoni, Barbara Faes. Il Platonismo medioevale. Torino: Loescher, 1979.
4
O último grande nome do Neoplatonismo foi Proclo. Nasceu em Constantinopla, em 410, e foi educado
em Xanthos na Lícia (Ásia Menor). Em Alexandria, foi discípulo de Olimpiodoro, filósofo peripatético e
alquimista. Em 430, porém, quando morria Agostinho, Proclo chegava a Atenas, onde escutou Plutarco e
Siriano. Foi diádoco depois de Donino, dirigindo a escola de Atenas até à sua morte, em 485. Estudou as
obras de Aristóteles com Siriano. Comentou várias obras de Platão: o Crátilo, a República, o Parmênides,
o Timeu. O seu biógrafo Marino, em Vida de Proclo (n. 13), relata o processo de educação de Proclo junto
a Marino como uma verdadeira mistagogia. “Em menos de dois anos (Proclo) leu com ele (Siriano) todas
as obras de Aristóteles, de lógica, de ética, de política, de física e a ciência teológica, que é superior a estas.
Quando foi suficientemente instruído nestas, consideradas como mistérios preliminares e de ordem inferior,
o conduziu à doutrina mistagógica de Platão, por ordem e sem que desse um passo mais largo do que as
pernas, segundo o dito do oráculo; o fez participar, com os olhos puros da alma e a vista incontaminada do
intelecto, às iniciações de natureza divina contidas nas obras platônicas (PROCLO, 1999, p. 296-297)”.
2
fragmento traduzido por Calcídio, que, além de traduzir o texto também o comentou 5. É
o contato dos medievais com um Platão “pagão”, não cristianizado. Essa tradução e o
comentário que a acompanha circulou mais do que a versão de Cícero. A tradução de
Calcídio dava acesso apenas à primeira parte do Timeu, que trata da origem e também da
ordem do mundo. “A concepção do cosmos como ordem e beleza, que, mesmo na
multiplicidade, e para além das gerações particulares, se apresenta como uma totalidade
exemplada sobre um modelo inteligível por obra do demiurgo, a alma do mundo como
princípio vital, a matéria como substrato da organização do cosmos, o homem como
centro do universo, que reúne todos os seus elementos para dominá-los com a sua
inteligência (microcosmos), são os temas platônicos mais significativos que, através de
Calcídio, circulam sobretudo no século XII” 6. Outros temas platônicos afins vêm do
Comentário ao “Somnium Scipionis” de Macróbio (século V) 7. Por meio deste
comentário, escrito por um autor de provável origem africana e que teria sido importante
no mundo político romano em sua época, passou à idade média as considerações
pitagóricas sobre as propriedades dos números e sobre a música das esferas, e os temas
platônicos a respeito da alma: definições da alma, doutrina sobre a sua imortalidade e
espiritualidade (incorporeidade) 8. Como fontes do platonismo acrescentem-se também o
5
Calcídio: patrístico e filósofo do período pós-nissênico da escola neoplatônica do Ocidente Latino e que
viveu em Roma, onde também se destacaram Ambrósio Macróbio, Mário Victorino e Severino Boécio,
tornou-se no início da Idade Média no Ocidente a principal fonte para conhecer Platão e o estoicismo.
6
De Mottoni, Barbara Faes. Il platonismo medioevale. Torino: Loescher Ed., 1979, p. 14.
7
O “Sonho de Cipião” é o sexto livro do “De re publica” de Cícero (sexto livro) (54-51 a. C.). Escrito de
ficção, o “Sonho de Cipião” descreve uma visão onírica que o general romano Cipião Emiliano (Scipio
Aemilianus) tem antes de comandar a destruição de Cartago em 146 a.C. Cipião, o jovem, é visitado pelo
seu avô (adotivo) Públio Cornélio Cipião, o Africano Maior, herói da segunda guerra púnica. Cipião, o
jovem, fora trazido à filosofia por Panécio de Rodes (185-110 a. C.), o filósofo grego que mais influência
conseguiu sobre os romanos e que uniu elementos platônicos e aristotélicos à doutrina do Pórtico (stoa),
que remontava a Zenão de Citium. No sonho narrado por Cícero, Cipião o Jovem tem o seu futuro previsto:
ele conquistará Cartago e a Numância, colocará a república romana em ordem, e, como recompensa pelos
seus méritos como bom homem público, receberia como prêmio, na imortalidade, a vida verdadeira,
fazendo o seu retorno ao lar eterno. Em sua visão, então, Cipião vê a pequenez do que é terreno e temporal.
A terra e o império romano são quase nada, em comparação com a grandeza e a beleza do céu. Cipião faz,
então, uma viagem pelas esferas do universo, conhecendo suas músicas e também tem acesso, pelo seu
sonho, ao conhecimento sobre o destino das almas. O texto de Cícero guarda paralelos com textos de Platão,
especialmente com o mito de Er, narrado no livro X da Politeia (República), em que aparece um relato de
alguém que teria retornado do Hades. O texto de Cícero faz alusões à felicidade aristotélica e ao bem
platônico, além de paralelismos com obras de Platão (Fédon [109b], Epínomis [987b], Política [616b,614c-
615b], Fedro [246e, 245c-247e], Timeu [33b-34a, 48a, 42b-c]). Não há dúvidas
que Cícero quis concluir a sua obra à semelhança do livro X (608c-621b) da Política de Platão. No tocante
às concepções cosmológicas, o texto remete aos ensinamentos de Pitágoras. No tocante à concepção da
virtude remete às concepções estoicas. Há uma tradução do Sonho de Cipião, feita pelo prof. Ricardo da
Costa, disponível na internet: http://www.hottopos.com/notand22/Ricardo.pdf.
8
Texto latino disponível na internet:
http://la.wikisource.org/w/index.php?title=Specialis:Book&bookcmd=download&collection_id=4bce0b8
2b0b61b69cfcdb2ac14c151394ec3665f&writer=rdf2latex&return_to=Commentariorum+in+Somnium+S
cipionis .
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texto do africano de Madaura (atual Argélia), que veio a habitar em Cartago e a estudar
em Atenas, Lúcio Apuleio (125 – 180 d. C.), intitulado “De Dogmate Platonis” 9. Através
de Apuleio o platonismo foi transmitido junto com a tradição hermética 10. Na passagem
da antiguidade para o medievo, um outro africano de Madaura, Marciano Capella. Entre
410 e 439 este retórico e escritor nascido no norte da África (Madaura) escreveu a obra
9
A obra mais famosa de Apuleio é uma novela alegórica chamada “Metamorfosis” ou “O Asno de Ouro”,
que contém, entre outras coisas, o mito de “Eros e Psyché”. Apuleio une concepções neopitagóricas com
neoplatônicas e com concepções das religiões gregas dos mistérios. Agostinho critica o seu pensamento a
respeito dos demônios no livro VIII da Cidade de Deus (cap. XVI).
10
Hermes corresponde, no Egito, a Toth, e no mundo romano, a Mercurius. Aliás, no Egito, no período
helenístico, surgem os escritos “herméticos” dos neoplatônicos: o corpus de Hermes Trimegistos (três vezes
grande). Hermes é o mensageiro dos deuses. Ele é o enviado, que traz os anúncios de Zeus. Revela as suas
decisões. Ele acompanha os mortais em seu destino e lhes está próximo em suas aflições. Homero o chamou
de “o deu mais amigo dos homens”. Como mensageiro, está sempre a caminho. Por isso, traz sapatos alados,
chapéu de peregrino (às vezes também alado), e o bastão de ouro (krisorrapis), onde se vêem duas serpentes
entrelaçadas. Ele media entre a esfera dos divinos e a esfera dos mortais. É o doador da bênção, o que traz
salvação (eriunios), o que protege e livra do perigo. É o protetor dos mensageiros, dos intérpretes, tradutores
e de todos os que exercem funções de mediação (o verbo hermeneúein, de onde nos vem o adjetivo
substantivado “hermenêutica). Hermes era o padroeiro dos ladrões, dos comerciantes e dos inventores.
Tanto o roubar, quanto o comercializar, como também o inventar falam da capacidade “intuitiva”, ou seja,
da capacidade de descobrir o possível e suas possíveis irrupções no seio do real e suas realizações. Hermes
é também o deus das invenções e descobertas. A palavra alada, o pensamento inesperado e oportuno são
dons de Hermes. Ele não somente anuncia os desígnios do reino celeste, mas também traz os anúncios do
reino subterrâneo ou infernal, o Hades – Hermes Chtónios. Ele acompanha as almas por ocasião de sua
morte, quando estas migram para a região das trevas. É o que concede uma boa e doce morte (Hermes
Psycopompos). Com outras palavras, ele possibilita aos mortais suportar serenamente a morte. Enquanto
tal, ele é o anunciador do inesperado e do imperscrutável, o revelador do que há de mais hermético, de mais
oculto (léthe), isto é, a morte. Hermes revela a morte na vida e a vida na morte. Ele põe em contato com a
escuridão luminosa e com a luz obscura do abismo em que se planta a vida humana. O mito deixa ser a
ressonância de seu destino, no entoar de seu nascimento e proveniência. Ele é o filho do submundo. Nasce
de Maia, numa caverna. Está destinado a roubar, sempre de novo, as posses e conquistas de Apolo, o deus
do mundo diurno e da claridade solar. É o inventor da lira, dom que alegra a Apolo e, através de Apolo e
dos citaredos ou rapsodos, alegra os mortais. Está, pois, na fonte da poesia lírica. Por sua vez, dom de
Apolo a Hermes é o seu bastão mágico, o kerykeion, o bastão das serpentes entrelaçadas. Este bastão,
recorda as tochas das cavernas e, assim, o dom do fogo. Por isso, remete também à figura de Prometeu.
Prometeu é aquele titã que fez o homem e que roubou, para ele, o fogo do céu. Ele é, também, amigo dos
homens. De Prometeu vêm as dádivas das artes, que facilitam e alegram a vida dos mortais. Em Hermes,
não somente se concentram as experiências primordiais dos homens das cavernas, que descobrem o fogo,
mas também as dos pastores, que celebram a fertilidade dos rebanhos e, através da fertilidade dos rebanhos,
a própria experiência humana da fecundidade, que vem sempre acompanhada do erótico (Hermes era muitas
vezes representado como um pastor; e, por outro lado, muitas vezes apresenta-se com o falo ereto: Hermes
Itifálico). Com efeito, Eros também é alado e traz um bastão. Ainda uma ressonância de Hermes é a figura
de Dionísio (Diônysos) e de Pan. No século VI a.C. os mistérios órficos falam de um Dionísio Zagreu. Este
Dionísio seria filho de Zeus e Perséfone. Fora esquartejado e devorado pelos titãs, instigados por Hera,
ciumenta de Zeus. Atena, no entanto, salvou-lhe o coração e levou-o a Zeus. Zeus engoliu o coração de
Dionísio Zagreu, que veio a renascer, de Zeus, mais tarde, como o filho de Semele. É o deus da floresta,
deus sofredor, que morre e ressuscita, deus do vinho, que alivia as aflições dos mortais, alegra-os e inspira-
os para a música e a poesia. Traz também ele um bastão, enrolado com ramos de parreira. Às vezes era
concebido como um bode. O bode era sacrificado em seus cultos. Dos festivais atenienses em honra de
Dionísio (Grandes Dionísias), celebrados, em geral, no fim do inverno e no início da primavera, surgiram
o ditirambo, a tragédia e a comédia. Pan era o Deus dos rebanhos e pastores. Às vezes descrito como filho
de Hermes. Representado parcialmente com o corpo de bode. Amante das ninfas. Inventor da gaita de sete
canudos (Syrinx). Despertava terrores súbitos nos que se movimentação nas florestas e lugares desertos
(pânico). Os romanos o identificaram com o Fauno.
