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Em busca do outro – um novo caminho

pequeno ensaio acerca das interações público-privado, sob a ótica da solidariedade.

Wagner Inácio Freitas Dias1


R. Farmacêutico Mário Azevedo, 28/301 – Jardim Glória
Ubá MG – 36500-000
32 88341401 / 31 96738355 / 32 35390123

Mantenha os seus olhos nas estrelas e os seus pés na terra.


Theodore Roosevelt

Hoje em dia conhecemos o preço de tudo e o valor de nada.


Oscar Wilde

Resumo
O presente trabalho busca empreender análise acerca da interação do princípio constitucional da
solidariedade e o sistema jurídico civil, através da boa-fé. Em pesquisa bibliográfica e jurisprudencial
vê-se que o sistema civil brasileiro foi alterado em 2002, um afluente da Constituição da República de
1988, e trouxe consigo novos preceitos que possibilitaram a mudança das concepções e regras
individualistas para estruturas estabelecidas sobre a imagem da pessoa. A figura do contratante foi
revista, com base na eticidade, socialidade e operabilidade. Recebeu ele a cláusula geral da boa-fé, em
perspectiva objetiva, que passa a imputar aos agentes sociais claros deveres de cuidado, lealdade,
respeito, informação. A ética passa a interferir diretamente no Direito. Para tanto, deve-se
compreender quais as reais implicações desta cláusula no sistema civil pátrio, sugestionando e
criticando as fórmulas adotas pelo legislador.

1 – O primeiro passo
O Direito tem como função primordial regulamentar as relações humanas2. Sem a pluralidade
do humano não haveria o porquê de um sistema complexo de normas e regulamentações. A limitação
aos desejos humanos torna-se, assim, o papel primordial do sistema jurídico, buscando este que cada
um respeite o alheio.
Respeito, cuidado, atenção, sigilo se tornam elementos determinados3 pelo Direito para
concretizar sua missão de pacificação social. Como bem explica Beviláqua, direito civil, no sentido
objetivo, é o complexo de normas jurídicas relativas às pessoas, na sua constituição geral e comum,
nas suas relações recíprocas de família e em face dos bens considerados em seu valor de uso.4
Todos esses elementos dão ao Direito uma figuração de altruísmo, de alteridade, de outro. A
Carta Maior brasileira recebeu estas idéias em seu corpo ao determinar que é um dos objetivos
fundamentais da República “construir uma sociedade livre, justa e solidária” (art. 3º, I). O Princípio da
Solidariedade5, ali insculpido, especifica no mundo jurídico o pensar no outro, o se preocupar em não
1
Professor de Direito Civil da UNIPAC – Campus II – Ubá-MG. Mestre em Direito pela UNESA-RJ. Coordenador do
Curso de Direito da UNIPAC – Campus II – Ubá – MG.
2
Para tanto, veja-se PEREIRA, Caio Mário da Silva. Instituições de Direito Civil. v.1. 20.ed. [atual. Maria Celina Bodin de
Moraes]. Rio de Janeiro: Forense, 2004. 718p p. 5; CARNELUTTI, Francesco. A arte do Direito: seis meditações sobre o
Direito. Trad. de Ricardo Rodrigues Gama. Campinas, SP: Bookseller, 2001. 86p.pp. 14 e 15; e MONCADA, Luís Cabral
de. Lições de Direito Civil – Parte Geral. 4.ed. Coimbra: Almedina, 1995. 851p. pp 25 e 26.
3
Em relação ao comportamento correto, seguindo modelo proposto por Hart, veja-se PATTARO, Enrico. Elementos para
una teoria del derecho. [trad. Ignácio Ara Pinilla]. Madrid: Debate, 1991. 311p. pp. 152 e ss.
4
BEVILÁQUA, Clóvis. Teoria geral do Direito Civil. Campinas: RED Livros, 2001. 434p. p.111.
5
Passando por sobre o sistema tradicional do individualismo, cuja força ainda gera uma ação de retaguarda para mantê-
lo incólume, princípios de justiça distributiva tornaram-se dominantes, a ponto de serem considerados tendências
mundiais de percepção da solidariedade social. FACHIN, Luiz Edson. Teoria Crítica do Direito Civil. Rio de Janeiro:
Renovar, 2003. 365p. p.17.
1
apenas se favorecer, mas favorecer aos demais. Favorecer, entenda-se, não em um sentido
demagógico-paternalista, mas em buscar em suas atividades, alcançar a máxima relevância social
possível.
Este princípio, de per se stante, nada poderia estabelecer no mundo dos fatos, haja vista seu
conteúdo amplo e dinâmico. Para determinar alterações no mundo do ser, necessita ele de uma série de
sub-princípios e métodos de especialização, pois, como afirma CANARIS,
os princípios não valem sem excepção e podem entrar entre si em oposição ou em contradição;
eles não têm a pretensão da exclusividade; eles ostentam o seu sentido próprio apenas numa
combinação de complementação e restrição recíprocas; e eles precisa, para a sua realização, de
uma concretização através de sub-princípios e valores singulares, com conteúdo material
próprio. 6

Expressão maior deste afã é, na visão perfilhada neste trabalho e que se lhe figura como objeto
de análise, o instituto da boa-fé que desde remotos tempos é fator de grande discussão entre os
estudiosos. Discussão que não lhe subtrai importância, visto significar desde a mais forte virtude, até o
mais horrendo vício. O vínculo mantido pela boa-fé liberta, mas pode também acorrentar vontades,
adstritas que restam ao que se estabeleceu. Dele, contudo, não se pode olvidar como bem lembra Karl
Larenz, comentando o Código Civil Alemão, pois
el personalismo ético, que parte de la base de la capacidad del hombre para la autodecisión e
la responsabilidad por sí mismo y que eleva el respeto a la dignidad personal de cada ser
humano a la categoría de imperativo moral supremo, no sería, con todo, suficiente para
fundamentar un orden jurídico, y ni siquiera un orden jurídico-privado, si no interviniera
también un elemento ético-social. Este elemento es, en el Código civil, el principio de buena
fe. Se basa en la consideración de que una convivencia pacífica y próspera de personas en
una comunidad aún tan falta de cohesión no es posible sin que la confianza dispensada, al
menos en general, no sea defraudada sino confirmada, y que, por ello la buena fe permanezca
como posible en cuanto fundamento de las relaciones humanas. (…) El imperativo de no
defraudar la confianza dispensada y exigida halla su expresión en el Código civil en la
exigencia de observar la “buena fe” (art. 242)(sic) 7

Múltiplo e único, como se verá, se misturam neste instituto que surge confuso e obtuso para
muitos, levando a digressões e antagonismos que relegam a prática a segundo plano, sem que se lhe
atribuam os efeitos todos e certos.
É esta complexidade, que envolve tanto a boa-fé quanto o solidarismo, o objeto do presente
escorço, em que se passará pelas bases do princípio da solidariedade, vislumbrará as compleições do
público e do privado no atual estado da arte e perceberá como a boa-fé haure suas funções diretamente
da Carta Maior.

2 - Miradas sobre o princípio da solidariedade


A noção de solidariedade, em sua primeva visão dentro do sistema jurídico, retrata uma
variação da tipologia das obrigações8. Por seu tempo, migrou esta concepção aos foros constitucionais,
passando a determinar, quando de seu retorno sobre o plexo cível, uma ordem de respeito e
cooperação.

6
CANARIS, Claus-Wilhelm. Pensamento sistemático e conceito de sistema na ciência do Direito, p.88.
7
LARENZ, Karl. Derecho de obligaciones, p. 58-59.
8
MORAES, Maria Celina Bodin de. O Princípio...p.168.
2
Não apenas se percebe a existência do outro, ele não apenas está lá. Tem-se, através do
reconhecimento9 que o outro está no “eu” e que o “eu” está no outro (está, não é) como fator sine qua
non para o viver.
Não se apresse em pensar que toda esta concepção se dê de forma linear, singela, pois o que
ocorre é fervoroso embate que reflete o paradoxo da alma humana, vez que se a
solidariedade é uma idéia-força de nossa contemporaneidade, forçoso é constatar um grande
paradoxo do homem contemporâneo, pois este despreza, em larga escala, as tentativas de
imaginar uma democracia social e pluralista, cuja força motora baseia-se na liberdade, na
solidariedade e num pluralismo da vida social. A solidariedade tornou-se um paradigma
perdido. Diante deste fato, não podemos deixar de lamentar o esquecimento no qual caiu o
discurso solidarista10.

O homem do séc. XIX, no auge de seu iluminismo e antropocentrismo, legou ao mundo a


compreensão de que o indivíduo, respeitado por seu supremo direito de liberdade, deveria poder
exercer suas faculdades, tanto jurídicas quanto morais, no limiar do absoluto, pois só assim a sociedade
receberia o real progresso, no entendimento de que o sistema é completo.
Este mesmo indivíduo observou, quando das grandes guerras modernas (inclusive as
mundiais), que o ermitão do mundo não era auto-suficiente ou se bastava a si mesmo. A família
ganhou foro social, o jardim invadiu (foi invadido pela) a praça11.
O que antes era privado foi recebido no alpendre social, o indivíduo12 se descobriu pessoa e,
como pessoa, se redescobriu no outro13.
O indivíduo que se perfez sujeito14 nos séculos anteriores, tirano absorvido pelos pálios
protetivos do contratante, do pai de família, do testador e do proprietário, perde espaço, cai em risco de
morte, mesmo que ovacionado pelas codificações atuais15.

