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O PENSAMENTO NO NEOPLATONISMO.

Prof. Marcos Aurélio Fernandes

Na antiguidade como na idade média, não há um platonismo. Há vários. Há o


platonismo antigo, da Academia, seja antiga, mais próxima do legado de Platão, seja da
nova, mais associada ao ceticismo 1. Há o mesoplatonismo 2. Há o neoplatonismo. Este
oferece o principal legado do pensamento platônico da antiguidade para a Idade Média,
seja latina, seja bizantina, seja árabe. A escola neoplatônica, fundada por Plotino no
século III, era uma interpretação original, organizada a partir do e em torno do diálogo
“Parmênides”, de Platão. Sua síntese abrange também elementos aristotélicos e estoicos.

1
O espírito cético já tinha raízes profundas na antiguidade. Remontava aos sofistas, à escola megárica de
Euclides e à escola cínica de Antístenes, marcada pelo seu nominalismo, que depois foi aproveitado pelo
estoicismo. O velho ceticismo, porém, encontrou sua expressão maior em Pirro de Elis (c. 360 – 270).
Pirro, que, como Sócrates, nada escreveu, levou vida austera e compreendeu o ceticismo como via que
conduz à ataraxia: a imperturbabilidade do ânimo. O ceticismo foi penetrando, aos poucos, na própria
escola de Platão, a academia. De fato, desde Arcesilau (315-240) a academia platônica se voltara
decididamente para a orientação cética (média academia). Ele ensinara que o critério para a vida prática e
o único móvel da vontade não é a verdade, mas é unicamente a probabilidade. Cem anos mais tarde,
Carnéades fundou a terceira ou nova academia, radicalizando e aperfeiçoando o probabilismo de Arcesilau.
Depois de sua participação na embaixada dos filósofos a Roma influiu no pensamento de Cícero e de Sexto
Empírico. Para ele, o conhecimento é um processo pelo qual representações prováveis corroboram outras
representações prováveis. Certezas, nós nunca alcançamos. Negou que se pudesse, partindo do mundo,
chegar à conclusão da existência de Deus, devido ao mal que existe no mundo. O ceticismo acadêmico,
portanto, negou a possibilidade de um conhecimento apodítico, evidente e definitivo, de algo verdadeiro,
apenas admitiu a investigação infinita e a possibilidade de um conhecimento apenas provável. Seu método
consistia em reduzir as opiniões a um determinado número de possibilidades e ponderar sua probabilidade.
O ceticismo pirrônico, por sua vez, foi retomado por Enesidemo de Cnossos, no século I d.C, e por Sexto
Empírico, no último quartel do século II d. C. Como médico, negou que se pudesse conhecer a etiologia
das enfermidades e se ateve única e exclusivamente ao conhecimento adquirido por meios empíricos (daí
o seu nome). Procurou refutar, passo a passo, a lógica, a física e a ética e mostrar a inconsistência das
mathémata, ou seja, os conhecimentos das artes liberais: gramática, retórica, aritmética, geometria,
astronomia e música.
2
Este termo é usado por alguns historiadores da filosofia para designar o platonismo intermediário entre o
platonismo cético dos acadêmicos e o neoplatonismo, ou seja, entre Antíoco de Ascalão (séc. I) e Plotino
(séc. III). São contados como filósofos mesoplatônicos: Eudoro de Alexandria, Moderato de Cádis,
Numênio de Apamea, Nicômaco de Gérasa, Plutarco. Este mesoplatonismo rejeitava o ceticismo dos
acadêmicos e era eclético: aberto às influências do estoicismo e dos pitagóricos. Procurava adaptar o
pensamento platônico à linguagem da filosofia aristotélica. Por outro lado, antecipa, em relação ao
neoplatonismo, a característica do monismo (o Um como princípio de tudo) em oposição ao dualismo
platônico. Entretanto, não distingue o Ser do Um, como faz Plotino. Os filósofos mesoplatônicos tendem a
interpretar a doutrina de Platão como uma revelação divina e consideram como fim prático da filosofia o
tornar-se semelhante a Deus. A realidade provém do Um pelo três (tríades) e se estrutura hierarquicamente.

1
Os medievais latinos conheciam de Platão apenas a primeira parte do “Timeu” (na
tradução e comentário de Calcídio) e, além disso, o “Menon” e o “Fedon”. Os outros
diálogos platônicos e as “Enéadas”, de Plotino, ficaram desconhecidos. De Proclo eles
conhecem algumas obras (Elementatio theologica, De decem dubitationibus, De
providentia et fato, De malorum subsistientia; o comentário ao “Parmênides” foi
traduzido por Guilherme de Moerbecke na segunda metade do século XIII; A
“Elementatio physica”, embora traduzida na segunda metade do século XII, ficará
ignorada até o ano de 1300) 3.

Vejamos mais de perto uma história das fontes do platonismo na Idade Média
latina agora.

I. FONTES DO PLATONISMO MEDIEVAL

Os medievais latinos conhecem o platonismo sobretudo por fontes indiretas. Os


grandes veiculadores e transmissores do platonismo para os medievais latinos são os
Padres da Igreja, que veremos depois. As fontes diretas do platonismo na idade média
não são muito numerosas. Os latinos conheciam, de fato, apenas alguns diálogos
platônicos e algumas obras neoplatônicas de Proclo 4. Não conheciam as Enéadas de
Plotino.

De Platão os medievais conheciam muita pouca coisa. Até o século XI o


conhecimento do platonismo se dá especialmente pela mediação dos Padres da Igreja.
Somente no século XII é que conheceram, pela tradução de Henrique Aristipo, o Menon
e o Fédon. Mas no século XI já conheceram o Timeu na tradução de Cícero e um

3
De Mottoni, Barbara Faes. Il Platonismo medioevale. Torino: Loescher, 1979.
4
O último grande nome do Neoplatonismo foi Proclo. Nasceu em Constantinopla, em 410, e foi educado
em Xanthos na Lícia (Ásia Menor). Em Alexandria, foi discípulo de Olimpiodoro, filósofo peripatético e
alquimista. Em 430, porém, quando morria Agostinho, Proclo chegava a Atenas, onde escutou Plutarco e
Siriano. Foi diádoco depois de Donino, dirigindo a escola de Atenas até à sua morte, em 485. Estudou as
obras de Aristóteles com Siriano. Comentou várias obras de Platão: o Crátilo, a República, o Parmênides,
o Timeu. O seu biógrafo Marino, em Vida de Proclo (n. 13), relata o processo de educação de Proclo junto
a Marino como uma verdadeira mistagogia. “Em menos de dois anos (Proclo) leu com ele (Siriano) todas
as obras de Aristóteles, de lógica, de ética, de política, de física e a ciência teológica, que é superior a estas.
Quando foi suficientemente instruído nestas, consideradas como mistérios preliminares e de ordem inferior,
o conduziu à doutrina mistagógica de Platão, por ordem e sem que desse um passo mais largo do que as
pernas, segundo o dito do oráculo; o fez participar, com os olhos puros da alma e a vista incontaminada do
intelecto, às iniciações de natureza divina contidas nas obras platônicas (PROCLO, 1999, p. 296-297)”.

2
fragmento traduzido por Calcídio, que, além de traduzir o texto também o comentou 5. É
o contato dos medievais com um Platão “pagão”, não cristianizado. Essa tradução e o
comentário que a acompanha circulou mais do que a versão de Cícero. A tradução de
Calcídio dava acesso apenas à primeira parte do Timeu, que trata da origem e também da
ordem do mundo. “A concepção do cosmos como ordem e beleza, que, mesmo na
multiplicidade, e para além das gerações particulares, se apresenta como uma totalidade
exemplada sobre um modelo inteligível por obra do demiurgo, a alma do mundo como
princípio vital, a matéria como substrato da organização do cosmos, o homem como
centro do universo, que reúne todos os seus elementos para dominá-los com a sua
inteligência (microcosmos), são os temas platônicos mais significativos que, através de
Calcídio, circulam sobretudo no século XII” 6. Outros temas platônicos afins vêm do
Comentário ao “Somnium Scipionis” de Macróbio (século V) 7. Por meio deste
comentário, escrito por um autor de provável origem africana e que teria sido importante
no mundo político romano em sua época, passou à idade média as considerações
pitagóricas sobre as propriedades dos números e sobre a música das esferas, e os temas
platônicos a respeito da alma: definições da alma, doutrina sobre a sua imortalidade e
espiritualidade (incorporeidade) 8. Como fontes do platonismo acrescentem-se também o

5
Calcídio: patrístico e filósofo do período pós-nissênico da escola neoplatônica do Ocidente Latino e que
viveu em Roma, onde também se destacaram Ambrósio Macróbio, Mário Victorino e Severino Boécio,
tornou-se no início da Idade Média no Ocidente a principal fonte para conhecer Platão e o estoicismo.
6
De Mottoni, Barbara Faes. Il platonismo medioevale. Torino: Loescher Ed., 1979, p. 14.
7
O “Sonho de Cipião” é o sexto livro do “De re publica” de Cícero (sexto livro) (54-51 a. C.). Escrito de
ficção, o “Sonho de Cipião” descreve uma visão onírica que o general romano Cipião Emiliano (Scipio
Aemilianus) tem antes de comandar a destruição de Cartago em 146 a.C. Cipião, o jovem, é visitado pelo
seu avô (adotivo) Públio Cornélio Cipião, o Africano Maior, herói da segunda guerra púnica. Cipião, o
jovem, fora trazido à filosofia por Panécio de Rodes (185-110 a. C.), o filósofo grego que mais influência
conseguiu sobre os romanos e que uniu elementos platônicos e aristotélicos à doutrina do Pórtico (stoa),
que remontava a Zenão de Citium. No sonho narrado por Cícero, Cipião o Jovem tem o seu futuro previsto:
ele conquistará Cartago e a Numância, colocará a república romana em ordem, e, como recompensa pelos
seus méritos como bom homem público, receberia como prêmio, na imortalidade, a vida verdadeira,
fazendo o seu retorno ao lar eterno. Em sua visão, então, Cipião vê a pequenez do que é terreno e temporal.
A terra e o império romano são quase nada, em comparação com a grandeza e a beleza do céu. Cipião faz,
então, uma viagem pelas esferas do universo, conhecendo suas músicas e também tem acesso, pelo seu
sonho, ao conhecimento sobre o destino das almas. O texto de Cícero guarda paralelos com textos de Platão,
especialmente com o mito de Er, narrado no livro X da Politeia (República), em que aparece um relato de
alguém que teria retornado do Hades. O texto de Cícero faz alusões à felicidade aristotélica e ao bem
platônico, além de paralelismos com obras de Platão (Fédon [109b], Epínomis [987b], Política [616b,614c-
615b], Fedro [246e, 245c-247e], Timeu [33b-34a, 48a, 42b-c]). Não há dúvidas
que Cícero quis concluir a sua obra à semelhança do livro X (608c-621b) da Política de Platão. No tocante
às concepções cosmológicas, o texto remete aos ensinamentos de Pitágoras. No tocante à concepção da
virtude remete às concepções estoicas. Há uma tradução do Sonho de Cipião, feita pelo prof. Ricardo da
Costa, disponível na internet: http://www.hottopos.com/notand22/Ricardo.pdf.
8
Texto latino disponível na internet:
http://la.wikisource.org/w/index.php?title=Specialis:Book&bookcmd=download&collection_id=4bce0b8
2b0b61b69cfcdb2ac14c151394ec3665f&writer=rdf2latex&return_to=Commentariorum+in+Somnium+S
cipionis .

3
texto do africano de Madaura (atual Argélia), que veio a habitar em Cartago e a estudar
em Atenas, Lúcio Apuleio (125 – 180 d. C.), intitulado “De Dogmate Platonis” 9. Através
de Apuleio o platonismo foi transmitido junto com a tradição hermética 10. Na passagem
da antiguidade para o medievo, um outro africano de Madaura, Marciano Capella. Entre
410 e 439 este retórico e escritor nascido no norte da África (Madaura) escreveu a obra

9
A obra mais famosa de Apuleio é uma novela alegórica chamada “Metamorfosis” ou “O Asno de Ouro”,
que contém, entre outras coisas, o mito de “Eros e Psyché”. Apuleio une concepções neopitagóricas com
neoplatônicas e com concepções das religiões gregas dos mistérios. Agostinho critica o seu pensamento a
respeito dos demônios no livro VIII da Cidade de Deus (cap. XVI).
10
Hermes corresponde, no Egito, a Toth, e no mundo romano, a Mercurius. Aliás, no Egito, no período
helenístico, surgem os escritos “herméticos” dos neoplatônicos: o corpus de Hermes Trimegistos (três vezes
grande). Hermes é o mensageiro dos deuses. Ele é o enviado, que traz os anúncios de Zeus. Revela as suas
decisões. Ele acompanha os mortais em seu destino e lhes está próximo em suas aflições. Homero o chamou
de “o deu mais amigo dos homens”. Como mensageiro, está sempre a caminho. Por isso, traz sapatos alados,
chapéu de peregrino (às vezes também alado), e o bastão de ouro (krisorrapis), onde se vêem duas serpentes
entrelaçadas. Ele media entre a esfera dos divinos e a esfera dos mortais. É o doador da bênção, o que traz
salvação (eriunios), o que protege e livra do perigo. É o protetor dos mensageiros, dos intérpretes, tradutores
e de todos os que exercem funções de mediação (o verbo hermeneúein, de onde nos vem o adjetivo
substantivado “hermenêutica). Hermes era o padroeiro dos ladrões, dos comerciantes e dos inventores.
Tanto o roubar, quanto o comercializar, como também o inventar falam da capacidade “intuitiva”, ou seja,
da capacidade de descobrir o possível e suas possíveis irrupções no seio do real e suas realizações. Hermes
é também o deus das invenções e descobertas. A palavra alada, o pensamento inesperado e oportuno são
dons de Hermes. Ele não somente anuncia os desígnios do reino celeste, mas também traz os anúncios do
reino subterrâneo ou infernal, o Hades – Hermes Chtónios. Ele acompanha as almas por ocasião de sua
morte, quando estas migram para a região das trevas. É o que concede uma boa e doce morte (Hermes
Psycopompos). Com outras palavras, ele possibilita aos mortais suportar serenamente a morte. Enquanto
tal, ele é o anunciador do inesperado e do imperscrutável, o revelador do que há de mais hermético, de mais
oculto (léthe), isto é, a morte. Hermes revela a morte na vida e a vida na morte. Ele põe em contato com a
escuridão luminosa e com a luz obscura do abismo em que se planta a vida humana. O mito deixa ser a
ressonância de seu destino, no entoar de seu nascimento e proveniência. Ele é o filho do submundo. Nasce
de Maia, numa caverna. Está destinado a roubar, sempre de novo, as posses e conquistas de Apolo, o deus
do mundo diurno e da claridade solar. É o inventor da lira, dom que alegra a Apolo e, através de Apolo e
dos citaredos ou rapsodos, alegra os mortais. Está, pois, na fonte da poesia lírica. Por sua vez, dom de
Apolo a Hermes é o seu bastão mágico, o kerykeion, o bastão das serpentes entrelaçadas. Este bastão,
recorda as tochas das cavernas e, assim, o dom do fogo. Por isso, remete também à figura de Prometeu.
Prometeu é aquele titã que fez o homem e que roubou, para ele, o fogo do céu. Ele é, também, amigo dos
homens. De Prometeu vêm as dádivas das artes, que facilitam e alegram a vida dos mortais. Em Hermes,
não somente se concentram as experiências primordiais dos homens das cavernas, que descobrem o fogo,
mas também as dos pastores, que celebram a fertilidade dos rebanhos e, através da fertilidade dos rebanhos,
a própria experiência humana da fecundidade, que vem sempre acompanhada do erótico (Hermes era muitas
vezes representado como um pastor; e, por outro lado, muitas vezes apresenta-se com o falo ereto: Hermes
Itifálico). Com efeito, Eros também é alado e traz um bastão. Ainda uma ressonância de Hermes é a figura
de Dionísio (Diônysos) e de Pan. No século VI a.C. os mistérios órficos falam de um Dionísio Zagreu. Este
Dionísio seria filho de Zeus e Perséfone. Fora esquartejado e devorado pelos titãs, instigados por Hera,
ciumenta de Zeus. Atena, no entanto, salvou-lhe o coração e levou-o a Zeus. Zeus engoliu o coração de
Dionísio Zagreu, que veio a renascer, de Zeus, mais tarde, como o filho de Semele. É o deus da floresta,
deus sofredor, que morre e ressuscita, deus do vinho, que alivia as aflições dos mortais, alegra-os e inspira-
os para a música e a poesia. Traz também ele um bastão, enrolado com ramos de parreira. Às vezes era
concebido como um bode. O bode era sacrificado em seus cultos. Dos festivais atenienses em honra de
Dionísio (Grandes Dionísias), celebrados, em geral, no fim do inverno e no início da primavera, surgiram
o ditirambo, a tragédia e a comédia. Pan era o Deus dos rebanhos e pastores. Às vezes descrito como filho
de Hermes. Representado parcialmente com o corpo de bode. Amante das ninfas. Inventor da gaita de sete
canudos (Syrinx). Despertava terrores súbitos nos que se movimentação nas florestas e lugares desertos
(pânico). Os romanos o identificaram com o Fauno.

4
De nuptiis Philologiae et Mercurii (Das núpcias de Filologia e Mercúrio), em nove livros.
Trata-se de uma enciclopédia alegórica, escrita e prosa e verso, sobre as “artes liberales”
(artes livres ou liberais). Nesta obra, o conhecimento delas é descrito alegoricamente,
como uma ascensão da mente humana do reino sensível ao inteligível. Na alegoria de
Marciano Capella, o deus Mercúrio (Hermes) pretende se casar. Pensa em Sophia, em
Mantica ou em Psiché, mas todas estas são descartadas por diversas razões. Então o seu
meio-irmão Apolo 11 o aconselha a se casar com a mortal Filologia. Júpiter, o deus
supremo do céu, aceita esta união apenas se Filologia for elevada ao céu e divinizada
(apoteosis). O livro II trata desta ascensão, que deverá se dar através de sete esferas
celestes. O livro III trata da Gramática (literatura), o IV da Dialética e o V da Retórica (as
três artes da linguagem que formarão o trivium dos medievais). No Livro VI se fala da
Geometria, no VII da Aritmética, no VIII da Astronomia e no IX da Harmonia (as quatro
artes matemáticas que Boécio chamou de quadrivium). Esta obra tornou-se um manual
nas escolas medievais e foi frequentemente comentada na Idade Média, como por
exemplo, por Remígio de Auxerre. No século XI, Notker Labeo o traduziu para o alemão.

No século XI, quando tiveram contato com o Timeu de Platão, os latinos estavam
divididos entre dialéticos e antidialéticos. Os antidialéticos acusavam os dialéticos de
abusarem da razão no uso da interpretação da revelação cristã e dos dogmas da Igreja.
Enquanto os dialéticos amavam o estudo de textos pagãos, os antidialéticos o
abominavam. Há um opúsculo antiplatônico dirigido por Manegoldo contra Wolfemo que
ilustra esta abominação. “Toda tentativa de explicação puramente racional do mundo,
como é aquela da física pagã, contida particularmente nas páginas do Timeu, justamente
porque prescinde do ensinamento bíblico, comporta, para Manegoldo, erros abomináveis
que ele ilustra e condena: entre estes a doutrina da metempsicose, sustentada por
Pitágoras, e a do monopsiquismo universal” 12.

11
Apolo é chamado o Febo (Phoibos): o luminoso, o puro, o sacro. Ele purifica os que dele se aproximam.
Em Delfos estava o templo de Apolo, ao qual acorriam os peregrinos, para se purificarem e ouvirem os
oráculos da pitonisa. Apresenta-se nu, ou melhor, des-velado. Onde se dá o des-velamento, ali se encontra
Apolo. Sua flecha mostra o raio da luz. É o que concede juventude. Ele é o vencedor das forças ctônicas: é
quem mata o dragão Píton (Apollon Pythios). É o deus do auto-conhecimento (gnôthi seautón). O deus dos
oráculos, que inspira a pitonisa. O templo de Apolo celebrava a claridade da verdade do Ser, a partir da
qual o homem grego se media com o Céu e a Terra, com o divino e com sua própria mortalidade. O seu
lugar era Delfos. Para os gregos, Delfos era o “umbigo da Terra”. Ali a deusa Γη - gué (Geia, Gaia) pariu
o povo grego para o seu destino. Em Delfos, o templo abre o espaço ao seu redor, fazendo aparecer na
claridade o Céu azul e a Terra com seu vale e suas montanhas escarpadas.
12
De Mottoni, Barbara Faes. Il platonismo medioevale. Torino: Loescher Ed., 1979, p. 19.

5
Entretanto, o platonismo medieval atingiu sua idade áurea no século XII. No
ambiente da Escola de Chartres foi vivo o interesse pela leitura de textos clássicos
romanos – de Cícero, Vergílio, Ovídio, Plínio –, mas também do Timeu. Os mestres de
Chartres abandonam uma visão simbólica e alegórica da natureza, dominante até então, e
passam a ter uma visão mais realista e secularizada da natureza, em que esta aparece como
coadjuvante da ação criadora de Deus. Teodorico de Chartres e Guilherme de Conches,
dois dos principais expoentes da escola de Chartres, leem à luz do Timeu, da sua
cosmologia e das noções de física de seu tempo, a narração bíblica da criação, exposta no
livro do Gênesis. “Para eles, a ação de Deus consiste em criar diretamente do nada os
quatro elementos, enquanto cabe à natureza levar a cabo o processo da criação do cosmos
através da formação dos astros e dos seres viventes” 13.

