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"Ontei deitei no correio um Orpheu para si.

Foi só um porque podemos dispor


de muito poucos. Deve esgotar-se rapidamente a edição. Foi um triunfo
absoluto, especialmente com o reclame que A Capital nos fez com uma tareia na
1.ª página, um arigo de duas colunas. Não lhe mando o jornal porque lhe escrevo
à pressa, da Brasileira do Chiado. Para a mala seguinte contarei tudo
detalhadamente. Há imenso que contar. Agora tenho tido muito que fazer. Da
livraria depositária é que seguirão os exemplares para os assinantes e livrarias
daí. Naturalmente não há números para irem para todos os nomes que v. indica.
Vão para alguns. Naturalmente temos que fazer segunda edição. Somos o
assunto do dia em Lisboa; sem exagero lho digo. O escândalo é enorme. Somos
apontados na rua, e toda a gente -- mesmo extra literária -- fala no Orpheu.
Há grandes projectos. Tudo na mala seguinte.
O escândalo maior tem sido causado pelo 16 do Sá-Carneiro e a Ode Triunfal.
Até o André Brun nos dedicou um número das Migalhas."
Fernando Pessoa, Correspondência 1905-1922, Lisboa, Assírio & Alvim, 1999, p. 161.
"Lembrou-me hoje de repente, e felizmente lembrou-me a tempo, visto que são
19. E não tenho tempo para tratar de reunir alguns, pelo menos, dos artigos que
se têm escrito sobre o Orpheu; tenho pena de que o não possa fazer, porque v.
havia de rir imenso com eles. Para a outra mala -- definitivamente lho prometo --
não esquecerei. Tantos e tais foram os artigos, que em três semanas o Orpheu se
esgotou -- totalmente, completamente se esgotou."
Fernando Pessoa, Correspondência 1905-1922, Lisboa, Assírio & Alvim, 1999, p. 162.

"Sou um dos directores da revista trimestral de literatura Orpheu. Não sei se V.


Ex.ª a conhece; é provável que não a conheça. Terá talvez lido, casualmente,
alguma das referências desagradáveis que a imprensa portuguesa nos tem feito.
Se assim é, é possível que essa notícia o tenha impressionado mal a nosso
respeito, se bem que eu faça a V. Ex.ª a justiça de acreditar que pouco deve
orientar-se, salvo em sentido contrário, pela opinião dos meros jornalistas. Resta
explicar o que é Orpheu. É uma revista, da qual saíram já dois números; é a
única revista literária a valer que tem aparecido em Portugal, desde a Revista de
Portugal, que foi dirigida por Eça de Queirós. A nossa revista acolhe tudo
quanto representa a arte avançada; assim é que temos publicado poemas e prosas
que vão do ultra-simbolismo ao futurismo. Falar do nível que ela tem mantido
será talvez inábil, e possivelmente desgracioso. Mas o facto é que ela tem sabido
irritar e enfurecer, o que, como V. Ex.ª muito bem sabe, a mera banalidade
nunca consegue que aconteça. Os dois números não só se têm vendido, como se
esgotaram, o primeiro deles no espaço inacreditável de três semanas. Isto
alguma coisa prova -- atentas as condições artisticamente negativas do nosso
meio -- a favor do interesse que conseguimos despertar. E serve ao mesmo
tempo de explicação para o facto de não remeter a V. Ex.ª os dois números dessa
revista. Caso seja possível arranjá-los, enviá-los-emos sem demora."
Fernando Pessoa, Correspondência 1905-1922, Lisboa, Assírio & Alvim, 1999, pp. 184-185.
Orpheu 3
"Custa-me muito a escrever-lhe esta carta dolorosa — dolorosa para mim e para
você. Mas por mim já estou conformado. A dor é pois neste momento sobretudo
pela grande tristeza que lhe vou causar. Em duas palavras: temos
desgraçadamente de desistir do nosso Orfeu. Todas as razões lhe serão dadas,
melhor pela carta do meu Pai que junto incluo e que agradeço não deixe de ler.
Claro que é devida a um momento de exaltação. No entretanto, cheia de razões
pela conta exorbitante que eu obrigo o meu Pai a pagar — o meu Pai foi para
África por não ter dinheiro e que lá não ganha sequer para as despesas normais,
quase. Compreende que seria abusar demais, seria exceder a medida mais
generosa depois duma conta tipográfica de 560 000 réis, depois da minha fugida
para aqui — voltar daqui a três ou quatro meses a pedir-lhe para saldar uma
conta de 30 ou 40 000 réis — na melhor das hipóteses — do n.º 3 do Orfeu —
feito ainda sob a minha responsabilidade (mesmo que eu estivesse certo de tirar
toda a despesa) seria na verdade mostrar demais a minha insubordinação."
Mário de Sá-Carneiro, Cartas de Mário de Sá-Carneiro a Fernando Pessoa Lisboa, Assírio &
Alvim, 2001, p. 209.