9
Este reconhecimento se pauta na dignidade da pessoa humana e o seu substrato material pode ser fragmentado em quatro
postulados, conforme BODIN, em Danos à pessoa humana página 85: i) o sujeito moral (ético) reconhece a existência dos
outros como sujeitos iguais a ele, ii) merecedores do mesmo respeito à integridade psicofísica de que é titular, iii) é dotado
de vontade livre, de autodeterminação; iv) é parte do grupo social, em relação ao qual tem a garantia de não vir a ser
marginalizado. São corolários desta elaboração os princípios jurídicos da igualdade, da integridade física e moral –
psicofísica –, da liberdade e da solidariedade. Ainda vale lembrar que quando se fala de direito, o comportamento humano
é sempre um comportamento social, ou seja, referido ao outro e à comunidade dos outros. A consciência jurídica dirige as
suas exigências no sentido de um comportamento para com o outro (...) isto pressupõe o conhecimento de que nos
interessa a nós e ao próximo; de que a sua pessoa e a minha pertençam a uma estrutura de responsabilização comum.
(WIEACKER, Franz. op.cit. p.710).
10
FARIAS, José Fernando de Castro. A origem do Direito de solidariedade. Rio de Janeiro: Renovar, 1998. 307p. p.194.
11
Em alusão à metáfora usada por Nelson Saldanha, em O Jardim e a Praça – ensaio sobre o lado privado e o lado público
da vida social e histórica. 1984.
12
Aproveitando ensejo, não se deve ter por totalmente incompatível a noção de indivíduo, pois em uma perspectiva
psicológica, não há como se distanciar desta idéia. Mas, quando se percebe este conceito numa visão sociológica, não se
pode distanciar o singular do coletivo. Assim, o que se denomina indivíduo (aqui estamos num ângulo psicológico e não
propriamente ético, dispensando portanto a preferência pelo termo ‘pessoa’) e o que se denomina coletividade possuem
uma certa estrutura, e isto se acha expresso na moderna sociologia e na psicologia social. Na estrutura da individualidade
encontra-se um conjunto de projeções do viver que se desenvolvem, corporal e animicamente, a partir de experiências que
por sua vez dever ter provindo das relações com o contexto. A este ‘contexto’ corresponde a noção de sociedade: a
sociedade é a coletividade enquanto entendida num sentido global, provida de uma realidade específica e estável. Pouco
importa que a coletividade se entenda como ‘oposta’ aos indivíduos, e ao mesmo tempo como ‘composta’ pelos indivíduos:
o social é ao mesmo tempo condição e resultado, e aparece como pluralidade integrada por unidades. (SALDANHA,
Nelson. op.cit. pp.22-3.)
13
Público e estatal não mais se identificam por inteiro; privatismo e individualismo, a seu turno, cedem passo para
interesses sociais e para a “coexistencialidade”. (FACHIN, Luiz Edson. Teoria Crítica...p.221).
14
Para um repensar da “biografia” do sujeito, veja-se FACHIN. op.cit. pp.108 et seq e CARVALHO, Orlando de. A
teoria... passim.
15
A categoria do direito subjetivo traz em si esta noção de relativismo, como lembra FACHIN, em uma ótica renovada, a
concepção de direito subjetivo supera a característica do absolutismo. A exceção se dá quanto ao direito potestativo, uma
vez que, diante deste, a outra parte nada pode fazer, a não ser submeter-se. Os direitos subjetivos propriamente ditos,
todavia, implicam um dever correspectivo. (op.cit. p.312)
3
A idéia de pessoa16 não aceita este elemento estático, em que o que importa é a adequação do
fato à previsão da lei. Pelo contrário, Maria, José, João, cada um dos viventes humanos traz em si a
chama da diferença, e justamente esta chama se apresenta como o elemento que nos torna iguais.
Como já cantaram poetas dos pampas, somos “todos iguais/todos iguais/mas uns mais iguais que os
outros/tão desiguais.../tão desiguais...”17
A concepção de pessoa é concreta, dinâmica, fluída. A cada momento os parâmetros que se tem
para defini-la podem se apresentar de maneira diferente. É esta fluidez que lhe dá ares de humanidade,
lhe qualifica junto aos demais. Quando não se é perfeito, se aprende que a maior virtude humana é
perdoar, pois, de outro lado, o caminho mais fácil a ser seguido é o do erro.
Quando o erro é uma constante, o outro se torna importante, pois a culpa só pode com ele ser
purgada; a dor só pode ser por ele acalentada; a responsabilidade só com o outro pode ser
compartilhada.
A figura do outro – terceiro – relegada desde a compreensão helênica e romana ao apartheid
jurídico, somente cogitada como exceção, largou os bastonetes e veio a se fixar na fóvea, como
elemento fulcral. O inter-partes se estendeu, a relação protegida passou a ser influenciada e influenciar
o alheio. A ética moral e individual subverteu-se, rebelou-se em ética solidária 18, não do “um”, mas do
“todo”19. Uma ética da complexidade20 e da responsabilidade21.
A ética da complexidade é o grande norte determinador da solidariedade, pois o discurso
solidarista tenta forjar uma unidade levando em conta essa pluralidade da vida social22. O solitário
vergou o fonema, tornando-se solidário. Esta pequena alteração (na conformação) do signo traz, na
realidade, forte viés modificativo, denotado no significante.
A solidariedade não se assenta de soslaio ao batente da porta. Ela se convolou em ditame
fundante do Estado, verdadeira missão do ente coletivo23.
É agora uma obrigação jurídica do Estado, do Ente Público, orientar a sociedade no sentido de
que o melhor caminho a ser seguido é o do reconhecimento, o “ser com o outro”24. Além de políticas
públicas que apontem neste sentido, faz-se mister que os órgãos do judiciário se apresentem como
guardiões da ética, da moralidade; intérpretes que trazem para a norma todo o necessário sentido social
que lhe deve estruturar, pois se a linguagem fosse uma entidade destacável da realidade global da
sociedade, então a interpretação poderia voltar a ser uma atividade que exonera o jurista de assumir
responsabilidades sociais.25

16
Veja-se CARVALHO, Olando de. A teoria...pp.10 et seq, ao afirmar que a “repersonalização” do direito civil, ou a
polarização da teoria em volta da pessoa, que lá se preconiza, não parte de nenhum parti-pris filosófico jusnaturalista ou
“personalista” (...) do que se trata é pura e simplesmente de, sem nenhum compromisso “com qualquer forma de
liberalismo económico e com qualquer espécie de retorno a um individualismo metafísico”, repor “o indivíduo e os seus
direitos no topo da regulamentação jure civile”, não apenas “como o actor que aí privilegiadamente intervém mas,
sobretudo, como o móbil que privilegiadamente explica a característica técnica dessa regulamentação”.
17
Ninguém = Ninguém. Humberto Gessinger – Engenheiros do Hawaii.
18
Toda a ruptura directa da jurisprudência em direção à função social é necessariamente paga com a destruição dos
sistema, com a reformulação dos conceitos. (WIEACKER, Franz. op.cit. p. 627.)
19
Veja-se WIEACKER, Franz. op.cit. pp.705 et seq. Em complemento, Kant esclarece que qualquer ação é justa se for
capaz de coexistir com a liberdade de todos de acordo com uma lei universal, ou se na sua máxima a liberdade de escolha
de cada um puder coexistir com a liberdade de todos de acordo com uma lei universal. (Metafísica dos Costumes, pp. 76-
7).
20
Para tanto, tenha-se MORIN, Edgard. A ética do sujeito responsável. in CARVALHO, Edgard de Assis et alii. Ética,
solidariedade e complexidade. pp. 65 et seq.
21
Como fundamento, busque-se em JONAS, Hans. Ética, medicina e técnica. passim. Em destaque a afirmação do autor, à
página 39, de que a ignorância já não constitui álibi.
22
FARIAS. op.cit., 195.
23
Ver FARIAS, op.cit., p.193 e MORAES, Maria Celina Bodin de. O princípio da solidariedade. In Os princípios da
Constituição de 1988. Manoel Messias Peixinho, Isabella Franco Guerra e Firly Nascimento Filho (org.) Rio de Janeiro:
Lúmen Juris. p.189.
24
O Para-si, sozinho, é transcendente ao mundo, é o nada pelo qual há coisas. O outro, ao surgir, confere ao Para-si um
ser-Em-si-no-meio-do-mundo, como coisa entre coisas. (SARTRE, Jean-Paul. O ser e o nada. p. 531).
25
PERLINGIERI, Pietro. Perfis do Direito Civil. p.59.
4
Seguindo este caminho e influência26, o direito privado viu-se modificado pelos preceitos
solidaristas , pois
si la valoración de la naturaleza y de las tareas del actual derecho constitucional y del actual
derecho privado es correcta, ambos aparecen como partes necesarias de un orden jurídico
unitario que recíprocamente se complementan, se apoyan y se condicionan.27

Firma-se a solidariedade como o princípio maior que rege todo o sistema. A muitos que
defendem ser a dignidade da pessoa o valor fundamental da ordem estabelecida atualmente pode
parecer estranha tal afirmação. O fato é que a solidariedade é requisito essencial para a dignidade.
Não pode o homem flutuar ou vagar entre a liberdade e o solidarismo. Pelo contrário, o
solidário se torna mínimo determinante para a aquisição e o exercício dos demais princípios
fundamentais. Qualquer direito, sem solidariedade, pode se deturpar em abuso28.
Não há ponderação quanto à existência29 da solidariedade, apenas quanto ao seu alcance ou
extensão se pode cogitar de embate com outros princípios. O fator proporcionalidade se fixa sobre a
solidariedade, e por ela se traduz o errado no certo, o injusto ganha status de justiça. O mínimo
solidário é irrenunciável, é adrede à noção de pessoa.
Este mínimo percorre todos os pilares30 do direito privado, das titularidades ao projeto parental,
passando pelo trânsito juridico.