De Proclo os medievais latinos conhecem a Elementatio theologica, os três


opúsculos De decem dubitationibus, De providentia et fato, De malorum subsistentia, o
comentário ao Parmênides de Platão, traduzidos na segunda metade do século XIII por
Guilherme de Moerbecke. Uma “Elementatio Physica” de Proclo apareceu na segunda
metade do século XII numa tradução de Henrique Aristipo. A metafísica neoplatônica
fez, assim, entrada direta no pensamento medieval por meio de Proclo. Na sua obra, a
metafísica é entendida como teologia e é lida, pois, em sentido mistagógico: como
iniciação aos mistérios divinos. O entendimento procliano da metafísica platônica pode
ser encontrado, em síntese, em obras como os “Elementos de Teologia” e “Sobre a
teologia de Platão”. A palavra “teologia” é aqui entendida não no sentido cristão, de uma
ciência da fé, mas no sentido que lhe foi dado pelo seu criador, Platão, a saber, como um
logos em torno ao divino (theos). É também tomada como sinônima da expressão
aristotélica “filosofia primeira”. De fato, para Aristóteles, entre as ciências teoréticas, a
física se ocupava dos seres separados (individuais) e em movimento; a matemática, dos
seres imóveis e não separados (imanentes à matéria); e a filosofia primeira ou teologia
tratava de realidades separadas (transcendentes) e imóveis (imutáveis) (cfr. Metafísica,
VI 1, 1026 a 10ss), ou seja, de realidades puramente espirituais e divinas. Para os cristãos
medievais, estas realidades são os anjos (inteligências separadas da matéria) e o Deus uno
e trino da fé cristã.

13
De Mottoni, Barbara Faes. Il platonismo medioevale. Torino: Loescher Ed., 1979, p. 20.

6
Além do platonismo cristianizado que chega aos medievais latinos por meio dos
Padres da Igreja e do platonismo das fontes diretas de Platão e de Proclo, os medievais
latinos também receberam influências de outro filão de pensamento platônico: o
platonismo árabe.

Na época da Reconquista e das Cruzadas intensificou-se o conhecimento, por


parte do ocidente latino, da riqueza cultural islâmica, que, a seu modo, reelaborou o
legado da Antiguidade grega. A ocupação de Toledo por Afonso VI de Castela é o ponto
culminante da Reconquista do século XI. As Cruzadas do oriente, a partir do século XII,
produzem não só relações militares e comerciais, mas também culturais. O fato mais
marcante nestes contatos, para o pensamento medieval latino, é o movimento das
traduções do árabe para o latim. As primeiras traduções tiveram lugar na segunda metade
do século XI na Itália meridional, em Salerno e em Monte Cassino, sobretudo de obras
de medicina, e foram realizadas um cristão ou muçulmano convertido, originário da
Ifrîquia, chamado Constantino, o Africano. Na Espanha, no século XII, foram traduzidos
textos árabes adquiridos em al-Andalus ou textos encontrados nas cidades conquistadas
no vale do Ebro e sobretudo em Toledo. Primeiramente, os judeus foram decisivos neste
trabalho de traduzir textos do árabe para o latim. Destaque para João Avendaud de
Espanha. Depois apareceram cristãos latinos capazes de fazê-lo: Adelardo de Bath,
Gerardo de Cremona, Domingos Gundissalino. Os textos que mais veiculam o
platonismo árabe para os medievais latinos são os de Al Kindi, de Al Farabi e, sobretudo,
os de Avicena.

Estes, discutindo teorias aristotélicas singulares, ou parafraseando


inteiras obras do Estagirita – por exemplo o De Anima, do qual Avicena
dá uma afortunada exposição – utilizam amplamente doutrinas
neoplatônicas. Os temas neoplatônicos mais tratados pelos árabes são a
dedução do múltiplo pelo Um através de uma série de intermediários
que se constituem por emanação, a doutrina da participação, a da
imortalidade da alma e da conjunção final com Deus, e a da luz,
entendida como princípio metafísico de toda a realidade, a que o estudo
da óptica e o da filosofia do olho – particularmente desenvolvida no
mundo islâmico – oferecem um fundamento científico bem preciso 14.

Nas obras dos autores árabes os pensadores latinos descobrem algo de novo e, ao
mesmo tempo, reencontram algo de familiar. De novo, pois, chega a eles uma doutrina
aristotélica apresentada sincreticamente com elementos neoplatônicos, concernente à
física, à psicologia e à metafísica. De familiar, pois chega a eles algo do neoplatonismo

14
De Mottoni, Barbara Faes. Il platonismo medioevale. Torino: Loescher Ed., 1979, p. 24.

7
que já lhes tinha sido legado pelas vias da tradição patrística. Havia, no entanto, doutrinas
árabes platônicas que não podiam ser aceitas pelos cristãos latinos tais e quais eram
transmitidas: a doutrina aviceniana do intelecto agente separado, único e idêntico para
todos os humanos, que alguns teólogos latinos tenderão a identificar com Deus; a doutrina
de uma criação por mediações (intermediários), que alguns irão entender como causas
instrumentais de Deus; nem, a doutrina da eternidade da matéria, que todos os medievais
latinos irão rejeitar.

Uma obra árabe que transmite um aristotelismo neoplatonizante e que os


medievais acreditavam ser de Aristóteles mesmo é o “Liber de Causis”. Trata-se de uma
versão latina do “Livro do Bem Puro”, que, por sua vez, é um compêndio da “Elementatio
Theologica” de Proclo. “A obra propõe um sistema metafísico de explicação da realidade,
centrado sobre as categorias tradicionais neoplatônicas, do Um-múltiplo, imóvel-móvel,
causa-efeito, tempo-eternidade. Esta põe em primeiro plano a noção metafísica de causa,
e traduz em chave criacionista a processão dos seres a partir da Causa Primeira: esta é a
única causa criadora, enquanto as outras realidades procedem a modo de degraus de uma
escada, por dedução umas das outras”.

O pensamento de Proclo, direta ou indiretamente, teve uma grande influência no


pensamento ocidental medieval e até mesmo moderno. Tomás de Aquino comentou o
Liber De Causis e leu os Elementos de Teologia na tradução de Guilherme de Moerbeke.
A doutrina da analogia e da participação foi axial para toda a metafísica medieval no
século XIII. A Teologia Platônica e o Comentário ao Parmênides exerceram forte
influência em Mestre Eckhart (séc. XIV) e em Nicolau de Cusa (séc. XV). Mas, não parou
na Idade Média a sua influência. Na época moderna, dois grandes nomes ainda souberam
beber da fonte da metafísica procliana: Leibniz e Hegel, a quem Feuerbach chamou de o
Proclo alemão. O princípio “tudo está em tudo, cada vez a seu modo” dá origem à
monadalogia de Leibniz. E em Hegel vemos presente e atuante, na marcha dialética do
espírito, a dinâmica triádica. Tudo vem do Um pelo três. A realização da realidade em
sua dinâmica geradora se dá ad extra ex tribus (para fora pelo três). Também o
cristianismo o afirmará, mas dando-lhe um sentido diverso, a partir do dogma da
Trindade.

8
II. FILOSOFIA E RELIGIÃO NO IMPÉRIO ROMANO.

O maior legado que a Idade Média recebeu da antiguidade tardia veio do


neoplatonismo e do cristianismo da era patrística.

Plotino, Porfírio, Jâmblico e Proclo desenvolveram uma metafísica prática de


cunho religioso, no último período do império romano. Por um lado, esta metafísica
rivalizou com o cristianismo nascente. Por outro, o cristianismo se serviu de vários
elementos do neoplatonismo para cunhar a sua metafísica teológico-eclesiástica no
interior da dogmática dos primeiros séculos. Vamos tentar compreender o legado que
estes dois movimentos, o neoplatonismo e o cristianismo patrístico, ofereçam à Idade
Média.

A atitude de fundo comum a todos os movimentos filosóficos da antiguidade


tardia encara a filosofia como “forma de vida” ou “arte de viver”. A filosofia, produzida
em escolas que são verdadeiras comunidades de vida, se articula entre lógica, física e
ética. Para a ética, entendida como a ciência e a arte do bem viver, convergiam os esforços
da lógica, entendida como a ciência da reta razão e arte do juízo correto, e os da física,
entendida como a investigação da natureza, entendida como a dinâmica de surgimento de
todas as coisas. As perguntas principais da filosofia soam assim: 1) qual a natureza das
coisas; 2) em consequência, como devemos nos comportar diante delas; 3) o que
conseguimos com este comportamento. A recepção da filosofia grega pelos romanos
acentuou ainda mais esta compreensão prática do filosofar, já vigente no helenismo, com
suas escolas dogmáticas – platonismo, aristotelismo, epicurismo e estoicismo – e com
suas escolas céticas – ceticismo acadêmico e pirrônico. O sentido de todo o filosofar
passou a ser a busca do bem-viver e do bem-morrer, a busca da “beata vita”: a vida bem-
aventurada, a vida feliz.

Num tempo em que a dúvida espreitava por toda a parte, havia espaço para a
presença marcante do ceticismo na filosofia tardo-antiga, inclusive no interior da própria
academia platônica. O espírito cético da antiguidade foi responsável pela crítica mordaz
às crenças religiosas. Também o epicurismo exerceu este papel crítico. Na Roma do
século I a.C., Lucrécio, com a sua obra “De Rerum Natura”, visou libertar os romanos do
seu temor aos deuses. Apoiando-se no materialismo, empenhou-se em refutar qualquer
hipótese de uma causa pessoal racional da ordem cósmica. Também o estoicismo estava

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eivado de materialismo. Não obstante, no estoicismo foi aparecendo, cada vez mais, certo
tom religioso de fundo, já presente, de resto, na tradição grega da filosofia, onde ressoam
vozes e tons advindos das religiões dos mistérios, da poesia órfica e da teologia mítico-
poética. De fato, já os pitagóricos, Empédocles e Platão acolheram elementos vindos
destas tradições.

Qual o sentido, porém, da “religio” (religião), em especial no mundo romano? A


“religio” romana era compreendida no horizonte de uma relação jurídico-política com os
deuses (numina) que sustentavam a vida da família e da “civitas”. De fato, é no quadro
da vida doméstica e civil que o romano sente-se obrigado a cumprir zelosa e
diligentemente a reverência (pietas) para com os deuses. “Religio” era, então, um
sentimento, constituído de temor e de escrúpulo, de obrigação (obligare = ligar-se a) para
com os deuses: obrigação cúltica, não moral. De fato, como observará Agostinho (De
Civ. Dei, L. II, c. 16), do culto dos deuses romanos não advinham preceitos éticos, ou
seja, preceitos para o bem-viver.

Com o tempo, porém, entre os filósofos, esta compreensão exterior da religião


romana vai cedendo espaço a uma tendência de introspecção e de interiorização. E a ética
dos filósofos vai se desembocar numa atitude religiosa. Como os filósofos romanos
encararam a “religio”?

Uma primeira indicação podemos encontrar em Cícero e na sua explicação da


palavra “religio”. As explicações mais comuns hoje sobre o sentido etimológico da
palavra “religio” nos remetem à explicação dada por Lactâncio (240-320 d.C.). O
conselheiro para assuntos religiosos do Imperador Constantino, responsável pela adoção
do cristianismo como religião oficial do Estado romano, explicava a palavra recorrendo
ao verbo “religare”: religar, reatar. Bem antes de dele, porém, Cícero explicou o sentido
etimológico desta palavra remetendo ao verbo “relegere” (De Natura Deorum, II, 72):

“aqueles que retomavam diligentemente e de certo modo recolhiam


(relegerent) escrupulosamente tudo quanto era atinente ao culto dos
deuses, eram chamados de religiosos, de relegere, como elegantes de
eligere e dilegentes de diligere. Todas estas palavras têm, de fato, o
mesmo sentido de legere que religiosus”.

O comportamento religioso seria, neste sentido, caracterizado pelas disposições


de “diligere” (honrar, estimar) e de “colere” (cuidar). O alvo, porém, destas disposições
é o “numen”: a vontade divina, o poder divino. Mas, como entender o “re-legere” neste

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contexto? A um primeiro aviso, “relegere” significa “re-ler”, ler novamente, isto é, rever
com cuidado, percorrer de novo um caminho. Contudo, é mais provável que o prefixo
“re” de “religio” tenha não tanto o sentido de repetição, e sim, mais propriamente, o
sentido de recolher, reunir. Isto estaria em consonância com as origens do verbo “legere”,
aparentado, pela mesma raiz (lg), com o verbo grego “légein” , donde vem “Lógos” e que
significa, originariamente, colher, recolher. Neste sentido, a tarefa da “religio” seria
responder ao desafio de dar unidade à vida, de pôr em obra o recolhimento da existência
humana, centrando-a no divino. Vale à pena, aqui, recordar novamente a exortação de
Sêneca, que apresenta exemplarmente esta compreensão do recolhimento como fundo de
seu empenho filosófico-metafísico:

“Recolhe-te para aquilo que é mais tranqüilo, mais seguro e mais


significativo [...] para as coisas sagradas e sublimes [...] e saberás de
que matéria é Deus, que vontade ele tem, que constituição, que forma;
que destino espera a tua alma; que lugar a natureza nos indicará, quando
tivermos deixado o corpo; o que retém justamente os componentes mais
pesados do mundo em seu centro, ergue o mais leve para as alturas, leva
o fogo até o lugar mais alto, tange os astros para as suas posições
alternantes; e, por fim, saberás também todas as demais coisas que
ocultam em si milagres tremendos” (Brev. Vit. 19, 1).

Não raro, a especulação mais racionalista desemboca no misticismo. A metafísica


apresenta uma tendência de fundo religiosa e a religião apresenta também certa tendência
especulativa de cunho metafísico. Não por acaso, as palavras “meta-física” e “sobre-
natural” se equivalem. O caminho especulativo do filósofo tem, assim, o sentido de uma
“sublimatio”: elevação.

Em Marco Aurélio, como vimos, a filosofia atinge o seu clímax no problema


religioso da angústia do homem em face do destino e da morte. O “Lógos spermatikós”,
o intelecto originário e gerador de toda a ordem cósmica, aparece como o Deus anterior
a todos os deuses. O estoicismo se ligava, assim, à tradição filosófica que, dos pré-
socráticos a Aristóteles, tinha produzido sempre um momento teológico. De fato,
chamou-se de divino (theión) ou de Deus (theós) o fundamento originário da ordem
cósmica: o ser imutável, o uno unificador de todas as coisas, o intelecto que se pensa a si
mesmo e que, imóvel, move todas as coisas. Desde os gregos, a metafísica unia,
indissoluvelmente, a questão do ser do ente (ontologia), a investigação do ente em seu
conjunto (cosmologia) e a especulação em torno do fundamento originário ou primeiro
princípio do ente (teologia), o que possibilitou um acontecimento fundamental para a
história do ocidente: a relação recíproca entre metafísica e cristianismo. No entanto, esta

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especulação filosófica, de início, tem em mente uma divindade metafísica vasta e
indeterminada, incapaz de despertar um pathos – uma afeição – propriamente religioso,
que conduza o homem a um vínculo mais pessoal com esta divindade. Por isso, dentre as
três teologias distinguidas por Panécio, a dos poetas, a dos filósofos e a dos homens de
estado, aquela filosófica é mais inexpressiva, do ponto de vista do sentimento religioso
comum, que, naquele tempo era predominantemente politeísta. Pois, como observa
Agostinho (De Civ. Dei, L. VIII, c. 12), mesmo os filósofos que intuíram algo do Deus
uno, como os platônicos, se renderam à tendência do culto aos deuses.

Entretanto, aos poucos o próprio politeísmo foi perdendo força. Plutarco de


Queronéia (45-120 d.C.), que foi sacerdote do templo de Apolo em Delfos, em sua obra
“De Defectu Oraculorum” – Do declínio dos oráculos – ilustra bem a crise do politeísmo
em seu tempo. Esta obra manifesta uma grande inquietude pela fuga dos deuses e o
emudecer dos oráculos. É neste contexto que, com tom melancólico, se conta uma história
de marinheiros do tempo do império de Tibério (14 -37 d.C.). Quando o navio se
aproximava das ilhas Echinaid, o vento subitamente se aquietou e o navio foi conduzido
em calmaria até a ilha de Paxo. Ao entardecer, se ouviu, de repente, uma voz que vinha
da ilha. A voz, depois de gritar por três vezes o nome de um piloto egípcio, pouco
conhecido, deu-lhe a incumbência de anunciar aos habitantes da próxima cidade: “o
grande Pan está morto! O deus dos bosques e dos pastores simbolizava, aqui, toda a
mitologia greco-romana. A “morte de Pan” anunciava o fim do próprio politeísmo, a fuga
dos deuses. Plutarco tentou reinterpretar o culto a Apolo a partir da onto-teo-logia
metafísica, de orientação platônica. Assim, interpretou o nome Apolo como significando
a-pollôn, isto é, não-muitas coisas. Apolo, o deus do desvelamento e da claridade do sol
do meio-dia, seria, simplesmente, o “Uno” (tò hén), o deus (theós) idêntico ao ser
universal (to on). Os atributos deste Deus refletem a perfeição do ser que lhe é própria:
eterno (aidíon), não gerado (agéneton), não perecível (áftharton) e puro (katharón). Em
contrapartida, o mundo em que o homem se move é marcado pela devir, isto é, pela
mutabilidade, instabilidade, pelo surgir e desvanecer-se de todas as coisas. É o domínio
do não-ser e do mal, isto é, da desordem e da irracionalidade. Tudo isso advém da alma
pré-cósmica, princípio rival do Deus Uno, igualmente eterno, responsável pelo domínio
do não-ser e do mal no mundo da matéria (hýle). Plutarco abandona, pois, o monismo
estóico e trilha o caminho do dualismo. O homem deve buscar libertar-se deste mundo
mal e elevar-se à esfera do divino. Isto acontece mediante a virtude, que consiste na

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concordância harmônica entre a paixão e a razão. A razão tem o papel de ajudar a
encontrar o “justo centro” entre os extremos das paixões. É pela sensatez (frónesis) e pela
sabedoria (sofía) que o homem pode alcançar o sentido de sua vida, que é o ser semelhante
a Deus (homóiosis theô).

A “religio” romana sempre foi bastante permeável a influências estrangeiras. De


início, a religião romana tinha suas origens na religiosidade de pastores nômades.
Assimilou, então, elementos da religiosidade etrusca e da grega. Com o passar do tempo
e o declínio do politeísmo próprio, o império assimilou bastantes elementos orientais. No
século I d.C, em torno do mediterrâneo houve um grande fluxo de misticismos orientais.
Da Pérsia vinha a divindade indo-iraniana, Mitra. O mitraísmo era uma religião de
mistérios, com sete graus de iniciação e sacrifícios de touro e oferendas de pão e vinho.
Outra corrente vinha do Egito. Plutarco escreverá, por exemplo, sobre as divindades
egípcias, Isis e Osíris (De Iside et Osiride). Do Egito também vinha o hermetismo. O
Corpus Hermeticum reunia textos escritos em grego, recolhidos nos primeiros séculos da
era cristã, e que versavam sobre a alquimia. Eram atribuídos a Hermes Trimegisto (três
vezes grande), personagem de um sábio, que, ao mesmo tempo se confunde com o deus
Hermes dos gregos, o Mercúrio dos romanos e o deus Toth dos Egípcios. Hermes é o
mensageiro de Zeus e dos deuses, aquele que revela os desígnios divinos, ensina aos
homens o que está oculto e acompanha as almas em seus caminhos pela terra e em sua
jornada pela morte (Hermes Psicopompo). O Corpus Hermeticum foi muitas vezes
citados na Idade Média e no renascimento, pelos autores interessados na alquimia, entre
eles, Alberto Magno (sec. XIII). Outros escritos muito citados são os “Oráculos
Caldeus”, cujos fragmentos podem ser recolhidos em testemunhos de filósofos como o
neoplatônico Proclo e os medievais bizantinos do século XI Miguel Psellos e João Ítalo.

Nos primeiros séculos da era cristã, pois, havia uma grande angústia diante do
destino e da morte e, ao mesmo tempo, uma grande aspiração à salvação da alma. Por
toda a parte, o homem buscava apoio no sagrado, a fim de alcançar a “Soteria”. Em grego,
Soteria significa tanto salvação quanto saúde. O mesmo se diga do latim “salus”. Salvar
é proteger ou resgatar a integridade de alguém ou de alguma coisa. Podemos dizer que
salvação da alma é repristinar a saúde, o vigor originário, da vida do homem, é reconduzir
para a integridade esta mesma vida. Em grego, Sotér significava salvador, protetor,
libertador. Deuses e reis serão chamados com este título. No mundo bíblico, Deus e Jesus
também recebem este epíteto. Aliás, o nome “Jesus”, em hebraico Jehoschua, significa

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“Iaweh é salvação”. Neste tempo, o cristianismo irá emergir no contexto do mundo
mediterrânico como uma religião de salvação. Por sua vez, os mais ilustres filósofos vão
se ocupar com grande interesse de religião e irão propor a filosofia como a busca de um
caminho de salvação, isto é, de libertação e de cura da alma, como se pode ver, sobretudo
no neoplatonismo e no cristianismo.

III. PLOTINO E A DOUTRINA DO UNO, DO INTELECTO E DA ALMA


UNIVERSAL.

A última grande criação da filosofia grega foi o neoplatonismo. Este movimento


deu forma ao pensamento filosófico da antiguidade tardia na Itália, Síria, Grécia e Egito
e foi o transmissor da filosofia grega à Idade Média, seja no Ocidente latino, seja em
Bizâncio ou no Oriente islâmico.