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De nuptiis Philologiae et Mercurii (Das núpcias de Filologia e Mercúrio), em nove livros.
Trata-se de uma enciclopédia alegórica, escrita e prosa e verso, sobre as “artes liberales”
(artes livres ou liberais). Nesta obra, o conhecimento delas é descrito alegoricamente,
como uma ascensão da mente humana do reino sensível ao inteligível. Na alegoria de
Marciano Capella, o deus Mercúrio (Hermes) pretende se casar. Pensa em Sophia, em
Mantica ou em Psiché, mas todas estas são descartadas por diversas razões. Então o seu
meio-irmão Apolo 11 o aconselha a se casar com a mortal Filologia. Júpiter, o deus
supremo do céu, aceita esta união apenas se Filologia for elevada ao céu e divinizada
(apoteosis). O livro II trata desta ascensão, que deverá se dar através de sete esferas
celestes. O livro III trata da Gramática (literatura), o IV da Dialética e o V da Retórica (as
três artes da linguagem que formarão o trivium dos medievais). No Livro VI se fala da
Geometria, no VII da Aritmética, no VIII da Astronomia e no IX da Harmonia (as quatro
artes matemáticas que Boécio chamou de quadrivium). Esta obra tornou-se um manual
nas escolas medievais e foi frequentemente comentada na Idade Média, como por
exemplo, por Remígio de Auxerre. No século XI, Notker Labeo o traduziu para o alemão.
No século XI, quando tiveram contato com o Timeu de Platão, os latinos estavam
divididos entre dialéticos e antidialéticos. Os antidialéticos acusavam os dialéticos de
abusarem da razão no uso da interpretação da revelação cristã e dos dogmas da Igreja.
Enquanto os dialéticos amavam o estudo de textos pagãos, os antidialéticos o
abominavam. Há um opúsculo antiplatônico dirigido por Manegoldo contra Wolfemo que
ilustra esta abominação. “Toda tentativa de explicação puramente racional do mundo,
como é aquela da física pagã, contida particularmente nas páginas do Timeu, justamente
porque prescinde do ensinamento bíblico, comporta, para Manegoldo, erros abomináveis
que ele ilustra e condena: entre estes a doutrina da metempsicose, sustentada por
Pitágoras, e a do monopsiquismo universal” 12.
11
Apolo é chamado o Febo (Phoibos): o luminoso, o puro, o sacro. Ele purifica os que dele se aproximam.
Em Delfos estava o templo de Apolo, ao qual acorriam os peregrinos, para se purificarem e ouvirem os
oráculos da pitonisa. Apresenta-se nu, ou melhor, des-velado. Onde se dá o des-velamento, ali se encontra
Apolo. Sua flecha mostra o raio da luz. É o que concede juventude. Ele é o vencedor das forças ctônicas: é
quem mata o dragão Píton (Apollon Pythios). É o deus do auto-conhecimento (gnôthi seautón). O deus dos
oráculos, que inspira a pitonisa. O templo de Apolo celebrava a claridade da verdade do Ser, a partir da
qual o homem grego se media com o Céu e a Terra, com o divino e com sua própria mortalidade. O seu
lugar era Delfos. Para os gregos, Delfos era o “umbigo da Terra”. Ali a deusa Γη - gué (Geia, Gaia) pariu
o povo grego para o seu destino. Em Delfos, o templo abre o espaço ao seu redor, fazendo aparecer na
claridade o Céu azul e a Terra com seu vale e suas montanhas escarpadas.
12
De Mottoni, Barbara Faes. Il platonismo medioevale. Torino: Loescher Ed., 1979, p. 19.
5
Entretanto, o platonismo medieval atingiu sua idade áurea no século XII. No
ambiente da Escola de Chartres foi vivo o interesse pela leitura de textos clássicos
romanos – de Cícero, Vergílio, Ovídio, Plínio –, mas também do Timeu. Os mestres de
Chartres abandonam uma visão simbólica e alegórica da natureza, dominante até então, e
passam a ter uma visão mais realista e secularizada da natureza, em que esta aparece como
coadjuvante da ação criadora de Deus. Teodorico de Chartres e Guilherme de Conches,
dois dos principais expoentes da escola de Chartres, leem à luz do Timeu, da sua
cosmologia e das noções de física de seu tempo, a narração bíblica da criação, exposta no
livro do Gênesis. “Para eles, a ação de Deus consiste em criar diretamente do nada os
quatro elementos, enquanto cabe à natureza levar a cabo o processo da criação do cosmos
através da formação dos astros e dos seres viventes” 13.
13
De Mottoni, Barbara Faes. Il platonismo medioevale. Torino: Loescher Ed., 1979, p. 20.
6
Além do platonismo cristianizado que chega aos medievais latinos por meio dos
Padres da Igreja e do platonismo das fontes diretas de Platão e de Proclo, os medievais
latinos também receberam influências de outro filão de pensamento platônico: o
platonismo árabe.
Nas obras dos autores árabes os pensadores latinos descobrem algo de novo e, ao
mesmo tempo, reencontram algo de familiar. De novo, pois, chega a eles uma doutrina
aristotélica apresentada sincreticamente com elementos neoplatônicos, concernente à
física, à psicologia e à metafísica. De familiar, pois chega a eles algo do neoplatonismo
14
De Mottoni, Barbara Faes. Il platonismo medioevale. Torino: Loescher Ed., 1979, p. 24.
7
que já lhes tinha sido legado pelas vias da tradição patrística. Havia, no entanto, doutrinas
árabes platônicas que não podiam ser aceitas pelos cristãos latinos tais e quais eram
transmitidas: a doutrina aviceniana do intelecto agente separado, único e idêntico para
todos os humanos, que alguns teólogos latinos tenderão a identificar com Deus; a doutrina
de uma criação por mediações (intermediários), que alguns irão entender como causas
instrumentais de Deus; nem, a doutrina da eternidade da matéria, que todos os medievais
latinos irão rejeitar.
8
II. FILOSOFIA E RELIGIÃO NO IMPÉRIO ROMANO.
Num tempo em que a dúvida espreitava por toda a parte, havia espaço para a
presença marcante do ceticismo na filosofia tardo-antiga, inclusive no interior da própria
academia platônica. O espírito cético da antiguidade foi responsável pela crítica mordaz
às crenças religiosas. Também o epicurismo exerceu este papel crítico. Na Roma do
século I a.C., Lucrécio, com a sua obra “De Rerum Natura”, visou libertar os romanos do
seu temor aos deuses. Apoiando-se no materialismo, empenhou-se em refutar qualquer
hipótese de uma causa pessoal racional da ordem cósmica. Também o estoicismo estava
9
eivado de materialismo. Não obstante, no estoicismo foi aparecendo, cada vez mais, certo
tom religioso de fundo, já presente, de resto, na tradição grega da filosofia, onde ressoam
vozes e tons advindos das religiões dos mistérios, da poesia órfica e da teologia mítico-
poética. De fato, já os pitagóricos, Empédocles e Platão acolheram elementos vindos
destas tradições.
10
contexto? A um primeiro aviso, “relegere” significa “re-ler”, ler novamente, isto é, rever
com cuidado, percorrer de novo um caminho. Contudo, é mais provável que o prefixo
“re” de “religio” tenha não tanto o sentido de repetição, e sim, mais propriamente, o
sentido de recolher, reunir. Isto estaria em consonância com as origens do verbo “legere”,
aparentado, pela mesma raiz (lg), com o verbo grego “légein” , donde vem “Lógos” e que
significa, originariamente, colher, recolher. Neste sentido, a tarefa da “religio” seria
responder ao desafio de dar unidade à vida, de pôr em obra o recolhimento da existência
humana, centrando-a no divino. Vale à pena, aqui, recordar novamente a exortação de
Sêneca, que apresenta exemplarmente esta compreensão do recolhimento como fundo de
seu empenho filosófico-metafísico:
11
especulação filosófica, de início, tem em mente uma divindade metafísica vasta e
indeterminada, incapaz de despertar um pathos – uma afeição – propriamente religioso,
que conduza o homem a um vínculo mais pessoal com esta divindade. Por isso, dentre as
três teologias distinguidas por Panécio, a dos poetas, a dos filósofos e a dos homens de
estado, aquela filosófica é mais inexpressiva, do ponto de vista do sentimento religioso
comum, que, naquele tempo era predominantemente politeísta. Pois, como observa
Agostinho (De Civ. Dei, L. VIII, c. 12), mesmo os filósofos que intuíram algo do Deus
uno, como os platônicos, se renderam à tendência do culto aos deuses.
12
concordância harmônica entre a paixão e a razão. A razão tem o papel de ajudar a
encontrar o “justo centro” entre os extremos das paixões. É pela sensatez (frónesis) e pela
sabedoria (sofía) que o homem pode alcançar o sentido de sua vida, que é o ser semelhante
a Deus (homóiosis theô).
Nos primeiros séculos da era cristã, pois, havia uma grande angústia diante do
destino e da morte e, ao mesmo tempo, uma grande aspiração à salvação da alma. Por
toda a parte, o homem buscava apoio no sagrado, a fim de alcançar a “Soteria”. Em grego,
Soteria significa tanto salvação quanto saúde. O mesmo se diga do latim “salus”. Salvar
é proteger ou resgatar a integridade de alguém ou de alguma coisa. Podemos dizer que
salvação da alma é repristinar a saúde, o vigor originário, da vida do homem, é reconduzir
para a integridade esta mesma vida. Em grego, Sotér significava salvador, protetor,
libertador. Deuses e reis serão chamados com este título. No mundo bíblico, Deus e Jesus
também recebem este epíteto. Aliás, o nome “Jesus”, em hebraico Jehoschua, significa
13
“Iaweh é salvação”. Neste tempo, o cristianismo irá emergir no contexto do mundo
mediterrânico como uma religião de salvação. Por sua vez, os mais ilustres filósofos vão
se ocupar com grande interesse de religião e irão propor a filosofia como a busca de um
caminho de salvação, isto é, de libertação e de cura da alma, como se pode ver, sobretudo
no neoplatonismo e no cristianismo.
