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:: O Visionário De Taubaté
Estamos no ano 2.228. Nos Estados Unidos, a elite governante está alarmada: as
estatísticas apontam uma população de 108 milhões de negros para 206 milhões de
brancos. Como o coeficiente de natalidade negra continua subindo, o instinto de
preservação dos brancos se eriça em legítima defesa. Fala-se em uma “solução
branca” e uma “solução negra”. A solução branca é, obviamente, expatriar os negros.
Quem propõe este panorama é Miss Jane, personagem de Lobato na ficção já citada.
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agrícola, os seus interesses, os seus homens, a sua educação e a sua imigração. Uns
prosperarão, outros deperecerão. Haverá talvez Chiles ricos e haverá certamente
Nicaráguas grotescos. A América do Sul ficará toda coberta com os cacos dum grande
Império!”
A inflação do pigmento – Para Miss Jane, a América seria a privilegiada zona que
havia atraído os elementos mais eugênicos das melhores raças européias. O
Mayflower trouxera homens de uma têmpera superior que não hesitaram um
segundo “entre abjurar das convicções e emigrar para o deserto”. As leis de imigração
se tornam seletivas e as massas que procuravam a América, já em si boas, são
peneiradas. A Europa é drenada de seus melhores elementos e no novo mundo resta a
flor dos imigrantes. Ocorre então o que Miss Jane chama de “o erro inicial”: entra no
país, à força, o negro arrancado da África. O Sr. Ayrton observa que o mesmo erro foi
cometido no Brasil, mas nossa solução foi admirável: em cem ou duzentos anos teria
desaparecido o nosso negro em virtude de cruzamentos sucessivos com o branco.
Miss Jane não julga admirável tal solução, mas medíocre, pois estraga as duas raças
ao fundi-las. Prefere que ambas se desenvolvam paralelas dentro do mesmo
território, separadas por uma barreira de ódio, a mais profunda das profilaxias. Para
ela, o ódio impede mantém as raças em estado de relativa pureza.
– Não há mal nem bem no jogo das forças cósmicas. O ódio desabrocha tantas
maravilhas quanto o amor. O amor matou no Brasil a possibilidade de uma suprema
expressão biológica. O ódio criou na América a glória do eugenismo humano...
Os exemplares mais belos, fortes e inteligentes eram descobertos onde quer que se
encontrassem e atraídos para a Canaã americana. Estando o país bastante povoado,
fecha-se as portas ao fluxo europeu e a nação passa a crescer apenas vegetativamente.
É quando surge a inflação do pigmento. As elites pensantes haviam-se convencido
que a restrição da natalidade se impunha, pois qualidade vale mais que quantidade.
Rompe-se então o equilíbrio: “Os brancos entraram a primar em qualidade, enquanto
os negros persistiam em avultar em quantidade. Mais tarde, quando a eugenia venceu
em toda a linha e se criou o Ministério da Seleção Artificial, o surto negro já era
imenso”.
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No fundo, à semelhança do que foi feito com o Texas, pretendia-se anexar a região
aos Estados Unidos. A estratégia era simples. Bastaria comprar alguns brasileiros em
Manaus, que passariam a ser "legítimos representantes de uma República da
Amazônia, que se declararia estado independente do Império do Brasil, inclusive por
discordar da forma como o país era governado, com sua monarquia".
Caso o governo brasileiro enviasse navios e tropas para restabelecer sua soberania, os
cidadãos do novo estado amazônico independente apelariam para a proteção norte-
americana. E uma força de proto-capacetes azuis se apresentaria na foz do Amazonas
para "proteger a vida e os bens ameaçados dos cidadãos americanos".
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contemporâneos como Farrakhan. É bom lembrar que nessa época Lobato ainda não
havia viajado para os Estados Unidos.
hoje, 1998.
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da pigmentação.
A solução branca - Ainda não recuperados das emoções da vitória, cem milhões de
criaturas agradeciam aos céus a nova descoberta, que redundaria em um
aperfeiçoamento físico da raça. O pigmento fora destruído mas o esbranquiçamento
da pele não revelava cor agradável à vista. Com os raios Omega, tinham esperança de
obter com o tempo a perfeita equiparação cutânea.
Em todos os bairros de todas as cidades, a Dudley Uncurling Company estabeleceu
Postos Desencarapinhantes, que se multiplicaram ao infinito, como se uma força
oculta empurrasse a empresa do inventor dos raios Ômega ao desencarapinhamento
da América Negra no menor espaço de tempo possível.
Era dos mais simples o processo. Três aplicações apenas, de três minutos cada uma,
ao custo de dez centavos por cabeça, faziam com que os negros acorressem aos postos
como cães famintos. Os brancos, inicialmente irritados com o que chamavam de “a
segunda camouflage do negro”, acabaram se divertindo com o espetáculo da súbita
transformação capilar de cem milhões de criaturas.