O novo platonismo tem os seus principais representantes em Plotino, Porfírio,


Jâmblico e Proclo. O fundador, porém, do neoplatonismo foi Amônio Sakkas, mestre de
Plotino, de Longino, o mais famoso crítico estético e filólogo da época, e, embora posição
controversa, também de Orígenes, um dos principais escritores cristãos do século III d.C.
Amônio era de pais cristãos, mas retornou ao culto dos velhos deuses. Fundou uma escola
em Alexandria. Nada escreveu. Centrou a filosofia na vida da alma. Morreu cerca do ano
242 d.C. O principal sistematizador, porém, do neoplatonismo foi Plotino.

Tendo nascido no Egito (c. 204-5), frequentou a escola de Amônio Sacas por onze
anos. Após participar de uma expedição do imperador Gordiano contra a Pérsia, refugiou-
se por um tempo em Antioquia e, depois disso, mudou-se para Roma, em 244. Ali abriu
uma escola, que era frequentada por senadores, médicos, escritores, homens e mulheres
ilustres. Seus principais discípulos foram Amélio e Porfírio. O grande empenho nesta
escola era de interpretar os textos de Platão. Plotino e sua escola rejeitaram, oral e por
escrito, a interpretação de Platão feita pelos gnósticos. Em sua Enéadas polemiza com
estes, em particular com os gnósticos cristãos, especialmente os valentinianos (Adélfio,
Aquilino). Estes são sectários que misturam os ensinamentos de Zoroastro e os dogmas
cristãos. Seus escritos surgiram das discussões sobre os textos de Platão e as questões
neles investigadas. A edição deles foi feita após a sua morte na Campânia (sul da Itália),

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no ano 270, por Porfírio, seu discípulo e biógrafo. Porfírio reuniu 54 tratados e organizou-
os em seis grupos temáticos de nove (Novenas), traçando, ao fim, o caminho da sabedoria.
Daí o nome: Enéadas. O grupo I trata de questões morais; os grupos II e III, do mundo; o
IV, da alma; o V, do espírito ou intelecto (noûs) e o sexto e último, do Uno.

O ideal do sábio é penetrar o mistério, apreender o Princípio... Tal é a vida dos


deuses e dos mortais bem-aventurados. Para isso, é preciso desapego. Só quem vive o
desapego e cuja alma foge em direção a Deus pode conhece-lo face a face (V, 9, 11).

Podemos caracterizar com algumas teses o pensamento plotiniano: A) há uma


nítida distinção entre o mundo sensível (kósmos aisthêtikós), corpóreo, e mundo
inteligível (kósmos noetikós), incorpóreo. B) O mundo inteligível é formado por uma
tríade hierarquicamente ordenada: as três hipóstases (princípios subsistentes em si
mesmos), a saber, o Uno (Tò Hén), o Intelecto (Nous) e a Alma (Psyché). C) Este esquema
triádico funciona de tal maneira que a hipóstase superior produz aquela inferior, sem
diminuir sua potência, doando sem empobrecer. D) A relação entre as hipóstases segue
um ritmo também triádico assim caracterizado: cada hipóstase permanece junto de si
mesma (imanência) e, ao mesmo tempo, atua na produção da hipóstase sucessiva,
momento chamado de “processão” (próhodos); cada hipóstase derivada, por sua vez,
opera um retorno a hipóstase anterior, momento chamado de “conversão” ou “retorno”
(epistrophé). E) O mundo sensível, material-corpóreo, não constitui uma hipóstase, isto
é, não subsiste em si mesmo, mas é produzido pela terceira hipóstase: a Alma; ele não
tem a força para fazer o retorno ou conversão, desvanece e decai no não-ser.

Ponto de partida de Plotino é o diálogo “Parmênides”, de Platão. Mas sua doutrina


é original (Enéada VI). Platão, no “Parmênides”, dizia que os entes, segundo os pontos
de vista, são semelhantes e dessemelhantes. Seria preciso distinguir a semelhança
(homoiótes) em si e a dessemelhança para nós (127e, 130b). Plotino insiste na unidade
dos entes. “Os entes só são devido à sua unidade” (henótes). A unidade dos entes no
mundo provém da unidade da alma do mundo e, para além disso, da unidade do Primeiro.
Este, o Uno, é o poder do qual todos os entes emanaram. O Uno é único. O contrário do
uno não é o múltiplo, mas o divisível. O uno é o indivisível (adiaíreton). E todo o ente é
uno à medida que é indivisível. O contrário da multiplicidade não é o Uno, mas sim a
unicidade (tò monachón). Cada ente, na sua unidade, é um vestígio do Uno. O Uno é o
abismo infinito do qual todas as coisas emanaram, porque as produz (poieí) (V, 3, 15).

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A investigação filosófica de Plotino busca sondar o fundamento primeiro de toda
a realidade. Ora, toda a realidade se configura como uma unidade. Hen: Panta – “Um:
Tudo”, já dizia Heráclito. Esta unidade está fundada, por sua vez, no Uno. O Uno é mais
abrangente e anterior ao ser do ente (hyperousion). Isto pode ser afirmado porque Plotino,
seguindo a tradição de Parmênides, faz corresponder o pensar (intelecto) e o ser. Só há
ser ali onde há pensamento, intelecto. Ora, o Uno é anterior ao próprio Intelecto, logo, é
anterior ao ser do ente. Como o Bem (agathón), ele vigora a modo de potência que está
além de toda presença e subsistência (epékeina tes ousias), produzindo a partir de si o se
do ente no seu todo. O Uno é o único. É o incognoscível. Está no mais íntimo de nós
mesmos. Estaremos em face do uno justamente quando outros suporão “nada haver para
ver”. O retorno ao Uno é êxtase, uma saída dos limites. É um abandono de nós mesmos;
um contato (VI, 9, 11). Esta elevação (anagogé) e conversão de retorno (epistrophé) é a
tarefa mais elevada da alma.

O “Parmênides” de Platão constitui um contínuo exercício dialético de ascensão


ao Uno. Este diálogo conclui que as duas proposições: “O Uno é” e “O Uno não é” são
igualmente insustentáveis. Para Plotino, o Uno é sui generis. Devido à sua unicidade, ele
desorienta nosso pensamento. “Sendo a natureza que engendra todas as coisas, ele não
pode ser nenhuma delas” (VI, 9, 3). Todas as coisas se parecem com o Uno, são sua
imagem, ou melhor, sua caricatura, pois misturam a unidade com a diversidade. Mas o
Uno não se parece com nenhuma coisa.

Em si, o Uno é impensável e indizível, está além de todo pensamento e de toda


linguagem. Dele podemos falar, mas não podemos dizê-lo, isto é, trazê-lo ao horizonte
do discurso. Podemos dizer o que ele não é, mas não podemos dizer o que ele é. Ele nega
toda e qualquer determinação conceitual e toda nomeação, não por estar privado de ser,
como a matéria prima, mas por transcender todo o ser, pensar e dizer. É “sujeito” e não
“objeto” de negação, já que não é predicado, nem predicável. Ele só pode ser intuído
intelectualmente na subtração ou remoção (en aphairései) de toda e qualquer predicação,
de toda e qualquer categorização ou determinação conceitual.

“Como pois falamos dele? Na realidade dizemos alguma coisa acerca


dele, mas não o exprimimos e não temos dele nem conhecimento nem
intelecção. De que maneira, pois, falamos acerca dele, se não o
possuímos? Ou então, se não o possuímos com o conhecimento, não o
possuímos de outro modo? Mas o possuímos assim, de maneira a falar
acerca dele, mas não a exprimi-lo. E, de fato, dizemos aquilo que ele

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não é; mas aquilo que ele é, não o dizemos. Assim, falamos dele a partir
daquilo que vem depois dele” (Enéadas, V, III, 14, 1-8).

O Uno pode ser pressentido e intuído a partir do que ele produz: o Intelecto e a
Alma, enquanto princípio de organização e de dinamização do mundo sensível. O ser do
ente como um todo, em suas gradações, o mundo sensível, a Alma e o Intelecto,
constituem uma escada para ascender ao Uno. Filosofar é percorrer este caminho de
ascensão.

“De fato, seja o conhecimento do Bem seja o contato com ele, é o que
há de mais excelso; e [Platão] diz que este é o ensinamento maior
[República, ς, 505 a 2], chamando ensinamento não o ver a ele, mas o
aprender algo acerca dele, precedentemente. Portanto, o que instrui são
as analogias, as subtrações (aphairéseis), os conhecimentos dos entes
que derivam dele e certos graus da ascensão [Banquete, 211 c 3]; e nos
conduzem a ele as purificações, as virtudes, os ornamentos morais, o
acesso ao inteligível [Rep., ς, 511 b 6], o demorar em seu seio e o
participar àquele sublime banquete” (Enéadas, VI, VII, 36, 3-10).

O Uno é anterior a toda alteridade. Ele não é nada daquilo que é, nem é outro
daquilo que é. Entretanto, toda alteridade procede dele, pois é ele que produz tudo o que
ele não é. Tudo está nele e ele está em tudo. Ele é um processo, um puro agir, o “ato” (V,
6, 6). Ele é o doador do ser e da vida. O ser e a vida são vestígios dele, mas ele mesmo
está acima do ser e da vida, como o doador está acima da dádiva. Tudo o que é tem uma
forma, isto é, uma determinação. Ser e forma coincidem. A forma é limite que define o
ser de cada ente, diz o que é e como é o ente. Todo o ser e toda a forma procedem, pois,
do Uno, como de sua origem ou fonte, mas o Uno mesmo não tem qualquer ser, isto é,
qualquer forma. Ele vigora como o sem-forma: infinito (apeíron), invisível (aoristón),
simples (aploun); sem medida e sem figura. Como Bem, doador do ser e da vida, atrai o
amor (eros) e o desejo (órexis) de todo o ente.

“Em verdade, se há algo de desejável do qual tu não podes colher nem


figura nem forma, isto será aquilo que em supremo grau é objeto de
desejo e de amor; e [neste caso] o amor será incomensurável” (Enéadas,
VI, VII, 32, 21-26).

O Uno não é o que pensa, mas aquilo em virtude do que há pensamento. O Uno
produz o Intelecto (Nous). O engendramento do Intelecto comporta três momentos: a
processão emanada do Uno; a conversão do Intelecto em direção ao Uno; e a conversão
do Intelecto em direção a si mesmo (V, 2, 11). Nesta última, o Intelecto percebe os
inteligíveis. O Intelecto é conhecimento e consciência de si (VI, 7, 39). O pensar e o
pensar que se pensa faz parte da mesma intuição (II, 9, 1). No Intelecto, há, pois, a

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identidade de inteligência e inteligível. É translucidez. O “pensamento de pensamento”
(nóesis noéseos), que Aristóteles atribuía ao divino “Motor Imóvel”, Plotino recusa ao
Uno (em quem não há nenhuma dualidade), mas acolhe para o Intelecto. O Intelecto é
Identidade na Diferença, Unidade na Multiplicidade (Hén-Pollá).

O Uno é doação. O Intelecto é recepção. O Uno vigora como potência (dýnamis)


ativa e generativa. O Intelecto, como potência passiva e gerada. Com o Intelecto tem
origem o ser (ousia). Com ele, entra em jogo também a alteridade (eterótes), pois o
Intelecto é outro em relação ao Uno, embora o Uno não seja outro em relação ao Intelecto
ou ao que quer que seja. O Uno está todo no Intelecto, mas ao modo do Intelecto, isto é,
enquanto fonte de toda inteligibilidade e de todo o ser. A vida do intelecto é contemplação
do Uno, do Bem, que o produz. O Intelecto se volta para o Uno sob a forma de Bem, isto
é, se volta para ele com amor e desejo. O Intelecto é o amado. O Uno é o amante. Nós só
podemos conhecer o Intelecto (como princípio ou hipóstase) com o intelecto (como
potência da alma). Pois em nós se encontra algo do Intelecto, uma sua semelhança.
Melhor, o homem, se quiser chegar à intuição do Uno, que é o Bem, deve aproveitar desta
semelhança na sua alma, deve se tornar intelecto com o Intelecto, recebendo sua virtude
iluminadora:

“É preciso, pois, tornar-se intelecto, confiar ao Intelecto a própria alma


e colocá-la ali debaixo, para que possa receber bem desperta aquelas
coisas que o Intelecto vê; por meio dele é preciso contemplar o Uno,
não acrescentando alguma sensação nem colocando nele [Intelecto]
qualquer coisa que dela [sensação] se receba; ao contrário, é necessário
contemplar o puríssimo com o intelecto puro...” (Enéadas, VI, IX, 3,
22-27).

O Intelecto tem um modo originário de conhecer o Uno, que é como uma forma
de “toque”, isto é, de contato silencioso, o que só é possível porque o Intelecto tem a
semelhança do Uno em si mesmo. Para além desse contato silencioso, o Intelecto se volta
para o Uno para conhecê-lo, mas, ao conhecê-lo, consegue apreender o Uno somente
como uma multiplicidade de inteligíveis. Ele recebe do Uno o fato de ser unidade. É
unidade, mas não é unidade simples, como o Uno. É a unidade de uma díade: de pensador
e pensado, de conhecedor e conhecido. No pensado e conhecido, porém, o Intelecto pensa
e conhece a multiplicidade de todos os inteligíveis (noetá), as formas de todos os entes, a
uni-multiplicidade do ente, cuja origem se encontra no Uno. Os inteligíveis não são nem
as palavras nem as proposições, mas a significação que as permeia (V, 5, 1). O Intelecto
contém os inteligíveis, isto é, as noções ontológicas ou categorias, e as ideias dos seres

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particulares, todos originais (V, 7, 1 e 2). O pensamento discursivo não passa de forma
decaída do Intelecto. O Intelecto, “o princípio pensante, quando pensa, é dualidade; por
isso é que os inteligíveis são ao mesmo tempo idênticos ao Intelecto e diferentes dele”
(V, 3, 10).

O Intelecto é a totalidade mesma das coisas, só que em forma inteligível,


espiritual, incorpórea. Quando o homem contempla o Intelecto, descobre, pois, todas as
coisas em seu estado originário, nascente:

“Mas já dissemos em que modo ele [o eu do homem] pode fazer isto,


quer como diverso [do belo] quer como idêntico [ao belo]. Ora, depois
de ter visto, seja como diverso [do belo], seja permanecendo idêntico
[ao belo], o que anuncia? [Anuncia] ter visto um deus grávido de uma
bela prole, que gerou todas as coisas em si mesmo e em si mesmo tem
um parto indolor; comprazendo pelas coisas que gerou e alegrado pela
sua prole, reteve todas as coisas em si mesmo, gozando do próprio
esplendor e do esplendor delas” (Enéadas, V, VIII, 12, 1-7).

O Intelecto produz a Alma (Psyché). Ela é “espírito de vida” (V, 1, 2). Na Alma
há duplo movimento: processão (a partir do Intelecto) e conversão: a Alma, sendo
iluminada pelo Intelecto, ilumina por sua vez as coisas sensíveis (II, 9, 1). Voltando-se
para o Intelecto, ela ilumina tudo. Voltando-se para si mesma, produz o que está abaixo
dela (os corpos) (III< 9, 2). A alma, iluminada pelas Ideias, produz por meio de formas
(II, 3, 17). A organização do mundo é obra da contemplação da Alma. Todas as coisas
nasceram de uma contemplação (III, 8, 3).

A Alma é imagem e semelhança do Intelecto:

“A Alma é uma imagem do Intelecto; do mesmo modo como o discurso


que é pronunciado [é uma imagem] do discurso que se dá internamente,
na alma. Assim também a Alma é pensamento exprimido pelo Intelecto,
o ato total e a vida que ele projeta para fazer existir um outro” (Enéadas,
V, I, 3, 6-9).

O Intelecto é o pai da Alma. É ele que a torna divina. O Intelecto é forma da Alma
e a Alma é a matéria ou o receptáculo do Intelecto. A Alma é também a unidade de uma
multiplicidade, só que uma unidade menos intensa e uma multiplicidade mais difusa, se
comparada com a unidade e multiplicidade do Intelecto. O próprio da Alma é a
estruturação, unificação e vivificação do mundo corpóreo. Ela é possibilitadora do “unus
mundus”, isto é, do universo sensível e corpóreo, bem como de cada alma individual.
Cada alma particular é universal a seu modo (IV, 3, 2). A alma é uma e múltipla (hén kai
pollá) (III, 2, 2; IV, 9, 2). Todas as almas são, no fundo, uma única Alma. Por sua vez, a

19
Alma se encontra toda em cada uma das múltiplas almas individuais. A Alma está toda
em cada parte do universo que ela rege, assim como a alma individual se encontra toda
em cada parte do corpo de um indivíduo.

“A reflexão nos diz que achamo-nos em relação simpática uns com os


outros, sofrendo, dominados, em vista da dor, naturalmente levados a
formar vínculos; e tudo isso pode se dever apenas a alguma unidade
entre nós [...] uma palavra serena provoca mudanças num objeto
distante, e se faz ouvir em vastas distâncias – prova de unidade de todas
as coisas na alma única” 15.

A Alma é o que dá unidade à multiplicidade dos corpos, constituindo o mundo


corpóreo como “unus mundus”, como universo. O universo, porém, não é amorfo. É a
unidade de uma pluralidade de formas, as quais têm origem nas idéias, ou seja, nos
inteligíveis pensados originária e criativamente pelo Intelecto, que as intui ao contemplar
o Uno/Bem. As formas, porém, implicam a existência de um substrato, sobre o qual as
elas possam se imprimir. Este substrato é a matéria. A matéria é o degrau ínfimo da
realidade. É a última ressonância do Uno. A matéria tem como causa a razão (III, 2, 15).
Os princípios superiores que lhe deram ser fizeram-no gratuitamente” (IV, 8, 6). Plotino
não concorda com os gnósticos, para os quais a matéria é má e o demiurgo é duro
(Marcião), ignorante (Valentim). A beleza do mundo impede Plotino de pensar que o
demiurgo seja mau (III, 2, 11). A matéria emana necessariamente dos princípios divinos,
que não são maus. O mal é incompletude. A matéria é o não-ser, o último grau dos entes,
o último sujeito. Ela é um “eclipse do ser”. Ela é outra em relação ao ser, que é o
suprassensível, o inteligível (álla: outras, no plural). Ela é o espelho invertido do Uno.
Este, o Uno, é o positivamente infinito (IV, 4 e 5; II, 4, 15). A matéria é o negativamente
infinito (o indefinido). O Uno é sobredeterminado. A matéria, subdeterminada.

Nós conhecemos no mundo sensível a matéria formada, determinada e


configurada como uma multiplicidade de corpos, de indivíduos. Mas, para além desta
matéria formada, é pensável a matéria prima do universo sensível-corpóreo: princípio de
não-ser, alteridade sem identidade, multiplicidade sem unidade, potência passiva sem
forma; o sem-forma não no sentido do indeterminado, que é tal porque transcende toda a
determinação, mas no sentido do indeterminado, cuja indeterminação é privação de toda
determinação. Como tal, a matéria é o princípio do mal e da desordem. É a distância

15
PLOTINO, Apud EDINGER, E. F. A Psique na Antiguidade – Livro Um.São Paulo: Cultrix, 2010, p.
168.

20
suprema da luz do Uno, que é o Bem. É escuridão e esterilidade absolutas, o limite da
máxima negatividade.

As almas individuais, oriundas de Deus, enveredam por caminhos perigosos,


graças à audácia (tólma), que as leva a buscar o prazer de possuir uma vida independente.
Passam, então, a ignorar sua filiação divina (V, 1, 1). Estas “filhas pródigas” só encontram
o caminho da casa paterna quando são lembradas de sua “nobre origem” (V, 1, 2). A
alma individual pode se deixar fascinar pelo “espelho de Baco” da matéria. A grande
tarefa da alma individual é o retorno para o Uno. O eu tem a tendência a se dispersar na
multiplicidade do mundo sensível e, assim, perder a si mesmo, alienando-se no mundo
das coisas e esquecendo sua semelhança com o Uno. Pensando salvar a própria
individualidade, identificada com o próprio corpo e a própria existência material-sensível,
o eu se aliena do seu verdadeiro si-mesmo, que corresponde à sua singularidade no Uno,
a qual não exclui, antes, inclui a comunhão com o Todo.

“Quando uma alma continua por longo tempo nesse recuo e


estranhamento do todo, sem jamais voltar o olhar para o inteligível, ela
se torna uma coisa fragmentada, isolada e frágil. Falta concentração à
atividade. A atenção se liga a particulares. Apartada do todo, a alma
adere à parte; para essa coisa única açoitada por todo um mundo de
coisas ela se voltou e se entregou. À deriva agora a partir do todo ela
lida até com essa particular dificuldade, seu cuidado quanto a ela
levando a atenção a elementos exteriores, a presença ao corpo, à funda
penetração do corpo. Assim sucede o que se chama de ‘perder as asas’
ou o ‘agrilhoamento da alma’” 16.

Como Narciso, a alma se enamorou de sua própria imagem refletida no mundo


sensível e, sob o encanto deste enamoramento, sucumbiu. Ela carece de salvação, de
resgate.

A alma individual traz tanto um aspecto irracional (alma irracional) quanto um


aspecto racional (alma racional – he logiké psyché). A alma irracional é a primeira que se
desenvolve no homem. É dela que provém a percepção exterior (he aísthesis he éxo). A
percepção exterior é produzida por uma paixão (páthos) da alma ou impressão (typos) do
objeto sobre o órgão. A alma irracional é também composta de imaginação sensível e de
apetite, que compreende o desejo sensual e a ira. A alma racional tem por domínio a
percepção interior (he aísthesis tes psychés), isto é, a percepção das paixões e das
impressões sensíveis, a apreensão das imagens, das formas inteligíveis... (IV, 3, 23). São

16
PLOTINO, Apud EDINGER, E. F. A Psique na Antiguidade – Livro Um.São Paulo: Cultrix, 2010, p.
159.

21
suas faculdades: a opinião, a razão discursiva ou raciocínio (diánoia, tò logizómenon), a
imaginação intelectual, a memória intelectual e a vontade. A alma não é a forma do corpo
(concepção aristotélica). Ela está unida ao corpo como a luz ao ar (IV, 3, 22). Não é alma
que está no corpo, mas sim o corpo que está na alma.