Tendo nascido no Egito (c. 204-5), frequentou a escola de Amônio Sacas por onze
anos. Após participar de uma expedição do imperador Gordiano contra a Pérsia, refugiou-
se por um tempo em Antioquia e, depois disso, mudou-se para Roma, em 244. Ali abriu
uma escola, que era frequentada por senadores, médicos, escritores, homens e mulheres
ilustres. Seus principais discípulos foram Amélio e Porfírio. O grande empenho nesta
escola era de interpretar os textos de Platão. Plotino e sua escola rejeitaram, oral e por
escrito, a interpretação de Platão feita pelos gnósticos. Em sua Enéadas polemiza com
estes, em particular com os gnósticos cristãos, especialmente os valentinianos (Adélfio,
Aquilino). Estes são sectários que misturam os ensinamentos de Zoroastro e os dogmas
cristãos. Seus escritos surgiram das discussões sobre os textos de Platão e as questões
neles investigadas. A edição deles foi feita após a sua morte na Campânia (sul da Itália),
14
no ano 270, por Porfírio, seu discípulo e biógrafo. Porfírio reuniu 54 tratados e organizou-
os em seis grupos temáticos de nove (Novenas), traçando, ao fim, o caminho da sabedoria.
Daí o nome: Enéadas. O grupo I trata de questões morais; os grupos II e III, do mundo; o
IV, da alma; o V, do espírito ou intelecto (noûs) e o sexto e último, do Uno.
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A investigação filosófica de Plotino busca sondar o fundamento primeiro de toda
a realidade. Ora, toda a realidade se configura como uma unidade. Hen: Panta – “Um:
Tudo”, já dizia Heráclito. Esta unidade está fundada, por sua vez, no Uno. O Uno é mais
abrangente e anterior ao ser do ente (hyperousion). Isto pode ser afirmado porque Plotino,
seguindo a tradição de Parmênides, faz corresponder o pensar (intelecto) e o ser. Só há
ser ali onde há pensamento, intelecto. Ora, o Uno é anterior ao próprio Intelecto, logo, é
anterior ao ser do ente. Como o Bem (agathón), ele vigora a modo de potência que está
além de toda presença e subsistência (epékeina tes ousias), produzindo a partir de si o se
do ente no seu todo. O Uno é o único. É o incognoscível. Está no mais íntimo de nós
mesmos. Estaremos em face do uno justamente quando outros suporão “nada haver para
ver”. O retorno ao Uno é êxtase, uma saída dos limites. É um abandono de nós mesmos;
um contato (VI, 9, 11). Esta elevação (anagogé) e conversão de retorno (epistrophé) é a
tarefa mais elevada da alma.
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não é; mas aquilo que ele é, não o dizemos. Assim, falamos dele a partir
daquilo que vem depois dele” (Enéadas, V, III, 14, 1-8).
O Uno pode ser pressentido e intuído a partir do que ele produz: o Intelecto e a
Alma, enquanto princípio de organização e de dinamização do mundo sensível. O ser do
ente como um todo, em suas gradações, o mundo sensível, a Alma e o Intelecto,
constituem uma escada para ascender ao Uno. Filosofar é percorrer este caminho de
ascensão.
“De fato, seja o conhecimento do Bem seja o contato com ele, é o que
há de mais excelso; e [Platão] diz que este é o ensinamento maior
[República, ς, 505 a 2], chamando ensinamento não o ver a ele, mas o
aprender algo acerca dele, precedentemente. Portanto, o que instrui são
as analogias, as subtrações (aphairéseis), os conhecimentos dos entes
que derivam dele e certos graus da ascensão [Banquete, 211 c 3]; e nos
conduzem a ele as purificações, as virtudes, os ornamentos morais, o
acesso ao inteligível [Rep., ς, 511 b 6], o demorar em seu seio e o
participar àquele sublime banquete” (Enéadas, VI, VII, 36, 3-10).
O Uno é anterior a toda alteridade. Ele não é nada daquilo que é, nem é outro
daquilo que é. Entretanto, toda alteridade procede dele, pois é ele que produz tudo o que
ele não é. Tudo está nele e ele está em tudo. Ele é um processo, um puro agir, o “ato” (V,
6, 6). Ele é o doador do ser e da vida. O ser e a vida são vestígios dele, mas ele mesmo
está acima do ser e da vida, como o doador está acima da dádiva. Tudo o que é tem uma
forma, isto é, uma determinação. Ser e forma coincidem. A forma é limite que define o
ser de cada ente, diz o que é e como é o ente. Todo o ser e toda a forma procedem, pois,
do Uno, como de sua origem ou fonte, mas o Uno mesmo não tem qualquer ser, isto é,
qualquer forma. Ele vigora como o sem-forma: infinito (apeíron), invisível (aoristón),
simples (aploun); sem medida e sem figura. Como Bem, doador do ser e da vida, atrai o
amor (eros) e o desejo (órexis) de todo o ente.
O Uno não é o que pensa, mas aquilo em virtude do que há pensamento. O Uno
produz o Intelecto (Nous). O engendramento do Intelecto comporta três momentos: a
processão emanada do Uno; a conversão do Intelecto em direção ao Uno; e a conversão
do Intelecto em direção a si mesmo (V, 2, 11). Nesta última, o Intelecto percebe os
inteligíveis. O Intelecto é conhecimento e consciência de si (VI, 7, 39). O pensar e o
pensar que se pensa faz parte da mesma intuição (II, 9, 1). No Intelecto, há, pois, a
17
identidade de inteligência e inteligível. É translucidez. O “pensamento de pensamento”
(nóesis noéseos), que Aristóteles atribuía ao divino “Motor Imóvel”, Plotino recusa ao
Uno (em quem não há nenhuma dualidade), mas acolhe para o Intelecto. O Intelecto é
Identidade na Diferença, Unidade na Multiplicidade (Hén-Pollá).
O Intelecto tem um modo originário de conhecer o Uno, que é como uma forma
de “toque”, isto é, de contato silencioso, o que só é possível porque o Intelecto tem a
semelhança do Uno em si mesmo. Para além desse contato silencioso, o Intelecto se volta
para o Uno para conhecê-lo, mas, ao conhecê-lo, consegue apreender o Uno somente
como uma multiplicidade de inteligíveis. Ele recebe do Uno o fato de ser unidade. É
unidade, mas não é unidade simples, como o Uno. É a unidade de uma díade: de pensador
e pensado, de conhecedor e conhecido. No pensado e conhecido, porém, o Intelecto pensa
e conhece a multiplicidade de todos os inteligíveis (noetá), as formas de todos os entes, a
uni-multiplicidade do ente, cuja origem se encontra no Uno. Os inteligíveis não são nem
as palavras nem as proposições, mas a significação que as permeia (V, 5, 1). O Intelecto
contém os inteligíveis, isto é, as noções ontológicas ou categorias, e as ideias dos seres
18
particulares, todos originais (V, 7, 1 e 2). O pensamento discursivo não passa de forma
decaída do Intelecto. O Intelecto, “o princípio pensante, quando pensa, é dualidade; por
isso é que os inteligíveis são ao mesmo tempo idênticos ao Intelecto e diferentes dele”
(V, 3, 10).
O Intelecto produz a Alma (Psyché). Ela é “espírito de vida” (V, 1, 2). Na Alma
há duplo movimento: processão (a partir do Intelecto) e conversão: a Alma, sendo
iluminada pelo Intelecto, ilumina por sua vez as coisas sensíveis (II, 9, 1). Voltando-se
para o Intelecto, ela ilumina tudo. Voltando-se para si mesma, produz o que está abaixo
dela (os corpos) (III< 9, 2). A alma, iluminada pelas Ideias, produz por meio de formas
(II, 3, 17). A organização do mundo é obra da contemplação da Alma. Todas as coisas
nasceram de uma contemplação (III, 8, 3).
O Intelecto é o pai da Alma. É ele que a torna divina. O Intelecto é forma da Alma
e a Alma é a matéria ou o receptáculo do Intelecto. A Alma é também a unidade de uma
multiplicidade, só que uma unidade menos intensa e uma multiplicidade mais difusa, se
comparada com a unidade e multiplicidade do Intelecto. O próprio da Alma é a
estruturação, unificação e vivificação do mundo corpóreo. Ela é possibilitadora do “unus
mundus”, isto é, do universo sensível e corpóreo, bem como de cada alma individual.
Cada alma particular é universal a seu modo (IV, 3, 2). A alma é uma e múltipla (hén kai
pollá) (III, 2, 2; IV, 9, 2). Todas as almas são, no fundo, uma única Alma. Por sua vez, a
19
Alma se encontra toda em cada uma das múltiplas almas individuais. A Alma está toda
em cada parte do universo que ela rege, assim como a alma individual se encontra toda
em cada parte do corpo de um indivíduo.
15
PLOTINO, Apud EDINGER, E. F. A Psique na Antiguidade – Livro Um.São Paulo: Cultrix, 2010, p.
168.
20
suprema da luz do Uno, que é o Bem. É escuridão e esterilidade absolutas, o limite da
máxima negatividade.
16
PLOTINO, Apud EDINGER, E. F. A Psique na Antiguidade – Livro Um.São Paulo: Cultrix, 2010, p.
159.
21
suas faculdades: a opinião, a razão discursiva ou raciocínio (diánoia, tò logizómenon), a
imaginação intelectual, a memória intelectual e a vontade. A alma não é a forma do corpo
(concepção aristotélica). Ela está unida ao corpo como a luz ao ar (IV, 3, 22). Não é alma
que está no corpo, mas sim o corpo que está na alma.
O “eu” – o que Plotino evoca dizendo “nós outros” – se encontra no nível da alma.
A alma pode ter uma intuição intelectiva (nóesis) do Intelecto. Ela lhe pertence. A vida
intelectual é uma vida superior (I, 1, 12; V, 13). Essa intuição ultrapassa qualquer
conhecimento discursivo, apreende a essência de uma maneira imediata e intemporal (noû
ópsis – visão do intelecto). A visão intelectual acontece ou porque recebemos impressões
e regras gravadas em nós, ou porque o Intelecto está presente em nós. Diferente de Platão,
Plotino entende que a intuição intelectual é possível sem reminiscência. Os pés da alma
tocam o chão, sua cabeça eleva-se acima do céu (IV, 3, 12). As almas têm vida dupla: no
mundo sensível e no mundo inteligível. Podem compartilhar com a Alma e com o
Intelecto o governo do mundo. Ou podem, separadas da Alma universal por causa de seu
desejo de vida independente, precipitar-se nos corpos (reencarnações).