Na véspera do dia da posse, Jim Roy, em sua residência particular, sonhava o maior
sonho já sonhado no continente, quando seu criado lhe anuncia a visita de “um
homem branco natural”. Era o presidente Kerlog, o adversário derrotado. Que
anuncia ao líder negro não existir moral entre raças, como não há moral entre povos.
Há vitória ou derrota.
– Tua raça morreu, Jim...
Os raios Omega de John Dudley tinham uma dupla virtude: ao mesmo tempo que
alisam os cabelos, esterilizavam o homem. No dia em que seria empossado o 88º
presidente dos Estados Unidos, o primeiro presidente negro da América, Jim Roy
aparece morto em seu gabinete de trabalho. Os negros pensaram imediatamente em
crime e chegou a haver um movimento de revolta. Mas o fatalismo ancestral superou
o ódio e o imenso corpo sem cabeça recuou instintivamente e repôs-se no humilde
lugar de onde a vitória de Roy o tirara. Procederam-se novas eleições e Kerlog foi
reeleito por 100 milhões de votos. A vida da América voltou à normalidade.
Nestes dias de junho de 98, a imprensa internacional nos traz uma espantosa
confirmação da hipótese de Lobato. Dan Goosen, cientista responsável por um
laboratório secreto durante o apartheid na África do Sul, revela que o governo
daquele país tentou desenvolver uma bactéria que poderia ser mortal ou causar
infertilidade somente em pessoas com pigmentação de pele escura. Em declarações à
Comissão da Verdade e Reconciliação para a África do Sul (CVR), disse um outro
pesquisador, o dr. Daan Jordan: “Meu trabalho era desenvolver um produto que
reduzisse a taxa de natalidade da população negra”. Este produto, que não chegou a
ser desenvolvido, seria distribuído entre os negros, possivelmente misturado à cerveja
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Há três quartos de século, antes mesmo de sua viagem aos Estados Unidos, Lobato
antevia o fim da maneira de fazer jornalismo da época e antecipava o que hoje é
rotina em qualquer redação deste final de milênio. Através de miss Jane, o escritor de
Taubaté começa a descrever a sociedade americana do futuro:
“Pelo sistema atual – Lobato refere-se a 1926 – o colaborador ou escreve em casa o
seu tópico ou vai escrevê-lo na redação; depois de escrito, passa-o ao compositor; este
o compõe, passa-o ao formista, este o enforma e passa-o ao tirador de provas; este
tira as provas e manda-o ao revisor; este o revê e envia-o ao corretor; este faz as
emendas e... e a coisa não acaba mais! É uma cadeia de incontáveis elos, isto dentro
das oficinas, pois que o jornal na rua dá início à nova cadeia que desfecha no leitor -
correio, agentes, entregadores, vendedores, o diabo".
Toda essa complicação desapareceria. Cada colaborador do Remember, jornal criado
na ficção lobatiana, "radiava" de sua casa, numa certa hora, o seu artigo, e
imediatamente suas idéias surgiam impressas em caracteres luminosos na casa dos
assinantes.
Além da era da roda - "As ruas tornaram-se amáveis, limpas e muito mansas de
tráfego" –continua Lobato–. "Por elas deslizavam ainda veículos, mas raros, como
outrora nas velhas cidades provincianas de pouca vida comercial. O homem tomou
gosto no andar a pé e perdeu os seus hábitos antigos de pressa. Verificou que a pressa
é índice apenas de uma organização defeituosa e anti-natural. A natureza não criou a
pressa. Tudo nela é sossegado."
Esta previsão, melhor creditá-la ao pendor utópico do escritor, que não chegou a
vislumbrar este lado provinciano do brasileiro, que se sente despido e humilhado se
não tiver uma carroça sobre quatro rodas. Enfim, para sonhar não se paga imposto.
Mas Lobato vai mais longe. Miss Jane considera superada a revolução da roda.
Segundo a moça, "o homem deu o primeiro grande passo em matéria de transporte
com a invenção da roda. Mas ficou nisso. Repare que a nossa civilização industrial se
cifra em desenvolver a roda e extrair dela todas as possibilidades. Daqui a séculos,
quando for possível ao homem uma ampla visão de seu panorama histórico, todo este
período que vem do albor da história e ainda vai prolongar-se por muitas gerações
receberá o nome de Era da Roda".
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O rádio matará a roda, segundo Miss Jane. "A roda, que foi a maior invenção
mecânica do homem e hoje domina soberana, terá seu fim. Voltará o homem a andar
a pé. O que se dará é o seguinte: o rádio-transporte tornará inútil o corre-corre atual.
Em vez de ir todos os dias o empregado para o escritório e voltar pendurado num
bonde que desliza sobre barulhentas rodas de aço, fará ele o seu serviço em casa e o
radiará para o escritório. Em suma: trabalhar-se-á à distância".