O “eu” – o que Plotino evoca dizendo “nós outros” – se encontra no nível da alma.
A alma pode ter uma intuição intelectiva (nóesis) do Intelecto. Ela lhe pertence. A vida
intelectual é uma vida superior (I, 1, 12; V, 13). Essa intuição ultrapassa qualquer
conhecimento discursivo, apreende a essência de uma maneira imediata e intemporal (noû
ópsis – visão do intelecto). A visão intelectual acontece ou porque recebemos impressões
e regras gravadas em nós, ou porque o Intelecto está presente em nós. Diferente de Platão,
Plotino entende que a intuição intelectual é possível sem reminiscência. Os pés da alma
tocam o chão, sua cabeça eleva-se acima do céu (IV, 3, 12). As almas têm vida dupla: no
mundo sensível e no mundo inteligível. Podem compartilhar com a Alma e com o
Intelecto o governo do mundo. Ou podem, separadas da Alma universal por causa de seu
desejo de vida independente, precipitar-se nos corpos (reencarnações).

O retorno da alma individual ao Absoluto, não anula sua identidade ou


individualidade. O caminho de retorno, a conversão, é o resgate da semelhança com o
Uno. Este retorno, porém, se dá numa viagem errática, como a viagem de Odisseu
(Ulisses) em busca de sua pátria. O retorno consiste em tornar-se uno em si mesmo, uno
com todas as coisas e com todas as almas, uno com o Intelecto e, enfim, uno com o Uno.
Trata-se de uma ascensão, semelhante àquela ensinada por Diotima a Sócrates, no
Banquete de Platão. Impulsionada pelo amor (eros), e guiada pelo intelecto (nous),
peregrinando de belo em belo, a alma chega, enfim, à Beleza pura e simples: a beleza
divina, que a salva. No Uno, que é o Bem e a Beleza, o homem encontra, enfim, o repouso
para os seus desejos.

“O Uno não aspira a nós, não aspira a se mover em torno de nós; nós
aspiramos a ele, a nos mover em torno dele. Na verdade, sempre nos
movemos em torno dele; mas nem sempre vemos. Somos como um coro
reunido perto de um maestro que deixa que sua atenção se distraia com
a platéia. Se, contudo, o coro se voltasse para o maestro, ele cantaria
como deveria e realmente acompanharia o maestro. Estamos sempre em
torno do Uno. Se não estivéssemos, nos dissolveríamos e deixaríamos
de existir; no entanto, nosso olhar não continua fixo no Uno. Quando
olhamos para ele olhamos, chegamos ao fim de nossos desejos e

22
encontramos repouso. Então, passada a discórdia, dançamos uma dança
inspirada em torno dele” 17.

A filosofia de Plotino não é outra coisa do que uma anagogia: a elevação da alma
ao Uno. A sua concepção metafísica se concentra toda em traçar os estágios da processão
do Uno, a fim de delinear os degraus da elevação, que a alma há de cumprir, na sua
conversão ou retorno para o Uno, origem de todo o ser. Na união mística com o Uno, está
o bem supremo do homem, a culminação de toda a ética e, por conseguinte, da filosofia.

A obra de Plotino chamou a atenção de pensadores cristãos. Plotino fala de uma


“luz oriunda da luz”, como os cristãos falam do Lógos (Verbo – Segunda pessoa da
Santíssima Trindade). Fala do “Lógos por meio do qual a Alma governa o cosmo”. São
Basília extrai vários textos de Plotino, identificando a Alma universal, o “espírito de vida
que ela insufla no mundo” (V, 1, 2) com o Espírito Santo (Terceira pessoa da
SantíssimaTrindade).

Santo Agostinho leu bastante Plotino, na tradução de Mário Vitorino. Para


Agostinho, os filósofos neoplatônicos se encontram na sua mesma dinâmica, ou seja, no
movimento do quaerere Deum (buscar Deus): cuncta corpora transcenderunt quaerentes
Deum; omnem animam mutabilesque omnes spiritus transcenderunt quaerentes summum
Deum (transcenderam todos os corpos, em busca de Deus; transcenderam também todas
as almas mutáveis e os espíritos, em busca do sumo Deus). (A Cidade de Deus VIII 6). O
neoplatonismo teria até mesmo, segundo Agostinho, vislumbrado algo da Trindade. De
fato, Agostinho entrevê uma analogia entre a tríade ser, entender, viver (esse, inteligere,
vivere) ou a tríade Uno (hen), Intelecto (Nous) e Alma do mundo (Psyché), com o mistério
trinitário do Pai, Filho e Espírito Santo. Não escapou, porém, a Agostinho, que as três
hipóstases de Plotino formavam uma Trindade desigual, descendente. Já na Trindade
cristã as três pessoas são iguais. Depois, para o cristianismo, Deus se conhece e se ama.
Mas para Plotino, o Uno não se conhece, embora se ame. É que, para Plotino,
conhecimento implica dualidade (conhecedor e conhecido). Para Plotino, o Intelecto
constitui uma díade indivisa. Para o cristianismo, Pai e Filho é que formam uma díade
indivisa. Ambos espiram o Espírito Santo graças a seu amor mútuo.

17
PLOTINO, Apud EDINGER, E. F. A Psique na Antiguidade – Livro Um.São Paulo: Cultrix, 2010, p.
170.

23
Para Agostinho, ainda, o neoplatonismo teria ainda o mérito de propor ao homem
a busca da purificação, da iluminação e da visão de Deus e um ideal de virtude maior, que
consiste no ser semelhante a Deus (A Cidade de Deus IX 17).

Entretanto, segundo Agostinho, movidos pela soberba, os filósofos neoplatônicos


não foram capazes de aderir ao Verbo encarnado: ao Deus que se esvaziou a si mesmo,
fazendo-se semelhante ao homem e tornando-se servo de todo o homem, a ponto de, por
amor aos homens, sofrer a morte de Cruz. De fato, estes filósofos mostraram-se vãos, ao
aderir aos sacrifícios pagãos e ao culto dos demônios (entendidos como mediadores entre
os deuses e os mortais), como foi o caso de Porfírio, o qual confessou não ter ainda
constado que nenhuma seita teria encontrado “a senda universal para a libertação da alma”
(A Cidade de Deus IX 33). Tornaram-se cegos para o único mediador entre Deus e o
homem, o Deus-homem, Cristo Jesus. Cumpriu-se assim o oráculo do profeta Isaías:
perdam sapientiam sapientium et prudentiam prudentium reprobabo (porei a perder a
sabedoria dos sábios e reprovarei a prudência dos prudentes) (Cfr. Confissões VII 9). De
fato, a “senda universal para a libertação da alma” se encontra no seguimento humilde do
Cristo Crucificado, o Logos feito carne, humanado, que os platônicos, em sua soberba,
não reconhecem.

IV. PORFÍRIO E A SUA “ÁRVORE”: ESTUDOS SOBRE OS PREDICÁVEIS NA


“EISAGOGÉ” (INTRODUÇÃO).

IV.1. SOBRE A “EISAGOGÉ”: DAS CATEGORIAS (PREDICAMENTOS) AOS


CATEGOREMAS (PREDICÁVEIS).

Para Porfírio a filosofia se articulava em ética, física e metafísica. A lógica servia


como propedêutica a todo o estudo da filosofia. Na lógica, Porfírio comentava o
“Órganon” (“Instrumento”) de Aristóteles e o diálogo “Crátilo” de Platão. O mesmo
método de aproximar Platão e Aristóteles se dava também nas outras “disciplinas”
filosóficas. Assim, na ética comentava a “Ética” e a “República”; na física, a “Física” e o
“Timeu”; e na epóptica – palavra que significa “Contemplativa”, “Teorética”, “Esotérica”

24
– ou metafísica, a “Metafísica” e o “Parmênides”. Entre os escritos do “Órganon”,
Porfírio preferiu comentar as “Categorias” e o texto “Sobre a Interpretação”.

O problema das “categorias”, desde Porfírio e Boécio, passou a ser um dos mais
importantes da investigação filosófica. A palavra “categoria” vem do grego, katêgoría,
que significa, na linguagem ordinária, “acusa”. O uso ordinário da palavra remontava ao
fenômeno do falar-uns-com-os-outros na convivência pública da Pólis. O espaço
privilegiado, aberto à discussão, onde os cidadãos discutiam os destinos da Pólis era a
“ágora”, a praça, o fórum, o espaço público onde acontecia o intercâmbio de mercadorias,
de opiniões, bem como os discursos endereçados ao público, as assembleias, os
julgamentos, etc. Daí o verbo “katêgoreîn”, que significava, originariamente, dizer
alguma coisa publicamente na cara de alguém, daí, acusar em público, acusar numa
assembleia ou num julgamento. Aristóteles assumiu este verbo da linguagem ordinária e
deu a ele uma conotação lógico-filosófica. “Katêgoreîn” passou a significar, num juízo,
atribuir um predicado a um sujeito e “katêgoría” tomou o significado de “predicado” de
uma proposição. Aristóteles usou a expressão “katêgoriai toû ontos” para dizer aqueles
predicados mais abrangentes e originários que se podem atribuir ao ente enquanto ente.
A tradição chamou as categorias do ente de “gêneros supremos”, por serem gêneros que
não podem se tornar espécies de outros gêneros. Tratam-se de predicados universais, que
se referem ao ente enquanto ente, isto é, ao ente no seu todo. São chamadas, em latim, de
“praedicamentum”, predicamento – de praedicare: dizer diante de, dizer publicamente,
proclamar.

A lista das categorias ou predicamentos varia na obra de Aristóteles. Na obra


dedicada a este problema – Categorias IV, 1 b – se apresenta a lista mais completa,
constando de dez tipos de predicamentos do ente:

25
Ousía
aquilo que responde à pergunta “tí tó o “tí estin”, o “o que é” do ente, sua o substrato (hypokéimenon) das o sujeito, aquilo de que se fala ou se diz
Ex.: “Sócrates”.
on?” – o que é o ente? vigência, presença, entidade: substância manifestações de uma coisa; alguma coisa, aquilo de que se predica.

Póson

a quantidade, o que é inerente a uma coisa por si mesma, devido à sua matéria. Ex.: “Sócrates é de um metro e setenta de altura”.

Poión
a qualidade, o que é inerente a uma coisa por si mesma, devido à sua forma. Ex.: “Sócrates é branco”.

Prós ti

a relação, o que é inerente à coisa, mas não por si mesma, e sim em referência a outra coisa. Ex.: “Sócrates é pai de três filhos”.

Poû

os latinos diziam, o “ubi”, isto é, o onde. o lugar natural que cabe a esta coisa no universo. Ex.: “Sócrates é natural de Atenas”.

Pôte

o quando, o que se dá como uma medida extrínseca à coisa, a partir do tempo. Ex.: “morto em 399 a.C.”.

Keîsthai
situs: o que indica a disposição das partes do sujeito, o modo como o sujeito está disposto, posto ou
Ex.: “Sócrates está sentado”.
posicionado.

Échein
“habitus”: atinência extrínseca, ou seja, modo de se ter com e de se
o “ter a ver” de alguma coisa com outra coisa. Ex.: “Sócrates está calçado”
ater a (habere);

Poieín

actio: pôr em obra, atuar, agir, fazer – quando a coisa é o princípio da ação. Ex.: “Sócrates ensina”.

Páschein

passio: sofrer, ser atingido, afetado – quando a coisa é o termo ou o fim da ação. Ex.: “Sócrates foi condenado à morte”.

Já na antiguidade havia três linhas de interpretação a respeito do estatuto das


categorias. Havia uma interpretação ontológica, que tomava as categorias como divisões
originárias do ser do ente; uma interpretação linguístico-gramatical, que tomava as
categorias como modalidades segundo as quais se estrutura a língua e às quais
correspondem as partes do discurso: substantivo, adjetivo, verbo, advérbio, etc.; e uma
interpretação lógica, que via nas categorias os termos mais gerais aos quais se podem
reconduzir os termos de um enunciado, melhor dizendo, os predicados atribuíveis aos
sujeitos. A questão era: qual seria o “medium”, isto é, o elemento no qual as categorias
vigoram: o ser do ente, a língua e a linguagem ou o pensamento e o conceito? Porfírio,
segundo o seu propósito de uma “Eisagogé” (Introdução) e seguindo uma tradição
presente na escola peripatética (Boeto, sucessor de Andrônico de Rodes; e Hermínio,
mestre de Alexandre de Afrodísia), toma o fio condutor da interpretação lógica, por ser
ela a intermédia, ou seja, ela inclui a dimensão da língua e da linguagem e remete para a
dimensão do ser e do ente.

26
A obra em que Porfírio discute o problema das categorias é usualmente conhecida
em forma abreviada sob o título de “Isagoge”. O título completo soa assim: “Eisagogé
eis tais Aristotélous katêgoríais, perì tôn pénte phônôn” 18, literalmente, “Introdução às
Categorias de Aristóteles: acerca das cinco vozes”. Trata-se, em primeiro lugar, de uma
introdução. Introdução a quê? A resposta pode ser dada em diversos níveis: como uma
introdução ao problema das categorias em Aristóteles; como uma introdução à lógica; e
como uma introdução à filosofia. Com efeito, a lógica era a propedêutica à filosofia;
Aristóteles era considerado o pensador que abria o acesso à compreensão dos “mistérios”
tratados por Platão, e o “Órganon” em geral e as “Categorias” em especial eram
considerados o ponto de partida do estudo das obras de Aristóteles. De que se trata,
porém, quando o título fala de “cinco vozes”? Na Idade Média, estes gêneros supremos
eram chamados de “Quinque voces” (Cinco Vozes). A “voz” é a dimensão sensível
imediata do exercício concreto da linguagem, ou melhor, da fala ou discurso:

“Em seu exercício concreto, o discurso (deixar ver) tem o caráter de


fala, de articulação em palavras. O lógos é phonê e, na verdade, phonê
metá phantasías – articulação verbal em que, sempre, algo é
visualizado” 19.

Na Idade Média, haverá quem, como Roscelino de Compiégne (1050-1120),


negaria o qualquer estatuto de realidade aos universais, com a tese: “universalis est vox,
flatus vocis” – o universal é voz, sopro da voz. Abelardo, porém, preferirá identificar
“vox” (voz) a “sermo” (discurso). Podemos dizer que o título do Isagoge não exige uma
interpretação “vocalista” ao modo de Roscelino. Entretanto, fica em aberto, se requer uma
interpretação nominalista, ou seja, que nega qualquer estatuto de realidade ao universal.
Acerca deste problema dos universais, porém, não iremos tratar aqui. Deixaremos para
outra ocasião. Em todo o caso, na leitura que a tradição fez do Isagoge, as “ cinco vozes”
são interpretadas como cinco categoremas ou predicáveis, que designam os modos em
que um predicado se predica de um sujeito, ou seja, as diversas formas de relações lógicas
que o predicado pode ter com o sujeito: gênero, espécie, diferença, próprio e acidente.
Aristóteles, na verdade, nomeava quatro predicáveis: definição, próprio, gênero e

18
Cfr. PORFÍRIO. Isagoge. Texto greco a fronte / versione latina di Boezio. A cura di Giuseppe Girgenti.
Milano: Rusconi, 1995. A introdução desta obra pelo organizador desta edição italiana serviu como um
estímulo importante para o autor deste comentário e abriu perspectivas importantes de interpretação. Sejam
dados os créditos, porém, também a outros textos de que o autor se serviu na elaboração do presente texto:
ROVIGHI, Sofia V. Elementi di Filosofia (3 vols.). Brescia: La Scuola Editrice, 1998. LIBERA, A. de. Il
Problema degli Universali: da Platone alla fine Del Medioevo. Firenze: La Nuova Italia Editrice, 1999.
19
HEIDEGGER, M. Ser e Tempo (Parte I). Petrópolis-RJ: Vozes, 1988, p. 63.

27
acidente. A compreensão destes predicáveis pode ser articulada em relação a dois
critérios: se o predicado pode ser conversível com o sujeito, ou seja, se pode haver uma
permuta entre o predicado e o sujeito sem alterar o significado da proposição; e se o
predicado é essencial ou não ao sujeito. A definição é um predicado conversível e
essencial a um sujeito. O próprio é um predicado conversível, mas não essencial a um
sujeito. O gênero é um predicado não conversível, mas essencial ao sujeito. O acidente é
um predicado que não é nem conversível nem essencial ao sujeito. Porfírio, porém, em
relação a Aristóteles, retira a definição e acrescenta a espécie na lista dos predicáveis ou
categoremas.

Porfírio diferencia entre categorias e categoremas. Categorias são tipos de


predicados, são predicamentos; categoremas são formas de predicação, são predicáveis.
Por exemplo: “Sócrates é animal, homem, branco, de um metro e setenta de altura, pai de
três filhos”. “Sócrates”, enquanto nome próprio, nomeia um indivíduo e indica uma
substância (substantivo). “Animal” e “homem” são predicados de Sócrates que nomeiam
sua essência, não enquanto Sócrates, mas enquanto humano. “Homem” designa a espécie
a que este indivíduo pertence e “animal” designa o gênero a que esta espécie “homem”
pertence. “Branco” é um predicado que nomeia uma qualidade de Sócrates, algo de
contingente, uma vez que Sócrates, a rigor, podia não ser branco e a sua cor é algo de
acidental, não é essencial. “De um metro e setenta de altura” nomeia uma quantidade.
“Pai de três filhos” nomeia uma relação. Estas indicações trazem à tona as categorias ou
predicamentos e respondem à pergunta: quais são os predicados de Sócrates? Já o modo
de ser dos categoremas ou predicáveis aparece quando perguntamos: de que modo se
predica os predicados “animal”, “homem”, “racional”, “capaz de rir”, “branco”, “pai de
três filhos” de Sócrates? Resposta: “animal” se predica como gênero; “homem”, como
espécie; “racional” como diferença específica; “capaz de rir” como próprio; “branco” e
“pai de três filhos” como acidentes, no caso de “branco” nomeando uma qualidade, e no
caso de “pai de três filhos” nomeando uma relação. Os cinco predicáveis referidos por
Porfírio são, pois: gênero, espécie, diferença, próprio e acidente. Vejamos, agora, mais
de perto o modo de predicação de cada um destes predicáveis.

Gênero (Génos) nomeia um predicável que indica a essência do sujeito, só que de


modo indeterminado, pois um gênero é comum a várias espécies; espécie (eidos) nomeia
um predicável que indica, de modo determinado, a essência do sujeito; diferença
(diaphorá) nomeia um predicável que indica o elemento definidor ou determinante de

28
uma espécie, ou seja, aquilo que a faz distinguir das demais espécies; próprio (ídion), por
sua vez, nomeia um predicável que indica uma característica, a qual sempre diz respeito
ao sujeito em questão, mesmo não fazendo parte da definição da espécie, ou seja, o
próprio é um predicável, o qual diz respeito a todos os indivíduos de uma espécie, somente
a estes e sempre; por fim, acidente (symbebekós) nomeia um predicável que indica algo
que diz respeito ao sujeito em questão, mas só casual ou ocasionalmente, não estando
sempre presente nele, ou seja, o acidente é aquilo que pode estar presente ou ausente da
coisa, sem que ela, por isso, deixe de ser especificamente aquilo que ela é. Tomemos, por
exemplo, o caso do “homem”. A definição de homem soa assim: “homem é animal
racional”. “Animal” indica o gênero. “Homem”, a espécie. “Racional”, a diferença. Algo
que não entra na definição de homem, mas que é uma sua característica sempre presente,
pode ser tomado como seu próprio. Por exemplo: ser capaz de rir. A capacidade de rir é
uma característica própria do homem enquanto homem, ou seja, enquanto espécie. Outra
coisa que não entra nem na definição de homem nem lhe é uma característica própria, isto
é, sempre presente, e que acontece só casual ou ocasionalmente é um acidente, isto é, algo
de casual, que sobrevém ao homem só ocasionalmente, como, por exemplo, ser branco
ou negro, ser rico ou pobre, ter nascido no Brasil ou na Itália, etc.

Se tomarmos em consideração as “cinco vozes” como possibilidades de


predicação, ou seja, como possibilidades de relação entre predicado (P) e sujeito (S),
então podemos compreendê-las do seguinte modo. 1. Gênero: quando P é predicado de
modo essencial na definição de S, sendo S o nome de uma espécie. Por exemplo: “Homem
é animal racional”. Nesta definição, “animal” é gênero de “homem”, que é nome de uma
espécie. Os gêneros se dividem em diversas espécies: com efeito, há diversas espécies de
animais. 2. Espécie: quando P é predicado essencial de S, sendo S o nome de um
indivíduo. Por exemplo: “Sócrates é homem”. É que a espécie se divide numericamente
em diversos indivíduos: assim, a espécie “homem” se divide, do ponto de vista lógico,
em muitos e vários sujeitos com nomes próprios, como Pedro, João, Maria, Teresa, etc.
3. Diferença: quando P é predicado a modo de qualidade de S, onde esta qualidade entra
na definição da essência do sujeito em questão. Trata-se, portanto, não de uma qualidade
acidental, mas sim de uma qualidade essencial. A diferença é o que determina o gênero,
fazendo aparecer a espécie. Por exemplo: “O homem é racional”. A razão é o que
diferencia a espécie “homem” de outras espécies de animais, muito embora a
racionalidade não seja um atributo somente do homem, mas de todos os seres espirituais.