Apesar do suicídio de Sá-Carneiro em Paris, a 26 de Abril de 1916, Fernando Pessoa


não desistiu do terceiro número de Orpheu. A 4 de Setembro desse ano, escreveu a
Côrtes-Rodrigues que a revista deveria sair ainda nesse mês:

"Vai sair Orpheu 3. É aí que, no fim do número, publico dois poemas ingleses
meus, muito indecentes, e, portanto, impublicáveis em Inglaterra. Outra
colaboração do número: Versos do Camilo Pessanha (a propósito não cite isto a
ninguém), versos inéditos do Sá-Carneiro, A Cena do Ódio do Almada-
Negreiros (que está actualmente homem de génio em absoluto, uma das grandes
sensibilidades da literatura moderna), prosa do Albino de Meneses (não sei se v.
conhece) e, talvez, do Carlos Parreira, e uma colaboração variada do meu velho
e infeliz amigo Álvaro de Campos.
Orpheu 3 trará, também quatro hors-texte do mais célebre pintor avançado
português — Amadeu de Sousa Cardoso.
A revista deve sair por fins do mês presente. Para a mala que vem já lhe poderei
dar notícias mais detalhadas."
Fernando Pessoa, Correspondência 1905-1922, Lisboa, Assírio & Alvim, 1999, pp. 220-221.

Fernando Pessoa faleceu em 30 de Novembro de 1935, pelo que o Orpheu 3 ficou, mais
uma vez, adiado sine dia. O terceiro número da revista Orpheu (provas de página)
apenas seria publicado em 1983.

"ORPHEU" - Revista Trimestral de Literatura


N.º 3, a publicar em Outubro de 1917.
PROVAS DE PÁGINA:
Mario de Sá-Carneiro - Poemas de Paris
Albino de Menezes - Apoz o Rapto (composição)
Fernando Pessoa - Gladio e Além-Deus (poemas)
Augusto Ferreira Gomes - Por Esse Crepusculo a Morte de um Fauno...[9]
José de Almada-Negreiros (poeta sensacionista e narciso do Egypto) - A Scena
do Odio
D. Thomaz de Almeida - Olhos
C. Pacheco - Para Alem Doutro Oceano (notas)
Castello de Moraes - Névoa (composição)

Dada a impossibilidade de Fernando Pessoa e Mário de Sá-Carneiro publicarem o


terceiro número de Orpheu, Santa-Rita Pintor, pretendia dar continuidade à publicação,
mas os directores da revista não o levaram a sério. Em carta para o Pintor, Pessoa
escreveu em 21 de Setembro de 1915:

"De resto, Orpheu não acabou. Orpheu não pode acabar. Na mitologia dos
antigos, que o meu espírito radicalmente pagão se não cansa nunca de recordar,
numa reminiscência constelada, há a história de um rio, de cujo nome apenas me
entrelembro, que, a certa altura do seu curso, se sumia na areia. Aparentemente
morto, ele, porém, mais adiante — milhas para além de onde se sumira — surgia
outra vez à superfície, e continuava, com aquático escrúpulo, o seu leve caminho
para o mar. Assim quero crer que seja — na pior das contingências — a revista
sensacionista Orpheu."
Fernando Pessoa, Correspondência 1905-1922, Lisboa, Assírio & Alvim, 1999, p. 172-173.

Em carta para Fernando Pessoa, a 25 de Setembro de 1915, Mário de Sá-Carneiro


confirmava a ideia do amigo sobre a imortalidade da revista: "Você tem mil razões: O
Orfeu não acabou. De qualquer maneira, em qualquer 'tempo' há-de continuar. O que é
preciso é termos 'vontade'."

ORPHEU

“Galgar com tudo por cima de tudo! Hup-lá!// Hup lá, hup lá, hup-la-hô, hup-lá!/ Hé-há!
Hé-hô! Ho-o-o-o-o!/ Z-z-z-z-z-z-z-z-z-z-z-z!// Ah não ser eu toda a gente e toda a
parte!”. Estes versos finais dum poema intitulado Ode Triunfal, assinado por um tal
Álvaro de Campos, fechavam o primeiro número da revista Orpheu, que há exactamente
cem anos, no dia 24 de Março de 1915, saía dos prelos para escandalizar os meios
culturais portugueses.