“O Uno não aspira a nós, não aspira a se mover em torno de nós; nós
aspiramos a ele, a nos mover em torno dele. Na verdade, sempre nos
movemos em torno dele; mas nem sempre vemos. Somos como um coro
reunido perto de um maestro que deixa que sua atenção se distraia com
a platéia. Se, contudo, o coro se voltasse para o maestro, ele cantaria
como deveria e realmente acompanharia o maestro. Estamos sempre em
torno do Uno. Se não estivéssemos, nos dissolveríamos e deixaríamos
de existir; no entanto, nosso olhar não continua fixo no Uno. Quando
olhamos para ele olhamos, chegamos ao fim de nossos desejos e
22
encontramos repouso. Então, passada a discórdia, dançamos uma dança
inspirada em torno dele” 17.
A filosofia de Plotino não é outra coisa do que uma anagogia: a elevação da alma
ao Uno. A sua concepção metafísica se concentra toda em traçar os estágios da processão
do Uno, a fim de delinear os degraus da elevação, que a alma há de cumprir, na sua
conversão ou retorno para o Uno, origem de todo o ser. Na união mística com o Uno, está
o bem supremo do homem, a culminação de toda a ética e, por conseguinte, da filosofia.
17
PLOTINO, Apud EDINGER, E. F. A Psique na Antiguidade – Livro Um.São Paulo: Cultrix, 2010, p.
170.
23
Para Agostinho, ainda, o neoplatonismo teria ainda o mérito de propor ao homem
a busca da purificação, da iluminação e da visão de Deus e um ideal de virtude maior, que
consiste no ser semelhante a Deus (A Cidade de Deus IX 17).
24
– ou metafísica, a “Metafísica” e o “Parmênides”. Entre os escritos do “Órganon”,
Porfírio preferiu comentar as “Categorias” e o texto “Sobre a Interpretação”.
O problema das “categorias”, desde Porfírio e Boécio, passou a ser um dos mais
importantes da investigação filosófica. A palavra “categoria” vem do grego, katêgoría,
que significa, na linguagem ordinária, “acusa”. O uso ordinário da palavra remontava ao
fenômeno do falar-uns-com-os-outros na convivência pública da Pólis. O espaço
privilegiado, aberto à discussão, onde os cidadãos discutiam os destinos da Pólis era a
“ágora”, a praça, o fórum, o espaço público onde acontecia o intercâmbio de mercadorias,
de opiniões, bem como os discursos endereçados ao público, as assembleias, os
julgamentos, etc. Daí o verbo “katêgoreîn”, que significava, originariamente, dizer
alguma coisa publicamente na cara de alguém, daí, acusar em público, acusar numa
assembleia ou num julgamento. Aristóteles assumiu este verbo da linguagem ordinária e
deu a ele uma conotação lógico-filosófica. “Katêgoreîn” passou a significar, num juízo,
atribuir um predicado a um sujeito e “katêgoría” tomou o significado de “predicado” de
uma proposição. Aristóteles usou a expressão “katêgoriai toû ontos” para dizer aqueles
predicados mais abrangentes e originários que se podem atribuir ao ente enquanto ente.
A tradição chamou as categorias do ente de “gêneros supremos”, por serem gêneros que
não podem se tornar espécies de outros gêneros. Tratam-se de predicados universais, que
se referem ao ente enquanto ente, isto é, ao ente no seu todo. São chamadas, em latim, de
“praedicamentum”, predicamento – de praedicare: dizer diante de, dizer publicamente,
proclamar.
25
Ousía
aquilo que responde à pergunta “tí tó o “tí estin”, o “o que é” do ente, sua o substrato (hypokéimenon) das o sujeito, aquilo de que se fala ou se diz
Ex.: “Sócrates”.
on?” – o que é o ente? vigência, presença, entidade: substância manifestações de uma coisa; alguma coisa, aquilo de que se predica.
Póson
a quantidade, o que é inerente a uma coisa por si mesma, devido à sua matéria. Ex.: “Sócrates é de um metro e setenta de altura”.
Poión
a qualidade, o que é inerente a uma coisa por si mesma, devido à sua forma. Ex.: “Sócrates é branco”.
Prós ti
a relação, o que é inerente à coisa, mas não por si mesma, e sim em referência a outra coisa. Ex.: “Sócrates é pai de três filhos”.
Poû
os latinos diziam, o “ubi”, isto é, o onde. o lugar natural que cabe a esta coisa no universo. Ex.: “Sócrates é natural de Atenas”.
Pôte
o quando, o que se dá como uma medida extrínseca à coisa, a partir do tempo. Ex.: “morto em 399 a.C.”.
Keîsthai
situs: o que indica a disposição das partes do sujeito, o modo como o sujeito está disposto, posto ou
Ex.: “Sócrates está sentado”.
posicionado.
Échein
“habitus”: atinência extrínseca, ou seja, modo de se ter com e de se
o “ter a ver” de alguma coisa com outra coisa. Ex.: “Sócrates está calçado”
ater a (habere);
Poieín
actio: pôr em obra, atuar, agir, fazer – quando a coisa é o princípio da ação. Ex.: “Sócrates ensina”.
Páschein
passio: sofrer, ser atingido, afetado – quando a coisa é o termo ou o fim da ação. Ex.: “Sócrates foi condenado à morte”.
26
A obra em que Porfírio discute o problema das categorias é usualmente conhecida
em forma abreviada sob o título de “Isagoge”. O título completo soa assim: “Eisagogé
eis tais Aristotélous katêgoríais, perì tôn pénte phônôn” 18, literalmente, “Introdução às
Categorias de Aristóteles: acerca das cinco vozes”. Trata-se, em primeiro lugar, de uma
introdução. Introdução a quê? A resposta pode ser dada em diversos níveis: como uma
introdução ao problema das categorias em Aristóteles; como uma introdução à lógica; e
como uma introdução à filosofia. Com efeito, a lógica era a propedêutica à filosofia;
Aristóteles era considerado o pensador que abria o acesso à compreensão dos “mistérios”
tratados por Platão, e o “Órganon” em geral e as “Categorias” em especial eram
considerados o ponto de partida do estudo das obras de Aristóteles. De que se trata,
porém, quando o título fala de “cinco vozes”? Na Idade Média, estes gêneros supremos
eram chamados de “Quinque voces” (Cinco Vozes). A “voz” é a dimensão sensível
imediata do exercício concreto da linguagem, ou melhor, da fala ou discurso:
18
Cfr. PORFÍRIO. Isagoge. Texto greco a fronte / versione latina di Boezio. A cura di Giuseppe Girgenti.
Milano: Rusconi, 1995. A introdução desta obra pelo organizador desta edição italiana serviu como um
estímulo importante para o autor deste comentário e abriu perspectivas importantes de interpretação. Sejam
dados os créditos, porém, também a outros textos de que o autor se serviu na elaboração do presente texto:
ROVIGHI, Sofia V. Elementi di Filosofia (3 vols.). Brescia: La Scuola Editrice, 1998. LIBERA, A. de. Il
Problema degli Universali: da Platone alla fine Del Medioevo. Firenze: La Nuova Italia Editrice, 1999.
19
HEIDEGGER, M. Ser e Tempo (Parte I). Petrópolis-RJ: Vozes, 1988, p. 63.
27
acidente. A compreensão destes predicáveis pode ser articulada em relação a dois
critérios: se o predicado pode ser conversível com o sujeito, ou seja, se pode haver uma
permuta entre o predicado e o sujeito sem alterar o significado da proposição; e se o
predicado é essencial ou não ao sujeito. A definição é um predicado conversível e
essencial a um sujeito. O próprio é um predicado conversível, mas não essencial a um
sujeito. O gênero é um predicado não conversível, mas essencial ao sujeito. O acidente é
um predicado que não é nem conversível nem essencial ao sujeito. Porfírio, porém, em
relação a Aristóteles, retira a definição e acrescenta a espécie na lista dos predicáveis ou
categoremas.
28
uma espécie, ou seja, aquilo que a faz distinguir das demais espécies; próprio (ídion), por
sua vez, nomeia um predicável que indica uma característica, a qual sempre diz respeito
ao sujeito em questão, mesmo não fazendo parte da definição da espécie, ou seja, o
próprio é um predicável, o qual diz respeito a todos os indivíduos de uma espécie, somente
a estes e sempre; por fim, acidente (symbebekós) nomeia um predicável que indica algo
que diz respeito ao sujeito em questão, mas só casual ou ocasionalmente, não estando
sempre presente nele, ou seja, o acidente é aquilo que pode estar presente ou ausente da
coisa, sem que ela, por isso, deixe de ser especificamente aquilo que ela é. Tomemos, por
exemplo, o caso do “homem”. A definição de homem soa assim: “homem é animal
racional”. “Animal” indica o gênero. “Homem”, a espécie. “Racional”, a diferença. Algo
que não entra na definição de homem, mas que é uma sua característica sempre presente,
pode ser tomado como seu próprio. Por exemplo: ser capaz de rir. A capacidade de rir é
uma característica própria do homem enquanto homem, ou seja, enquanto espécie. Outra
coisa que não entra nem na definição de homem nem lhe é uma característica própria, isto
é, sempre presente, e que acontece só casual ou ocasionalmente é um acidente, isto é, algo
de casual, que sobrevém ao homem só ocasionalmente, como, por exemplo, ser branco
ou negro, ser rico ou pobre, ter nascido no Brasil ou na Itália, etc.
29
Por exemplo: os espíritos, tais como demônios e deuses, na visão grega, e anjos e
demônios na visão cristã, serão considerados também como seres racionais. Por isso, na
definição porfiriana do homem, se acrescentará as diferenças “racional e mortal” e não
somente a diferença “racional”. Racional diferenciará a espécie homem dos animais
irracionais e, “mortal”, dos “animais” (viventes, seres dotados de alma) racionais
imortais, ou seja, os espíritos. 4. Próprio: quando P é um predicado não-essencial, isto é,
que não entra na definição da essência de um S, mas que é uma sua característica típica,
identificadora, constante, invariante. Ex.: “O homem é um ser vivo capaz de rir”. Isto
valerá para todos os indivíduos humanos, sempre, mesmo se alguns não exercerem esta
capacidade. 5. Acidente: quando P é predicado de modo não-essencial e indica algo que
apenas casual ou ocasionalmente pode estar presente em S. Por exemplo: “Sócrates é pai
de três filhos”.
30
tem como referência os binômios: uno/muitos, todo/partes, identidade/diferença. Sob o
ponto de vista do binômio uno/muitos, Porfírio diz:
31
Sócrates é um indivíduo, ou seja, uma substância individual, mas não é uma substância
simples. De fato, esta substância é composta, de matéria e forma, de corpo e alma. É
verdade que o corpo de Sócrates é divisível em tantos órgãos e cada órgão pode ser
dividido ulteriormente e assim por diante. Entretanto, no nome próprio “Sócrates” viso
um indivíduo, ou seja, falo da realidade que é esta pessoa, esta substância individual.