29
Por exemplo: os espíritos, tais como demônios e deuses, na visão grega, e anjos e
demônios na visão cristã, serão considerados também como seres racionais. Por isso, na
definição porfiriana do homem, se acrescentará as diferenças “racional e mortal” e não
somente a diferença “racional”. Racional diferenciará a espécie homem dos animais
irracionais e, “mortal”, dos “animais” (viventes, seres dotados de alma) racionais
imortais, ou seja, os espíritos. 4. Próprio: quando P é um predicado não-essencial, isto é,
que não entra na definição da essência de um S, mas que é uma sua característica típica,
identificadora, constante, invariante. Ex.: “O homem é um ser vivo capaz de rir”. Isto
valerá para todos os indivíduos humanos, sempre, mesmo se alguns não exercerem esta
capacidade. 5. Acidente: quando P é predicado de modo não-essencial e indica algo que
apenas casual ou ocasionalmente pode estar presente em S. Por exemplo: “Sócrates é pai
de três filhos”.

De uma maneira esquemática, nós podemos expor assim os cinco predicáveis:

Exprime a essência de modo indeterminado: gênero


Essencial Exprime a essência de modo determinado: espécie
Predicado Exprime a essência de modo determinante: diferença

Inerente de modo necessário à essência: próprio


Não essencial
Inerente de modo contingente à essência: acidente

Isto quanto ao título do Isagoge. Precisamos, no entanto, entender também qual a


chave de leitura que Porfírio adota ao comentar os escritos aristotélicos. É o nosso
próximo passo.

IV.2. A CHAVE DE LEITURA HENOLÓGICA DE PORFÍRIO NA INTERPRETAÇÃO DA


LÓGICA E DA ONTOLOGIA DE ARISTÓTELES.

Em Porfírio, os conceitos fundamentais da ontologia aristotélica são lidos numa


chave de leitura típica do neoplatonismo, que pode ser denominada de fenológica e que

30
tem como referência os binômios: uno/muitos, todo/partes, identidade/diferença. Sob o
ponto de vista do binômio uno/muitos, Porfírio diz:

“Quando se descende, portanto, às espécies ínfimas, necessariamente se


procede, com a divisão, até à multiplicidade; enquanto, quando se
remonta aos gêneros supremos, necessariamente se reconduz da
multiplicidade à unidade: de fato, a espécie, e, ainda mais, o gênero,
reconduz os muitos a uma única natureza, enquanto, ao contrário, os
indivíduos e as coisas particulares, dividem sempre o uno em
multiplicidade” (Isagoge 6, 16-20).

O domínio dos indivíduos é o do domínio da máxima multiplicidade. A unidade


dos indivíduos é uma unidade numérica. Se mantivermos o olhar na multiplicidade dos
indivíduos nos dispersaremos numa infinidade de substâncias, com uma infinidade de
acidentes. Se elevarmos o olhar um pouco, tentando colher o que há de comum entre
muitos e vários indivíduos, descobriremos ainda uma multiplicidade de espécies e
subespécies. Se elevarmos um pouco mais o olhar do intelecto e buscarmos a unidade de
muitas e várias espécies, descobriremos uma multiplicidade reduzida de gêneros. E se
elevarmos o olhar para os gêneros supremos, nós encontraremos uma multiplicidade finita
de conceitos, a qual nos aproximará cada vez mais da unidade que recolhe todas as coisas,
e que não pode ser conceituada ou encerrada em qualquer categoria.

Do ponto de vista mereológico, ou seja, na perspectiva do binômio todo/partes,


Porfírio diz:

“O gênero é um todo, enquanto o indivíduo é uma parte; a espécie é ao


mesmo tempo todo e parte, mas, parte de outra coisa, e todo em outra
coisa, e não de outra coisa; de fato, o todo está nas partes” (Isagoge, 8,
1-3).

Os dois extremos são, portanto, o gênero e o indivíduo. Gênero é um conceito de


totalidade, certamente, uma totalidade unitária, embora não simples, pois é composta de
várias e muitas espécies. O indivíduo, tomado em sua unidade numérica, é aquela
substância que é distinta de todas as outras (“dividida” em relação às demais) e que em si
mesma não pode mais ser dividida: indivisum in se et divisum a quolibet alio, dirá o
adágio da Escola. É claro que o indivíduo pode ter partes e que cada parte pode ser
considerada em si mesma e pode também ser considerada em suas subpartes e assim
infinitamente. Entretanto, a unidade aqui considerada é uma unidade lógica, mais do que
física. Chamamos de indivíduo uma realidade tomada enquanto tal, um ente enquanto este
ente intencionado numa percepção, ou seja, numa intuição ou numa visão imediata.

31
Sócrates é um indivíduo, ou seja, uma substância individual, mas não é uma substância
simples. De fato, esta substância é composta, de matéria e forma, de corpo e alma. É
verdade que o corpo de Sócrates é divisível em tantos órgãos e cada órgão pode ser
dividido ulteriormente e assim por diante. Entretanto, no nome próprio “Sócrates” viso
um indivíduo, ou seja, falo da realidade que é esta pessoa, esta substância individual.
Nisso, estou falando de uma unidade indivisível, pois é a unidade de uma pessoa, distinta
de todas as demais pessoas e, ao mesmo tempo, única e singular em si mesma; e a
totalidade dos seus aspectos não é uma mera soma de partes, mas sim uma totalidade
vivente multidimensional, corporal-psíquica-espiritual; uma totalidade que se reúne em
torno de um eu, melhor, de um si-mesmo, que é o centro unificador de seus atos e de seus
aspectos. Tudo isso quer dizer: embora o indivíduo seja uma totalidade real, natural,
“física”, ele não é, do ponto de vista lógico, uma totalidade que tem sob si mesmo outros
tipos de unidade: é indivisível.

Entretanto, entre o gênero, que é totalidade, e o indivíduo, que é parte, está a


espécie, que é parte e todo, ao mesmo tempo. Porfírio dá, porém, uma dica sobre os
diferentes modos de ser todo e parte, em relação à espécie. Diz que a espécie é parte de
outra coisa; e que é todo em outra coisa. O “ser-de” indica a relação no horizonte da
predicação. A espécie é parte do gênero, como “homem” é parte do gênero “animal”.
Neste caso, o ser-parte-de é tomado a partir da predicação. Mais uma vez, “parte” tem
aqui um sentido lógico, melhor, onto-lógico e não ôntico-físico. O ser-animal se predica
do ser-homem. “Homem”, enquanto espécie, por sua vez, participa, ou seja, toma parte
do modo de ser do gênero “animal”. Por outro lado, a espécie é todo; e todo em outra
coisa. O “ser-em” indica, em sua perspectiva, uma presença imanente. A espécie é uma
totalidade participada por muitos, vários e diferentes indivíduos. E que se encontra, como
forma comum e como estrutura invariante, em cada indivíduo. Enquanto forma imanente,
a espécie não é um todo que está “por fora” dos indivíduos, mas um todo que está em
cada indivíduo, pois, diz Porfírio, “o todo está nas partes”. Poderíamos, talvez, dizer que
a espécie se encontra individuada em cada indivíduo? Se eu tomasse cor como gênero, e
vermelho como espécie de cor, poderia dizer que o ser-vermelho se encontra presente em
cada vermelho individual, tomado como este vermelho aqui, presente neste vaso de
cerâmica, que é único no mundo, com esta precisa nuança que lhe é única e singular?
Talvez sim, na perspectiva da reflexão porfiriana.

32
Há, ainda, a perspectiva do binômio identidade/diferença. Porfírio afirma que as
diferenças “são parte integrante da definição de cada coisa, e o ser da coisa, que é uno e
idêntico, não admite nem aumento nem diminuição” (Isagoge, 9, 20-22). O universal diz
a identidade de diversos e diferentes. Ser idêntico é ser uno. Todo ente é idêntico consigo
mesmo, à medida que é uno. Diversos entes são idênticos à medida que, entre eles, há
uma unidade, que os reúne numa comunidade. Todas as abelhas são idênticas enquanto
são abelhas, são diversas apenas enquanto há diferenças de grandeza, beleza, etc. Quer
dizer: no ser-abelha, são idênticas. Logo se vê, também, que ser-idêntico não é ser-igual.
A identidade é um corolário da unidade. A igualdade o é da multiplicidade. Pois bem, o
ser de uma espécie é único e idêntico, ainda que os indivíduos que dela participam sejam
muitos e distintos. Esta unidade específica permanece sempre una, isto é, ela não se
multiplica com a multidão dos indivíduos. Assim, nesta perspectiva, a espécie “homem”
não se multiplica com o aumento ou a diminuição dos indivíduos humanos. Mais do que
uma realidade factual, a espécie diz uma possibilidade essencial, um possível modo de
ser, um poder-ser. Também permanece sempre idêntica, pois não se diferencia, enquanto
espécie, em razão das distinções que se operam sob sua vigência. Por exemplo: o
vermelho permanece sempre idêntico consigo mesmo, enquanto vermelho, não obstante
acontecer de a vermelhidão ou rubor se dar em distintas nuanças e infindas
particularidades em todos os vermelhos existentes nas coisas. A espécie não aumenta nem
diminui, com o aumento e diminuição dos indivíduos. Ela é e permanece sempre una em
si mesma. A diferença entre indivíduo e espécie, portanto, parece não ser uma diferença
ôntica, que diz respeito ao ente em suas propriedades fatuais, mas sim uma diferença
ontológica, isto é, uma diferença que não entre ente e ente, mas sim entre ser e ser, ou
seja, entre ser individuado e ser comum. Aumento e diminuição dizem respeito ao
domínio dos indivíduos e dos acidentes das substâncias individuais. O ser da coisa é,
porém, uno e idêntico. A unidade do indivíduo é numérica. A unidade da espécie não é
numérica. Por outro lado, não obstante a ênfase na identidade como corolário da unidade,
não se pode dizer que a diferença deixa de ter importância. Porfírio afirma, ainda, que as
diferenças entram na definição das coisas, como partes integrantes, isto é, como partes
intrínsecas, essenciais. Naturalmente, trata-se de diferenças específicas, pois as diferenças
individuais não entram na definição de um ente. O indivíduo enquanto tal é indefinível.
Não se pode definir “Sócrates”. Mas se pode definir uma espécie, como “homem”, por
exemplo. Do mesmo modo, um gênero supremo não pode ser propriamente definido. Não
se pode definir, por exemplo, ser. Pois ser é um conceito transcendental, que ultrapassa

33
toda determinação em termos de gênero, diferença e espécie. Ora, aqui estamos falando
de definição em sentido rigoroso, como definição essencial, de cunho metafísico, ou seja,
uma definição que precisa e determina os constitutivos da essência da coisa, isto é, o
gênero próximo e a diferença específica. Assim, segundo a antropologia filosófica
tradicional, definir “homem” é dizer “animal racional”, sendo “animal” o gênero próximo
da espécie “homem” e “racional” a diferença que determina a especificidade da espécie
“homem”, destacando-a do fundo indeterminado do gênero “animal”. Logo se vê que é a
diferença o elemento determinante, que torna nítido e preciso o que antes era
indeterminado, isto é, difuso e vago.

IV.3. A “SCALA PRAEDICAMENTALIS” OU “ÁRVORE DE PORFÍRIO”.

Tendo tratado das noções dos predicáveis e da chave de leitura henológica feita
por Porfírio a partir dos binômios uno/múltipo, parte/todo e identidade/diferença, convém
agora tratar da “scala predicamentalis” ou o que ficou conhecido na tradição como
“árvore porfiriana”. Trata-se de uma escada que articula os predicáveis, descendo do
gênero supremo através das várias diferenças específicas até a espécie ínfima e, por fim,
ao indivíduo.

IV.3.1. Exposição da “Scala predicamentalis”

A ordem dos predicáveis, ou seja, sua disposição e articulação, se dá de maneira


gradual, a modo de escalação descendente. Vemos, assim, que, ao fundo da scala
praedicamentalis está a ordenação henológica-ontológica hierárquica. Porfírio escreve:

“O gênero supremo é aquele sobre o qual não pode haver algum outro
gênero superior, enquanto a espécie ínfima é aquela debaixo da qual
não pode haver alguma outra espécie inferior; são termos intermediários
entre o gênero supremo e a espécie ínfima, outros que são, ao mesmo
tempo, gênero e espécie, naturalmente em relação a sujeitos diversos.
Esclarecemos este discurso tomando como exemplo uma categoria. A
“substância” é ela mesma um gênero, à qual é subordinada a espécie
“corpo”; subordinado a corpo” é “ser vivente”; a este é subordinado
“animal”, enquanto a “animal” é subordinado “animal racional”; a este,
ainda, é subordinado “homem”, e a “homem”, enfim, são subordinados
“Sócrates”, “Platão” e os outros indivíduos. Entre todos estes termos,
“substância” é o gênero supremo, porque é somente gênero, enquanto

34
“homem” é a espécie ínfima, porque é somente espécie; “corpo”, por
sua vez, é espécie de “substância” e, ao mesmo tempo, gênero de “ser
vivente”. Por sua vez, “ser vivente” é espécie de “corpo” e gênero de
“animal”; e assim “animal” é espécie de “ser vivente” e gênero de
“animal racional”; “animal racional” é espécie de “animal” e gênero de
“homem”; “homem”, enfim, é espécie de “animal racional”, mas não é
gênero dos homens individuais, mas é somente espécie” (Isagoge, 4,
17-31).

A scala predicamentalis ou “árvore porfiriana” pode ser representada


esquematicamente de diversas formas, algumas mais estáticas, outras mais dinâmicas.
Tentemos, pois, representar em forma de escada e em forma de árvore a ordem dos
predicáveis segundo o exemplo apresentado por Porfírio no nosso texto que acabou de
ser citado, que é o exemplo da categoria substância.

substância (ousía)
"ens per se": o ente que é por si mesmo. Gênero supremo ou generalíssimo (genikôtaton). Gênero
divide-se pelas diferenças "corpórea" (sensível) e "incorpórea" (inteligível);
próximo de "corpo";

corpo (sôma)
espécie de substância e gênero próximo de "ser vivente"; divide-se pelas diferenças "animado" (ser vivente) e "inanimado" (mineral)

ser vivente (émpsychon)


espécie de corpo e gênero próximo de animal; divide-se pelas diferenças "sensitivo" (animal) e "vegetativo" (vegetal)

animal (zôon)
espécie de ser vivente e gênero próximo de animal racional; divide-se pelas diferenças "racional" (ser pensante) e "irracional" (bestial);

ser pensante (logikón)


espécie de animal e gênero próximo de homem; divide-se pelas diferenças "mortal" (homem) e "imortal" (espíritos);

homem (ánthrôpos)
espécie de ser pensante. Espécie infíma ou especialíssima (eidikôtaton); divide -se apenas numericamente em muitos, vários e diferentes indivíduos;

indivíduos ou homens em sentido particular (hoi katà méros ánthrôpoi)

Sócrates, Platão, etc.

Figura 1

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substância (ousía)
corpórea (sensível) incorpórea (inteligível)
corpo (sôma)
animado (vivente) inanimado (mineral)
vivente (émpsychon)
sensitivo (animal) vegetativo (vegetal)
animal (zôon)
racional (pensante) irracional (bestial)
pensante (logikón)
[mortal] [imortal]
homem (ánthrôpos)
Sócrates Platão
Figura 2

A árvore porfiriana é, portanto, uma escala descendente. E a descendência se diz


tanto em sentido de um movimento que vai de alto a baixo, do gênero supremo, que é a
substância, até a espécie ínfima, que é o homem, e, para além dela, até os indivíduos
humanos – Sócrates, Platão, etc.; quanto no sentido de um movimento por assim dizer
geracional, que constitui uma ordem de proveniência, ao ritmo da sucessão dos gêneros.
Com efeito, a palavra grega “génos”, na linguagem corrente, significava origem, família,
descendência, estirpe. Claro que, aqui, não se trata propriamente de uma geração física.
Trata-se, antes, de um movimento de proveniência, que se estabelece na dinâmica dos
predicáveis, no reino enigmático dos universais, isto é, da linguagem-conceito, com suas
correspondências ontológicas (metafísicas, transcendentes, a priori) e também ônticas
(físicas, imanentes, empíricas). Por um lado, é um movimento de descendência através
de diversas formas de unidade (genérica, específica e numérica), onde a cada nível
inferior se evidencia mais e mais a multiplicidade. Trata-se, por outro lado, também de
um movimento de contínua e crescente determinação, onde o que aparece vai se definindo
cada vez mais de maneira precisa e vai ganhando cada vez mais em nitidez.

Poderíamos entender cada nível como um horizonte de compreensão do ser do


ente. Aliás, a palavra grega para definição (que articula gênero e diferença fazendo

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resultar a espécie) é hóros, que, em linguagem usual, significava limite, confim.
Aristóteles também usava como equivalente de hóros a palavra horismós, de-limitação,
de-finição. Para o grego, o limite (péras), não era algo de negativo, era, antes, sinônimo
de perfeição. Quando uma obra alcança o seu limite, ela se consuma e passa a repousar
em si mesma. Então é que ela brilha em sua verdade e beleza. O limite é a determinação,
que dá nitidez à identidade da coisa. É o que torna visível o fenômeno. Ora, chamamos
de “horizonte” aquilo que delimita a visibilidade, o aparecimento, a presença e vigência
de uma paisagem. Podemos, pois, entender cada nível da escala predicamental como
sendo um horizonte de aparecimento, de presença e de vigência de algum modo de ser.
Em vez de horizonte, talvez pudéssemos também usar a palavra dimensão, pois cada nível
tem um papel mensurador, ou seja, nos oferece certa medida de determinação do ser dos
entes. Em termos lógicos, como a extensão e a compreensão de um termo são
inversamente proporcionais, os membros superiores da escala têm mais extensão e menos
compreensão e os termos inferiores vão apresentando menos extensão e mais
compreensão. É como se o horizonte fosse se tornando cada vez mais próximo e a clareza
do que se vê fosse ficando cada vez mais nítida.

IV.3.2. Gênero generalíssimo: Substância

O horizonte máximo de definição do ente é a substância (ousía). Ousía é


expressão do ser, é vigência do ser, essência em sentido verbal, como o que essencializa,
dá vigor e vigência ao ente em seu ser. É potência como poder-ser, não no sentido passivo
da potencialidade, típica da matéria, mas no sentido ativo de uma atuação do ser como
Puro Agir. Com efeito, Porfírio entende que o Uno é um Agir Puro e que este Agir Puro
é Ser e que o Ser é anterior ao ente, e, por conseguinte, à substância. A substância seria
como que o assentamento ou repouso do ser como Puro Agir. No seu Comentário ao
[diálogo] Parmênides de Platão (XII, 22-33) ele diz:

“Considera agora se Platão não parece deixar entender isto, a saber,


que o Uno que é acima da substância e do ente, não seja nem ente,
nem substância, nem atividade, mas acima de tudo aja e seja Ele
mesmo o Puro Agir. Por conseguinte, Ele mesmo seria o Ser que é antes
do Ente; participando deste Ser, portanto, o Segundo Uno possui um
Ser derivado, e este é o ‘participar do ente’. Portanto, o Ser é dúplice:

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o primeiro preexiste ao Ente, o segundo é aquele que é produzido pelo
Uno, que está além do Ente. E o Uno é em sentido absoluto, ele mesmo,
o Ser, ou, de qualquer maneira, é a Idéia do Ente”.

Em primeiro lugar, vê-se que Porfírio alude a uma prioridade do ser em relação
ao ente. “Ser”, porém, se compreende fundamentalmente de dois modos: em sentido
originário, como o Uno transcendente, o Puro Agir; e em sentido derivado, como ser,
atuação, imanente ao ente. O ente propriamente não é; só é enquanto participa do Ser, à
medida que é produzido e posto no ser. O que propriamente é diz-se ser, tomado em
sentido originário, como Puro Agir e como Idéia, isto é, como Uno e potência unificadora,
forma originária e originadora, geradora e configuradora do ente enquanto ente. Na Idade
Média, sobretudo em Tomás, o ser vai ser determinado como “actus essendi”: ato de ser.

Entretanto, além do ser como verbo (einai/esse), há o ser como particípio


substantivado (on/ens). Isto quer dizer: há também o ser no horizonte das coisas que são
derivadas do Uno/Bem, melhor, dos entes que recebem o ser a partir da Tríade Uno-
Intelecto-Alma. E, neste horizonte, ente se diz em primeiro lugar como substância e
depois como acidentes. Por isso, é compreensível que Porfírio tome como exemplo para
a articulação dos predicáveis a categoria de substância (ousía).