Todos sabemos hoje que Orpheu foi o primeiro grande momento de afirmação das
vanguardas modernistas em Portugal e não é exagero afirmar que as réplicas desse já
longínquo terramoto de 1915 se fazem sentir até aos nossos dias. Mas quando a revista
saiu, se não passou de todo despercebida, também não se pode dizer que tenha sido
propriamente saudada como o decisivo marco literário e cultural que efectivamente foi.
“Literatura de manicómio”, chamou-lhe A Capital no título de um dos muitos artigos de
crítica mais ou menos galhofeira que assinalaram na imprensa o nascimento de Orpheu.

Fernando Pessoa e Mário de Sá-Carneiro, sem os quais Orpheu não teria passado de
uma curiosidade cujo centenário ninguém se lembraria hoje de comemorar, teriam de
esperar uma dúzia de anos até que a geração de autores reunida em torno da revista
presença reconhecesse o seu génio e procurasse divulgar o contributo decisivo dessa
primeira geração modernista.
Tendo sido a mais icónica revista literária portuguesa de todo o século XX, e
seguramente a que exerceu uma influência mais duradoura, Orpheu foi também uma
publicação efémera, com apenas dois números publicados no primeiro semestre de
1915. O terceiro, já em provas tipográficas, não saiu por falta de financiamento –
tornou-se inviável continuar a recorrer ao mecenato bastante involuntário do pai de
Mário de Sá-Carneiro –, e só veio a ser publicado em meados dos anos 80, num fac-
símile da prova tipográfica, com a chancela da Nova Renascença, e numa edição
organizada por Arnaldo Saraiva para a Ática.

Segundo informa José Barreto num artigo publicado no recém-lançado volume


colectivo 1915 – O Ano de Orpheu, organizado por Steffen Dix e editado pela Tinta da
China, a primeira das várias notícias que assinalaram o lançamento do número inaugural
de Orpheu terá saído no dia 27 de Março, no jornal O Mundo. Até ao final da tarde do
dia anterior, diz ainda Barreto, tinham-se vendido apenas 17 exemplares. Apesar deste
arranque pouco auspicioso, duas ou três semanas depois a edição estava praticamente
esgotada. Tudo indica, pois, que a insistência dos jornais em sugerir que os autores de
Orpheu não destoariam entre os loucos internados no manicómio de Rilhafoles terá
dado uma ajuda preciosa às vendas, confirmando a cínica máxima de que publicidade
negativa é uma contradição nos termos.

Doidos com pedigree


O escândalo provocado por Orpheu não surpreende. Basta dar uma vista de olhos pela
poesia que se publicava ao tempo em Portugal para se perceber que, pese embora a
qualidade de poetas como Teixeira de Pascoaes ou Afonso Duarte, para citar apenas
dois, os meios literários da época, submersos no saudosismo ou no lusitanismo, não
estavam preparados para algo tão cataclísmico como a Ode Triunfal.

Nem sequer os poucos livros já então publicados por alguns dos colaboradores de
Orpheu, como Distância (1914), de Alfredo Guisado, Luz Gloriosa (1913), do co-
director brasileiro do primeiro número, Ronald de Carvalho, ou, no limite, mesmo
Dispersão (1914), de Mário de Sá-Carneiro, prenunciavam o frenesi vanguardista de
Álvaro de Campos: “(…) Ó tramways, funiculares, metropolitanos,/ Roçai-vos por mim
até ao espasmo!/ Hilla! hilla! hilla-hô!/ Dai-me gargalhadas em plena cara,/ Ó
automóveis apinhados de pândegos e de putas (…)”.