Nisso, estou falando de uma unidade indivisível, pois é a unidade de uma pessoa, distinta
de todas as demais pessoas e, ao mesmo tempo, única e singular em si mesma; e a
totalidade dos seus aspectos não é uma mera soma de partes, mas sim uma totalidade
vivente multidimensional, corporal-psíquica-espiritual; uma totalidade que se reúne em
torno de um eu, melhor, de um si-mesmo, que é o centro unificador de seus atos e de seus
aspectos. Tudo isso quer dizer: embora o indivíduo seja uma totalidade real, natural,
“física”, ele não é, do ponto de vista lógico, uma totalidade que tem sob si mesmo outros
tipos de unidade: é indivisível.
32
Há, ainda, a perspectiva do binômio identidade/diferença. Porfírio afirma que as
diferenças “são parte integrante da definição de cada coisa, e o ser da coisa, que é uno e
idêntico, não admite nem aumento nem diminuição” (Isagoge, 9, 20-22). O universal diz
a identidade de diversos e diferentes. Ser idêntico é ser uno. Todo ente é idêntico consigo
mesmo, à medida que é uno. Diversos entes são idênticos à medida que, entre eles, há
uma unidade, que os reúne numa comunidade. Todas as abelhas são idênticas enquanto
são abelhas, são diversas apenas enquanto há diferenças de grandeza, beleza, etc. Quer
dizer: no ser-abelha, são idênticas. Logo se vê, também, que ser-idêntico não é ser-igual.
A identidade é um corolário da unidade. A igualdade o é da multiplicidade. Pois bem, o
ser de uma espécie é único e idêntico, ainda que os indivíduos que dela participam sejam
muitos e distintos. Esta unidade específica permanece sempre una, isto é, ela não se
multiplica com a multidão dos indivíduos. Assim, nesta perspectiva, a espécie “homem”
não se multiplica com o aumento ou a diminuição dos indivíduos humanos. Mais do que
uma realidade factual, a espécie diz uma possibilidade essencial, um possível modo de
ser, um poder-ser. Também permanece sempre idêntica, pois não se diferencia, enquanto
espécie, em razão das distinções que se operam sob sua vigência. Por exemplo: o
vermelho permanece sempre idêntico consigo mesmo, enquanto vermelho, não obstante
acontecer de a vermelhidão ou rubor se dar em distintas nuanças e infindas
particularidades em todos os vermelhos existentes nas coisas. A espécie não aumenta nem
diminui, com o aumento e diminuição dos indivíduos. Ela é e permanece sempre una em
si mesma. A diferença entre indivíduo e espécie, portanto, parece não ser uma diferença
ôntica, que diz respeito ao ente em suas propriedades fatuais, mas sim uma diferença
ontológica, isto é, uma diferença que não entre ente e ente, mas sim entre ser e ser, ou
seja, entre ser individuado e ser comum. Aumento e diminuição dizem respeito ao
domínio dos indivíduos e dos acidentes das substâncias individuais. O ser da coisa é,
porém, uno e idêntico. A unidade do indivíduo é numérica. A unidade da espécie não é
numérica. Por outro lado, não obstante a ênfase na identidade como corolário da unidade,
não se pode dizer que a diferença deixa de ter importância. Porfírio afirma, ainda, que as
diferenças entram na definição das coisas, como partes integrantes, isto é, como partes
intrínsecas, essenciais. Naturalmente, trata-se de diferenças específicas, pois as diferenças
individuais não entram na definição de um ente. O indivíduo enquanto tal é indefinível.
Não se pode definir “Sócrates”. Mas se pode definir uma espécie, como “homem”, por
exemplo. Do mesmo modo, um gênero supremo não pode ser propriamente definido. Não
se pode definir, por exemplo, ser. Pois ser é um conceito transcendental, que ultrapassa
33
toda determinação em termos de gênero, diferença e espécie. Ora, aqui estamos falando
de definição em sentido rigoroso, como definição essencial, de cunho metafísico, ou seja,
uma definição que precisa e determina os constitutivos da essência da coisa, isto é, o
gênero próximo e a diferença específica. Assim, segundo a antropologia filosófica
tradicional, definir “homem” é dizer “animal racional”, sendo “animal” o gênero próximo
da espécie “homem” e “racional” a diferença que determina a especificidade da espécie
“homem”, destacando-a do fundo indeterminado do gênero “animal”. Logo se vê que é a
diferença o elemento determinante, que torna nítido e preciso o que antes era
indeterminado, isto é, difuso e vago.
Tendo tratado das noções dos predicáveis e da chave de leitura henológica feita
por Porfírio a partir dos binômios uno/múltipo, parte/todo e identidade/diferença, convém
agora tratar da “scala predicamentalis” ou o que ficou conhecido na tradição como
“árvore porfiriana”. Trata-se de uma escada que articula os predicáveis, descendo do
gênero supremo através das várias diferenças específicas até a espécie ínfima e, por fim,
ao indivíduo.
“O gênero supremo é aquele sobre o qual não pode haver algum outro
gênero superior, enquanto a espécie ínfima é aquela debaixo da qual
não pode haver alguma outra espécie inferior; são termos intermediários
entre o gênero supremo e a espécie ínfima, outros que são, ao mesmo
tempo, gênero e espécie, naturalmente em relação a sujeitos diversos.
Esclarecemos este discurso tomando como exemplo uma categoria. A
“substância” é ela mesma um gênero, à qual é subordinada a espécie
“corpo”; subordinado a corpo” é “ser vivente”; a este é subordinado
“animal”, enquanto a “animal” é subordinado “animal racional”; a este,
ainda, é subordinado “homem”, e a “homem”, enfim, são subordinados
“Sócrates”, “Platão” e os outros indivíduos. Entre todos estes termos,
“substância” é o gênero supremo, porque é somente gênero, enquanto
34
“homem” é a espécie ínfima, porque é somente espécie; “corpo”, por
sua vez, é espécie de “substância” e, ao mesmo tempo, gênero de “ser
vivente”. Por sua vez, “ser vivente” é espécie de “corpo” e gênero de
“animal”; e assim “animal” é espécie de “ser vivente” e gênero de
“animal racional”; “animal racional” é espécie de “animal” e gênero de
“homem”; “homem”, enfim, é espécie de “animal racional”, mas não é
gênero dos homens individuais, mas é somente espécie” (Isagoge, 4,
17-31).
substância (ousía)
"ens per se": o ente que é por si mesmo. Gênero supremo ou generalíssimo (genikôtaton). Gênero
divide-se pelas diferenças "corpórea" (sensível) e "incorpórea" (inteligível);
próximo de "corpo";
corpo (sôma)
espécie de substância e gênero próximo de "ser vivente"; divide-se pelas diferenças "animado" (ser vivente) e "inanimado" (mineral)
animal (zôon)
espécie de ser vivente e gênero próximo de animal racional; divide-se pelas diferenças "racional" (ser pensante) e "irracional" (bestial);
homem (ánthrôpos)
espécie de ser pensante. Espécie infíma ou especialíssima (eidikôtaton); divide -se apenas numericamente em muitos, vários e diferentes indivíduos;
Figura 1
35
substância (ousía)
corpórea (sensível) incorpórea (inteligível)
corpo (sôma)
animado (vivente) inanimado (mineral)
vivente (émpsychon)
sensitivo (animal) vegetativo (vegetal)
animal (zôon)
racional (pensante) irracional (bestial)
pensante (logikón)
[mortal] [imortal]
homem (ánthrôpos)
Sócrates Platão
Figura 2
36
resultar a espécie) é hóros, que, em linguagem usual, significava limite, confim.
Aristóteles também usava como equivalente de hóros a palavra horismós, de-limitação,
de-finição. Para o grego, o limite (péras), não era algo de negativo, era, antes, sinônimo
de perfeição. Quando uma obra alcança o seu limite, ela se consuma e passa a repousar
em si mesma. Então é que ela brilha em sua verdade e beleza. O limite é a determinação,
que dá nitidez à identidade da coisa. É o que torna visível o fenômeno. Ora, chamamos
de “horizonte” aquilo que delimita a visibilidade, o aparecimento, a presença e vigência
de uma paisagem. Podemos, pois, entender cada nível da escala predicamental como
sendo um horizonte de aparecimento, de presença e de vigência de algum modo de ser.
Em vez de horizonte, talvez pudéssemos também usar a palavra dimensão, pois cada nível
tem um papel mensurador, ou seja, nos oferece certa medida de determinação do ser dos
entes. Em termos lógicos, como a extensão e a compreensão de um termo são
inversamente proporcionais, os membros superiores da escala têm mais extensão e menos
compreensão e os termos inferiores vão apresentando menos extensão e mais
compreensão. É como se o horizonte fosse se tornando cada vez mais próximo e a clareza
do que se vê fosse ficando cada vez mais nítida.
37
o primeiro preexiste ao Ente, o segundo é aquele que é produzido pelo
Uno, que está além do Ente. E o Uno é em sentido absoluto, ele mesmo,
o Ser, ou, de qualquer maneira, é a Idéia do Ente”.
Em primeiro lugar, vê-se que Porfírio alude a uma prioridade do ser em relação
ao ente. “Ser”, porém, se compreende fundamentalmente de dois modos: em sentido
originário, como o Uno transcendente, o Puro Agir; e em sentido derivado, como ser,
atuação, imanente ao ente. O ente propriamente não é; só é enquanto participa do Ser, à
medida que é produzido e posto no ser. O que propriamente é diz-se ser, tomado em
sentido originário, como Puro Agir e como Idéia, isto é, como Uno e potência unificadora,
forma originária e originadora, geradora e configuradora do ente enquanto ente. Na Idade
Média, sobretudo em Tomás, o ser vai ser determinado como “actus essendi”: ato de ser.
38
de ser do corpóreo e o modo de ser do incorpóreo. Na verdade, numa perspectiva
platônica, trata-se de dois mundos: o kósmos aisthêtós (mundus sensibilis) e o kósmos
noêtós (mundus inteligibilis). O mundo sensível é a ordem dos entes que podem ser
percebidos no espaço-tempo: os corpos e tudo o que é corpóreo. O mundo inteligível é a
ordem das Idéias, ou seja, dos paradigmas ou arquétipos de todos os modos de ser, o ser
ideal, o incorpóreo. O mundo sensível é a totalidade dos entes em devir. O mundo
inteligível, a dos entes que permanecem sempre em quieta plenitude e em plena quietude.
O mundo sensível é uma imagem do mundo inteligível, assim como o tempo é uma
imagem da eternidade. Numa perspectiva aristotélica, por sua vez, o inteligível se une ao
sensível; isto é, as formas inteligíveis (eídê noetà) se tornam imanentes às formas
sensíveis (eídê aisthetá) imprimindo-se na matéria dos sujeitos e expressando-se como
forma externa (morphé) e figura (schéma) das coisas. Por conseguinte, o reino do
corpóreo não é ininteligível. Graças às formas (eídê) ele está prenhe de inteligibilidade,
ou seja, em potência ele já traz as diversas dimensões de formas, que se apresentarão em
seu horizonte. Aparece, assim, o gênero “corpo”.