3 - Princípios constitucionais e as relações privadas


Para que se compreenda a maneira como Direito Constitucional e Direito Civil hoje interagem,
é necessário que se faça, primeiramente, um breve escorço acerca da divisão (ou pseudo-divisão) do
Direito em ramos ou fragmentos.
Os doutos31, em manuais de iniciação aos saberes jurídicos, discorrem comumente sobre esta
divisão, denotando existir uma face do Direito que se ocupa de avaliar as pretensões, dissensões e
comunhões dos particulares entre si atuando em paridade (ao menos formal) – Direito Privado – e
outro, que resguarda para si as atividades em que se tenha um ente que ocupa posição de ius imperii –
Direito Público32.
Como lembra Eugênio Facchini Neto,
uma tal distinção fez seu ingresso na história do pensamento político e social do ocidente
através de duas passagens do Corpus Iuris Civilis [Instituitiones, I, I, 4; Digesto, I, 1, 1, 2],

26
Conforme Sarmento, em Direitos fundamentais e relações privadas à página 298, o reconhecimento da eficácia direta
dos direitos fundamentais na esfera das relações jurídico-privadas não é incompatível com o chamado efeito de irradiação
dos mesmos direitos, que os torna vetores exegéticos de todas as normas que compõem o ordenamento jurídico. Assim,
(...), ao aplicar qualquer norma infraconstitucional a casos concretos, inclusive no campo das relações entre particulares,
o Judiciário deve mirar os valores constitucionais, que têm no sistema de direitos fundamentais o seu eixo central, e no
princípio da dignidade da pessoa humana o seu vértice. Caso não seja possível aplicar a norma ordinária existente em
conformidade com os direitos fundamentais, deve o órgão jurisdicional exercer o controle incidental de
constitucionalidade, para afastar o preceito viciado da resolução da questão, e, diante de eventual ausência de norma,
solucionar o litígio através da invocação direta da Constituição. Assim também CANARIS, em Constituição, Direitos
fundamentais e Direito Privado (obra coletiva), p. 223 e ss e FACHIN & RUZYK, em Constituição, Direitos fundamentais
e Direito Privado (obra coletiva), p.87 e ss.
27
HESSE, Konrad. Derecho constitucional y derecho privado. Madrid: Editorial Civitas. trad. Ignacio Gutierrez Gutierrez.
1995. 88p. p. 81.
28
Veja-se PERLINGIERI, Pietro. Perfis...pp. 122 et seq e SCHREIBER, Anderson. A proibição do comportamento
contraditório. pp.104 et seq.
29
Analogamente, em relação à dignidade da pessoa humana, veja-se SARLET, Ingo Wolfgang. Dignidade da pessoa
humana e direitos fundamentais. pp. 124 et seq. A analogia se justifica por ser a solidariedade a base sobre a qual se
constrói a dignidade, pois não há se pensar em dignidade sem solidariedade.
30
Cf. FACHIN, Teoria Crítica do Direito Civil.p.22 et passim.
31
Podem retratar a existência de normas jurídicas públicas e privadas (AMARAL, Francisco. Direito Civil – introdução.
p.7) ou a unidade do Direito, apesar de sua fragmentação didática (PEREIRA, Caio Mário da Silva. Instituição de Direito
Civil. v.1. pp.14 et seq.
32
ASCENSÃO destaca a existência de três critérios diversos para se identificar o Direito Público ou vincular uma
determinação relação jurídica a este ramo: o critério do interesse, o critério da qualidade dos sujeitos e o critério da posição
dos sujeitos. Afirma o autor que a qualificação da relação não depende apenas do interesse ou da qualidade dos sujeitos, ato
com que adota o critério da posição dos sujeitos, variando entre o ius imperii e a paridade. Deste critério também se
aproveita o presente trabalho. (por tudo, veja-se a obra Introdução à Ciência do Direito, pp. 312 et seq.)
5
onde se refere ao público como quod ad statum rei romanae spectat, e ao privado como quod
ad singulorum utilitatem33.

Assim também é a lição de Nelson Saldanha,


o desdobramento destes dois “momentos”, ou duas dimensões do viver – a pública e a privada
– poderia ser rastreado no processo de estruturação social em cada um das chamadas grandes
culturas. Poderia inclusive ser vislumbrada (embora certamente sem maior nitidez) no próprio
surgimento das estruturas e na institucionalização das práticas. Então teríamos uma série de
subtemas, não sei se já aproveitados, para o antropólogo e para o filósofo da história.
Teríamos uma variada série de conjeturas a explorar, algumas delas compatíveis com estudos
históricos já feitos: por exemplo, a dualidade de cultos, um público e outro privado, tanto na
antiga Grécia como em Roma, foi persuasivamente fixada na sempre notável Citè Antique de
Fustel de Coulanges. Cultos distintos, embora solidários.34

Esta diferenciação, às vezes acrescida de outros elementos, como o Direito Social 35, sabe-se,
contudo, fictícia36, não demonstrando a realidade una e sistêmica do Direito. Note-se que a mesma não
retrata a realidade, muito menos é de fácil percepção.
Mas esta diferenciação se mostra didaticamente necessária para a apreensão do fenômeno
jurídico, pois, de sua ausência, resultaria complexa a avaliação das possibilidades surgidas a partir das
intrincadas redes relacionais estabelecidas pelo Direito.
Seguindo esta linha, deve-se precisar o que, neste trabalho, se entende por público e privado.
Assim, o critério que se utilizará para apartar estes campos será o da posição dos sujeitos. Com isto,
vê-se que o Direito Privado tem por fim proteger todas as relações em que os agentes atuam em caráter
de igualdade (ao menos formal), e o Direito Público, por sua vez, fixa seu campo de atuação nas
relações em que atua um dos sujeitos em posição de império, de prevalência.
Vale destacar que toda esta fragmentação não é de pleno aceite em doutrina, visto que o Direito
Civil pode ser enquadrado como um ramo misto, reunindo características do Direito Público e do
Direito Privado. É lição de Pietro Perlingieri37 que
o Direito Civil reapropria-se, por alguns aspectos e em renovadas formas, da sua originária
vocação de ius civile, destinado a exercer a tutela dos direitos ‘civis’. (...) O Direito Civil não
se apresenta em antítese ao Direito Público, mas é apenas um ramo que se justifica por razões
didáticas e sistemáticas, e que recolhe e evidencia os institutos atinentes com a estrutura da
sociedade, com a vida dos cidadãos como titulares de direitos civis. Retorna-se às origens do
direito civil como direito dos cidadãos, titulares de direitos frente ao Estado. Neste enfoque,
não existe contraposição entre privado e público, na medida em que o próprio direito civil faz
parte de um ordenamento unitário.

Dissenso à parte, verifica-se claramente, na mentalidade jurídica, um espaço reservado para