Lobato fala em rádio, o must dos anos 20. Se não podia prever as nuvens de terabytes
diariamente transmitidas de um ponto a outro do planeta pela WEB, intuiu muito
bem suas conseqüências. O teletrabalho – trabalho "radiado" para o escritório, como
diria Lobato – já é um fenômeno em expansão. Hoje, qualquer trabalhador
intelectual, desde que tenha um telefone por perto, pode enviar sua produção para
qualquer canto do mundo, refugiado num chalé no Itatiaia ou em busca de solidão e
deserto em Tamanrasset. Jornais impressos a milhares de quilômetros de suas
redações há muito não constituem mais novidade.
Em 41, estávamos a meio século da Internet. Hoje, aos buscadores desta ficção de
Borges bastaria digitar um endereço eletrônico e teriam em segundos os livros
desejados, sem a necessidade de estrangular-se ou enlouquecer, pedalar ou patinar,
subir escadas ou cair em poços sem fundo. Hoje, um leitor de qualquer parte do
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mundo, com uma placa modem em seu computador, pode acessar a Congress Library
em Washington, a Bibliothèque Nationale em Paris ou a Biblioteca Nacional de
Madri. Ou as bibliotecas da USP, Unesp e Unicamp em São Paulo. Por enquanto,
apenas bibliografia, é bom salientar. Mas a tendência é colocar o próprio livro à
disposição do usuário, o que está sendo feito pelo projeto Gutenberg e a ABU , entre
outros sites. Nestes últimos, estão a seu alcance, desde Plutarco e Platão, até
Descartes ou Marx, passando pela Bíblia, Voltaire ou Dostoievski. Por enquanto em
francês e inglês, mas já estão sendo digitalizados acervos em português e espanhol.
A pergunta “quantos livros tem sua biblioteca?” inclusive perdeu o sentido e não mais
permite uma resposta precisa. Vivemos uma época em que ninguém sabe de quantos
livros dispõe em seu gabinete de trabalho. Os livros ao alcance de sua mão - ou de seu
mouse - são tantos quanto os que estão digitalizados e disponíveis na grande rede,
esteja você morando em qualquer aldeia do fim do mundo. Desde, é claro, que tenha
uma linha telefônica por perto.
O diâmetro do Aleph seria de dois ou três centímetros, mas o espaço cósmico estava
ali, sem diminuição de tamanho. Cada coisa (a face do espelho, digamos) era
infinitas coisas, porque eu claramente a via desde todos os pontos do universo. Vi o
populoso mar, vi a alba e vi a tarde, vi as multidões da América, vi uma teia
prateada no centro de uma negra pirâmide, vi um labirinto rompido (era Londres),
vi intermináveis olhos imediatos perscrutando-se em mim como em um espelho, vi
todos os espelhos do planeta e nenhum me refletiu, vi em um pátio da rua Soller os
mesmos ladrilhos que há trinta anos vi no saguão de uma casa em Fray Bentos, vi
racimos, neve, tabaco, veios de metal, vapor de água, vi convexos desertos
equatoriais e cada um de seus grãos de areia, vi em Inverness uma mulher que não
esquecerei, vi a violenta cabeleira, vi o altivo corpo, vi um câncer no peito, vi um
círculo de terra seca em uma vereda, onde antes houve uma árvore, vi um sítio em
Adrogué, um exemplar da primeira versão inglesa de Plínio, a de Philemon Holland,
vi ao mesmo tempo cada letra de um volume (quando criança, eu me maravilhava
com o fato de que as letras de um volume fechado não se misturassem e se
perdessem no transcurso da noite), vi a noite e o dia contemporâneo, vi um pôr-de-
sol em Querétaro que parecia refletir a cor de uma rosa em Bengala, vi meu
dormitório sem ninguém, vi em um gabinete de Alkmaar um globo terrestre entre
dois espelhos que o multiplicavam ao infinito, vi cavalos de crinas enredadas. Em
uma praia do mar Cáspio vi a alba, vi a delicada ossadura de uma mão, vi os
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(...) uma corrente contínua, que é o presente. Tudo se acha impresso em tal corrente.
Os cardumes de peixe que neste momento agonizam no seio do oceano ao serem
apanhados pela água tépida do Golfo, o juiz bolchevista que neste momento assina a
condenação de um mujik relapso num tribunal de Arkangel; a palavra que, em
Zorn, neste momento, o kronprinz dirige ao ex-imperador da Alemanha, a flor do
pessego que no sopé do Fushiama recebe a visita de uma abelha; o leucócito a
envolver um micróbio malévolo que penetrou no sangue dum fakir da Índia; a gota
d’água que espirra do Niágara e cai num líquen de certa pedra marginal; a matriz
de linotipo que em certa tipografia de Calcutá acaba de cair no molde; a
formiguinha que no pampa argentino foi esmagada pelo casco do potro que passou
a galope; o beijo que num estudio de Los Angeles Gloria Swanson começa a receber
de Valentino...
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