39
ser local (ubiquação), aumento e diminuição e alteração (mutações acidentais e
substanciais). Logo se vê que todas estas categorias não são simplesmente interpretadas
em chave científico-matemática, isto é, traduzidas em cifras quantitativas, mas são
prenhes de ressonâncias qualitativas, advindas da experiência comum cotidiana. Outra
observação necessária diz respeito ao estatuto da extensão em relação à substância-corpo.
Na perspectiva antiga, diversa daquela cartesiana, relacionada à visão da ciência
matematizante da natureza, a extensão não é propriamente a essência do corpo, a sua ratio
essendi, um fundamento de seu ser, mas é apenas uma sua propriedade característica, e,
portanto, uma sua ratio cognoscendi, um princípio de (re)conhecimento. A categoria
acidental que imediatamente se liga à extensão é a quantidade, que se define a partir da
massa e da figura estendida nas dimensões três dimensões espaciais: cumprimento,
largura e profundidade ou altura. Vemos, assim, que a substância-corpo é, na verdade,
um mundo pleno e prenhe de especificidade, de atividade e de inteligibilidade. Cada
corpo, de fato, segundo a perspectiva do hilemorfismo, é constituído de dois princípios
ou condições-de-ser: de matéria (hýlê), momento potencial e indeterminado, contudo,
susceptível de determinação; e a forma (morphê), o momento atuante, que dá o ser,
determina e qualifica tal ente.
“Corpo” é também um gênero, isto é, uma totalidade, uma ordem prenhe, que traz,
em potência, diversos outros modos de ser. De fato, corpo pode ser mineral, vegetal ou
animal. São como que possibilidades de ser da corporeidade. Por isso, entra em jogo, no
meio do reino “corpo”, uma cisão que introduz duas diferenças fundamentais, que são, ao
mesmo tempo, dois níveis diversos: o “animado” e o “inanimado”. “Corpo inanimado”
nos introduz no reino dos minerais, onde ser vigora como simplesmente ser, como ocorrer
no espaço do mundo sensível. A pedra, em sua presença retraída, isto é, compacta,
maciça, quieta e fechada em si mesma é uma imagem característica deste tipo de
substância e substancialidade. “Corpo animado”, por sua vez, nos introduz na totalidade
dos seres viventes: vegetais e animais. Surge, assim, uma terceira dimensão da substância,
a da vida. Ao corpo pertence simplesmente ser. Ao ser vivente, o ser e o viver. Aliás, para
o vivente, ser é viver.
40
Entramos, agora, no horizonte que leva o nome de “ser vivente” ou “ser animado”
(émpsychon). Entramos, então, na ordem do vital e da vitalidade em geral, onde se dá a
regência do princípio da vida (psyché). Certamente, a substancialidade do vivente é
diversa daquela do não vivente. Não há apenas uma diferença de grau entre o inanimado
e o animado, mas sim um salto qualitativo, melhor, o surgimento de uma diferença não
só acidental, mas, sobretudo, substancial, essencial. Como vimos, o ser animado ou
vivente é uma espécie de substância corpórea, mas nele se manifesta algo de
essencialmente novo. O “animado” (émpsychon) ou “vivente” caracteriza-se por abrir e
manifestar a totalidade-mundo da psychê (ânima: alma). Trata-se do princípio vital, que
se manifesta tanto na vida vegetativa, quanto na vida sensitiva, quanto na vida intelectiva.
Diversa será, pois, a “animação” ou o “ânimo” de cada tipo de vida. O mundo vivente
supõe o mundo corpóreo, mas apresenta um “quê” (quid) que não se encontra ao nível do
corpo inanimado, da pedra, por exemplo. Este “quê” é a forma substancial chamada
psychê, alma. É aquilo pelo que o corpo vivente é o que é, ou seja, aquilo que torna corpo
vivente o corpo vivente. Falando de modo grosseiro, vivente é aquilo que tem a
capacidade de mover-se. Contudo, este auto-movimento não deve ser entendido apenas
no sentido do movimento local (ubiquação). Também uma máquina pode se mover e,
nem por isso, uma máquina é um vivente. Também um vivente apresenta movimentos
precisos, mas nem por isso o vivente é uma máquina. Mais do que dizer que o vivente é
um ente capaz de auto-movimento, é melhor dizer que o vivente é aquele ente que é capaz
de ação imanente. Ação imanente é aquela que vai além da ação transitiva. A ação
transitiva termina no objeto ao qual ela tendia. Já a ação imanente é aquela que enriquece
e aperfeiçoa o próprio agente. Podemos formular ainda melhor: vivente é aquele ente que
tem em si mesmo o princípio da própria atividade, do próprio devir, ou seja, é aquele que
vem a ser o que é, por força e graça de si mesmo. A autonomia é, pois, uma propriedade
característica do vivente. O vivente vegetativo executa por si mesmo o movimento pelo
qual ele busca alcançar o próprio fim, isto é, a própria consumação ou a perfeição de sua
natureza. A planta por si mesma assimila nutrientes, realiza a fotossíntese, cresce,
floresce, se frutifica. O vivente sensitivo, por sua vez, providencia para si mesmo o
próprio alimento e as demais condições para assegurar a vida, baseando-se,
fundamentalmente, na percepção sensorial, isto é, no conhecimento sensitivo. O vivente
intelectivo, enfim, isto é, o homem, age conforme a sua liberdade, baseando-se no
conhecimento intelectivo do ente no seu todo. Ele é capaz de operar e agir, a partir de
representações abstratas e de conceitos universais. Ora, o princípio regente da vitalidade
41
do vivente, o que suporta e governa sua auto-organização, sua auto-regulação e sua auto-
consumação, chama-se, na perspectiva da ontologia da substância, alma (psyché). A alma
não é algo que se acrescenta ao corpo, mas é princípio formador do corpo enquanto corpo
vivente. Não há corpo e só depois sobrevém como um acréscimo extrínseco, a alma.
Corpo vivente só é o que é a partir da atuação do princípio de vida, que se chama alma.
Isto quer dizer: a alma é potência estruturante do corpo-organismo enquanto tal e de suas
funções, potência imanente ao próprio corpo, que dá as leis de suas próprias atividades e
que o torna capaz de alcançar suas finalidades. É, portanto, princípio que dá o ser ao corpo
e potência unificadora das suas funções vitais; princípio de subordinação e de
coordenação das muitas atividades do corpo vivente. Aristóteles denominava a alma de
“entelécheia” do corpo: a forma que determina a realização consumada (entelôs + échein
= ter-se perfeitamente) de uma potencialidade. É aquilo que dá ao corpo olhos para ver,
ouvidos para ouvir, etc. Nesta visão teleológica, muito diversa da visão mecanicista
moderna, o vivente tem olhos porque é destinado a ver, não vê porque tem olhos. Há uma
definição aristotélica da alma que merece ser aqui citada: entelécheia he prôte sômatos
physikoû dynámei zôên échontos; os latinos traduziam por: actus primus corporis physici
potentia vitam habentis, ou seja, alma é a forma determinante e consumadora do corpo
natural que tem a vida como possibilidade (Da alma II, 4, 415 b). Alma é atuação
primordial, princípio de ser e de devir; de um corpo natural, isto é, de um corpo não
artificial, de um corpo gerado segundo a natureza (phýsis) e não segundo a arte (téchnê);
de um corpo que se atém à vida como sua possibilidade, como seu poder-ser, quer dizer,
de um corpo capaz de viver.
No gênero “vivente”, porém, acontece uma cisão, uma diferença substancial entre
“vegetativo” e “sensitivo”. A presença ou não da percepção sensorial caracteriza, pois,
uma diferenciação substancial no gênero “vivente”. O vivente privado da percepção
sensorial, que apenas vive, é o vegetal. Por sua vez, o vivente que é provido da capacidade
de percepção sensorial, que vive e sente, é o animal.
42
irrupção do conhecimento, mesmo que seja como conhecimento apenas sensitivo, como
no caso dos animais irracionais. Com efeito, pelos sentidos, o animal é afetado por aquilo
que se acha em seu meio ambiente e entra em conhecimento daquilo que o circunda. Os
sentidos do tato, do olfato e do paladar sobressaem no aspecto afetivo da experiência
sensitiva. Já a visão e a audição são por excelência formas de tomada de conhecimento,
ressaltando, assim, o caráter cognitivo da experiência sensitiva. Aristóteles postulou,
ainda, para além dos cinco sentidos externos, um sentido interno ou sentido comum, pelo
qual o animal não somente sente, mas também sente de sentir. No sentido comum abre-
se, pois, a dimensão da consciência. Pela consciência, o animal sabe de si, na imediatez
do sentir. A capacidade perceptiva e a consciência dão ao animal a possibilidade de se
mover em seu ambiente com mais mobilidade do que a planta no seu. Maior mobilidade
ainda ele alcança através da sua capacidade imaginativa e da sua memória sensitiva. A
imaginação possibilita ao animal criar formas inusitadas de providenciar-se a vida. A
memória dá-lhe um passado e abre-lhe a dimensão da experiência. Além do sentido
comum, da imaginação e da memória, o animal é também provido de instinto. É pelo
instinto que o animal se dirige, orientando-se em suas escolhas, em vista de seu fim: a
própria vida. Um filhotinho de gato, mesmo sem experiência, excita-se como um caçador
em potencial diante de um rato e se arrepia diante de um cão. O instinto mostra que a
vitalidade do animal não é meramente causal mecânica, mas é também causal teleológica,
ou seja, opera segundo os seus próprios fins. Tudo isso, pois, dá ao animal toda uma gama
de possibilidades de providenciar para si mesmo as condições de manutenção de seu
viver, bem como de reprodução, para a perpetuação da espécie.
No meio, porém, desta totalidade chamada “animal” opera-se uma nova cisão:
emerge a diferença substancial entre “irracional” e “racional”. Irracional é o animal que
apenas sente, ou seja, que permanece fechado no círculo do sentir, melhor, da percepção
sensorial. Racional é o animal que sente e pensa e que, pelo pensamento, transcende o
ambiente e se abre para o mundo, quer dizer, para a totalidade do ser. Instaura-se, assim,
uma nova espécie de substância-corpo-vivente: o animal racional.
43
Porfírio entende “animal racional” como espécie de animal e gênero de homem!