cada um destes pólos em que o Privado e Público poderiam remanescer em câmaras estanques38, como
33
FACCHINI NETO, Eugênio. Reflexões histórico-evolutivas sobre a constitucionalização do direito privado. In SARLET,
Ingo Wolfgang (org). Constituição, Direitos Fundamentais e Direito Privado. Porto Alegre: Livraria do Advogado. pp. 11 a
60. p. 13-4. Complementando a informação, extrai-se das Institutas de Justiniano o seguinte fragmento: §4º - Duas são as
posições deste estudo: o público e o privado. Direito Público é o que se refere á República Romana; privado é o direito que
versa interesses particulares. Deve-se dizer que o direito privado é tripartido, porque consta de preceitos do direito natural,
do direito das gentes e do direito civil. JUSTINIANUS, Flavius Petrus Sabattus. Institutas do Imperador Justitiano. [Trad.
José Cretella júnior e Agnes Cretella]. São Paulo: Revista dos Tribunais. 348p. p.22.
34
SALDANHA, Nelson. O jardim e a praça. p.13.
35
Como em SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional Positivo. p.35.
36
Sobre esta ficção, que não se encontra em todos os sistemas jurídicos, veja-se CARVALHO, Orlando de. A teoria geral
da relação jurídica. pp. 25 et seq.
37
PERLINGIERI, Pietro. Perfis do Direito Civil. pp.34/55.
38
O direito público e o direito privado (...) constituíram, para a cultura jurídica dominante na Escola da Exegese, dois
ramos estanques e rigidamente compartimentados. Para o direito civil, os princípios constitucionais equivaleriam a
normas políticas, destinadas ao legislador e, apenas excepcionalmente, ao intérprete, que delas poderia timidamente se
utiliza, nos termos do art. 4º da Lei de Introdução ao Código Civil, como meio de confirmação ou de legitimação de um
princípio geral de direito (TEPEDINO, Gustavo (Coord.). Problemas de Direito Civil-Constitucional. p.3). Claro combate
à dicotomização se vê em LUDWIG, Marcos de Campos. Direito Públicos e Direito Privado: a superação da dicotomia. In
MARTINS-COSTA, Judith. A reconstrução do Direito Privado. p.93., ao afirmar que importa, isto sim, deixarmos claro
que a categorização do direito público e do direito privado como duas esferas estanques, auto-excludentes, é justamente
gerada pela perspectiva dicotômica que combatemos. Se quisermos estabelecer uma nova noção desses dois conceitos
6
se a summa divisio fosse realmente possível. Um ledo engano, contudo escusado pela remissão
histórica que se deve fazer para avaliar o comportamento deste dois ramos, que participaram,
constantemente, de uma relação de mútua absorção.
A globalização econômica, único dos processos de interação mundial que se pode afirmar
solidificado, representa o retorno às bases do Direito Privado como preeminência, como destaque
sobre o qual as relações do Direito Público se agregam.
O Direito Privado recebe clara influência dos regramentos supremos da Constituição, de modo
a se reverem as determinações infraconstitucionais sob o crivo da Carta Maior. Não há norma de
escala inferior que possa se opor às determinações constitucionais. Ainda, mesmo que se tenha uma
total ausência de normas inferiores, nada obsta que venha a Constituição infletir diretamente sobre a
vida particular.
Necessária se apresenta pequena digressão sobre o assunto em tela, para que se avaliem as
teorias que discutem o papel da carta maior em sua inter-relação com o Direito Civil. Pode-se,
aproveitando lição de Pietro Perlingieri39, apresentar quatro teorias, a saber:
a) Teoria da Constituição como limite - segundo esta visão, a Carta Maior seria apenas um
limitador da ação legislativa, nada criando, nem mesmo servindo a uma função interpretativa. A
Constituição seria meio instrumental subsidiário que se utilizaria apenas quando da limitação de uso de
uma determinada norma legal. Se os ditames legais não ofendem a norma constitucional, esta não
precisa ser invocada;
b) Teoria da relevância somente interpretativa - neste ponto, abandona-se a visão meramente
limitativa, dando-se à formatação das regras constitucionais força de conteúdo interpretativo. Mas nada
além disso, se não existe norma a ser aplicada, não existe função para a Carta Fundamental.
Permanece, ainda, a concepção residual do Direito Constitucional, do que resulta um sub-
aproveitamento do potencial existente na mesma;
c) Teoria da aplicabilidade indireta - ainda se encontra a teorização em um momento negativo
face à Constituição, pois o que defende esta visão é a possibilidade de uma maior ênfase na função do
Direito Constitucional, em que a interpretação se apresenta como aplicação, mas ainda necessitando de
um regramento inferior, como se os princípios constitucionais necessitassem de normas para serem
aplicados. O que se olvida é o fato de que "também os princípios são normas";
d) Teoria da aplicabilidade direta - diante desta compreensão não há condicionante à aplicação
das normas constitucionais sobre as relações privadas, visto que como as normas, mesmo as
constitucionais, se apresentam com real e necessária concretude, não há, nem deve haver, qualquer
impedimento à sua aplicação direta, sem intermediários de cunho infra-constitucional, sobre a relação
estabelecida entre particulares.
Distante daqueles que ojerizam a possibilidade de que a atividade jurisdicional tenha um
caráter criativo40, não se pode mais tratar com descaso, sob pena de relegar ao inútil a tábua de valores
insculpida na Constituição, toda a perspectiva social-democrática, solidarista e emancipacionista, por
ela concebida.
Quando se modifica o centro de valores, o vetor axiológico do Direito Civil para a concepção
estabelecida pela Carta Magna, tem-se, na realidade, não apenas uma re-leitura dos ditames
privatísticos, mas sim toda uma série de criações e novas concepções que se estabelecem para que a
noção de dignidade da pessoa humana possa deixar as raias das abstrações jurídicas e se validar no
seio das relações sociais.
Não se pode olvidar que um dos principais caminhos é o do solidarismo, fincando-se o
princípio da solidariedade como base, ativa, modificativa e criadora do sistema jurídico pátrio.
Solidário não é um adjetivo que se possa dar ao ser individual, ao ermitão. Solidário não se pode ser
sem o convívio social.
distintos, como queremos, será necessário superar essa visão radical. Para uma visão global das grandes dicotomias
correspondentes que surgem da separação entre público e privado, veja-se SILVEIRA, Michele Costa da. As grandes
metáforas da bipolaridade. In MARTINS-COSTA, Judith. A reconstrução do Direito Privado. pp.22-53.
39
Op.cit. pp.10 et seq.
40
Não se pretende aqui enveredar por discussões acerca das técnicas de interpretação denominadas Direito Alternativo ou
Uso alternativo do Direito, mas sim denotar a força criativa do intérprete e aplicador do Direito, desde que obedecidos os
limites jurídicos pois, a ligação entre texto e intérprete requer a presença de ambos: ao intérprete não é consentido saltar
ou deliberadamente ignorar, como aconteceu em alguns desvios do sociologismo. (PERLINGIERI, Pietro. Perfis...p.67.)
7
A coesão, por sua vez, somente pode ser alcançada quando se promove o próximo pela ciência
de que dele se necessita. Necessidade que não gera uma idéia egoística de utilitariedade, mas de
colaboração, abdicação do “um” pelo progresso e desenvolvimento do “todo”.
É esta coesão que possibilita o emaranhado de papéis sociais se revelar um plexo lógico e
estruturado . O rearranjo se faz necessário, os homens, por si só, não estabelecem vida social sem um
nexo fundante, um ato essencial e premente que faz a magia do reconhecimento. Deixa-se de
compreender o sistema como dotado de alteridade para se compor com o “eu” no “outro” o “todo”.
Do todo joeirado, resta patente que as normas constitucionais têm direta aplicação sobre o
sistema jurídico subordinado. Mesmo mote, vê-se que tal aplicação pode ser melhorada e aperfeiçoada
quando se faz uso de uma série de sub-princípios que concretizam os ditames gerais, dando ao caso
concreto uma expectativa de solução justa e coerente.
Exemplo desta possibilidade está na boa-fé, que traz para o sistema obrigacional civil uma
linha de fatores que possibilitam uma melhor adequação do direito fundamental relacional da
solidariedade, sem que o aplicador se perca em meandros ou discussões infundadas e infrutíferas.
Esta atividade parte da bifurcação da boa-fé em dois aspectos básicos, um lastreado pelas
relações de apropriação, de conteúdo negativo, que visa a retirar a culpa do agente que procede em
erro.
Outro, de conteúdo mais abrangente, quer vislumbrar no ser humano um ente complexo e que
deve, em suas atividades de cooperação, respeitar o próximo, prestando-lhe auxílio, informação; tendo
para com ele cuidado, respeito; estendendo-lhe a mão.
Em segundo momento, a boa-fé, agora em seu espectro objetivo, fragmenta-se em três linhas
estruturais, para facilitar o trabalho do intérprete e aplicador do Direito.
A primeira linha, de caráter básico, traça-se no plano da hermenêutica, determinando que
qualquer intelecção da norma privada deva ser formatada e avaliada a partir da ética.
Próximo momento, a linha de variação secundária, se espalha pela seara do exercício dos
direitos, determinando que cada um deve, ao desejar fazer valer toda a gama preceptiva que o Direito
lhe atribui, respeitar a proporcionalidade, evitando que seu ato, em diagramação desarrazoada, venha a
prejudicar outras pessoas.
A última especialização se dá em vôo total, aplicando a todas as relações obrigacionais um
conjunto de normas e deveres anexos ou secundários que, mesmo não constando diretamente da lei
privada, regem as relações estabelecidas.
Tudo isso se tem para que as pessoas possam deixar de lado sua conduta egoística e passam a
reconhecer no próximo um caminho de realizações e interações. Quando isto se der de maneira plena,
fixada será a estrada do desenvolvimento pleno, dando ao ser humano a dignidade que os tratados e
convenções internacionais tanto buscam proteger.

4 – Interações do Princípio da Solidariedade


A construção inicia sua formatação, repertório passa a ganhar ares de estrutura. Do conjunto até
o presente analisado tem-se que é mister aos princípios a percepção e cooperação de sub-princípios ou
cláusulas gerais para que se manifestem concretamente no sistema das relações humanas.
Desta feita, a solidariedade, o princípio que transforma “eu” em “nós”, se apresenta em três
grandes esferas: a da auto-aplicabilidade, a da co-participação em outros princípios e a manifestação
indireta via cláusulas gerais.
O primeiro nível, em que a solidariedade se apresenta diretamente no sistema jurídico pode ser
detectado através de leis ou microssistemas como o Estatuto do Idoso (lei 10841/03), os programas de
renda mínima (que manifesta estrutura de solidarismo a partir do momento que visam, precipuamente,
re-dividir e re-equilibrar renda). Nestes casos detecta-se uma aplicação direta do princípio da
solidariedade sobre o conviver humano, determinando que se reconheça a existência do outro e se
efetivem meios de garantia da existência com valores que lhe suportem.
Pode também a solidariedade servir de lastro teórico para outros princípios como se observa na
dignidade da pessoa humana. É a solidariedade uma das bases que dão suporte à dignidade,
determinando que, para se conceber tal princípio é mister haja um sistema de reconhecimento em mão
dupla (aquele que tem dignidade deve reconhecer a dignidade alheia).

8
Por fim, e no espectro que interessa a este trabalho, a solidariedade se manifesta sobre as
relações sociais de modo transverso, através de outros sub-princípios ou cláusulas gerais, destacando-
se um espectro endógeno e um exógeno, respectivamente, a boa-fé e a função social.
Partindo-se da última, vê-se que todos os sistemas jurídicos existentes sempre foram
funcionalizados41. Todo o Direito tem uma função, um fim. Não se concebe a estruturação de um
sistema jurídico sem que isto se dê para a satisfação de um interesse, para a proteção de um ponto
nevrálgico. Não se de considerar se o fim é justo ou não, se busca enaltecer a humanidade ou
desmembrá-la. O que se aprecia é o fato de que, sempre e a todo momento, teve o Direito um fim, que
lhe caracteriza. Seja proteger o Rei, a estrutura hierárquica de castas, o indivíduo, a coletividade etc.
Como bem explica PERLINGIERI,
as situações subjetivas podem ser consideradas ainda sob dois aspectos: aquele funcional e
aquele normativo ou regulamentar. O primeiro é particularmente importante para a
individuação da relevância, para a qualificação da situação, isto é, para a determinação da sua
função no âmbito das relações sócio-jurídicas. O ordenamento italiano atribui a cada situação
subjetiva uma função social. O fenômeno pode ser mais ou menos relevante; às vezes é tal que
chega a transfigurar a situação subjetiva. Existem situações que “são” funções sociais, outras
que “têm” função social. No ordenamento, o interesse é tutelado enquanto atende não somente
ao interesse do titular, mas também àquele da coletividade. Na maior parte das hipóteses o
interesse dá lugar portanto a uma situação subjetiva complexa, composta tanto de poderes
quanto de deveres, obrigações, ônus. A complexidade das situações subjetivas - pela qual em
cada situação estão presentes momentos de poder e de dever, de maneira que a distinção entre
situações ativas e passivas não deve ser entendida em sentido absoluto – exprime a
configuração solidarista do nosso ordenamento costitucional.42

