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"Vai sair Orpheu 3. É aí que, no fim do número, publico dois poemas ingleses
meus, muito indecentes, e, portanto, impublicáveis em Inglaterra. Outra
colaboração do número: Versos do Camilo Pessanha (a propósito não cite isto a
ninguém), versos inéditos do Sá-Carneiro, A Cena do Ódio do Almada-
Negreiros (que está actualmente homem de génio em absoluto, uma das grandes
sensibilidades da literatura moderna), prosa do Albino de Meneses (não sei se v.
conhece) e, talvez, do Carlos Parreira, e uma colaboração variada do meu velho
e infeliz amigo Álvaro de Campos.
Orpheu 3 trará, também quatro hors-texte do mais célebre pintor avançado
português — Amadeu de Sousa Cardoso.
A revista deve sair por fins do mês presente. Para a mala que vem já lhe poderei
dar notícias mais detalhadas."
Fernando Pessoa, Correspondência 1905-1922, Lisboa, Assírio & Alvim, 1999, pp. 220-221.
Fernando Pessoa faleceu em 30 de Novembro de 1935, pelo que o Orpheu 3 ficou, mais
uma vez, adiado sine dia. O terceiro número da revista Orpheu (provas de página)
apenas seria publicado em 1983.
"De resto, Orpheu não acabou. Orpheu não pode acabar. Na mitologia dos
antigos, que o meu espírito radicalmente pagão se não cansa nunca de recordar,
numa reminiscência constelada, há a história de um rio, de cujo nome apenas me
entrelembro, que, a certa altura do seu curso, se sumia na areia. Aparentemente
morto, ele, porém, mais adiante — milhas para além de onde se sumira — surgia
outra vez à superfície, e continuava, com aquático escrúpulo, o seu leve caminho
para o mar. Assim quero crer que seja — na pior das contingências — a revista
sensacionista Orpheu."
Fernando Pessoa, Correspondência 1905-1922, Lisboa, Assírio & Alvim, 1999, p. 172-173.
ORPHEU
“Galgar com tudo por cima de tudo! Hup-lá!// Hup lá, hup lá, hup-la-hô, hup-lá!/ Hé-há!
Hé-hô! Ho-o-o-o-o!/ Z-z-z-z-z-z-z-z-z-z-z-z!// Ah não ser eu toda a gente e toda a
parte!”. Estes versos finais dum poema intitulado Ode Triunfal, assinado por um tal
Álvaro de Campos, fechavam o primeiro número da revista Orpheu, que há exactamente
cem anos, no dia 24 de Março de 1915, saía dos prelos para escandalizar os meios
culturais portugueses.
Todos sabemos hoje que Orpheu foi o primeiro grande momento de afirmação das
vanguardas modernistas em Portugal e não é exagero afirmar que as réplicas desse já
longínquo terramoto de 1915 se fazem sentir até aos nossos dias. Mas quando a revista
saiu, se não passou de todo despercebida, também não se pode dizer que tenha sido
propriamente saudada como o decisivo marco literário e cultural que efectivamente foi.
“Literatura de manicómio”, chamou-lhe A Capital no título de um dos muitos artigos de
crítica mais ou menos galhofeira que assinalaram na imprensa o nascimento de Orpheu.
Fernando Pessoa e Mário de Sá-Carneiro, sem os quais Orpheu não teria passado de
uma curiosidade cujo centenário ninguém se lembraria hoje de comemorar, teriam de
esperar uma dúzia de anos até que a geração de autores reunida em torno da revista
presença reconhecesse o seu génio e procurasse divulgar o contributo decisivo dessa
primeira geração modernista.
Tendo sido a mais icónica revista literária portuguesa de todo o século XX, e
seguramente a que exerceu uma influência mais duradoura, Orpheu foi também uma
publicação efémera, com apenas dois números publicados no primeiro semestre de
1915. O terceiro, já em provas tipográficas, não saiu por falta de financiamento –
tornou-se inviável continuar a recorrer ao mecenato bastante involuntário do pai de
Mário de Sá-Carneiro –, e só veio a ser publicado em meados dos anos 80, num fac-
símile da prova tipográfica, com a chancela da Nova Renascença, e numa edição
organizada por Arnaldo Saraiva para a Ática.
Nem sequer os poucos livros já então publicados por alguns dos colaboradores de
Orpheu, como Distância (1914), de Alfredo Guisado, Luz Gloriosa (1913), do co-
director brasileiro do primeiro número, Ronald de Carvalho, ou, no limite, mesmo
Dispersão (1914), de Mário de Sá-Carneiro, prenunciavam o frenesi vanguardista de
Álvaro de Campos: “(…) Ó tramways, funiculares, metropolitanos,/ Roçai-vos por mim
até ao espasmo!/ Hilla! hilla! hilla-hô!/ Dai-me gargalhadas em plena cara,/ Ó
automóveis apinhados de pândegos e de putas (…)”.