É diversa a sua perspectiva do modo como costumamos entender animal e homem. De
modo usual, quando falamos de animal pensamos logo nos bichos, isto é, no animal
irracional. E pensamos que o homem seja um bicho como outro, apenas com uma
diferença acidental: a inteligência. Nesta perspectiva, há apenas uma diferença de grau
entre o animal-bestial e o animal-homem. Não há uma diferença substancial, como é uma
diferença específica. A mudança de espécie, porém, se dá por uma diferença que não é
acidental, como diferença de grau ou de qualidades, mas substancial, que é uma diferença
essencial, substancial, no ser do ente em questão. Isto quer dizer que animalidade,
predicada do ser pensante, é uma animalidade radicalmente diferente da animalidade dos
bichos. O vivente pensante é aquele animal que é dito “racional”. Há animal racional e
animal irracional. O irracional é o que apenas é e sente. O racional é o que é, sente e
pensa. Irracional é o bicho. E o racional? Nós respondemos logo: o homem. Só que
Porfírio, em seu texto citado acima, diz que “animal racional” é gênero de homem e não
simplesmente o homem. Neste caso, o homem não é simplesmente e sem mais o animal
racional, mas sim uma espécie de animal racional! Haveria outras espécies de animais
racionais? Na visão neoplatônica, sim. Segundo nos reporta Agostinho, os neoplatônicos
diziam haver três espécies de animais racionais: os homens, os demônios e os deuses (Cfr.
Cidade de Deus, l. VIII, c. 15). Cada tipo de “animal racional”, por sua vez, traz uma
forma de corporeidade própria. Os homens possuem corpo terreno; os demônios, corpo
aéreo – são “espíritos dos ares”, como dizia S. Paulo (Ef 6, 10); e os deuses, que têm
corpo celeste ou etéreo. Os homens e os deuses são os dois extremos do gênero “animal
racional”. Entre estes dois extremos se colocam, pois, os demônios. Estes têm em comum
com os deuses a imortalidade e com os homens as paixões da alma. Já os deuses são
etéreos, impassíveis e imortais. Por causa desta posição mediana dos demônios, Porfírio
atribuiu-lhes um papel de mediadores entre os deuses e os homens. Na Cidade de Deus,
Agostinho busca refutar esta atribuição de mediação dada por Porfírio aos demônios e
busca mostrar que o único mediador entre os homens e Deus (e não “os deuses”) é Cristo
(Cidade de Deus, l. IX, c. 15). Na visão cristã, em lugar de demônios e deuses teremos,
então, demônios e anjos. E o nome “demônio” perde o seu sentido neutro, de divindade
inferior, que, na visão neoplatônica podia ser boa ou má, ou às vezes boa e às vezes má,
e recebe um sentido exclusivamente negativo, identificando-se com o “diabólico”, o
“satânico”. Seja como for, a perspectiva cosmológica neoplatônica (Apuleio, Porfírio)
44
permitia pensar espécies diferentes de “animal racional”, e não somente uma única
espécie, ou seja, o homem.
Com “animal racional” abre-se, pois, uma totalidade nova. Aqui a vitalidade ou
animalidade, o ser-alma ou vida, é regida pela razão, melhor, pelo logos. Nós estamos,
pois, no domínio chamado “logikón”, pois é regido pelo logos. É a potência do légein,
ou seja, a capacidade intelectiva, que inclui as seguintes capacidades: apreender o ente
enquanto ente, isto é, apreender o ser; apreender a inteligibilidade do ente, os princípios
e as verdades primeiras do todo do ente; universalizar, isto é, recolher na unidade do
conceito a multiplicidade dos indivíduos, transcendendo, assim, a imediatez do sensível;
receber em si mesmo, ao modo intelectivo, todas as formas de ser; poder conhecer todos
os entes. Abre-se, assim, toda a vastidão, a profundidade e a originariedade do ser.
45
retraimento. No entanto, para o homem a razão é, tanto quanto marca de sua finitude,
marca também de sua transcendência. Pois por ela ele libera-se da imediatez do sensível
e projeta-se no espaço de liberdade do inteligível. Por isso, ao homem não é dado ter
somente um ambiente, mas também um mundo. Com a razão se abre também o espaço
da liberdade, tanto no sentido negativo de desvinculação do ambiente, quanto no sentido
positivo de autodeterminação no seu mundo. A razão concede ao homem voltar-se para
o ser, para a verdade e para o bem. Para a verdade, no seu comportamento teorético; para
o bem, no seu comportamento prático. Ao arbítrio da sua razão é concedida, pois, a
condução da vida do homem. No homem, com a razão e a liberdade, aparece a dimensão
do espírito na ordem da substância. Emerge, pois, não somente a consciência do mundo,
mas também a autoconsciência. Esta, por sua vez, se caracteriza pela capacidade de
reflexão. O homem, de fato, percebe-se numa corporeidade vivente e sensível,
apreendendo o próprio corpo não como objeto, mas como dimensão de si mesmo; sente
e sente o próprio sentir, conhece e conhece o próprio conhecer, percebe-se inteligindo e
sentindo e, neste perceber-se, é presente a si mesmo de modo imediato; enfim, percebe-
se como uma vida que tem o poder de, pela sua reflexão, possuir-se e se autodeterminar.
Daí a capacidade de criação do homem, a projeção de seu espírito no mundo, como
técnica, arte, ciência, filosofia, religião.
46
racional se torna, enfim, intuição intelectual. E, na intuição intelectual, o inteligível
finalmente se revela no vigor de sua vigência. Vislumbramos, assim, a ordem do
inteligível nas palavras fundamentais, que nos remetem para além de todas as categorias:
Alma, Intelecto, Uno/Bem.
IV.3.8. O indivíduo
Nos âmbitos das espécies se dava, sempre de novo, uma cisão ou divisão entre
opostos, introduzindo, assim, a diferença específica, que era uma diferença não acidental,
mas essencial. Já os indivíduos de uma única espécie não se diferem essencialmente uns
dos outros, mas sim acidentalmente, melhor, numericamente, e, melhor ainda,
qualitativamente. Isto quer dizer que a unicidade do indivíduo não o exclui da comunhão
ontológica com os demais indivíduos de sua espécie, pois, embora ele seja numericamente
um em si mesmo, é uno por espécie com os outros que compartilham da mesma e comum
47
essência. Por um lado, platonicamente, pode-se dizer que o indivíduo se mostra em sua
individualidade como uma convergência única e irrepetível de “acidentes”, isto é, de
propriedades e características, como um “caso único”. Contudo, Aristóteles deu maior
peso ontológico ao indivíduo, ao tomá-lo não apenas como uma unidade acidental, e sim
como uma unidade substancial, ao designá-lo como “substância primeira” (ousía prôtê).
Assim, o indivíduo aparece como o sujeito único de manifestações ou propriedades
acidentais que existem em outros, mas que, numa tal convergência, se encontra somente
nele. Além disso, aristotelicamente, o ser individual é dito substância primeira também
do ponto de vista lógico, enquanto é imediatamente e por excelência o sujeito
(hypokeímenon, suppositum, subiectum) de que se afirmam ou se negam diversos
predicados, e que não é ele mesmo predicado de nenhum sujeito.
48
de ser, ordenados hierarquicamente, onde o que o ser se diz em modos cada vez mais
originários, à medida que subimos do corpo ao vivente, do vivente ao animal, do animal
ao homem, do homem à Natureza, da Natureza à Alma universal, da Alma universal ao
Intelecto arquetípico e do Intelecto ao Uno/Bem. A árvore de Porfírio, de fato, é uma
elevação, uma pura elevação de caráter onto-henológico.
Jâmblico deu ao neoplatonismo uma direção específica, que foi continuada depois
por Proclo. Na busca da salvação do homem e da unificação com o Uno absoluto, não
seguiu simplesmente pela via de Plotino, que é a da contemplação, mas propôs a arte
mágico-teúrgica, que para Porfírio era acidental 20, como algo de essencial e elevou os
Oráculos Caldeus como livro sagrado, à semelhança da Torah para os judeus e da Bíblia
para os cristãos.
20
Cfr. Agostinho, A Cidade de Deus, l. X, c. 9.
49
consideravelmente as hipóstases, constituindo uma espécie de politeísmo especulativo.
Mas na passagem do século III para o IV já não bastava o caminho especulativo da
filosofia. Era preciso dar lugar também à teurgia. Assim como os cristãos, Jâmblico estava
convencido de que o homem sozinho, unicamente com suas forças, não era capaz de
chegar à salvação ou à união (Hénosis) com o Divino. Assim como o cristianismo
postulou a força da graça como redentora e santificadora do homem, também Jâmblico
compreendia que, na arte mágico-teúrgica, não se tratava propriamente de o homem se
elevar até o Divino, mas de a potência divina descer aos homens, libertando-os dos
vínculos do mundo e lhes reconduzindo às hipóstases divinas. Vemos, assim, como
Jâmblico e a sua escola rivalizava com o cristianismo. Por outro lado, a invés de Plotino
e de Porfírio, compreendia que a teurgia se encontrava acima da especulação filosófica,
pois atingia forças supra-racionais, símbolos e ritos que punham o homem em contato
direto com o Uno, que está além de todo o pensamento.
Siriano sucedeu a Plutarco na direção da escola. Dele nos chegou uma parcela de
seus comentários à Metafísica de Aristóteles. Tinha o projeto de também comentar,
interpretando em chave alegórica e como textos sagrados, os poemas de Homero, de
50
Orfeu e os Oráculos Caldeus. O principal discípulo de Siriano foi Proclo, que o sucedeu
na direção da escola, provavelmente após a direção de Donino. Chamados com o título
de “diádocos” (Diadokói: sucessores), os demais diretores da escola de Atenas foram:
Marino de Neápolis – um hebreu convertido ao paganismo –, Isidoro, Damáscio e o
último, que foi Simplício. Com Damáscio, o Uno se perde no horizonte de sua
transcendência e inefabilidade e a multiplicação das hipóstases metafísicas chega a seu
cúmulo. Do Uno, ele diz: “não precisa chamá-lo de Princípio, nem causador, nem
primeiro, nem anterior a tudo, nem além de tudo, nem mesmo se lhe deve chamar Tudo;
não é possível dar-lhe qualquer nome que seja e não é possível concebê-lo, nem pensá-
lo” (De Principiis 2). O último diádoco, porém, foi Simplício, que concentrou seus
interesses nos comentários de Aristóteles. Destes, chegaram até nós os comentários às
Categorias, à Física, ao Do Céu e ao Da Alma.
“Em menos de dois anos (Proclo) leu com ele (Siriano) todas as obras
de Aristóteles, de lógica, de ética, de política, de física e a ciência
teológica, que é superior a estas. Quando foi suficientemente instruído
nestas, consideradas como mistérios preliminares e de ordem inferior,
o conduziu à doutrina mistagógica de Platão, por ordem e sem que desse
um passo mais largo do que as pernas, segundo o dito do oráculo; o fez
participar, com os olhos puros da alma e a vista incontaminada do
intelecto, às iniciações de natureza divina contidas nas obras
platônicas” (Vida de Proclo, 13).