No limite, isto é, na consumação ou perfeição (ato/forma), a ousía, aparece como


presença quieta, que repousa em si mesma, como subsistência, substância. O primeiro
horizonte da definição essencial é, portanto, a imensidão da vigência de ser e de sua
subsistência, o “ens per se”: a substância. “Substância” é o génos primeiro, o ascendente
primordial, do qual os outros modos essenciais de ser recebem a proveniência. É o
genikôtaton: o gênero generalíssimo. Entretanto, aqui, o geral não deve ser entendido
meramente como conceito vazio e indeterminado. O vazio do gênero generalíssimo é, por
assim dizer, um vazio pleno, pois está prenhe, grávido, de possibilidades. Nele estão em
potência todos os outros modos possíveis de ser do ente, ou, mais restritamente, da
substância. É máxima universalidade categorial: o uno supremo no domínio das
categorias, isto é, dos modos de ser e de dizer, em referência ao ente. No meio desta
universalidade, acontece uma primeira cisão, um primeiro corte. A unidade dá lugar à
dualidade. O uno da substância se duplica em duas articulações fundamentais ou dois
primordiais modos de ser. Emerge a diferença no meio da identidade, a divergência no
seio do máximo convergente. Aparecem as diferenças específicas da substância: o modo

38
de ser do corpóreo e o modo de ser do incorpóreo. Na verdade, numa perspectiva
platônica, trata-se de dois mundos: o kósmos aisthêtós (mundus sensibilis) e o kósmos
noêtós (mundus inteligibilis). O mundo sensível é a ordem dos entes que podem ser
percebidos no espaço-tempo: os corpos e tudo o que é corpóreo. O mundo inteligível é a
ordem das Idéias, ou seja, dos paradigmas ou arquétipos de todos os modos de ser, o ser
ideal, o incorpóreo. O mundo sensível é a totalidade dos entes em devir. O mundo
inteligível, a dos entes que permanecem sempre em quieta plenitude e em plena quietude.
O mundo sensível é uma imagem do mundo inteligível, assim como o tempo é uma
imagem da eternidade. Numa perspectiva aristotélica, por sua vez, o inteligível se une ao
sensível; isto é, as formas inteligíveis (eídê noetà) se tornam imanentes às formas
sensíveis (eídê aisthetá) imprimindo-se na matéria dos sujeitos e expressando-se como
forma externa (morphé) e figura (schéma) das coisas. Por conseguinte, o reino do
corpóreo não é ininteligível. Graças às formas (eídê) ele está prenhe de inteligibilidade,
ou seja, em potência ele já traz as diversas dimensões de formas, que se apresentarão em
seu horizonte. Aparece, assim, o gênero “corpo”.

IV.3.3. Gênero Corpo

“Corpo” (sôma) é uma espécie de substância, a saber, a substância sensível, ou


seja, que é intencionada no ato de nossa percepção natural. É a ordem da substância, que
se dá como entes extensos qualificados, submetidos ao devir. De fato, tal como se dão na
experiência cotidiana, são corpos numericamente unos, diferentes, extra-postos
espacialmente, que manifestam determinadas qualidades: grandezas, configurações,
cores e brilhos, sons, calor, dureza, peso, etc. A coisa suposta como substrato destas
manifestações, por sua vez, é compreendida na nossa percepção como coisa extensa. Com
efeito, propriedade característica do corpo é a extensão concreta, a qual, porém, é mais
do que a extensão puramente geométrica, pois esta é imaterial e imaginária, enquanto
aquela é material e real. O corpo se encontra, pois, materialmente estendido em três
dimensões: cumprimento, largura e profundidade; é divisível em partes reais; e se dá em
referência a uma localização num “onde” (ubi), a uma disposição de suas partes (situs) e
a uma atinência a outros corpos (habitus). Por sua vez, no ou junto ao corpo se manifestam
também as categorias do fazer (actio) e do sofrer (passio), além do movimento, que pode

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ser local (ubiquação), aumento e diminuição e alteração (mutações acidentais e
substanciais). Logo se vê que todas estas categorias não são simplesmente interpretadas
em chave científico-matemática, isto é, traduzidas em cifras quantitativas, mas são
prenhes de ressonâncias qualitativas, advindas da experiência comum cotidiana. Outra
observação necessária diz respeito ao estatuto da extensão em relação à substância-corpo.
Na perspectiva antiga, diversa daquela cartesiana, relacionada à visão da ciência
matematizante da natureza, a extensão não é propriamente a essência do corpo, a sua ratio
essendi, um fundamento de seu ser, mas é apenas uma sua propriedade característica, e,
portanto, uma sua ratio cognoscendi, um princípio de (re)conhecimento. A categoria
acidental que imediatamente se liga à extensão é a quantidade, que se define a partir da
massa e da figura estendida nas dimensões três dimensões espaciais: cumprimento,
largura e profundidade ou altura. Vemos, assim, que a substância-corpo é, na verdade,
um mundo pleno e prenhe de especificidade, de atividade e de inteligibilidade. Cada
corpo, de fato, segundo a perspectiva do hilemorfismo, é constituído de dois princípios
ou condições-de-ser: de matéria (hýlê), momento potencial e indeterminado, contudo,
susceptível de determinação; e a forma (morphê), o momento atuante, que dá o ser,
determina e qualifica tal ente.

“Corpo” é também um gênero, isto é, uma totalidade, uma ordem prenhe, que traz,
em potência, diversos outros modos de ser. De fato, corpo pode ser mineral, vegetal ou
animal. São como que possibilidades de ser da corporeidade. Por isso, entra em jogo, no
meio do reino “corpo”, uma cisão que introduz duas diferenças fundamentais, que são, ao
mesmo tempo, dois níveis diversos: o “animado” e o “inanimado”. “Corpo inanimado”
nos introduz no reino dos minerais, onde ser vigora como simplesmente ser, como ocorrer
no espaço do mundo sensível. A pedra, em sua presença retraída, isto é, compacta,
maciça, quieta e fechada em si mesma é uma imagem característica deste tipo de
substância e substancialidade. “Corpo animado”, por sua vez, nos introduz na totalidade
dos seres viventes: vegetais e animais. Surge, assim, uma terceira dimensão da substância,
a da vida. Ao corpo pertence simplesmente ser. Ao ser vivente, o ser e o viver. Aliás, para
o vivente, ser é viver.

IV.3.4. Gênero “Animado” ou “Vivente”

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Entramos, agora, no horizonte que leva o nome de “ser vivente” ou “ser animado”
(émpsychon). Entramos, então, na ordem do vital e da vitalidade em geral, onde se dá a
regência do princípio da vida (psyché). Certamente, a substancialidade do vivente é
diversa daquela do não vivente. Não há apenas uma diferença de grau entre o inanimado
e o animado, mas sim um salto qualitativo, melhor, o surgimento de uma diferença não
só acidental, mas, sobretudo, substancial, essencial. Como vimos, o ser animado ou
vivente é uma espécie de substância corpórea, mas nele se manifesta algo de
essencialmente novo. O “animado” (émpsychon) ou “vivente” caracteriza-se por abrir e
manifestar a totalidade-mundo da psychê (ânima: alma). Trata-se do princípio vital, que
se manifesta tanto na vida vegetativa, quanto na vida sensitiva, quanto na vida intelectiva.
Diversa será, pois, a “animação” ou o “ânimo” de cada tipo de vida. O mundo vivente
supõe o mundo corpóreo, mas apresenta um “quê” (quid) que não se encontra ao nível do
corpo inanimado, da pedra, por exemplo. Este “quê” é a forma substancial chamada
psychê, alma. É aquilo pelo que o corpo vivente é o que é, ou seja, aquilo que torna corpo
vivente o corpo vivente. Falando de modo grosseiro, vivente é aquilo que tem a
capacidade de mover-se. Contudo, este auto-movimento não deve ser entendido apenas
no sentido do movimento local (ubiquação). Também uma máquina pode se mover e,
nem por isso, uma máquina é um vivente. Também um vivente apresenta movimentos
precisos, mas nem por isso o vivente é uma máquina. Mais do que dizer que o vivente é
um ente capaz de auto-movimento, é melhor dizer que o vivente é aquele ente que é capaz
de ação imanente. Ação imanente é aquela que vai além da ação transitiva. A ação
transitiva termina no objeto ao qual ela tendia. Já a ação imanente é aquela que enriquece
e aperfeiçoa o próprio agente. Podemos formular ainda melhor: vivente é aquele ente que
tem em si mesmo o princípio da própria atividade, do próprio devir, ou seja, é aquele que
vem a ser o que é, por força e graça de si mesmo. A autonomia é, pois, uma propriedade
característica do vivente. O vivente vegetativo executa por si mesmo o movimento pelo
qual ele busca alcançar o próprio fim, isto é, a própria consumação ou a perfeição de sua
natureza. A planta por si mesma assimila nutrientes, realiza a fotossíntese, cresce,
floresce, se frutifica. O vivente sensitivo, por sua vez, providencia para si mesmo o
próprio alimento e as demais condições para assegurar a vida, baseando-se,
fundamentalmente, na percepção sensorial, isto é, no conhecimento sensitivo. O vivente
intelectivo, enfim, isto é, o homem, age conforme a sua liberdade, baseando-se no
conhecimento intelectivo do ente no seu todo. Ele é capaz de operar e agir, a partir de
representações abstratas e de conceitos universais. Ora, o princípio regente da vitalidade

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do vivente, o que suporta e governa sua auto-organização, sua auto-regulação e sua auto-
consumação, chama-se, na perspectiva da ontologia da substância, alma (psyché). A alma
não é algo que se acrescenta ao corpo, mas é princípio formador do corpo enquanto corpo
vivente. Não há corpo e só depois sobrevém como um acréscimo extrínseco, a alma.
Corpo vivente só é o que é a partir da atuação do princípio de vida, que se chama alma.
Isto quer dizer: a alma é potência estruturante do corpo-organismo enquanto tal e de suas
funções, potência imanente ao próprio corpo, que dá as leis de suas próprias atividades e
que o torna capaz de alcançar suas finalidades. É, portanto, princípio que dá o ser ao corpo
e potência unificadora das suas funções vitais; princípio de subordinação e de
coordenação das muitas atividades do corpo vivente. Aristóteles denominava a alma de
“entelécheia” do corpo: a forma que determina a realização consumada (entelôs + échein
= ter-se perfeitamente) de uma potencialidade. É aquilo que dá ao corpo olhos para ver,
ouvidos para ouvir, etc. Nesta visão teleológica, muito diversa da visão mecanicista
moderna, o vivente tem olhos porque é destinado a ver, não vê porque tem olhos. Há uma
definição aristotélica da alma que merece ser aqui citada: entelécheia he prôte sômatos
physikoû dynámei zôên échontos; os latinos traduziam por: actus primus corporis physici
potentia vitam habentis, ou seja, alma é a forma determinante e consumadora do corpo
natural que tem a vida como possibilidade (Da alma II, 4, 415 b). Alma é atuação
primordial, princípio de ser e de devir; de um corpo natural, isto é, de um corpo não
artificial, de um corpo gerado segundo a natureza (phýsis) e não segundo a arte (téchnê);
de um corpo que se atém à vida como sua possibilidade, como seu poder-ser, quer dizer,
de um corpo capaz de viver.

No gênero “vivente”, porém, acontece uma cisão, uma diferença substancial entre
“vegetativo” e “sensitivo”. A presença ou não da percepção sensorial caracteriza, pois,
uma diferenciação substancial no gênero “vivente”. O vivente privado da percepção
sensorial, que apenas vive, é o vegetal. Por sua vez, o vivente que é provido da capacidade
de percepção sensorial, que vive e sente, é o animal.

IV.3.5. Gênero “Animal”

Saltamos, assim, para uma nova totalidade: a do “animal” (Zôon). Trata-se do


vivente que é regido pela Zôê: o princípio perceptivo da vitalidade. É a instância da

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irrupção do conhecimento, mesmo que seja como conhecimento apenas sensitivo, como
no caso dos animais irracionais. Com efeito, pelos sentidos, o animal é afetado por aquilo
que se acha em seu meio ambiente e entra em conhecimento daquilo que o circunda. Os
sentidos do tato, do olfato e do paladar sobressaem no aspecto afetivo da experiência
sensitiva. Já a visão e a audição são por excelência formas de tomada de conhecimento,
ressaltando, assim, o caráter cognitivo da experiência sensitiva. Aristóteles postulou,
ainda, para além dos cinco sentidos externos, um sentido interno ou sentido comum, pelo
qual o animal não somente sente, mas também sente de sentir. No sentido comum abre-
se, pois, a dimensão da consciência. Pela consciência, o animal sabe de si, na imediatez
do sentir. A capacidade perceptiva e a consciência dão ao animal a possibilidade de se
mover em seu ambiente com mais mobilidade do que a planta no seu. Maior mobilidade
ainda ele alcança através da sua capacidade imaginativa e da sua memória sensitiva. A
imaginação possibilita ao animal criar formas inusitadas de providenciar-se a vida. A
memória dá-lhe um passado e abre-lhe a dimensão da experiência. Além do sentido
comum, da imaginação e da memória, o animal é também provido de instinto. É pelo
instinto que o animal se dirige, orientando-se em suas escolhas, em vista de seu fim: a
própria vida. Um filhotinho de gato, mesmo sem experiência, excita-se como um caçador
em potencial diante de um rato e se arrepia diante de um cão. O instinto mostra que a
vitalidade do animal não é meramente causal mecânica, mas é também causal teleológica,
ou seja, opera segundo os seus próprios fins. Tudo isso, pois, dá ao animal toda uma gama
de possibilidades de providenciar para si mesmo as condições de manutenção de seu
viver, bem como de reprodução, para a perpetuação da espécie.

No meio, porém, desta totalidade chamada “animal” opera-se uma nova cisão:
emerge a diferença substancial entre “irracional” e “racional”. Irracional é o animal que
apenas sente, ou seja, que permanece fechado no círculo do sentir, melhor, da percepção
sensorial. Racional é o animal que sente e pensa e que, pelo pensamento, transcende o
ambiente e se abre para o mundo, quer dizer, para a totalidade do ser. Instaura-se, assim,
uma nova espécie de substância-corpo-vivente: o animal racional.

IV.3.6. Gênero “Animal Racional”

43
Porfírio entende “animal racional” como espécie de animal e gênero de homem!
É diversa a sua perspectiva do modo como costumamos entender animal e homem. De
modo usual, quando falamos de animal pensamos logo nos bichos, isto é, no animal
irracional. E pensamos que o homem seja um bicho como outro, apenas com uma
diferença acidental: a inteligência. Nesta perspectiva, há apenas uma diferença de grau
entre o animal-bestial e o animal-homem. Não há uma diferença substancial, como é uma
diferença específica. A mudança de espécie, porém, se dá por uma diferença que não é
acidental, como diferença de grau ou de qualidades, mas substancial, que é uma diferença
essencial, substancial, no ser do ente em questão. Isto quer dizer que animalidade,
predicada do ser pensante, é uma animalidade radicalmente diferente da animalidade dos
bichos. O vivente pensante é aquele animal que é dito “racional”. Há animal racional e
animal irracional. O irracional é o que apenas é e sente. O racional é o que é, sente e
pensa. Irracional é o bicho. E o racional? Nós respondemos logo: o homem. Só que
Porfírio, em seu texto citado acima, diz que “animal racional” é gênero de homem e não
simplesmente o homem. Neste caso, o homem não é simplesmente e sem mais o animal
racional, mas sim uma espécie de animal racional! Haveria outras espécies de animais
racionais? Na visão neoplatônica, sim. Segundo nos reporta Agostinho, os neoplatônicos
diziam haver três espécies de animais racionais: os homens, os demônios e os deuses (Cfr.
Cidade de Deus, l. VIII, c. 15). Cada tipo de “animal racional”, por sua vez, traz uma
forma de corporeidade própria. Os homens possuem corpo terreno; os demônios, corpo
aéreo – são “espíritos dos ares”, como dizia S. Paulo (Ef 6, 10); e os deuses, que têm
corpo celeste ou etéreo. Os homens e os deuses são os dois extremos do gênero “animal
racional”. Entre estes dois extremos se colocam, pois, os demônios. Estes têm em comum
com os deuses a imortalidade e com os homens as paixões da alma. Já os deuses são
etéreos, impassíveis e imortais. Por causa desta posição mediana dos demônios, Porfírio
atribuiu-lhes um papel de mediadores entre os deuses e os homens. Na Cidade de Deus,
Agostinho busca refutar esta atribuição de mediação dada por Porfírio aos demônios e
busca mostrar que o único mediador entre os homens e Deus (e não “os deuses”) é Cristo
(Cidade de Deus, l. IX, c. 15). Na visão cristã, em lugar de demônios e deuses teremos,
então, demônios e anjos. E o nome “demônio” perde o seu sentido neutro, de divindade
inferior, que, na visão neoplatônica podia ser boa ou má, ou às vezes boa e às vezes má,
e recebe um sentido exclusivamente negativo, identificando-se com o “diabólico”, o
“satânico”. Seja como for, a perspectiva cosmológica neoplatônica (Apuleio, Porfírio)

44
permitia pensar espécies diferentes de “animal racional”, e não somente uma única
espécie, ou seja, o homem.

Com “animal racional” abre-se, pois, uma totalidade nova. Aqui a vitalidade ou
animalidade, o ser-alma ou vida, é regida pela razão, melhor, pelo logos. Nós estamos,
pois, no domínio chamado “logikón”, pois é regido pelo logos. É a potência do légein,
ou seja, a capacidade intelectiva, que inclui as seguintes capacidades: apreender o ente
enquanto ente, isto é, apreender o ser; apreender a inteligibilidade do ente, os princípios
e as verdades primeiras do todo do ente; universalizar, isto é, recolher na unidade do
conceito a multiplicidade dos indivíduos, transcendendo, assim, a imediatez do sensível;
receber em si mesmo, ao modo intelectivo, todas as formas de ser; poder conhecer todos
os entes. Abre-se, assim, toda a vastidão, a profundidade e a originariedade do ser.

O “animal racional” tem, pois, no pensamento e no conhecimento o princípio de


sua animação, isto é, de sua vitalidade, com suas capacidades e atividades. Entre os
ânimos pensantes, porém, se introduz uma diferença substancial. Há os que são imortais
e os que são mortais. A mortalidade, com efeito, contingencia o intelecto humano de
maneira radical. No mortal, o intelecto é razão, isto é, o noûs se faz diánoia: pensamento
discursivo. Este, com efeito, não é imediatamente intuitivo. Para alcançar o universal,
precisa do trabalho do conceito, carece de abstrair do sensível o inteligível, formular
conceitos em palavras, dar voz aos seus discursos mentais, trazer para a forma da
proposição o que quer dizer, progredir de verdade em verdade por meio do raciocínio,
para elaborar o conhecimento. A intelecção do espírito imortal é intuitiva, isto é, imediata;
a do mortal é raciocinativa, ou seja, mediata.

IV.3.7. Espécie especialíssima: Homem

O homem é a espécie de ânimo pensante que é determinado pela sua mortalidade,


isto é, pela sua finitude. “Homem é animal racional mortal”. A razão é a marca da finitude
do intelecto humano. Para o homem, como acabamos de ver, a apropriação do inteligível
é uma conquista, que requer a fadiga do conceito e o esforço da palavra. Para conhecer,
o homem precisa conceituar, multiplicar os conceitos, sintetizá-los no juízo, conjugar os
juízos entre si por meio do raciocínio, e, ao final, o que ele consegue conhecer e dizer não
exaure toda a riqueza da realidade. Esta como que se lhe dá, mas sempre em fuga, em

45
retraimento. No entanto, para o homem a razão é, tanto quanto marca de sua finitude,
marca também de sua transcendência. Pois por ela ele libera-se da imediatez do sensível
e projeta-se no espaço de liberdade do inteligível. Por isso, ao homem não é dado ter
somente um ambiente, mas também um mundo. Com a razão se abre também o espaço
da liberdade, tanto no sentido negativo de desvinculação do ambiente, quanto no sentido
positivo de autodeterminação no seu mundo. A razão concede ao homem voltar-se para
o ser, para a verdade e para o bem. Para a verdade, no seu comportamento teorético; para
o bem, no seu comportamento prático. Ao arbítrio da sua razão é concedida, pois, a
condução da vida do homem. No homem, com a razão e a liberdade, aparece a dimensão
do espírito na ordem da substância. Emerge, pois, não somente a consciência do mundo,
mas também a autoconsciência. Esta, por sua vez, se caracteriza pela capacidade de
reflexão. O homem, de fato, percebe-se numa corporeidade vivente e sensível,
apreendendo o próprio corpo não como objeto, mas como dimensão de si mesmo; sente
e sente o próprio sentir, conhece e conhece o próprio conhecer, percebe-se inteligindo e
sentindo e, neste perceber-se, é presente a si mesmo de modo imediato; enfim, percebe-
se como uma vida que tem o poder de, pela sua reflexão, possuir-se e se autodeterminar.
Daí a capacidade de criação do homem, a projeção de seu espírito no mundo, como
técnica, arte, ciência, filosofia, religião.

No quadro neoplatônico, o homem se encontra colocado no horizonte de dois


mundos: o mundo corpóreo, no qual ele se encontra radicado, e o mundo incorpóreo, para
o qual ele transcende por meio de sua razão. Com ele, a substância alcança sua mais
perfeita forma no mundo corpóreo: a forma da auto-subsistência do espírito, que é a
liberdade. Ele é a espécie especialíssima, pois nele o corpóreo e o incorpóreo se unem.

A árvore de Porfírio, portanto, é uma ascensão de modo em modo de ser, do corpo


ao espírito. É um caminho de um crescendo da substancialidade. Normalmente,
identificamos a substância com sua forma mais ínfima e elementar: a substância corpórea.
O que nos é primeiro segundo o processo do conhecimento, é, porém o último segundo a
ordem do ser. E vice-versa: o que é último no processo do conhecimento é o primeiro na
ordem do ser. A escada predicamental nos faz subir, de nível em nível, para uma
compreensão mais originária e apropriada de substância: a do espírito, ou seja, a auto-
subsistência do ser livre que é capaz de conhecer a verdade e de querer o bem. Quanto
mais subimos a escada, tanto mais podemos intuir o que é a vigência de ser chamada
substância: o ser se torna viver; o ser e viver se torna conhecer e querer; o conhecer

46
racional se torna, enfim, intuição intelectual. E, na intuição intelectual, o inteligível
finalmente se revela no vigor de sua vigência. Vislumbramos, assim, a ordem do
inteligível nas palavras fundamentais, que nos remetem para além de todas as categorias:
Alma, Intelecto, Uno/Bem.