Nos dias atuais, com a problemática ambiental, a escassez de recursos naturais, a decadência do
homem, o sistema jurídico voltou-se para a pessoa, enquanto ser inserto na sociedade, dando aos
direitos subjetivos (e ao objetivo, por derivação) caracteres sociais. Daí falar-se em função social, que
já antigo conceito enquanto função, traz novo paradigma enquanto social.
Dantes, a que se repugne a idéia de direitos absolutos, como pregam alguns em relação ao
direito de propriedade romano, pouco se discutiu sobre o conteúdo plural dos direitos. No mais, se
focava, quando dos direitos das obrigações, a perspectiva do credor ou do devedor, um pólo de valores
positivos, dono do poder e da inflexão; outro, servil e submissão, nau a mercê dos poderes do titular
do ativo creditício.
Esta visão, que se deve relegar à memória jurídica por referência, já se viu superada pela
compreensão da obrigação enquanto processo. Serve a comparação de elemento definidor de uma
mudança clara de vetor, uma alternância no paradigma central, do senhor-indivíduo ao cooperante-
pessoa.
O credor, o contratante, deixam de ser entes abstratos para se tornarem seres concretos,
viventes, o ser ético, engajado no social. Um ser que chora, que ri, se emociona. Vivencia cada instante
como se o raiar do sol fosse o último; ser que reconhece e sabe que não existe apenas um caminho a
ser trilhado, mas uma infinitude de saídas e percalços que lhe acentuam o maior valor, a possibilidade
de erro. E isto aproxima o eu do nós.
Tem-se então um novo direito, reconcebido, relido, em que o todo importa e qualifica a parte;
em que cada parcela significa muito para a construção da totalidade. Não um direito reducionista, em
que cada um se perde no todo ou em que o todo deve se curvar à parte. Um direito ágil, altivo, que
possibilita a manifestação da pessoa em sua completude, em seu máximo. A pessoa reproduz o quadro
total, sem deixar perder sua especificidade, sem se reduzir ou se desqualificar.
A funcionalização social do Direito passa a ser tema recorrente das divisas jurígenas, tornando
o sistema ao seu principal valor, o valor da cooperação. Não se deve agir solitariamente, sozinho, cada
conduta deve trazer ínsita a concepção do outro no eu. Isto pode qualificar a idéia de função social: é

41
Duguit considera o 'direito objetivo' uma 'lei de fim', no sentido da realização da 'solidariedade social' (...) A idéia de
fim não é uma finalidade externa a homem, Ela é imanente ao homem vivendo em sociedade, implicando um processo de
exteriorização e de interiorização, pois 'o ato de vontade humana aparece como um movimento corporal que é produto de
uma energia interna do sujeito, manifestando-se conscientemente no exterior em vista de um fim a ser atingido, e
condicionando uma série de fatos inconscientes que se sucedem conforme uma certa lei. FARIAS. op.cit. pp. 225-227.
42
PERLINGIERI, Pietro. Perfis do Direito Civil, pp. 106-7.
9
exercer o direito dentro do limiar de aproveitamento próprio e alheio; até onde o direito satisfaz minha
pretensão sem prejudicar terceiros.
A compreensão de uso limitado do direito, encampando em si a concepção de abuso do direito,
foi claramente delineada pelo Código Civil, em seu art. 187. Nesta visão o conceito de ato ilícito se
amplia, para além das amuradas da conduta nascida nos beiras do sistema para ser recolhida pelo cesta
da juridicidade, surgindo no semear jurígeno, mas crescendo como joio que sufoca o trigo. O pouco de
jurígeno que restava ao ato se perde no agir desmesurado, deixando a descoberto os pruridos e as
mazelas que se lhe sucedem. Frise-se, a tempo, que não se há de conceber direito não jurídico, ou que
o abuse se estabelece na estrutura mesma do Direito. Ao contrário, o abuso está no sujeito, no figurante
que exerce o direito, que extrapola, olvida os básicos parâmetros de proporcionalidade e necessidade.
O ato emulativo ou a teoria do abuso do direito, de sua origem no Direito Francês, já
aperfeiçoou contornos, ganhando, hoje, foros de objetividade, do que surge a perspectiva de que não
importa o porquê, mas sim importa que um dano se sucedeu. A subjetividade, A culpa vai legando
espaço para o transpassar da muralha. Migra-se, com já se afirmou, do ato ilícito para o dano injusto ao
próximo.43
É esta figura do próximo que se torna o centro em relação ao qual órbita o Direito. Não um
próximo neutral, distante, abstrato, mas aquele que se reflete no eu, aquele que também é o eu. O
próximo, o outro é figura múltipla, vários outros que importam a uma única relação obrigacional,
gerando uma rede de obrigações, que validam o eu, o outro, o nós.
Veja-se que destaque deve ser dado às redes contratuais, um fato comum nos dias de hoje em
que se interligam contratos e contratantes entre si, de modo a que cada um passe a influir diretamente
sobre os demais, mas em uma simbiose estruturada juridicamente, em que cada um precisa
necessariamente do outro para alcançar seu objetivo, mesmo que do outro nem mesmo se tenha
conhecimento. Exatamente, as redes contratuais são um bom exemplo da despersonalização-
repersonalizante por que vem passando o Direito Civil obrigacional. Quando dantes se contratava
tinha-se certeza de quem seria o pólo contrário, complementar. Na atual conjuntura, não mais se tem
plena certeza do que se contrata (haja vista os arts. 413 e 478 CC/02), nem muito menos com quem se
contrata (como se nota no contrato com pessoa a declarar, arts. 467 e ss do CC/02).
Permite-se aqui um parêntese para que reste explicado o porquê de se falar em
despersonalização-repersonalizante. Quando se alinham estruturalmente direitos e deveres, sem que se
questionem “de quem” ou “para quem” pode-se promover uma maior interação daqueles que de outro
modo não contratariam. Com a despersonalização o que se leva em consideração são as características
da parte, não do sujeito por trás dela. A parte contratual pode absorver todas as necessidades do sujeito
que lhe completa, e ainda, de modo flexível, adequar as possibilidades contratuais para a otimização da
relação.
Este fantástico fenômeno que a atual perspectiva obrigacional possibilita problemas novos, que
ainda são de pueril construção jurídica em suas respostas. Podem-se listar os contratos via Rede
Mundial de Computadores, em que não há sujeito por sob o pálio da parte, pelo contrário, há um
segundo pálio, o “nick44”, chave de identificação, “IP45” ou quaisquer outros dados em que se possa
resumir a identidade humana na Internete. Todos estes fatores criam um problema (que não é novo)
que ganhou uma roupagem interessante no alvorecer do século 21: Como cuidar para que uma
disposição atual possa estender sua aplicabilidade? Para que o afã se concretize, deve-se recorrer aos
preceitos que não se manifestam no viver humano, mas nas interações, nas colisões sociais.

43
Para tanto, veja-se BODIN, em Danos à pessoa humana, pp. 177 e ss.
44
Abreviatura de nickname, apelido em inglês. Forma de identificação em que se possibilita ao navegante manter sigilo
quanto à sua identificação.
45
Internet Protocol, protocolo comum de transferência de dados, que inclui o computador na rede mundial. Este número
identifica a máquina como uma caixa de correio para os antigos.
10
Sim, há preceitos do viver e preceitos do conviver46. Vontade (desejo), vida, medo, e mais
alguns poucos, são sentimentos e princípios em que basta, em suas formas básicas, o viver para que se
manifestem.
Amar, respeitar, cuidar, proteger são, dentre muitos, valores que se conjugam no plural, no
outro. Não se ama, sem que se necessite de outrem, não se respeita, se não o for em foco do terceiro 47.
Viver não é o suficiente para ensinar ao indivíduo todos os valores possíveis, faz-se mister conviver,
compreender, confiar, partir de alguém para se chegar a si mesmo.
O respeito traz ínsita a idéia de atenção, de olhar para trás, de refletir (em reflexão), de ter em
vista algo, o outro. Respeitar é trazer para nosso campo de visão, de atenção o outro, os problemas do
outro, os fatos que circundam a vida do outro. É aproximar o outro, sem com ele se confundir, mas
sabendo que ele importa para o eu.
Esta tábua de valores permite que se adeqüe o Direito, a letra da lei ao mundo, às relações
plúrimas que a cada momento se dão no universo social48.
A relação estabelecida pelo Direito e pelos valores do conviver não é de fácil percepção, por
sua gama complexa e o risco de se estabelecerem limites fluidos em excesso. Este risco pode refletir
em simples falha técnica ou mesmo desembocar em um perigoso e instável plexo de soluções injustas.
Falha técnica se diz pelo problema de se confundirem as formas básicas da boa-fé, que
secularmente vem sendo fragmentada em subjetiva e objetiva. Além disso, a concepção de que a boa-
fé pode se apresentar como panacéia a todas as mazelas humanas também é preocupante. Veja-se por
primeiro este ponto.
Antes de receber o qualificativo bona, a fides teve reflexo na sistemática romana de cunho
transverso, até mesmo cruel. Assim, nas relações internas ao povo romano, a fides-poder compreendia
o plexo de supremacia assegurada ao patrão em uma relação de clientela, ou mesmo a fides-promessa,
em que uma pessoa era remetida à situação de cliens pela, v.g., capitis deminutio e em relações
externas, com a submissão de um povo aos romanos, através da deditio in fidem.49
Note-se que a mera menção à idéia da fides não poderia presumir uma gama de atitudes como
hoje se lhe imputa a doutrina. Pelo contrário, sabe-se bem que um termo pode variar sua intelecção de
acordo com o qualificativo que lhe for atribuído.
Assim é que à fides romana se uniu, para determinar a exata noção de bem agir, de proceder em
favor e não contra, de manejar condutas em prol de outrem, o qualificativo bona. Segundo Menezes
Cordeiro,
A transição da fides descaracterizada, para uma expressão técnica verdadeira, com todas as
suas implicações e, de certo, artificial, no sentido de uma obra humana voluntária. E foi uma criação
hábil: escolheu-se um termo que, sem prejuízo das potencialidades técnicas, assacadas por convenção,
com um máximo de utilidade para o jurista, mesmo pouco preparado, sensibilizava imediatamente o
leigo: fides – isto é, algo ligado a poder, confiança, garantia, respeito e com uma áurea mística – e
bona inculcam o sentimento de algo axiologicamente positivo, a seguir. O Direito romano é
pragmático, na forma, tradicionalista: não se vislumbra a ocorrência de reformas terminológicas ou
46
A coordenação é essencial para a realização do conviver, pois a convivência exige uma ordem, para que a força
individual de cada um possa integrar-se com a dos outros e todas, coordenadas harmonicamente, possam dirigir-se à
obtenção do bem comum. (...) Essa ordem exige que a atividade de cada um seja disciplinada, coordenando-se e
subordinando-se entre si, de modo que a de cada um seja não só possível à face da atividade alheia, mas útil e profícua no
resultado final. (destaques no original - RUGGIERO, Roberto de. Instituições de Direito Civil. Campinas: Bookseller. v.1.
616p. p.32.)
47
Observe-se que nós julgamos as orientações de valor, bem como a autocompreensão das pessoas ou grupos baseada em
valores, a partir de pontos de vista éticos, e julgamos os deveres, as normas e os mandamentos a partir de pontos de vista
morais. Vejamos primeiro as questões éticas, que se colocam a partir da perspectiva da primeira pessoa. Do ponto de
vista da primeira pessoa do plural elas visam ao ethos comum: trata-se de ver como nós, como membros de uma
comunidade moral, nos entendemos a nós mesmos, quais serão os critérios segundo os quais deveremos orientar nossas
vidas, o que é o melhor para nós, a longo prazo na visão do todo. (HABERMAS, Jürgen. A inclusão do outro: estudos de
teoria política. São Paulo: Edições Loyola, 2004. 404p. p.40.)
48
Enquanto membro da comunidade universal dos fiéis, estou solidariamente unido ao outro, como companheiro, como
“um dos nossos”; como indivíduo insubstituível eu devo ao outro o mesmo respeito, como “uma entre todas” as pessoas,
que merecem um tratamento justo enquanto indivíduos inconfundíveis. A “solidariedade” baseada na qualidade de
membro lembra o liame social que une a todos: um por todos. (...) Cada um exige do outro respeito por sua alteridade.
(HABERMAS, op.cit., p. 21.)
49
por tudo, MENEZES CORDEIRO, op.cit. pp. 59 et seq.
11
similares. O recurso a expedientes lingüísticos inventivos só pode ter advindo duma necessidade: a de
nominar realidades novas, criadas de modo especial.50
De outro lado, a fragmentação da boa-fé nos espectros objetivo e subjetivo é de suma
importância e deve ser compreendida a priori, para o desenrolar de toda a estrutura deste trabalho.
Assim, como afirma Carnelutti,
la fórmula de la buena de se usa en el lenguaje de la ciencia y de la legislación en dos sentido:
objetivo y subjetivo, para indicar una regla de conducta, o bien una guía para la intención.
En sentido objetivo está entendida, por ejemplo, en el art. 1.375 de Cód. civ., en el que al
prescribir que ‘el contrato debe ser cumplido según la buena fe’ se quiere decir que en caso
de duda el precepto contractual debe ser entendido en el sentido conforme al orden moral
(por lo que el artículo citado es una repetición inútil del art. 1.366, que establece que ‘el
contrato debe ser interpretado según la buena fe’), y por ello cumplido en ese mismo sentido.
(…)
A la buena fe en sentido subjetivo, en cambio, se refiere el Cód. civ. en buena cantidad de
otros casos: así, por ejemplo, cuando se habla de enajanación (art. 535), de adquisición (art.
1.159), de plantaciones o de construcciones (art.936 e siguientes) de buena fe, es un modo de
ser la intención del agente lo que se tiene en consideración).51