51
na razão, de modo figurativo na imaginação, de modo passivo nos sentidos externos.
Também a imaginação onírica é importante: alguns sonhos são também teofanias.
Plotino afirmava que o Uno era liberdade absoluta (Enéadas VI 8,12). É liberdade
absoluta enquanto é auto-criador, enquanto se auto-põem e, ao mesmo tempo, se
permanece junto de sua plenitude. Em segundo lugar, é liberdade absoluta enquanto
criador de liberdade. Todas as coisas, de fato, somente são livres à medida que aspiram e
querem o Bem, se movem em sua busca e dele participam. Do mesmo modo, para Proclo,
o Uno é o fundamento de todo o fundamento, o porquê de todo o porquê, e tem em si
mesmo, não em outro, a própria razão de ser. O Uno é vida transbordante, que tudo
produz. Contudo, a produção não empobrece o produtor, porque ele permanece junto de
si mesmo, inalterado em sua identidade transcendente. Na Teologia Platônica ele explica:
52
O perfeito deseja gerar, e quem alcançou a própria plenitude procura
fazer participantes da sua própria plenitude também os outros. Por uma
razão ainda mais forte, portanto, aquilo que reúne em uma só unidade
todas as perfeições e que não é um bem particular, mas é o Bem em si
mesmo e aquilo que é superabundante, se se pode dizer deste modo,
será gerador de todas as realidades e lhes fará subsistir: porque
transcende todas as realidades, produz a todas, e porque é
imparticipável, gera todas as realidades, de igual maneira, seja as
realidades primeiras, seja as últimas realidades (Teologia Platônica II,
7).
Como Plotino, também Proclo entende o universo como uma ordem hierárquica.
Porém, ele tem a tendência a multiplicar as hipóstases, introduzindo intermediários por
toda a parte, numa espécie de “horror vacui” metafísico, que parecia garantir a densidade
substancial da realidade: “necessário é que a processão dos entes seja sem interrupções
e que nada possa sair e se tornar vazio (e isto, seja no reino corpóreo, seja no reino dos
incorpóreos)” (Teologia Platônica, III 2).
53
PRINCÍPIOS PRIMEIROS
UNO DÍADE
IDÉIAS E DEMIURGO
ENTES MATEMÁTICOS
objetos da matemática objetos da geometria plana objetos da estereometria objetos da astronomia pura objetos da musicologia
ENTES PSÍQUICOS
ENTES FÍSICOS
MATÉRIA
UNO (Hén)
HÉNADES
INTELECTO
ALMA
Almas divinas Almas participantes perenemente da inteligência Almas participantes temporariamente da inteligência
MUNDO CORPÓREO
MATÉRIA
54
Platão punha ao vértice do real, no plano dos princípios, o Uno e a Díade. Proclo,
por sua vez, coloca o Uno. Contudo, logo após o Uno, que é princípio sem princípio, vêm
os demais princípios primeiros, que são, de início, a Díade Finito-Infinito. Como, porém,
a Díade deve poder ser causa das demais realidades, e as realidades todas são um misto
de infinito e finito, então a Díade se torna Tríade: Finito-Infinito-Misto. O Uno está além
de toda determinação e de toda indeterminação. E, no entanto, ele é o gerador do
determinado (finito) e do indeterminado (infinito). O finito é causa de todas as finitudes,
e o infinito é causa de todas as infinitudes. Todo ente, porém, é um misto de determinação
e indeterminação, de finito e infinito. No mundo corpóreo, este misto se mostra como a
substância composta de forma (elemento determinante) e matéria (elemento
indeterminado).
O Ser é o Uno que é. O Intelecto é o Uno que pensa. A Vida é o Uno que vive. O
ser é o primeiro participante do Uno, pois é mais unitário do que a Vida e a Inteligência.
É unidade plural e pluralidade una, pois é composto de finito e infinito, determinado e
55
indeterminado. Vida é Ser, pois só pode viver o que é. O Intelecto é Ser e Vida, pois só
pode pensar o que é e vive. O ser da Vida é viver. O ser e o viver do Intelecto é pensar.
O Ser é o maximamente inteligível, o inteligível puro, e, por isso, é o que preenche o
Intelecto. Por sua vez, o Intelecto é Ser compreendo Ser. O Intelecto pensa o Ser e este
pensar é sua vida. Com efeito, quando se trata do Intelecto originário, pensar não é
representar o que já é, mas é fazer ser: é produzir, criar, gerar. Enquanto inteligível puro,
o Ser é a fonte de todas as idéias pensadas. Por outro lado, o Intelecto primeiro, em sua
potência pensante-criadora, é fonte de todos os demais intelectos: divinos e cósmicos.
56
outros seres. A alma se reveste de um corpo, que lhe funciona como veículo (óchêma).
Trata-se de um corpo que Proclo afirma ser imaterial, eterno, não gerado e imortal.
Quando a alma desce no mundo sensível, toma um revestimento material. Há a Alma do
Mundo, princípio animador universal, para a qual é corpo o universo inteiro. Quanto às
almas particulares, há almas que se revestem de um corpo celeste e impassível: as almas
dos astros. O corpo astral é, ao mesmo tempo, material e espiritual. É o veículo luminoso
de deuses. Este tipo de alma é intelectivo e também sensitivo, porém, sua sensibilidade é
de tipo próprio. São, com efeito, sensíveis às invocações teúrgicas. Há, depois, as almas
dos seres terrenos. Estas tomam um corpo terrestre, passível e provisório, que impõe à
alma uma individualidade e um período limitado de tempo.
Proclo trata dos níveis psíquicos numa metafísica da alma de cunho religioso. A
alma traz em si a totalidade das ordens e elementos do mundo. Nela está, pois, a
“plenitude de razões” (lógon pléroma). Ela é o “meio e centro de todos os entes” (In
Alcib. 320, 19-20). Os níveis da alma têm como correlatos as ordens do universo. No
nível mais elevado se encontra “o uno da alma” (tò hen tes psychés: In Tim., I, 211, 25).
Depois, vem a intuição inteligível (nóesis); em seguida vem a razão discursiva (diánoia),
e, por fim, a imaginação (phantasía) e a percepção (aísthesis).
O uno da alma é também chamado de “flor (ánthos) de nossa alma inteira”, “centro
de nossa essência total” (Or. Chald., 210 e 211,6), “rastro oculto do Uno”, “a semente do
Uno” (De decem, 64, 10, e 65, 3): “pois há em nós alguma semente desse não ser” (kaì
gàr em hemin eni ti spérma ekeínou tou mè óntos) (In Parm., VI, 1082, 10). É, pois,
comunicação e comunhão germinal da alma com o Uno. Ele pele alcançar o Inefável pelo
Inefável (tw arréto tò arreton, Th. Pl. I, 3). A teologia negativa não se constitui de uma
mera negação (apóphasis), mas de uma negação que é abnegação e elevação
(hiperapóphasis: In Parm. VII, 1172). É uma negação que não está no mesmo nível da
afirmação, mas em nível superior (supranegação). Ela suprime a um só tempo a afirmação
e a negação antitéticas dos atributos divinos. O que importa é, para além de toda afirmação
e negação, abrir-se à união (hénosis) mística com Inefável. Enquanto princípio, ele é dito
“Uno”; enquanto fim, é dito “Bem”. Salvaguardada, porém, a transcendência do Uno,
acolhem-se suas primeiras fulgurações: as unidades (hénades). Emergem da simplicidade
supranegativa do Uno. À medida que dele emanam, formam uma série, os números (in
Parm., VI, 1049). O uno de nossa alma é uma modalização da hênade psíquica.
57
A intuição intelectiva (nóesis). Vem depois do “Uno da alma”. Este se une de
modo silencioso com o Uno inefável. Aquela é pensamento e, enquanto tal, é finita. Do
Uno se irradiam múltiplas determinações, que formam o mundo inteligível: o limite ou
determinante (péras), o ilimitado ou indeterminado (ápeiron), o ser como presença
constante (ousía), a vida (zoé), o pensamento (nóesis). São gêneros supremos. Gêneros
não são abstrações, mas forças dinâmicas de geração. Os gêneros são “geradores” (géne
gónima: in Tim., II, 151, 22). O desdobrar destas gerações é contínuo (synechés). O
desdobramento segue uma lei cíclica de três funções fundamentais: a manência (moné) –
o contato do engendrado com o engendrador; a processão (próhodos), em que o gerado
aparece em sua diferença desde o fundo da identidade com o gerador; a conversão
(epistrophé), em que a diferença do principiado é integrada de novo na identidade do
princípio. O que está condensado no princípio se desdobra nas gerações. O Inefável em
sua identidade se desdobra, se explica, no que dele emana. O Uno está todo em cada coisa.
Cada coisa é singular, mas é, em virtude desta presença e vigência do Uno em cada coisa,
universal. Nicolau de Cusa, no século XV, irá falar de “complicatio” (complicação, isto
é, concentração de tudo no Um) e de “explicatio” (desdobramento do Um em todas as
coisas). Daí virá a monadologia de Leibniz.
58
modos de vida. Mas tudo o que ela exclui está de certa maneira vinculada a ela também.
Cf. o mito do “Entre” da República de Platão (in Remp. II, 96-359). A “metensomatose”
se justifica com base nisso.
60
• força e vigor físico
• beleza e harmonia do corpo
• saúde e bom funcionamento fisiológico do organismo
• boa memória e facilidade de aprender
• grandeza de alma, fineza e graciosidade nos modos
VIRTUDES
• vínculos afetivos à verdade, à justiça, à temperança e à coragem
NATURAIS • a fecundidade da inteligência
• visam à purificação da alma como condição para a sua unificação com o divino
• purificações rituais lustrais, composição de hinos religiosos e participação em festas sagradas
VIRTUDES
CATÁRTICAS
• sabedoria:
• sabedoria intelectual adquirida pela visão intuitiva das idéias da mente divina
• sabedoria meta-racional adquirida pelo transe - êxtase báquico
VIRTUDE • adesão interior e acolhimento do deus em si mesmo
CONTEMPLATIVA
• ritos que conduzem à conjunção com o divino àqueles que foram purificados e iluminados.
VIRTUDES
TEÚRGICAS
A meta última de toda a elevação da alma é a união (hénosis) com o Divino. Esta
se dá no máximo recolhimento e na concentração da alma em seu centro.
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Funcionavam como “sýmbolon”, ou seja, como algo que une o inteligível e o sensível, o
imaterial e o material, o divino e o terreno. A divindade podia inserir temporariamente a
sua presença em um “receptáculo” (hypodoché) inanimado, como uma estátua, por
exemplo. Ou então podia se encarnar temporariamente em um ser humano, que lhe servia
de suporte (docheús). Uma pessoa em transe mediúnico podia ser receptáculo de um deus,
de um demônio ou até mesmo da alma de um falecido.
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