IV.3.8. O indivíduo

Percorremos até agora a escala predicamental da substância em sua dinâmica


dialética até a espécie especialíssima: o homem. Entretanto, não chegamos ainda ao fim.
Há ainda o domínio dos indivíduos. O que é o indivíduo enquanto indivíduo? Como se
compreende o ser da individualidade como tal? A língua grega nos dá um aceno, pois, o
ente individual é denominado de “átomon”: o não-dividido, o indiviso. O adágio
medieval o definiria: indivisum in se et divisum a quolibet alio – não dividido em si
mesmo e dividido, isto é, distinto em relação a qualquer outro que seja. O indivíduo é,
pois, cada vez, um, cada vez ele mesmo, e, por outro lado, é cada vez outro (alius) em
relação a todos os outros indivíduos. A unidade do indivíduo, porém, é diversa daquela
unidade do universal, ou seja, a da espécie e do gênero, pois esta é unidade da
multiplicidade, e a unidade do indivíduo é uma unidade pura e simples, singular, ao modo
de unicidade. O indivíduo não somente é numericamente uno, mas é também único. Ele
é uma presença singular; uma realização “sui generis”; uma palavra da realidade, que é
dita apenas uma única vez. É “fora de série”. Não tem outro que lhe seja igual. É
irredutível a toda categoria, pois toda categoria universal ressalta o que é comum entre
vários indivíduos. Nenhum intelecto humano pode, com efeito, apreender
intelectivamente e dizer a individualidade deste indivíduo como tal. Por isso, os gregos
antigos diziam que do indivíduo não há ciência.

Nos âmbitos das espécies se dava, sempre de novo, uma cisão ou divisão entre
opostos, introduzindo, assim, a diferença específica, que era uma diferença não acidental,
mas essencial. Já os indivíduos de uma única espécie não se diferem essencialmente uns
dos outros, mas sim acidentalmente, melhor, numericamente, e, melhor ainda,
qualitativamente. Isto quer dizer que a unicidade do indivíduo não o exclui da comunhão
ontológica com os demais indivíduos de sua espécie, pois, embora ele seja numericamente
um em si mesmo, é uno por espécie com os outros que compartilham da mesma e comum

47
essência. Por um lado, platonicamente, pode-se dizer que o indivíduo se mostra em sua
individualidade como uma convergência única e irrepetível de “acidentes”, isto é, de
propriedades e características, como um “caso único”. Contudo, Aristóteles deu maior
peso ontológico ao indivíduo, ao tomá-lo não apenas como uma unidade acidental, e sim
como uma unidade substancial, ao designá-lo como “substância primeira” (ousía prôtê).
Assim, o indivíduo aparece como o sujeito único de manifestações ou propriedades
acidentais que existem em outros, mas que, numa tal convergência, se encontra somente
nele. Além disso, aristotelicamente, o ser individual é dito substância primeira também
do ponto de vista lógico, enquanto é imediatamente e por excelência o sujeito
(hypokeímenon, suppositum, subiectum) de que se afirmam ou se negam diversos
predicados, e que não é ele mesmo predicado de nenhum sujeito.

Nos dois extremos, pois, da escala predicamental, se encontram a substância em


seu sentido o mais vasto e indeterminado e a substância do indivíduo da espécie homem,
a substância em seu sentido mais concentrado e determinado possível.

IV.3.9. Conclusão a respeito de Porfírio e sua árvore

Do exposto, percebemos que a escala predicamental em Porfírio não é a simples


articulação de conceitos vazios. Pelo contrário, os conceitos lógicos, aqui, são prenhes de
uma densidade ontológica, de uma densidade que se dá em múltiplos planos ou
dimensões. Do ponto de vista lógico, vemos uma escala que vai descendendo, do gênero
generalíssimo, que é a substância pura e simples até à espécie mais específica, que é o
homem, e, ainda até à substância primeira e às suas diferenças acidentais, que é o ente
individual. Do ponto de vista ontológico e henológico, porém, somos elevados da
substância dita como gênero generalíssimo até a espécie especialíssima e seus indivíduos
e, na sua vitalidade pensante e mortal, abre-se a totalidade do ser, em sua vastidão como
universo/natureza, mas também em sua altura/profundidade e originariedade, à medida
que, na dimensão do inteligível, o intelecto humano vislumbra aquilo que está além de
toda a substância e de todo o ente, como Tríade divina ou, enfim, o Uno/Bem como Puro
Agir. Esta elevação, pela qual o mesmo, ou seja, o ser, a unidade, a identidade, é retomado
em diversos níveis, se chama analogia. Cada nível tem o ser que lhe compete ter: ser
como mero ser, como ser e viver, como ser, viver e inteligir. Vemos, assim, muitos modos

48
de ser, ordenados hierarquicamente, onde o que o ser se diz em modos cada vez mais
originários, à medida que subimos do corpo ao vivente, do vivente ao animal, do animal
ao homem, do homem à Natureza, da Natureza à Alma universal, da Alma universal ao
Intelecto arquetípico e do Intelecto ao Uno/Bem. A árvore de Porfírio, de fato, é uma
elevação, uma pura elevação de caráter onto-henológico.

V. JÂMBLICO, A ESCOLA DE ATENAS E PROCLO

V.1. ÂMBLICO E A INTRODUÇÃO DA VIA MÁGICO-TEÚRGICA NO PENSAMENTO


NEOPLATÔNICO.

Jâmblico deu ao neoplatonismo uma direção específica, que foi continuada depois
por Proclo. Na busca da salvação do homem e da unificação com o Uno absoluto, não
seguiu simplesmente pela via de Plotino, que é a da contemplação, mas propôs a arte
mágico-teúrgica, que para Porfírio era acidental 20, como algo de essencial e elevou os
Oráculos Caldeus como livro sagrado, à semelhança da Torah para os judeus e da Bíblia
para os cristãos.

Jâmblico nasceu em Cálcis (Síria) e estudou com Porfírio em Roma. Foi o


fundador da escola síria e deve ter morrido em Apamea, por volta de 325. Em todo o caso,
quando, em 331, Constantino mandou executar seu discípulo Sópatros, Jâmblico já não
era mais vivo. Uma de suas obras mais conhecidas foi a “Synagôgé tôn pythagoreíon
dogmatôn” (Coletânea dos ensinamentos fundamentais dos pitagóricos). Foi
contemporâneo de Constantino Magno (306-337), o imperador que deu reconhecimento
oficial ao cristianismo no império romano. Como reação à expansão do cristianismo,
procurou reforçar a crença nos deuses. Àquela altura, não bastava criticar o cristianismo,
era preciso lançar um projeto de reconquista do paganismo, o que Jâmblico buscou fazer
com os recursos da filosofia platônica e da arte hierática (mágico-teúrgica), e seu
discípulo, o imperador Juliano, chamado de “O Apóstata” pelos cristãos, procurou fazer
por meio do poder. Com efeito, Jâmblico procurou refundar a nível conceitual e filosófico
o politeísmo grego da antiguidade tardia. Com ele, a metafísica neoplatônica multiplica

20
Cfr. Agostinho, A Cidade de Deus, l. X, c. 9.

49
consideravelmente as hipóstases, constituindo uma espécie de politeísmo especulativo.
Mas na passagem do século III para o IV já não bastava o caminho especulativo da
filosofia. Era preciso dar lugar também à teurgia. Assim como os cristãos, Jâmblico estava
convencido de que o homem sozinho, unicamente com suas forças, não era capaz de
chegar à salvação ou à união (Hénosis) com o Divino. Assim como o cristianismo
postulou a força da graça como redentora e santificadora do homem, também Jâmblico
compreendia que, na arte mágico-teúrgica, não se tratava propriamente de o homem se
elevar até o Divino, mas de a potência divina descer aos homens, libertando-os dos
vínculos do mundo e lhes reconduzindo às hipóstases divinas. Vemos, assim, como
Jâmblico e a sua escola rivalizava com o cristianismo. Por outro lado, a invés de Plotino
e de Porfírio, compreendia que a teurgia se encontrava acima da especulação filosófica,
pois atingia forças supra-racionais, símbolos e ritos que punham o homem em contato
direto com o Uno, que está além de todo o pensamento.

V.2. O RENASCIMENTO DA ESCOLA PLATÔNICA DE ATENAS: PLUTARCO DE ATENAS


E SIRIANO.

No período que vai do fim do século IV para o início do século V, aconteceu um


renascimento da Escola platônica de Atenas. Esta escola era privada. Ricos pagãos a
subsidiavam. Este renascimento durou cerca de um século, pois, em 529, Justiniano
proibiu aos pagãos o ensinamento público. Com aquela escola, Atenas produzia os
últimos frutos da árvore da filosofia que nela um dia gloriosamente fora plantada. Naquela
altura, em Alexandria e em Roma já não havia espaço para os filósofos pagãos. Atenas
era o último refúgio. Os fundadores da escola foram Plutarco, filho de Nestório, e Siriano
(+ 450).

Plutarco (não o de Queroneia, dos séculos I-II, mas o de Atenas) continuou a


tradição de ler os textos de Aristóteles como propedêutica à filosofia de Platão e como
uma iniciação aos “pequenos mistérios”. Aprendeu de seu pai e ensinou à sua filha a arte
teúrgica. Esta, por sua vez, ensinou a Proclo.

Siriano sucedeu a Plutarco na direção da escola. Dele nos chegou uma parcela de
seus comentários à Metafísica de Aristóteles. Tinha o projeto de também comentar,
interpretando em chave alegórica e como textos sagrados, os poemas de Homero, de
50
Orfeu e os Oráculos Caldeus. O principal discípulo de Siriano foi Proclo, que o sucedeu
na direção da escola, provavelmente após a direção de Donino. Chamados com o título
de “diádocos” (Diadokói: sucessores), os demais diretores da escola de Atenas foram:
Marino de Neápolis – um hebreu convertido ao paganismo –, Isidoro, Damáscio e o
último, que foi Simplício. Com Damáscio, o Uno se perde no horizonte de sua
transcendência e inefabilidade e a multiplicação das hipóstases metafísicas chega a seu
cúmulo. Do Uno, ele diz: “não precisa chamá-lo de Princípio, nem causador, nem
primeiro, nem anterior a tudo, nem além de tudo, nem mesmo se lhe deve chamar Tudo;
não é possível dar-lhe qualquer nome que seja e não é possível concebê-lo, nem pensá-
lo” (De Principiis 2). O último diádoco, porém, foi Simplício, que concentrou seus
interesses nos comentários de Aristóteles. Destes, chegaram até nós os comentários às
Categorias, à Física, ao Do Céu e ao Da Alma.

V.3. PROCLO: O CANTO DO CISNE NA HISTÓRIA DO NEOPLATONISMO

O último grande nome do Neoplatonismo foi o de Proclo. Nasceu em


Constantinopla, em 410, e foi educado em Xanthos na Lícia (Ásia Menor). Em
Alexandria, foi discípulo de Olimpiodoro, filósofo peripatético e alquimista. Em 430,
porém, quando morria Agostinho, Proclo chegava a Atenas, onde escutou Plutarco e
Siriano. Foi diádoco depois de Donino, dirigindo a escola de Atenas até à sua morte, em
485. Estudou as obras de Aristóteles com Siriano. Comentou várias obras de Platão: o
Crátilo, a República, o Parmênides, o Timeu. O seu biógrafo Marino relata o processo de
educação de Proclo junto a Marino como uma verdadeira mistagogia:

“Em menos de dois anos (Proclo) leu com ele (Siriano) todas as obras
de Aristóteles, de lógica, de ética, de política, de física e a ciência
teológica, que é superior a estas. Quando foi suficientemente instruído
nestas, consideradas como mistérios preliminares e de ordem inferior,
o conduziu à doutrina mistagógica de Platão, por ordem e sem que desse
um passo mais largo do que as pernas, segundo o dito do oráculo; o fez
participar, com os olhos puros da alma e a vista incontaminada do
intelecto, às iniciações de natureza divina contidas nas obras
platônicas” (Vida de Proclo, 13).

Assim, exercícios intelectuais se compõem com processos iniciáticos de teurgia.


A moção divina, que brota do fundo da alma, deverá perpassar todas as dimensões do
homem: de maneira inteligível e indivisa na intuição do intelecto, de maneira discursiva

51
na razão, de modo figurativo na imaginação, de modo passivo nos sentidos externos.
Também a imaginação onírica é importante: alguns sonhos são também teofanias.

Na obra de Proclo, a metafísica é entendida como teologia e é lida, pois, em


sentido mistagógico: como iniciação aos mistérios divinos. O entendimento procliano
da metafísica platônica pode ser encontrado, em síntese, em obras como os “Elementos
de Teologia” e “Sobre a teologia de Platão”. A palavra “teologia” é aqui entendida não
no sentido cristão, de uma ciência da fé, mas no sentido que lhe foi dado pelo seu criador,
Platão, a saber, como um lógos em torno ao divino. É também tomada como sinônima
da expressão aristotélica “filosofia primeira”. De fato, para Aristóteles, entre as ciências
teoréticas, a física se ocupava dos seres separados (individuais) e em movimento; a
matemática, dos seres imóveis e não separados (imanentes à matéria); e a filosofia
primeira ou teologia tratava de realidades separadas (transcendentes) e imóveis
(imutáveis) (cfr. Metafísica, VI 1, 1026 a 10ss).

Ao vértice da metafísica procliana está o Uno, considerado além-e-acima


(epékeina) do ser e como princípio absoluto de toda a realidade. O Uno assim concebido
coincide com a idéia do Bem. Todos os entes aspiram ao Bem. Aquilo a que todas as
coisas aspiram é também a causa, da qual todas derivam. O Bem é, portanto, causa final
e eficiente de tudo. O Bem salvaguarda todas as coisas, unificando-as. O Uno, unificando-
as, as torna boas e perfeitas. Com efeito, a dispersão priva os entes de sua essência. A
dispersão é um mal para os entes. A unificação é um bem. O Uno, portanto, como Bem,
é princípio da ordem e da estabilidade do universo. O universo é ordem, ou seja,
multiplicidade determinada e disciplinada pela unidade, unidade na multiplicidade.

Plotino afirmava que o Uno era liberdade absoluta (Enéadas VI 8,12). É liberdade
absoluta enquanto é auto-criador, enquanto se auto-põem e, ao mesmo tempo, se
permanece junto de sua plenitude. Em segundo lugar, é liberdade absoluta enquanto
criador de liberdade. Todas as coisas, de fato, somente são livres à medida que aspiram e
querem o Bem, se movem em sua busca e dele participam. Do mesmo modo, para Proclo,
o Uno é o fundamento de todo o fundamento, o porquê de todo o porquê, e tem em si
mesmo, não em outro, a própria razão de ser. O Uno é vida transbordante, que tudo
produz. Contudo, a produção não empobrece o produtor, porque ele permanece junto de
si mesmo, inalterado em sua identidade transcendente. Na Teologia Platônica ele explica:

52
O perfeito deseja gerar, e quem alcançou a própria plenitude procura
fazer participantes da sua própria plenitude também os outros. Por uma
razão ainda mais forte, portanto, aquilo que reúne em uma só unidade
todas as perfeições e que não é um bem particular, mas é o Bem em si
mesmo e aquilo que é superabundante, se se pode dizer deste modo,
será gerador de todas as realidades e lhes fará subsistir: porque
transcende todas as realidades, produz a todas, e porque é
imparticipável, gera todas as realidades, de igual maneira, seja as
realidades primeiras, seja as últimas realidades (Teologia Platônica II,
7).

O Uno é infinito. Contudo esta infinitude não é quantitativa, pois a quantidade é


um acidente. A infinitude do Uno é, por assim dizer, fontal: consiste na sua inexaurível
potência produtora. Enquanto infinito, o Uno é indeterminado. Mas o Uno não é
indeterminado como a matéria é indeterminada. A indeterminação da matéria é uma
privação de forma, o elemento determinador do ente. A indeterminação do Uno é uma
negação da forma, pois, em sua transcendência, o Uno está além de toda a determinação.
Como os gregos identificavam ser e forma, ser e determinação, e compreendiam o ser / a
forma como correlatos do intelecto, isto é, do pensamento, então Plotino e Proclo
declararam que o Uno está acima do ser e do intelecto. Proclo, no entanto, em diferença
a Plotino, hipostatiza o infinito e põe a infinitude entre o Uno e o ser.

Como Plotino, também Proclo entende o universo como uma ordem hierárquica.
Porém, ele tem a tendência a multiplicar as hipóstases, introduzindo intermediários por
toda a parte, numa espécie de “horror vacui” metafísico, que parecia garantir a densidade
substancial da realidade: “necessário é que a processão dos entes seja sem interrupções
e que nada possa sair e se tornar vazio (e isto, seja no reino corpóreo, seja no reino dos
incorpóreos)” (Teologia Platônica, III 2).

Vejamos a representação da ordem da realidade em Proclo, sob o fundo da


representação de Platão:

53
PRINCÍPIOS PRIMEIROS

UNO DÍADE

IDÉIAS E DEMIURGO

Números e figuras ideais Idéias generalíssimas Idéias específicas

ENTES MATEMÁTICOS

objetos da matemática objetos da geometria plana objetos da estereometria objetos da astronomia pura objetos da musicologia

ENTES PSÍQUICOS

Alma do Mundo Almas astrais Almas humanas

ENTES FÍSICOS

Animais Vegetais Minerais

MATÉRIA

Figura 3: A ORDEM DA REALIDADE EM PLATÃO

UNO (Hén)

FINITO (péras) INFINITO (apeiría) MISTO

HÉNADES

INTELECTO ou ESPÍRITO (Noûs) ALMA (Psyché)

INTELECTO

SER VIDA INTELIGÊNCIA

ALMA

Almas divinas Almas participantes perenemente da inteligência Almas participantes temporariamente da inteligência

MUNDO CORPÓREO

Animais Vegetais minerais

MATÉRIA

Figura 4: A ORDEM DA REALIDADE EM PROCLO

54
Platão punha ao vértice do real, no plano dos princípios, o Uno e a Díade. Proclo,
por sua vez, coloca o Uno. Contudo, logo após o Uno, que é princípio sem princípio, vêm
os demais princípios primeiros, que são, de início, a Díade Finito-Infinito. Como, porém,
a Díade deve poder ser causa das demais realidades, e as realidades todas são um misto
de infinito e finito, então a Díade se torna Tríade: Finito-Infinito-Misto. O Uno está além
de toda determinação e de toda indeterminação. E, no entanto, ele é o gerador do
determinado (finito) e do indeterminado (infinito). O finito é causa de todas as finitudes,
e o infinito é causa de todas as infinitudes. Todo ente, porém, é um misto de determinação
e indeterminação, de finito e infinito. No mundo corpóreo, este misto se mostra como a
substância composta de forma (elemento determinante) e matéria (elemento
indeterminado).

Em seguida, Platão punha o mundo das idéias, ou seja, os arquétipos de todas as


formas e modos de ser, e o Demiurgo, potência mediadora que, a partir das idéias,
ordenava o universo, a totalidade dos entes. Plotino fazia seguir ao Uno o Intelecto e a
Alma, compondo, assim, a Tríade das hipóstases divinas, os princípios primeiros de todas
as coisas. Proclo segue a Plotino neste esquema básico, mas multiplica as hipóstases no
nível do Noûs (Intelecto/Mente/Espírito) e da Psyché (Alma). Primeiramente, o Intelecto
e a Alma são vistos como hénades (unidades). O Uno (Hén) produz os unos (hénades), as
unidades, que correspondem às idéias platônicas, e são consideradas como seres divinos
ou deuses. Delas participam todas as realidades, de acordo com o ser que lhes competem.
Do Noûs e da Psyché, hénades originárias, procedem as realidades espirituais e psíquicas.

O Noûs ou dimensão noética se subdivide na Tríade: Ser-Vida-Inteligência. Trata-


se de princípios que vemos espelhados na realidade do mundo corpóreo, pois aí há entes
que apenas são (minerais), entes que são e vivem (seres vivos: plantas e animais) e, ainda,
entes que são, vivem e entendem. O círculo do Ser é o mais amplo, pois dele participa
todos os entes. Depois vem o círculo da Vida, pois dela participam não todos os entes,
mas apenas os viventes. Por fim, vem o círculo da Inteligência, pois dela participam não
todos os viventes, mas apenas os inteligentes. Em termos de abrangência, pois, a ordem
é Ser-Vida-Inteligência. O que é mais abrangente no mundo sensível é também mais
elevado no mundo inteligível.

O Ser é o Uno que é. O Intelecto é o Uno que pensa. A Vida é o Uno que vive. O
ser é o primeiro participante do Uno, pois é mais unitário do que a Vida e a Inteligência.
É unidade plural e pluralidade una, pois é composto de finito e infinito, determinado e
55
indeterminado. Vida é Ser, pois só pode viver o que é. O Intelecto é Ser e Vida, pois só
pode pensar o que é e vive. O ser da Vida é viver. O ser e o viver do Intelecto é pensar.
O Ser é o maximamente inteligível, o inteligível puro, e, por isso, é o que preenche o
Intelecto. Por sua vez, o Intelecto é Ser compreendo Ser. O Intelecto pensa o Ser e este
pensar é sua vida. Com efeito, quando se trata do Intelecto originário, pensar não é
representar o que já é, mas é fazer ser: é produzir, criar, gerar. Enquanto inteligível puro,
o Ser é a fonte de todas as idéias pensadas. Por outro lado, o Intelecto primeiro, em sua
potência pensante-criadora, é fonte de todos os demais intelectos: divinos e cósmicos.