Enquanto a boa-fé subjetiva satisfaz um conceito individual, negativo, em que a mensuração se


dá no plano psicológico, sem que se tenha qualquer imposição de maneira de agir. Resume-se ela a um
plano de exclusão, em que se retira do indivíduo qualquer punição por fato de haver obrado em total
ignorância da irregularidade do mesmo.
Desta feita, obedece ela a preceitos de tipicidade, só retirando a ilicitude de condutas que
aceitem tal mecanismo, não tendo, salvo raras aplicações da Teoria da Aparência, maior chance de
interpretação e de aplicação.
Já a forma objetiva da boa-fé não se resume a meras apreciações negativas, mas sim a um
conjunto de deveres que se especificam no trânsito social, mormente nas relações obrigacionais. A
boa-fé objetiva é positiva e impositiva, determinando como se deve proceder em certos casos, tendo
aplicação ampla e aberta, o que lhe dá uma formatação especial no sistema jurídico, possibilitando que
várias situações existenciais possam ter as implicações deste instituto. É norma de conduta, é fator de
necessária observação nas relações humanas.
Eis que tem a boa-fé objetiva base na idéia de respeito52 e cuidado, sigilo e atenção, informação
e desvelo, conformando instrumento necessário para o controle da lógica feroz instaurada no mundo
dos negócios, evitando o distanciamento do intérprete em relação ao que lhe circunda. Como se nota,
é justamente neste contexto que a compreensão da operatividade do princípio da boa-fé terá
importância capital, por afastar esse danoso alheamento e introduzir um elemento de
ponderação axiológica nas regras obrigacionais que instrumentalizam as relações de mercado,
locus no qual se desenvolvem, privilegiadamente, as relações obrigacionais.53

Não apenas em sua base são diversas a boa-fé objetiva e a boa-fé subjetiva. Em conteúdo muito
distantes se encontram. A boa-fé subjetiva firma-se sobre a idéia de que o que foi feito assim seria
também pelo homem padrão, por esta nefasta figura do pater familias que a tudo e todo reduz sob o
julgo do justo. Cria-se a forma, adequa-se o padrão e se espera que o ser em discussão aja conforme o
pré-estabelecido. Condições pessoais são, na maioria das vezes, relegadas a plano inferior, fazendo

50
Ibidem. p. 101.
51
CARNELUTTI, Francesco. Teoria General del Derecho. Madrid: Editorial Revista de Derecho Privado, 1955. pp. 342 e
343.
52
Todo ser humano tem um direito legítimo ao respeito de seus semelhantes e está, por sua vez, obrigado a respeitar todos
os demais. A humanidade ela mesma é uma dignidade, pois um ser humano não pode ser usado meramente como meio por
qualquer ser humano (quer por outros que, inclusive, por si mesmo), mas deve sempre ser usado ao mesmo tempo como
fim. É precisamente nisso que sua dignidade (personalidade) consiste, pelo que ele se eleva acima de todos os outros seres
do mundo que não são seres humanos e, no entanto, podem ser usados e, assim, sobre todas as coisas. Mas exatamente
porque ele não pode ceder a si mesmo por preço algum (o que entraria em conflito com seu dever de auto-estima),
tampouco pode agir em oposição à igualmente necessária auto-estima dos outros, como seres humanos, isto é, ele se
encontra na obrigação de reconhece, de um modo prático, a dignidade da humanidade em todo outro ser humano. Por
conseguinte, cabe-lhe um dever relativo ao respeito que deve ser demonstrado a todo outro ser humano. (KANT,
Immanuel. Metafísica dos Costumes. São Paulo: EDIPRO, 2003. 335p. p.306.
53
MARTINS COSTA, Judith. Comentários ao novo Código Civil. v. 5. t. I. Rio de Janeiro: Forense, 2003. 768p. p.31.
12
com que o “caldeirão” do Direito receba um plexo de medidas que são tão semelhantes quanto
diversas.
A boa-fé objetiva, por sua vez, não trata de subjetivismo ou adequações internas, mas sim de
linhas ou condutas que devem ser respeitadas, mas, se não o forem, deverá o intérprete mensurar o
porquê de uma conduta assim.
Esta visão poética e bela remete, sem se confundir a boa-fé objetiva com a equidade, à noção
que Celsus legou ao mundo, ao afirmar que ius es ars boni et equi.

5 – O segundo passo – que sucede o primeiro, mas vai além.


Do que até aqui se viu, uma construção que acompanha a civilização moderna desde seu
nascedouro no lácio é a boa-fé. Conceber o que é bom e que trate as pessoas com eqüidade não é tarefa
simples, muito menos tentar perceber algumas das implicações que daí surgem54. Mas uma missão se
faz por um início, ei-lo.
A solidariedade, ao ressaltar para a sociedade o real conteúdo do “outro”, a importância do
reconhecimento deste conteúdo para a auto-preservação (pessoal e geral) destaca no universo jurídico,
mormente o obrigacional civil, uma gama de relações e perspectivas que se devem ponderar.
Destas, se extrai uma única, a boa-fé, para que, mediante misturas e reações, se possa, por fim,
apresentar uma fórmula de sua atuação, que não sendo derradeira, seja relevante.
De há muito o ser humano percebeu que sua existência não é possível sem a concorrência do
outro, do próximo, que se tornou figura certa para a vida de cada um e do todo.
Este momento inicial de necessidade, contudo, deu lugar a uma possibilidade de dominação,
em que se aperceberam alguns que, mais fácil do que contar com o outro, é ordenar a conduta do outro,
tornando-o uma marionete no jogo social. A escravidão substituiu a vida em comum, o
reconhecimento foi lançado às trevas da escuridão pela opressão.
Os tempos, contudo, são outros e, neste salto quântico-temporal, deixa os primórdios das
relações de dominação feudais para fixar os olhares no pós-guerra, quando o mundo, necessitando se
reconstruir, quedou de lado algumas das diferenças e passou a se rever como orbi, um todo, um plexo
de indivíduos. Não é possível mais ao ser humano viver sem conviver. E conviver pressupõe respeito.
A ética do respeito pelo próximo é de alta complexidade, estabelecendo que o feixe de relações
não se quebre, não se lacre, é perene e circular; o que se faz hoje, se recebe amanhã. Não basta querer,
é preciso agir no melhor sentido possível para que se reconstrua a imagem do “eu” no “outro”. É esta a
mola estrutural da boa-fé, que se apresenta como elemento fundante de uma sociedade realmente
solidária.
Isto se demonstra na influência da boa-fé sobre o conceito de obrigação, visto que a busca pela
compreensão do significado jurídico para o vínculo obrigacional passou por três momentos distintos,
que podem ser resumidos através das concepções estática, dualista e totalista ou complexa55.

