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”
Eduardo Viveiros de Castro.
Tive o prazer de conhecer Beatriz Azevedo quando ela assistiu um curso que
Alexandre Nodari e eu demos no Museu Nacional em 2012, “Do matriarcado
primitivo à sociedade contra o Estado e além. Cartografia da hipótese antropofágica”.
Oswald de Andrade era, obviamente, o personagem principal — o convidado de
honra, digamos assim — do curso.1 Beatriz nos ajudou imensamente, com seu
conhecimento tão extenso como profundo da obra e da biografia de Oswald. Sempre
que falhava nossa memória bibliográfica ou gaguejava nossa sapiência magisterial, ela
estava lá para nos lembrar ou esclarecer. O livro que ora apresento dá uma ideia do
tanto que ela terá contribuído para o curso, e muito mais.
1 Quem sabe um dia esse curso vire um livro, se Alexandre Nodari tomar o leme que lhe
cabe, por seu conhecimento muito maior que o meu da matéria oswaldiana. O curso
percorreu o paideuma pré- e pós-antropofágico, partindo de Oswald mas retroagindo a
Bachofen e Nietzsche, a Engels e Freud, e indo de Montaigne a Métraux e a Clastres, das
Bacantes a El entenado, de Gabriel Tarde a Bataille ao Tiqqun e adiante...
2 Oswald seria o rei do Twitter, hoje. E como sabemos, antecipou o copyleft, com sua famosa
licença para “traduzir, reproduzir e deformar em todas as línguas” seu Serafim Ponte Grande.
compactado — e as retomadas em modo dissertativo ou conversacional das teses,
revolucionárias então como revolucionárias hoje e amanhã, enunciadas, ou melhor,
anunciadas no Manifesto. O livro de Beatriz Azevedo, somando-se à já vasta
“oswaldiana”, acrescenta-lhe uma camada de comentário destinada a se tornar
referência obrigatória para todo estudante ou estudioso da obra deste que é, sem a
menor sombra de dúvida, um dos maiores pensadores do século XX.
3 “A língua brasileira ainda não [foi] trabalhada pelo pensamento” (C. Lispector).
consumista. Com as devidas e honrosas exceções de praxe, dos Irmãos Campos e
Décio Pignatari a José Celso Martinez Correa e outros poucos.
Creio ser um equívoco comum nos manuais, o qual (e os quais) se deve a todo
custo evitar, a identificação sumária do nome de Oswald de Andrade ao rótulo
“modernismo”. Se ele participou da Semana Modernista de 22, se foi uma das forças
vivas do movimento homônimo, Oswald seguiu rapidamente adiante, com novos
companheiros de viagem (Raul Bopp, Oswaldo Costa, Pagu, Jaime Adour da Câmara,
Geraldo Ferraz). O Manifesto de 1928 e a Revista de Antropofagia marcam uma
ruidosa ruptura com a “geléia geral” (ainda A. de Campos) em que logo se transformou
a geração modernista — com seu esteticismo inconsequente, suas bandeiras políticas
para lá de ambíguas, seu nacionalismo de opereta. O “modernismo” antropofágico é
absolutamente anti-“modernista” e sobretudo pós-modernista, tanto no sentido local e
literal, como no sentido que esse adjetivo ganhou no final do século XX — ou mais; na
verdade, a Antropofagia saltou por cima desse outro pós-modernismo tardio,
devorando-o antecipadamente, dispensando de passagem, no processo, as dores
d’alma, as culpas coloniais, as crises da representação do outro e demais dengos e
requebros acadêmicos praticados ultimamente no hemisfério norte, o hemisfério
messiânico (dengos e requebros que, naturalmente, não deixaram de fazer seu sucesso
em nossas paradas e parasitas paragens universitárias nacionais). O Manifesto
Antropófago é “decolonial” muito avant la lettre. E não surgiu de dentro de nenhuma
universidade norte-americana... Oswald não conseguiu nem entrar na USP, que diria
em Duke, Princeton ou Harvard? Esse homem sem profissão nunca foi um “periférico”
profissional, daqueles com tenure.
Não teria sentido, neste prefácio, resumir o que Beatriz Azevedo expande e
extrai desse sumo/resumo visionário, meteoricamente luminoso que é o Manifesto
Antropófago. Limito-me a notas breves.
Tupi or not tupi, that is the question. A indecisão hamletiana se torna uma
decisão épica/epocal, que indica a opção pelo matriarcado antropofágico contra o
patriarcado hiperbóreo de Elsinor ou aquele apolíneo da República platônica. Uma
outra Grécia, a arcaica, primitiva, dionisíaca — com a vantagem do clima. E
sobretudo, uma decisão contra-ontológica: o “tupi” cancela e inverte o to be, a
antropofagia é uma contra-ontologia, é o privilégio do haver ávido de alteridade — “só
me interessa...” — contra a soberania solipsista do Ser (Gabriel Tarde). A verdadeira
questão é “Tupi or to be”. E a resposta já está contida na questão: tupi, é claro. A
gramática é uma metafísica: toda gramática começa pelo ser. “O índio não tinha o
verbo ser. Daí ter escapado ao perigo metafísico que todos os dias faz do homem
paleolítico um cristão de chupeta, um maometano, um budista, enfim um animal
moralizado. Um sabiozinho carregado de doenças”. Donde a pergunta crucial: “Mas o
que temos nós com isso?”
De faro, o que temos nós com isso, agora? O que podemos fazer com esse dar
as costas antropofágico, agora que nos curvamos servilmente diante do “utilitarismo
mercenário e mecânico” como se este fosse, enfim, a verdadeira única “lei do
mundo”? A Antropofagia fez o seu caminho desde seu inventor. Mas “caminhamos”,
realmente? A “generosa utopia de nossa antropofagia” (A. de Campos, sempre) perdeu-
se no caminho? A floresta e a escola, dizia o Manifesto da Poesia Pau-Brasil. Nem uma,
nem outra. Hoje há cada vez menos floresta, e quanto à escola, é como diz o poeta
André Vallias: agora ela se escreve “esfola”. Onde quer que ainda se veja mata, se diz:
“desmata”. E onde escola, “esfola”. A “Pátria Educadora” é uma patranha grotesca, e a
pátria desmatadora, uma sanha assassina, uma pátria sem mãe. O mundo não datado
6 “A ideia de um progresso humano indefinido (adotada por mais de um intérprete de Marx) traria
finalmente o quadro proposto pela Idade Média. No começo o pecado original; no fim, o céu.”
nem rubricado com que sonhava Oswald se torna cada vez mais datado — nada mais
“datado”, mais anacrônico que nosso progressismo crescimentista, em face da baixa
antropofagia praticada pelo capitalismo sobre a Terra, que perdeu toda “comunicação
com o solo” que não se traduza em lucro — e cada vez mais rubricado, com a gula
insaciável dos donos do Brasil em privatizar o que ainda nos resta de território mantido
fora do mercado — as terras indígenas, as áreas de proteção ambiental, os territórios
quilombolas, todos os regimes tradicionais de territorialização que ainda não foram
rubricados pelo latifúndio e o agronegócio. “Será esse o Brasileiro do século XXI?”