Na ordem das hipóstases divinas, depois do Intelecto vem a Alma, mediadora


entre o mundo inteligível e o sensível. Platão punha a alma, quer dizer, o ente psíquico,
entre os entes ideais matemáticos e os entes reais corpóreos. Plotino punha a Alma como
terceira hipóstase e a fazia mediadora entre o inteligível e o sensível. Proclo também
reafirma esta função mediadora da Alma. Assim como o Uno e o Intelecto, a Alma é todas
as coisas, mas a seu modo. O Uno é todas as coisas enquanto princípio absoluto. O
Intelecto é todas as coisas enquanto pensa o Ser e é origem das Idéias e, por conseguinte,
da inteligibilidade de todo o ente. A Alma traz consigo a globalidade das Idéias. É um ser
que se auto-constitui, que se auto-doa a vida, conhecimento que se auto-conhece. É eterna
em seu ser e o seu agir produz o tempo. Por força e graça de sua atividade
temporalizadora, abre o mundo das coisas sujeitas ao devir. Ela é a síntese de todas as
coisas:

A alma [...] na qualidade de modelo contém previamente, como causa,


as coisas às quais ela preexiste, possui, ao invés, sob a forma de
derivados pelo processo generativo a partir do seu estado primigênio,
os princípios racionais das coisas materiais; a nível incorpóreo, aqueles
das coisas corpóreas; e a nível adimensional, aqueles das coisas que se
estendem no espaço. Reflete, ao invés, o mundo inteligível segundo a
modalidade das imagens, e recebeu de modo divisível as formas dos
inteligíveis indivisíveis; de modo pluralizado, as formas dos inteligíveis
unitários; com movimento próprio, as formas dos inteligíveis imóveis.
A alma é, por conseguinte, a totalidade daquilo que existe: por
participação – no caso dos princípios primeiros – ou em qualidade de
modelo – no caso dos seus derivados (Elementos de Teologia, Teorema
194).

A Alma é fonte de almas. Para Proclo existem as almas divinas, as almas


perenemente participantes da inteligência e as almas temporariamente participantes da
inteligência. Chama-se alma a tudo aquilo que se move a si mesmo e que move os corpos.
O Intelecto move, permanecendo imóvel. A alma, movendo-se por si mesma, move

56
outros seres. A alma se reveste de um corpo, que lhe funciona como veículo (óchêma).
Trata-se de um corpo que Proclo afirma ser imaterial, eterno, não gerado e imortal.
Quando a alma desce no mundo sensível, toma um revestimento material. Há a Alma do
Mundo, princípio animador universal, para a qual é corpo o universo inteiro. Quanto às
almas particulares, há almas que se revestem de um corpo celeste e impassível: as almas
dos astros. O corpo astral é, ao mesmo tempo, material e espiritual. É o veículo luminoso
de deuses. Este tipo de alma é intelectivo e também sensitivo, porém, sua sensibilidade é
de tipo próprio. São, com efeito, sensíveis às invocações teúrgicas. Há, depois, as almas
dos seres terrenos. Estas tomam um corpo terrestre, passível e provisório, que impõe à
alma uma individualidade e um período limitado de tempo.

Proclo trata dos níveis psíquicos numa metafísica da alma de cunho religioso. A
alma traz em si a totalidade das ordens e elementos do mundo. Nela está, pois, a
“plenitude de razões” (lógon pléroma). Ela é o “meio e centro de todos os entes” (In
Alcib. 320, 19-20). Os níveis da alma têm como correlatos as ordens do universo. No
nível mais elevado se encontra “o uno da alma” (tò hen tes psychés: In Tim., I, 211, 25).
Depois, vem a intuição inteligível (nóesis); em seguida vem a razão discursiva (diánoia),
e, por fim, a imaginação (phantasía) e a percepção (aísthesis).

O uno da alma é também chamado de “flor (ánthos) de nossa alma inteira”, “centro
de nossa essência total” (Or. Chald., 210 e 211,6), “rastro oculto do Uno”, “a semente do
Uno” (De decem, 64, 10, e 65, 3): “pois há em nós alguma semente desse não ser” (kaì
gàr em hemin eni ti spérma ekeínou tou mè óntos) (In Parm., VI, 1082, 10). É, pois,
comunicação e comunhão germinal da alma com o Uno. Ele pele alcançar o Inefável pelo
Inefável (tw arréto tò arreton, Th. Pl. I, 3). A teologia negativa não se constitui de uma
mera negação (apóphasis), mas de uma negação que é abnegação e elevação
(hiperapóphasis: In Parm. VII, 1172). É uma negação que não está no mesmo nível da
afirmação, mas em nível superior (supranegação). Ela suprime a um só tempo a afirmação
e a negação antitéticas dos atributos divinos. O que importa é, para além de toda afirmação
e negação, abrir-se à união (hénosis) mística com Inefável. Enquanto princípio, ele é dito
“Uno”; enquanto fim, é dito “Bem”. Salvaguardada, porém, a transcendência do Uno,
acolhem-se suas primeiras fulgurações: as unidades (hénades). Emergem da simplicidade
supranegativa do Uno. À medida que dele emanam, formam uma série, os números (in
Parm., VI, 1049). O uno de nossa alma é uma modalização da hênade psíquica.

57
A intuição intelectiva (nóesis). Vem depois do “Uno da alma”. Este se une de
modo silencioso com o Uno inefável. Aquela é pensamento e, enquanto tal, é finita. Do
Uno se irradiam múltiplas determinações, que formam o mundo inteligível: o limite ou
determinante (péras), o ilimitado ou indeterminado (ápeiron), o ser como presença
constante (ousía), a vida (zoé), o pensamento (nóesis). São gêneros supremos. Gêneros
não são abstrações, mas forças dinâmicas de geração. Os gêneros são “geradores” (géne
gónima: in Tim., II, 151, 22). O desdobrar destas gerações é contínuo (synechés). O
desdobramento segue uma lei cíclica de três funções fundamentais: a manência (moné) –
o contato do engendrado com o engendrador; a processão (próhodos), em que o gerado
aparece em sua diferença desde o fundo da identidade com o gerador; a conversão
(epistrophé), em que a diferença do principiado é integrada de novo na identidade do
princípio. O que está condensado no princípio se desdobra nas gerações. O Inefável em
sua identidade se desdobra, se explica, no que dele emana. O Uno está todo em cada coisa.
Cada coisa é singular, mas é, em virtude desta presença e vigência do Uno em cada coisa,
universal. Nicolau de Cusa, no século XV, irá falar de “complicatio” (complicação, isto
é, concentração de tudo no Um) e de “explicatio” (desdobramento do Um em todas as
coisas). Daí virá a monadologia de Leibniz.

A razão discursiva (diánoia) procede da intuição, quando as divisões simultâneas


do inteligível se desdobram numa sucessão de razões (lógoi). A sucessão faz pensar em
tempo. Para Proclo, o tempo é um número ou uma lei que procede do espírito ou intelecto
(noûs proiwn) para medir os movimentos psíquicos e físicos. De um centro imóvel
emanam todos os movimentos cíclicos da alma (períodos). A medida da alma não é o
tempo, mas a eternidade (aiwn). A alma é autoconstituinte (authypóstatos). O que se
autoconstitui é de uma vez por todas. O que é constituído, porém, acolhe seu ser num
devir, e segue, portanto, a sucessão. A alma está entre a eternidade e o tempo. É
autoconstituinte, mas não puramente. É indivisível e dividida (indivisível na sua
substância, mas dividida nas suas potências). O que é de uma vez por todas (hólon háma)
se desdobra na perpetuidade (aidiótes). A alma retira de sua substância, continuamente,
as suas razões substanciais (ousiódeis lógou) (in Parm. IV, 894, 35). O pensamento não é
tanto abstrativo (como pensavam os aristotélicos e os estoicos), mas projetivo. A alma
tem que expor e propor sucessivamente as razões do inteligível e, ao mesmo tempo,
realizar suas virtualidades psíquicas, mas este processo é interminável e inesgotável. A
alma precisa escolher um estilo de vida e não pode atuar outras realizações de outros

58
modos de vida. Mas tudo o que ela exclui está de certa maneira vinculada a ela também.
Cf. o mito do “Entre” da República de Platão (in Remp. II, 96-359). A “metensomatose”
se justifica com base nisso.

A extremidade inferior da razão é a opinião (dóxa). Conhece os fatos ignorando-


lhes as causas. O auge, porém, da vida da sensibilidade é a imaginação. A imaginação
gera o “senso comum”, que é ainda indiviso, mas que procede de fora. Depois vêm as
divisões dos sentidos externos. A imaginação é engendradora de toda a vida sensitiva. A
alma emite a imaginação a partir do corpo primordial que ela prende para si de modo
indissolúvel. É este corpo que insere a alma no cosmo total. A imaginação está
relacionada com este corpo imortal. O senso comum está ligado a um corpo que não é
imortal, mas que é de longa duração. Este corpo insere a alma no devir. Os sentidos
externos, por sua vez, residem no corpo efêmero, que se renova de vida em vida, que
Platão diz ser semelhante a uma concha (in Tim., III, 284, 16-300, 20; El. Th. 207-210).
Revestindo-se assim de novos veículos ou invólucros ou túnicas, a alma vai se
individuando. Uma das funções da imaginação é fazer a transição entre a indivisão do
pensamento e a divisão das figuras (in Eucl. 52, 20-53, I; 95, 1-2). As figuras geométricas
são projetas numa matéria inteligível (noeté hyle). A imaginação seria o intelecto paciente
(nous pathetikós) (in Eucl. 52, 3 e 53, 1). Trata-se do intelecto formador de figuras. Essa
atividade simbolizante é uma linguagem na qual a alma se revela a si mesma em sua
riqueza e harmonia interior.

Assim como as figuras geométricas são projetadas pela imaginação, também os


mitos. O mito que merece propriamente este nome não é o “educativo” (paideutikós), ou
seja, a alegoria, mas sim o mito iniciático (telestikós). O mito educativo está para o mito
iniciático, como a poesia didática está para a poesia inspirada. O mito iniciático é
irradiação da união mística, vida na qual a alma é investida pelo Inefável (in Remp. I, 80,
12-12; 81, 14-16; 84, 22 e ss; 177, 15-23; 178, 10 – 179, 3). O mito iniciático vai além da
razão (pensamento discursivo). Joga com oposições. As imagens de fealdade realçam a
beleza. Ele conduz ao santuário (ádytos), ao abismo (ábyssos).

A matéria é imagem invertida do Uno. A indeterminação (ápeiron) da matéria é


por privação. A indeterminação (ápeiron) do Uno é por excesso. A matéria não é o “mal
em si”, como dizia Plotino (I, 8, 3, 38-40). Procedente do Uno pelo infinito (ápeiron),
derradeiro grau da expansão que manifesta a superabundância do Inefável, ela é “boa em
certo sentido” (agathón pe: in Tim. I, 385, 15). O mal não é mera privação do bem, mas
59
a inversão da potência do bem contra si mesmo (De malorum 52, 16-17). O mal só existe
no bem e pelo bem. Não tem subsistência, mas somente contra-subsistência (parypósta
sis; ibid., 50, 29).

Enfim, a metafísica de Proclo se deixa resumir nisso: que o Inefável, o Uno, se


comunica para cada foco pensante como fonte de inteligibilidade e de autonomia
(autarchéia). Assim sendo, o universo em cada uma de suas partes, manifesta-se como
uma teofania policêntrica, especialmente na alma.

Como a alma, porém, pode converter-se ao Uno?

Sob o fundo desta metafísica neoplatônica, Proclo traça o caminho da alma


humana no seu retorno ao Uno. Em diferença de Plotino, para ele não basta a
contemplação intelectual. O caminho de salvação da alma e de unificação (hénosis) com
o Uno precisa de uma purificação e de uma iluminação ética e, além disso, de ritos e atos
religiosos, de cunho mágico-teúrgicos. Somos forçados a projetar a presença oculta da
divindade em nossas almas por figuras.

Ao escrever a Vida de Proclo, Marino apresentou o seu biografado como um


modelo de perfeita realização da virtude. Para Proclo, havia seis graus de virtude:

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• força e vigor físico
• beleza e harmonia do corpo
• saúde e bom funcionamento fisiológico do organismo
• boa memória e facilidade de aprender
• grandeza de alma, fineza e graciosidade nos modos
VIRTUDES
• vínculos afetivos à verdade, à justiça, à temperança e à coragem
NATURAIS • a fecundidade da inteligência

• a realização, conduzida pela razão e pela vontade, das virtudes cardeais:


• temperança, fortaleza, justiça e prudência.
• dizem respeito à dimensão individual do ser humano
VIRTUDES ÉTICAS

• dizem respeito à dimensão social do ser humano e à sua vida pública


• amizade, solidariedade e justiça
VIRTUDES
POLÍTICAS

• visam à purificação da alma como condição para a sua unificação com o divino
• purificações rituais lustrais, composição de hinos religiosos e participação em festas sagradas
VIRTUDES
CATÁRTICAS

• sabedoria:
• sabedoria intelectual adquirida pela visão intuitiva das idéias da mente divina
• sabedoria meta-racional adquirida pelo transe - êxtase báquico
VIRTUDE • adesão interior e acolhimento do deus em si mesmo
CONTEMPLATIVA

• ritos que conduzem à conjunção com o divino àqueles que foram purificados e iluminados.
VIRTUDES
TEÚRGICAS

A compreensão da virtude muda, aqui. O princípio já não é mais somente “viver


segundo a Natureza”, mas é também e, sobretudo, “assemelhar-se e unir-se ao Divino”.
A alma percorre, de virtude em virtude, um itinerário ascensional que a purifica, ilumina
e a torna apta à união com o Uno. Nos três primeiros graus de virtude, o homem se auto-
conduz através da sua razão e vontade autônomas. Nos três últimos, porém, ele necessita
das forças divinas, invocadas e incorporadas nos ritos, com seus símbolos e transes,
próprios da tradição mistérica órfica, onde Dionísio tem centralidade, próprios também
da tradição religiosa oriental veiculada pelos Oráculos Caldeus.

Seguindo os Oráculos Caldeus, Proclo postula uma potência meta-racional na


alma humana. Ele a chama de “flor do intelecto” (nóou anthos). Corresponde ao que os
medievais chamarão de Apex Mentis (Ápice da Mente). Para que o homem possa se unir
ao inteligível puro, ao Uno, ele precisa esvaziar sua alma e seu intelecto de todos os
conteúdos, sossegar todas as operações psíquicas e mentais e entrar no silêncio, pois Deus
61
se nutre do Silêncio. Os Oráculos aludem, pois, a esta potência unificadora da alma com
o Divino com estas palavras:

Há certo Inteligível que deves conceber com a Flor do Intelecto; porque


se diriges a Ele o teu intelecto e procuras concebê-lo como se
concebesses um objeto determinado, tu não o conceberás: porque ele é
a força de uma espada luminosa que brilha de cortes inteligíveis
(Oráculos Caldeus, frag. 1).

Em alguns passos, Proclo fala não simplesmente de “Flor do Intelecto”, mas de


“Flor da Alma”. A primeira é potência unificadora de toda a vida intelectiva da alma. A
segunda, porém, é potência unificadora de todas as forças da alma. É o “centro de toda a
nossa essência e de todas as várias faculdades que gravitam em torno dela” (Filosofia
Caldéia, IV).

A meta última de toda a elevação da alma é a união (hénosis) com o Divino. Esta
se dá no máximo recolhimento e na concentração da alma em seu centro.

O sinal mais nobre do ato humano é justamente este poder tender, na


profunda paz de toda potência, ao divino; o recinge como por dança e
gira em torno dele. De certo, é condição indispensável excitar para
aquela união a mais alta de todas as faculdades residentes na alma. E
convém lançar fora toda coisa, ou seja, todas as coisas posteriores ao
Uno; e morar junto a Ele, e com Ele, inefável, unir-se; com Ele, além
dos entes todos (Teologia Platônica I, 3).

Para tal excitação colaboravam, segundo Proclo, os elementos da arte mágico-


teúrgica, ensinados pelos Oráculos Caldeus. Estes remontam provavelmente a Juliano, o
“Teurgo”, filho de Juliano, o Caldeu, contemporâneos a Marco Aurélio (séc. II d.C).
Juntam a sabedoria babilônica e a heliolatria caldéia. São tidos como revelação de Hécate,
deusa da magia e dos encantamentos. O teurgo é diferente do teólogo. Enquanto este
discursa sobre os deuses, aquele os invoca e os deixa agir sobre o homem. A teurgia difere
da magia vulgar, pois esta invoca as forças divinas para fins profanos, enquanto aquela
as invoca para fins sagrados, em vista da união com o Divino. A teurgia era considerada
uma technê telestiké, uma arte dedicada à iniciação das almas por meio da consagração
de imagens e símbolos – teléô quer dizer, em sentido ordinário, levar à consumação; e,
em sentido religioso, iniciar aos mistérios, mas também consagrar alguma coisa aos
deuses. O análogo da teurgia no cristianismo é dado pelos sacramentos. Segundo a crença
teúrgica, toda divindade tem um elemento que lhe é “simpático” no mundo sensível:
animal, vegetal ou mineral. Estes elementos é que eram usados na invocação dos deuses.

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Funcionavam como “sýmbolon”, ou seja, como algo que une o inteligível e o sensível, o
imaterial e o material, o divino e o terreno. A divindade podia inserir temporariamente a
sua presença em um “receptáculo” (hypodoché) inanimado, como uma estátua, por
exemplo. Ou então podia se encarnar temporariamente em um ser humano, que lhe servia
de suporte (docheús). Uma pessoa em transe mediúnico podia ser receptáculo de um deus,
de um demônio ou até mesmo da alma de um falecido.

Proclo reinterpreta os Oráculos à luz da filosofia neoplatônica. Dos Oráculos adota


a compreensão triádica da realidade, a reivindicação de uma potência supra-racional na
alma (a Flor do Intelecto), a heliolatria e a exaltação mágica do fogo, a reinterpretação da
assimilação ao divino por meio do símbolo e do rito, a concepção da alma como “cheia
de símbolos” e a compreensão dos símbolos como elementos simpáticos aos deuses. Para
ele, a arte mágico-teúrgica se dá à medida que, por meio de ritos que lidam com coisas
sensíveis, são despertados os símbolos interiores da própria alma e sensibilizadas as
forças divinas no universo. Alguns princípios estão à base da interpretação neoplatônica
dos Oráculos Caldeus. São eles:

1) O nexo da simpatia universal -


2) Tudo é em tudo;
3) A semelhança como nexo ontológico que liga a cadeia dos seres;
4) Tudo é cheio de deuses;
5) O nexo metafísico da participação, que liga toda a realidade.

O primeiro princípio é o da simpatia universal. O universo é regido por uma


conexão estrutural e orgânica. Daí, a lei que governa todas as coisas: a simpatia. Há um
con-sentir entre inteligível e sensível, entre céu e terra, divino e humano. Assim como os
amantes sabem aproveitar do Eros para se elevar à Beleza eterna, como ensinava Platão
no Banquete, o teurgo sabe aproveitar da antipatia e, sobretudo, da simpatia entre os
elementos do universo, para se elevar ao Divino. Conexo a este princípio da simpatia é o
segundo, segundo o qual tudo está em tudo ao seu próprio modo. Isto quer dizer: toda
realidade reflete, a seu modo, o universo inteiro, em diferentes níveis e em diversas
medidas. Entre os entes inanimados, entes viventes e entes inteligentes, cada qual é um
ponto de referência a partir do qual o todo é refletido, quer como mero ser, quer como
vivente vegetativo ou sensitivo, ou ainda como ente que se abre para a totalidade do ser
por meio do pensamento. Em terceiro lugar, os vários planos do real são unidos por um
nexo de semelhança. A ordem da natureza terrena é semelhante à ordem da natureza
63
celeste. O sensível é semelhança do inteligível. O humano, do divino. É pela semelhança
que a alma humana pode retornar ao Divino, sua origem. Em quarto lugar, o universo está
cheio de deuses, como já dizia Tales de Mileto. O Uno divino se dá em sua inesgotável
plenitude como uma infinidade de divindades. Há divindades terrenas, celestes e hiper-
urânias ou super-celestes. O quinto e último princípio fala da participação. Todas as
coisas tomam parte do divino, em diferentes graus e segundo o lugar que lhe cabe na
hierarquia universal.

O pensamento de Proclo teve grande ressonância na história do pensamento


ocidental. Quem por primeiro realizou uma apropriação cristã dele foi Dionísio Pseudo-
Areopagita. João Escoto Eriúgena traduziu as obras areopagíticas. No século XIII ele se
tornou, ao lado de Agostinho, a grande autoridade da Patrística. Por meio de Dionísio o
neoplatonismo em sua última configuração pôde resistir por longo tempo na história
medieval. Outra obra que recolheu as influências de Proclo e que gozou de grande
autoridade também no século XIII foi o Liber de Causis que então era atribuído a
Aristóteles. Sob a aparência de aristotelismo, o neoplatonismo ainda continuou influindo
na história através desta obra. Tomás de Aquino comentou Dionísio, o Liber de Causis e
leu os Elementos de Teologia na tradução de Guilherme de Moerbeke. A doutrina da
analogia e da participação foi axial para toda a metafísica medieval no século XIII. A
Teologia Platônica e o Comentário ao Parmênides exerceram forte influência em Mestre
Eckhart (séc. XIV) e em Nicolau de Cusa (séc. XV). Mas, não parou na Idade Média a
sua influência. Na época moderna, dois grandes nomes ainda souberam beber da fonte da
metafísica procliana: Leibniz e Hegel, a quem Feuerbach chamou de o Proclo alemão. O
princípio “tudo está em tudo, cada vez a seu modo” dá origem à monadalogia de Leibniz.
E em Hegel vemos presente e atuante, na marcha dialética do espírito, a dinâmica triádica.
A realização da realidade em sua dinâmica geradora se dá ad extra ex tribus (para fora
pelo três). Também o cristianismo o afirmará, mas dando-lhe um sentido diverso, a partir
do dogma da Trindade.

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