54
Veja-se COUTO E SILVA, Clóvis do. O princípio da boa-fé no Direito brasileiro e português. pp. 33 et seq in
FRADERA, Vera Maria Jacob de (org,) O Direito Privado brasileiro na visão de Clóvis do Couto e Silva. Porto Alegre:
Livraria do Advogado, 1997. 252p.; FERREIRA DA SILVA, Jorge Cesa. A boa-fé e a violação positiva do Contrato. pp.
36 et seq; NEGREIROS, Teresa. Teoria do Contrato, pp. 115; Importante destaque se dá ao excerto de SACCO, Rodolfo,
La buona fede – nelle teoria dei fatti giuridici di diritto privato, p.3, ao afirmar, em vista do conceito de boa-fé, que poichè
il soggetto della trattazione viene scelto arbitrariamente, qualsiasi definizione della buona e della mala fede può essere
lecita, purchè non sai incongrua, e purchè non venga contradetta in seguito col dare nome uguale a fatti, cose o norme
diverse da quelli definiti. Perciò per buona fede si potrebbe intendere, per es.: la coscienza di agire da onest'uomo, o la
volontà di non ledere altri, purchè poi la trattazione si occupi di tutti e soli i casi, in cui ha rilievo la coscienza di agire da
onest'uomo, o la volontà di non ledere altri, comunque tale coscienza e volontà venga chiamata nei testi di legge, e
sebbene negli stessi testi si parli di buona fede in sensi diversi. Em tradução livre: Como o assunto do tratado
arbitrariamente escolhido, qualquer definição da boa-fé ou da má-fé pode ser permitida, contanto que você não seja
incongruente, e que não seja contraditada em seguida por se dar nomes iguais a fatos, coisas ou normas diferentes dos
definidos. Então por boa-fé se pode entender, por exemplo: a consciência de agir do homem honesto ou o desejo de não
prejudicar outros, contanto que o tratamento se ocupe de todos e só os casos que tem relevo a consciência de agir do
homem honesto, ou a vontade de não prejudicar a outrem, porém tal consciência e desejo é chamado nos tetos de lei, e
embora nos mesmos textos se fale de boa-fé em sentidos diversos. Assim também em WESTERMANN, Harm Peter.
Código Civil Alemão – Direito das obrigações – parte geral. pp. 44 et seq.
55
Veja-se, por tudo, MARTINS-COSTA, Judith. A boa-fé no Direito Privado. pp. 384 et seq.
13
A visão estática, que se firmava no vínculo jurídico, externo, alheio à própria obrigação
compreendia que o instituto se resumia em uma ligação existente, no plano abstrato-jurídico, entre
credor e devedor (obligatio). Mesmo a revisão estabelecida pelos germanos não se afastou deste
conceito, daí não ser apresentada como uma nova concepção.
Um segundo momento deste caminhar se apresenta na famosa e, ainda hoje, retratada por
alguns manuais de Direito Civil, a compreensão dualística da obrigação migrou da periferia para o
centro, fragmentando o conceito em dois grandes vetores, o débito (Schuld) e a responsabilidade ou
dever de responder (Haftung). Esta concepção retrata grande avanço, principalmente ao possibilitar a
perfeita compreensão de figuras essenciais do sistema de crédito como o fiador, mas ainda se resumia
a uma análise bipolar da relação obrigacional.
Surge um terceiro apoio, no qual a obrigação deixa os pólos e se agrega em organismo, criando
um veio, plexo de direitos e deveres, escoimando-se de preconceitos e reconhecendo que credor e
devedor são condições virtuais, que cada um dos integrantes de uma relação jurídica tem direitos e
deveres múltiplos, anexos (ou melhor, inexos) ou mesmo adredes de modo definitivo ao sistema
obrigacional, dos quais não lhes é dada oportunidade de furtarem-se à obediência.
Eis que se apresenta a boa-fé como a base concreta destes deveres e responsabilidades. É
necessário, portanto, reler o lido, dando ao fundamento legal base que destacou a boa-fé no sistema
jurídico pátrio, a interpretação que se tem por correta. Assim, sem que se parte de premissas
sofismáticas, afirma-se que a cláusula geral56 da boa-fé, apesar de aparentemente se apresentar ao
mundo jurídico pelo art. 422 CC/02, na realidade ganhou vida a partir do art. 3º, I da CRFB/8857,
cumulado com o art. 2º CC/16, hoje art. 1º CC/02.
Ao que a muito pode parecer estranho, eis o que realmente se tem: a boa-fé, enquanto cláusula
geral, em muito se aproxima da concepção de princípio58, não requerendo, necessariamente, disposição
legal expressa para produzir efeitos no mundo jurídico59.
Não se deve, ainda, tratar a boa-fé sob uma perspectiva geral e abstrata, que possibilite, em
uma suposta medida exata, todas as soluções. Estas medidas são a ela complementares, especiais,
externas. A boa-fé, ver-se-á, é um conceito restritivo, que deve ser usado na porção certa, para que, por
overdose, não se suprima todo o sistema, deixando o mesmo em colapso.
Já conhecida é a parêmia legada ao universo jurídico por Cícero em que o máximo direito pode
se apresentar como a máxima injustiça (summum ius, summa iniuria). Eis um dos pontos de destaque
deste trabalho, qualquer noção ou conceito de boa-fé deve ser medido e comedido, de modo a abster-se
de excesso, sem mediocridade. Do que se remete a pensadores que compreendem existir uma super-
utilização60 da mesma.
Advirta-se, contudo, que o excesso, desde que não se traduza em lugar comum, é importante
para que compreender o que realmente é e o que nada tem a ver com a concepção de boa-fé. A sua
compreensão é empírica e, portanto, a tentativa e erro podem auxiliar no momento de se precisar o seu
conteúdo. Define-se o locus, amplia-se a visão, aparam-se as arestas.

56
Para uma melhor compreensão do definição de cláusula geral, mormente a diferenciação deste em relação às definições
de princípio e conceito indeterminado, veja-se MARTINS-COSTA, Judith. A boa-fé..., pp. 315 et seq.
57
Veja-se NEGREIROS, Teresa. Fundamentos para uma interpretação constitucional do princípio da boa-fé. Capítulo IV.
58
Neste sentido vê-se que tra le fonti del regolamento contrattuale deve essere considerata la normativa di correttezza.
Opinione, questa, non nuova e ancor oggi avanzata da taluno, anche se assai raramente motivata in modo esauriente e
quasi mai tratta alle reali conseguenze di cui è suscettibile (RODOTÀ, Stefano. Le fonti di integrazione del contratto.
p.112. grifos inexistentes no original). Em tradução livre: Entre as fontes do regulamento contratual dever ser considerada a
norma de correção. Opinião, esta não nova e ainda hoje avançada, também se demonstra raramente motivada de modo
exauriente e quase nunca tratada até às reais conseqüências para as quais é suscetível. Mesmo assim, nas páginas seguintes
o autor irá tratar das reais implicações do princípio da boa-fé.
59
As disposições principiológicas da Constituição, que tratam das normas gerais de proteção à dignidade humana, não
podem estar sujeitas a limitações em sua aplicabilidade. Estas disposições são dotadas de aplicabilidade imediata e direta,
não há como se requerer, uma vez estruturado um direito na Carta Maior, seja necessária qualquer regulamentação infra-
constitucional para a sua garantia. Com sito, compreende-se que, mesmo em havendo uma derrogação do art. 422 do
CC/02, seus efeitos se farão sentir diretamente do art. 3º, I, da CRFB/88.
60
Expressão esta de SCHREIBER, Anderson. A proibição do comportamento contraditório, pp. 116 e ss, in verbis: Com
esta expressão, superutilização da boa-fé objetiva, propõe-se designar um processo de invocação arbitrária da boa-fé
como justificatvia ética de uma série de decisões judiciais e arbitrais, que nada dizem tecnicamente com seu conteúdo e
suas funções.
14
Disto, firma-se um objeto no espaço e no tempo para ser estudado, não se vai tratar de qualquer
manifestação da confiança, mas da boa-fé como um reflexo endógeno da solidariedade face às relações
obrigacionais, no ordenamento jurídico brasileiro pós Carta Constitucional de 1988.
Chega-se a um ponto, um conteúdo material da boa-fé: respeito, integridade, confiança,
cuidado. Eles, entretanto, não se fundamentam nos lindes de um Código 61 que pode, no máximo,
experimentar momentos em que estes valores são ovacionados e elevados ao caráter de pré-definidores
de condutas e móveis de hermenêutica.
Este movimento espiralado em busca de um novo centro axiológico que se apresenta como
sendo a Carta Maior não é simples. Turbulento, agressivo, onde preceitos tomaram lugar de antigas
convicções, e que deitaram de lado o indivíduo, trazendo à colação a pessoa62.
A mudança maior de vetor é esta: latente, gramaticamente quase imperceptível, mas que
determina sobre toda a perspectiva civil um amálgama de lastro constitucional. Se de um lado o
indivíduo é de per si passível de definição, a pessoa não pode flutuar no vão jurídico sem reconhecer o
outro, e nele se estabelecer.
Não se tem pessoa sem a sociedade, não se é pessoa em uma perspectiva insular. Só há parte no
todo e o todo só se concebe com a parte. É o hólon lógico que problematiza o Direito Civil
contemporâneo, dado que se tem de reconhecer a pessoa, mas não sem antes reconhecer a totalidade
social.
O reconhecimento do outro, base da experiência solidarista deve ser apartado de concepções
outras que não lhe reflitam o real alcance. Reconhecer não é aceitar, não se basta na idéia de
compreender. É mais, é maior.
Reconhecer “é ser com o outro”, é saber que cada passo dado importa à esfera jurídica alheia,
que cada momento do existir pessoal é validado junto do outro. O “outro” não é o complemento
necessário para que se exista. Não existe eu sem o nós. Não se é sem o reconhecimento do todo.
A esfera de influência da boa-fé sobre a relação jurídica é vasta devendo-se destacar cinco
momentos: a prévia conformação de vontades, na fase das tratativas; o acordo genético que convola
vontade em vínculo jurídico; a funcionalização da relação jurídica estabelecida; o momento do
adimplemento; e, por fim, o transcorrer pós obrigacional.
Destaque-se que a formação e extinção da relação obrigacional foram estabelecidas como fases
próprias visto que há vícios63 ou fatores de ineficácia que hão de se manifestar exatamente nestes
momentos.
A fusão de vontades, por densa que é, pode caracterizar de per se stante uma quebra original no
vínculo, um defeito primário que cria imbricações ao longo de toda obrigação. Assim também o
pagamento que, sem se cogitar sua natureza jurídica, traz relevante carga de problemas que devem ser
apreciados independentemente do restante do universo obrigacional.
Explicado o motivo, veja-se o conteúdo:
a) antes de formar o vínculo jurídico obrigacional típico, nos momentos chamados tratativas
prévias ou preliminares, a boa-fé pode manifestar sua influência por duas perspectivas: em uma ela
interfere diretamente nos acordos preliminares, determinando o respeito à expectativa criada; pela
segunda, ela se impregna neste ponto, vindo a surtir efeitos diretos no futuro vínculo a se criar. Assim,
a quebra de acordos prévios pode determinar-se a partir do desrespeito ao cuidado devido à outra parte.
Mesmo mote, as informações mal prestadas neste momento vão influenciar diretamente sobre o futuro
acordo, congenitamente ligado ao futuro da obrigação;
b) a formação da relação obrigacional, quer seja ela nascida pro forma legem (como nas
obrigações formais e solenes ou nas reais) quer nascida no meandro de liberdade dada pelo legislador
ao sujeito que se quer obrigar junto a outrem (nas obrigações consensuais), é momento essencial para
se compreender toda a carga valorativa determinada pela boa-fé sobre o espectro obrigacional. A
gênese obrigacional pode se alcançar de maneira perfeita, com os reais interesses das partes sendo