No já referido artigo d’A Capital, lia-se: “O que se conclui da leitura dos chamados
poemas subscritos por Mário de Sá-Carneiro, Ronald de Carvalho, Álvaro de Campos e
outros é que eles pertencem a uma categoria de indivíduos que a ciência definiu e
classificou dentro dos manicómios, mas que podem sem maior perigo andar fora deles”.
Talvez o jornalista estivesse a ser um pouco injusto ao irmanar os três autores no
mesmo insulto, já que em matéria de sinais exteriores de vanguardismo (mas em Pessoa
e Sá-Carneiro o próprio vanguardismo foi sempre sinal exterior de rupturas de outra
ordem, mais fundas e irremediáveis), nada neste primeiro número de Orpheu é
rigorosamente comparável à Ode Triunfal. Nem mesmo alguns versos mais alucinados
de Sá-Carneiro, como os que fecham o notável poema 16: “As mesas do Café
endoideceram feitas ar.../ Caiu-me agora um braço... Olha, lá vai ele a valsar/ Vestido
de casaca, nos salões do Vice-Rei...// (Subo por mim acima como por uma escada de
corda,/ E a minha Ânsia é um trapézio escangalhado...)”.
Se os críticos da época viram indícios generalizados de destrambelhamento no número
inaugural da revista, o segundo, publicado no final de Junho de 1915, parece ter sido
concebido para lhes confirmar essa impressão: dos poemas inéditos de Ângelo de Lima
à “novela vertígica” Atelier, de Raul Leal, das provocações textuais e gráficas de
Manucure, de Sá-Carneiro, com as suas linhas a ondular na página, à extensa e
extraordinária Ode Marítima de Pessoa, com os seus delírios masoquistas hard core,
sem esquecer, naturalmente, as reproduções hors texte das pinturas futuristas de Santa-
Rita Pintor. 

E pelo que hoje é possível deduzir de documentos encontrados no espólio pessoano e


dos testemunhos posteriores de alguns “órficos”, parece claro que Pessoa e Sá-Carneiro,
que, após a saída do primeiro número, substituíram Montalvor e Ronald de Carvalho na
direcção da revista, quiseram deliberadamente subir a parada. “Se é certo que Pessoa e
Sá-Carneiro realmente gostavam da poesia de Ângelo de Lima, o facto de ser um louco
certificado, residente no Manicómio Miguel Bombarda desde 1902, só podia valorizá-
lo”, defende Richard Zenith na introdução que escreveu para o catálogo da exposição
Os Caminhos de Orpheu, que abre esta terça-feira na Biblioteca Nacional. E conclui
com humor: “Visto que a imprensa insistira tanto na insânia de Orpheu 1, foram
arranjar alguns doidos com pedigree”.

Apostada em espantar a burguesia letrada de Lisboa, a dupla de conspiradores chegou a


ponderar incluir, no Orpheu 3, umas Pilhérias em francês de um Numa de Figueiredo, e
umas Pederastias de um tal António Bossa, que Sá-Carneiro comentava não poderem
ser piores do que a colaboração de Raul Leal em Orpheu 2. Amigo de Pessoa, Numa de
Figueiredo era um negro nascido em Angola que se formara em Letras em Lisboa,
explica Zenith, citando uma carta de Sá-Carneiro em que este insiste na publicação das
Pilhérias, argumentando que a revista iria assim bater “o recorde do cosmopolitismo:
preto português escrevendo em francês”.

Uma teia de acasos


Se exceptuarmos o criador da capa, José Pacheco (1885-1934), o mais velho dos autores
do primeiro número de Orpheu 1 era o próprio Fernando Pessoa, que em Março de 1915
tinha 26 anos. Sá-Carneiro, Luís de Montalvor e Armando Côrtes-Rodrigues tinham 24,
Alfredo Guisado tinha 23, Ronald de Carvalho apenas 22, e Almada Negreiros, o mais
novo, tinha ainda 21. Com méritos certamente bastante desiguais, é a este grupo de
rapazes (os “putos” de Orpheu, como já seriam referidos na época) que cabe a honra
histórica de ter lançado o modernismo em Portugal. “É que Orpheu, meus senhores, foi
o primeiro grito moderno que se deu em Portugal”, escreverá Almada Negreiros no
Diário de Lisboa, em Março de 1935, num texto em que evoca os 20 anos da revista,
quando Sá-Carneiro já morrera há muito e a Pessoa restavam poucos meses de vida.

É difícil seleccionar os factos mais pertinentes da génese de Orpheu, que, apesar da


deliberação com que a dado momento o projecto foi discutido, concebido e lançado,
nasceu, como geralmente acontece, de um emaranhado de circunstâncias e acasos. Em
1911, ainda antes de se cruzar com Sá-Carneiro, que só conhecerá no ano seguinte,
Pessoa sonha já com uma revista a que pensa dar o título de Lusitânia, um projecto que
evoluirá para uma revista assumidamente sensacionista, esta já planeada com Sá-
Carneiro, e que, sintomaticamente, deverá afinal chamar-se Europa. E que acabará
finalmente por se metamorfosear em Orpheu, um nome proposto por Luís de
Montalvor, que regressara do Brasil no início de 1915 com o seu próprio projecto de
revista.