No já referido artigo d’A Capital, lia-se: “O que se conclui da leitura dos chamados
poemas subscritos por Mário de Sá-Carneiro, Ronald de Carvalho, Álvaro de Campos e
outros é que eles pertencem a uma categoria de indivíduos que a ciência definiu e
classificou dentro dos manicómios, mas que podem sem maior perigo andar fora deles”.
Talvez o jornalista estivesse a ser um pouco injusto ao irmanar os três autores no
mesmo insulto, já que em matéria de sinais exteriores de vanguardismo (mas em Pessoa
e Sá-Carneiro o próprio vanguardismo foi sempre sinal exterior de rupturas de outra
ordem, mais fundas e irremediáveis), nada neste primeiro número de Orpheu é
rigorosamente comparável à Ode Triunfal. Nem mesmo alguns versos mais alucinados
de Sá-Carneiro, como os que fecham o notável poema 16: “As mesas do Café
endoideceram feitas ar.../ Caiu-me agora um braço... Olha, lá vai ele a valsar/ Vestido
de casaca, nos salões do Vice-Rei...// (Subo por mim acima como por uma escada de
corda,/ E a minha Ânsia é um trapézio escangalhado...)”.
Se os críticos da época viram indícios generalizados de destrambelhamento no número
inaugural da revista, o segundo, publicado no final de Junho de 1915, parece ter sido
concebido para lhes confirmar essa impressão: dos poemas inéditos de Ângelo de Lima
à “novela vertígica” Atelier, de Raul Leal, das provocações textuais e gráficas de
Manucure, de Sá-Carneiro, com as suas linhas a ondular na página, à extensa e
extraordinária Ode Marítima de Pessoa, com os seus delírios masoquistas hard core,
sem esquecer, naturalmente, as reproduções hors texte das pinturas futuristas de Santa-
Rita Pintor.
Com a eclosão da I Guerra, tinham também regressado de Paris, além do próprio Sá-
Carneiro, que ali contactara com as vanguardas europeias da época, artistas como José
Pacheco, Santa-Rita Pintor e Amadeo de Souza Cardoso (que deveria participar no
Orpheu 3), o que ajuda também a explicar a atenção que Orpheu dará às artes plásticas.
O falso heterónimo
Já há 60 anos, num artigo originalmente publicado em 1955 na publicação Tetracórnio,
Eduardo Lourenço escreve que “Orpheu não se tornou um mito apenas para nós,
admiradores tardios”, mas que “essa revista de dois números foi um mito igualmente
para os mais lúcidos dos seus colaboradores – quer dizer, alguma coisa onde estavam
mais do que estavam, alguma coisa que não só o nosso futuro mas o deles mesmos
nunca mais exprimiria nem alcançaria”. E o ensaísta acrescenta que nenhuma das
posteriores revistas em que a mesma geração iria envolver-se nos anos seguintes –
Portugal Futurista, Contemporânea, Athena – “encheria”, como Orpheu, “a alma vazia
de Fernando Pessoa”.
Prova disso foram as suas persistentes tentativas de fazer sair o Orpheu 3, mesmo após a
morte, em 1916, de Sá-Carneiro, cujos Poemas de Paris, reunindo obras-primas como
as Sete Canções de Declínio, Serradura ou O Lord, iriam constituir um dos momentos
altos da revista, a par dos poemas Gládio e Além-Deus, do Pessoa ortónimo. Almada, já
expressamente revestido da dignidade de “Poeta Sensacionista e Narciso do Egipto”,
colaboraria com A Cena do Ódio, e juntar-se-lhes-ia uma meia dúzia de autores que não
tinha participado nos números anteriores, incluindo Augusto Ferreira Gomes ou D.
Tomás de Almeida.
O mais interessante de todos, a vários títulos, é C. Pacheco, autor do longo poema Para
Além Doutro Oceano, que durante largas décadas passou por ter sido escrito pelo
próprio Pessoa, de quem o dito Pacheco seria um ocasional heterónimo, e que está
compilado em várias edições da obra poética pessoana. Afinal, C. Pacheco era José de
Jesus Coelho Pacheco, um poeta de carne e osso, pelo menos nas horas vagas, já que
nas outras dirigia um stand de automóveis que possuía em Lisboa. O equívoco só foi
definitivamente deslindado em 2011, num artigo publicado no Jornal de Letras por
Teresa Rita Lopes, a quem uma neta de Coelho Pacheco, Ana Rita Palmeirim, apareceu
um dia com o manuscrito de Para Além Doutro Oceano.
Num texto que agora escreveu para o catálogo da exposição da BN, divertidamente
intitulado C. Pacheco: história de um ex-heterónimo, Ana Rita Palmeirim, conta Zenith,
especula que o avô, que importava carros da marca Chevrolet, possa estar na origem de
um dos mais célebres poemas de Álvaro Campos. Quem sabe se não era C. Pacheco,
com Pessoa/Campos ao lado, quem de facto ia “ao volante do Chevrolet pela estrada de
Sintra,/ Ao luar e ao sonho, na estrada deserta (…)”.