61
Em vista da experiência dos Códigos conceituais que o Brasil vem apresentando.
62
Eis que em utopia se pode aguarda a migração definitiva da Constituição para o código (com letra minúscula no sentido
de signo) funcional da pessoa, a subsunção de todo o sistema jurídico a um significante maior da repersonalização. Utopia,
sonho, distante, mas perceptível.
63
Como os vícios do consentimento e sociais, os problemas relativos ao pagamento e ao inadimplemento, a presença de
modalidades no negócio jurídico.
15
respeitados ou, pelo contrário, mediante um plexo de fraudes e más-informações que permearão todo o
concebido. O que é ainda pior, de tão arraigados os descumprimentos podem (lembre-se dos contratos
leoninos) eivar de nulidade (ou anulabilidade) toda a relação;
c) formado o vínculo, estabelecida a relação, chega-se ao momento em que o fato nasceu e
passou a se validar no mundo jurídico, produza (reproduza) efeitos novamente no mundo dos fatos. A
funcionalização da relação obrigacional se especifica e passa a determinar mudanças concretas, além
de aproximar, definitivamente, as partes da relação obrigacional. Disto resulta que, neste ponto, o
liame se fixa de maneira definitiva, do que se espera, ainda com maior ardor, respeito pela palavra
dada. Não só, como também, um real cuidado com os interesses da outra parte, pois o que dantes era
um estranho torna-se, agora, um parceiro;
d) chega-se a um momento crucial da relação, o momento para o qual existiu a relação mesma,
o fim almejado pela relação obrigacional: o adimplemento. O que nasceu e se funcionalizou agora
atinge seu clímax, com a satisfação final dos desejos de cada uma das partes. Neste ponto, em que se
dará a realização da prestação obrigacional pode ocorrer uma série plúrima de efeitos e contra-efeitos,
dado que a entrega da coisa, a realização da obra, o dinheiro que pague podem ser maculados de
grande vício, como exemplifica bem o caso lembrado pela doutrina e também pelo legislador do
pagamento com bem alheio (art. 307 CC/02);
e) finda a relação, não se deve inferir automaticamente o fim dos direitos e deveres das partes,
visto que, mesmo após tal instante uma série de situações podem ensejar a discussão e aplicação dos
chamados deveres anexos e secundários à relação, quanto à sua eficácia pós obrigacional.
Do momento pré-acordo com efeitos ultra dimensionais sobre a relação jurídica negocial, resta
patente a influência da boa-fé, transladando o respeito (enquanto elemento meta-jurídico) para dentro
das lindes do Direito.

6 – Pensamentos que concluem e levam a refletir novas possibilidades


A guisa de conclusão, apresentam-se, sob a forma de tópicos, as principais discussões
enfrentadas neste trabalho, assim como soluções que se apresentem plausíveis.
1) A divisão do Direito em ramos Públicos e Privados, sabe-se inadequada para demonstrar a
unidade do sistema, mas, principalmente por sua historicidade, é de grande utilidade para a
compreensão da ciência jurídica;
2) Mesmo mote, Direito Público e Direito Privado sempre caminharam lado a lado na evolução
histórica do pensamento jurídico. Nesta caminhada, por vezes, o contato se demonstrou tão grande que
nada mais se tinha que uma provisória absorção de um deles pelo outro. Desta absorção não havia
nenhum a se desvencilhar ileso, pois algo de público restava no privado e algo de privado no público;
3) Em um momento posterior, em que se aproxima a humanidade da pós-modernidade, é
patente que a absorção se apresenta como uma inter-relação, uma auto-compensação mútua, em que
cada um dos ramos aproveita melhorias advindas do outro ou se aprimora. A necessidade de melhoria
da estrutura legal se apresenta clara, solicitando uma maior abertura do sistema, donde se extrai a
possibilidade de aplicação direta das normas constitucionais sobre as relações privadas;
4) Esta atividade hermenêutica garante, de um lado, a real importância da Carta Constitucional
e de seus regramentos. De outro, cria uma maior responsabilidade para os aplicadores do Direito,
fazendo com que juízes, advogados, promotores, defensores públicos etc, tenham de respeitar,
compreender e reconhecer o papel de cada um dos princípios constitucionais, sejam eles latentes ou
sensíveis, pois do contrário, toda a estrutura de proteção da dignidade da pessoa humana, baseada em
uma sociedade solidária, se perderia, muito antes mesmo de estar consolidada;
5) Eis a missão que aos juristas e demais aplicadores do Direito: tornar e reconstruir o Direito
Civil a partir dos ditames constitucionais sem que o mesmo se descaracterize ou, o que é pior, sem que
a pessoa, norte maior para o sistema jurídico, seja reduzida a patamar menor, em que o capital lhe
supere e lhe reserve o papel de mero objeto, serviente aos interesses econômicos;
6) É obrigação de qualquer intérprete possibilitar, com suas análises e conseqüentes aplicações
das normas, o reconhecimento de um dever maior, que a cada um incumbe, de respeitar e reconhecer o
próximo, dignificando a vida de todos e possibilitando o existir da própria sociedade;

16
7) Este reconhecimento promana, na supremacia constitucional, do princípio da solidariedade,
dantes relegado ao plano das obrigações enquanto definidor de uma de suas espécies revitalizou todo o
plexo das relações humanas, determinando sobre o sistema deveres de cuidado e respeito;
8) O princípio da solidariedade fixa verdadeiro direito fundamental relacional, determinando a
cada um o respeito e o reconhecimento do outro, convolonado o eu e o ele em uma comunidade, o nós;
9) A obrigação passa a transcender as partes que lhe formam, além de suplantar os direitos e
deveres que lhe compõem. O princípio da solidariedade reflete seus efeitos diretamente sobre o
sistema privado, o que não descaracteriza a importância dos arts. 421 e 422 CC/02;
10) Todo este avanço é possível a partir de uma visão cosmológica da solidariedade,
repartindo-se ela em seus principais reflexos, a função social (exógeno) e a boa-fé (endógeno);
11) Pela concepção funcionalizada socialmente do Direito, vê-se que qualquer direito subjetivo
é hoje dotado de um sistema obrigatório de atenção com o próximo e de utilidade. Não se podem
conformar direitos sem que estes tenham uma necessária importância para o todo. Passa-se, assim, a
ter de respeitar e atender os anseios gerais, passando cada relação privada a compor a engrenagem do
todo;
12) Lado outro, e em mesmo sentido vetorial, surge a boa-fé, com uma gama de interações e
derivações que especificam a relação obrigacional, dando-lhe necessários ares de respeito, atenção,
cuidado, sigilo, informação etc;
13) Com isto, vê-se que o Direito, nos tempos posteriores a 1988, em suas interações privadas
ganhou um novo aspecto, um aspecto que suplanta o eu, que transcende o outro e passa a exigir sérias
e complexas reflexões sobre o nós. É isto que se espera do novo sistema solidarista implantado: justiça,
verdade, honra e lealdade;
14) Boa-fé subjetiva se qualifica como a crença errônea, enganada e não leviana de uma
circunstância de fato, que escusa o agente de sua falha; Um estado subjetivo que se constrói na não-
imputabilidade de uma conduta, em uma escusa de um agir contrário ao Direito por se detectar no
agente razões claramente perceptíveis que lhe denotem um falso compreender da realidade;
15) Já a boa-fé objetiva se apresenta como um dever de conduta, uma determinação antes social
(acolhida pela lei) de agir com zelo, atenção, respeito e dignidade do que um mero conceber subjetivo.
Ela, contudo, só se pode realizar no pessoal, na esfera do subjetivo, enquanto absorvida e
compreendida. Não pode funcionar como uma simples imposição, pois faz-se necessário que o ator
social compreenda a importância de reconhecer o outro, incluindo-se e incluindo-o no nós;

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