Com a eclosão da I Guerra, tinham também regressado de Paris, além do próprio Sá-
Carneiro, que ali contactara com as vanguardas europeias da época, artistas como José
Pacheco, Santa-Rita Pintor e Amadeo de Souza Cardoso (que deveria participar no
Orpheu 3), o que ajuda também a explicar a atenção que Orpheu dará às artes plásticas.

Num documento que Richard Zenith seleccionou para a exposição Os Caminhos de


Orpheu, Fernando Pessoa escreve a propósito de Orpheu: “Nunca em Portugal tinha
aparecido uma corrente literária que mostrasse originalidade, não relativa, senão
absoluta; isto é, que excedesse as correntes literárias contemporâneas dos outros
países”. E Zenith dá-lhe alguma razão, argumentando que nenhuma das vanguardas
europeias da época – do futurismo, por muito influente que tenha sido, passando pelo
movimento vorticista lançado pela revista inglesa Blast (1914-1915), onde colaboraram
Ezra Pound e T. S. Eliot, até ao mais tardio ultraísmo espanhol – conseguiu, como
Orpheu, “revolucionar” de facto uma “literatura nacional”.

Reconhecendo que “a relativa exiguidade do espaço cultural português e o seu maior


conservadorismo foram decisivos para que Orpheu causasse tamanha perturbação”,
Zenith observa, no entanto, que “não devemos subestimar a potência e originalidade da
dupla força impulsionadora deste movimento: Fernando Pessoa e Mário de Sá-
Carneiro”. De facto, e para lá de tudo o resto, talvez seja possível ver também em
Orpheu o objecto em que mais perfeitamente se materializou o encontro único desses
dois espíritos tão diferentes e tão improvavelmente sintonizados.

O falso heterónimo
Já há 60 anos, num artigo originalmente publicado em 1955 na publicação Tetracórnio,
Eduardo Lourenço escreve que “Orpheu não se tornou um mito apenas para nós,
admiradores tardios”, mas que “essa revista de dois números foi um mito igualmente
para os mais lúcidos dos seus colaboradores – quer dizer, alguma coisa onde estavam
mais do que estavam, alguma coisa que não só o nosso futuro mas o deles mesmos
nunca mais exprimiria nem alcançaria”. E o ensaísta acrescenta que nenhuma das
posteriores revistas em que a mesma geração iria envolver-se nos anos seguintes –
Portugal Futurista, Contemporânea, Athena – “encheria”, como Orpheu, “a alma vazia
de Fernando Pessoa”.

Prova disso foram as suas persistentes tentativas de fazer sair o Orpheu 3, mesmo após a
morte, em 1916, de Sá-Carneiro, cujos Poemas de Paris, reunindo obras-primas como
as Sete Canções de Declínio, Serradura ou O Lord, iriam constituir um dos momentos
altos da revista, a par dos poemas Gládio e Além-Deus, do Pessoa ortónimo. Almada, já
expressamente revestido da dignidade de “Poeta Sensacionista e Narciso do Egipto”,
colaboraria com A Cena do Ódio, e juntar-se-lhes-ia uma meia dúzia de autores que não
tinha participado nos números anteriores, incluindo Augusto Ferreira Gomes ou D.
Tomás de Almeida.

O mais interessante de todos, a vários títulos, é C. Pacheco, autor do longo poema Para
Além Doutro Oceano, que durante largas décadas passou por ter sido escrito pelo
próprio Pessoa, de quem o dito Pacheco seria um ocasional heterónimo, e que está
compilado em várias edições da obra poética pessoana. Afinal, C. Pacheco era José de
Jesus Coelho Pacheco, um poeta de carne e osso, pelo menos nas horas vagas, já que
nas outras dirigia um stand de automóveis que possuía em Lisboa. O equívoco só foi
definitivamente deslindado em 2011, num artigo publicado no Jornal de Letras por
Teresa Rita Lopes, a quem uma neta de Coelho Pacheco, Ana Rita Palmeirim, apareceu
um dia com o manuscrito de Para Além Doutro Oceano.

Num texto que agora escreveu para o catálogo da exposição da BN, divertidamente
intitulado C. Pacheco: história de um ex-heterónimo, Ana Rita Palmeirim, conta Zenith,
especula que o avô, que importava carros da marca Chevrolet, possa estar na origem de
um dos mais célebres poemas de Álvaro Campos. Quem sabe se não era C. Pacheco,
com Pessoa/Campos ao lado, quem de facto ia “ao volante do Chevrolet pela estrada de
Sintra,/ Ao luar e ao sonho, na estrada deserta (…)”.  

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