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O crítico de arte
Mário Pedrosa
durante viagem ao
Japão, em 1958;
seu centenário de
nascimento será
comemorado no
próximo dia 25
O avesso crítico
Resta a outra metade desse ponto de vista da periferia: o seu
avesso propriamente crítico ou negativo, o momento de
revelação local do andamento desconjuntado do sistema
mundial -refiro-me ao contraponto sem "síntese" entre o
influxo externo, sempre preponderante na periferia,
condenada subalternamente a se "atualizar" para não perecer,
e suas metamorfoses locais. Podemos ver esse outro lado
atuando nas oscilações de Mário Pedrosa em torno dos
transplantes que ele batizou de "civilização-oásis" (inspirado
em Worringer): ora enclave colonial, ora matriz geradora de
uma nova ordem social à altura de seu tempo, corporificada,
na mitológica edificação de uma nova capital -Brasília-, fecho
do processo construtivo a que me referia, e da qual Mário foi,
como se sabe, um incansável defensor.
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Marés hegemônicas
Tudo isso, para dizer, voltando ao nosso ponto de partida,
que, apesar do valor de Mário Pedrosa ir muito além do
esforço de atualização da cultura estética brasileira, grande
parte do interesse na evocação de seu itinerário reside na
oportunidade de se avaliar a atualidade da tradição crítica que
o inspirou e cuja lógica evolutiva, como vimos, reside no
comparatismo sistemático e obrigatório -em virtude da mera
localização periférica da cultura local, submetida às idas e
vindas das marés hegemônicas- entre o "desvio" ou
"diferença" nacional e o corpus normativo da modernidade,
definido pela "normalidade" das culturas centrais. Ora: o que
até então caracterizava (e deprimia) esse ponto de vista da
periferia, sempre embaraçado por uma "questão nacional", à
primeira vista provinciana se cotejada com o cosmopolitismo
das formações hegemônicas, e que portanto era uma exceção,
tornou-se hoje regra geral, embora ninguém tenha parado
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para pensar o atual curso do mundo por esse ângulo que até
então era o nosso. Refiro-me, é claro, ao período que se
seguiu ao eclipse do nacional-desenvolvimentismo (na
periferia) e do fordismo ou compromisso keynesiano (no
núcleo orgânico do sistema) e que atende pelo nome passe-
partout de globalização.
Atualizações perversas
Hoje, não há "paper" que não explore, infalivelmente,
dicotomias que nos são familiares -por exemplo, as
dissociações de sempre entre o "global" e o "local". Onde a
novidade? É que esse raciocínio chegou ao Primeiro Mundo -
não que os Estados nacionais deste estejam abalados pela
transnacionalização a ponto de se assemelharem aos quase-
Estados do Terceiro Mundo, mas pela primeira vez se está
fazendo, naqueles espaços privilegiados e resguardados, a
experiência periférica por excelência da dessolidarização
nacional. Dualidade, tal qual a conhecemos: os "fatores" sem
mobilidade redescobrem-se como "locais", da mão de obra à
cultura autóctone. E mais: pela primeira vez a competição
pelas novas localizações trouxe para o primeiro plano a
síndrome das atualizações perversas, até então apanágio dos
retardatários congênitos.
Gostaria de destacar apenas um aspecto desse nivelamento de
posições no âmbito das reações intelectuais -o que nos traz de
volta ao nosso tema. Trata-se do que se vem chamando de
cultura global a partir da multiplicação das contribuições
"locais" que vão aflorando na periferia (ou, nos países
centrais, através das minorias e imigrantes), à medida que se
processa algo como um "desrecalque" (nem mais nem menos)
das culturas subalternas, antes preteridas, que agora ganham
não só visibilidade, mas passam a alargar algo como um
cânone mundial em princípio des-hierarquizado.
Ora, justamente aí, na ficção deste sistema cultural global,
podemos reconhecer a componente afirmativa do contraponto
"harmonioso" de que estávamos falando no início, o ponto de
convergência-síntese entre o particular e o universal -no
"concerto das nações" (ou ex-nações, ou ainda nações
meramente culturais). Àquela época, entretanto, um ponto de
fuga com fundamento na realidade, mas hoje, quando o
capitalismo já disse a que veio, como sustentá-lo? Justamente
aqui, a necessidade de por à prova o método crítico que, por
sua vez, Mário Pedrosa soube tão bem levar adiante, e
reativar enfim a carga negativa dessa mesma tradição. Talvez
nossa contribuição consista em apressar, dado o nosso infeliz
"know how" na matéria, a hora da virada crítica, pressentida
por Mário Pedrosa: desautorizando um pelo outro,
"globalistas" e "localistas-identitários" -o fio vermelho que
atravessa sua obra, tão avessa ao emparedamento nacionalista
quanto ao acanhado cosmopolitismo de nossos dias.
Pensando bem, não estarei exagerando se observar que Mário
Pedrosa nunca foi tão premonitoriamente atual quando,
pressentindo o retrocesso global que se anunciava,
recomendava aos artistas que resistissem discretamente na
retaguarda e dessem passagem à luta política propriamente
dita. É que, tantos anos depois, tal premonição viu-se
ironicamente confirmada pela reviravolta que somos
obrigados a testemunhar, esfregando bem os olhos para crer:
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