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Milton
Vargas
A modéstia
dos sábios
Um homem que dedicou
sua vida ao conhecimento
amplo, tanto das ciências
como das atividades
práticas, sendo um nome
de reconhecimento na
área de engenharia,
filosofia e literatura.

“O gênero humano não pode suportar a realidade


em demasia.” Essa frase, pertencente ao poeta
Thomas Stearns Eliot, um dos autores admirados
pelo engenheiro, filósofo e amante da literatura,
Milton Vargas, pode ser considerada o mote
de sua vida, já que durante os seus 97 anos
o engenheiro passou pelas diversas esferas
do conhecimento, aprendendo e ensinando,
demonstrando ser um estudioso incansável.

10 • FUNDAÇÕES & OBRAS GEOTÉCNICAS


Sua irmã mais nova, Maria Teresa Var- Magdalena Vargas, mãe de
Milton, entre dois funcioná-
gas, o descreve como uma pessoa rios da Ligth and Power, na
curiosa pela vida, pelo que acontecia Fazenda da Água Fria (acam-
pamento da Light) – 1913
à sua volta. Essas características co-
meçaram a ser despertadas em Milton conhecimento. Já a paixão
ainda quando criança, na companhia pela engenharia come-
do avô em Niterói, sua cidade natal, e çou nas brincadeiras com
também quando acompanhava o pai, os filhos dos engenheiros
Abel Vargas, que era médico sanitaris- americanos, e também por
ta e trabalhava na Light, empresa res- meio da convivência com
ponsável pela distribuição de energia essas obras grandiosas que
no Rio de Janeiro e que realizavou a possivelmente o impres-
construção de grandes barragens. sionaram quando criança”,
relata Maria Teresa.
“Do meu avô, que era curioso e gos-
tava muito do saber, provavelmente Casado com Maria Helena, que faleceu em 2001, pai de quatro filhos, Maria Cristi-
o Milton herdou esse interesse pelo na, Antonio, Abel e Mariana, avô e bisavô, o intelectual Milton Vargas, como pode
ser considerado, faleceu no dia 11 de maio de 2011, deixando como legado seus
trabalhos e suas inovações, especialmente na área de comportamento de solos
tropicais, de tratamento de fundações, além de pesquisas e estudos em filosofia
para as presentes e futuras gerações.

História
Milton Vargas nasceu em 17 de fevereiro de 1914 e se formou primeiramente em
engenharia elétrica, em 1938, e em engenharia civil, em 1942, pela Escola Politéc-
nica de São Paulo (EPUSP). Nos anos de 1938 a 1952 passou de aluno a engenheiro
auxiliar e chefe da Seção de Solos e Fundações do Instituto de Pesquisas Tecnoló-
gicas (IPT), tornando-se presidente do Instituto.
Em 1946 realizou o curso de pós-graduação na Graduated School of Applied Scie-
ces, na Universidade de Harvard, nos Estados Unidos. Seu objetivo era pesquisar
a fundo sobre a Mecânica dos Solos, especialmente as diferenças encontradas no
solo brasileiro, variando de acordo com as regiões.
Da esquerda para a direita, Mabel (irmã de Mil-
ton), Durvalina, Dhyla e Dalva (primas), Fazenda da Água Fria (acampamento da Light) fez parte do cenário
Milton Vargas – 1919 da infância de Milton Vargas

Bisnetos de Milton, ne-


Casamento de Milton Vargas e Maria Helena, tos do filho Abel: filhos
em 1940 de Lucas e Maya: Helena,
Catarina, Valentina e
Theo – 2007

Milton, junto com a esposa


Filhos de Milton Vargas – Maria Cristina, Antônio e a filha Maria Cristina, na
e Abel – 1950 fazenda Pereiras – 1943 Milton Vargas, nos tempos& do
FUNDAÇÕES IPTGEOTÉCNICAS • 11
OBRAS
Milton Vargas, ao
lado de Terzaghi

Seus questionamentos despertaram Convivência


o interesse do então professor Karl
Os alunos e profis-
von Terzaghi, um dos principais no-
sionais que de algu-
mes da Mecânica dos Solos do mun-
ma forma tiveram
do, que veio ao Brasil para conhecer
contato direto com
o tão falado solo residual descrito por José Luiz Saes Milton Vargas o
Vargas, um tipo de solo que seu mes-
descrevem como uma pessoa amá-
tre desconhecia.
vel, simples, de trato fácil, rigoroso e
“Milton Vargas foi o inteligente.
primeiro do País e do
O engenheiro José Luiz Saes foi assis-
mundo a abordar so- Milton e Maria Helena, nos EUA, na época em que
ele estudou em Havard – 1946
tente do dr. Milton na Escola Politécni-
bre argilas residuais e
ca, de 1964 a 1972, e diz que aprendeu
também o primeiro a tos de usinas hidrelétricas, as de Ju- muita coisa com ele, pois tinha uma
Milton Vargas e o tratar de solos típicos piá, Ilha Solteira, Paulo Afonso, Itaipu, forma sábia de encarar os problemas.
professor Barata da nossa terra, os so- Euclides da Cunha, Tucuruí, Porto Pri- “Profissional extremamente competen-
los tropicais. Ele foi o pioneiro em fa- mavera e Ilha Grande. te, ele trazia consigo um grande conhe-
zer uma abordagem importante, seja
Além dos inúmeros trabalhos realiza- cimento dos solos, pois o engenheiro
do ponto de vista laboratorial ou de
dos, o engenheiro exerceu diversas não tem que ser técnico, ele precisa ter
características e comportamento no
atividades como consultor em Mecâ- um conhecimento geral sobre tudo. E
terreno”, conta o professor emérito da
nica dos Solos e Engenharia de Bar- isso Milton Vargas tinha”, relata.
Universidade Federal do Rio de Janeiro
ragens de Terra e Fundações, pres- Tarcísio Celestino, gerente de Enge-
(UFRJ), Fernando Emmanuel Barata.
tando consultoria para a Companhia nharia Civil na Themag, conta com
O seu pioneirismo em diversos seto- Hidrelétrica do Rio Pardo (CHERP), cerca de 40 anos de convívio contí-
res incluiu o título de primeiro Profes- Usina Hidrelétrica do Paranapanema nuo com o engenheiro. Ele explica
sor Catedrático da EPUSP, em 1952, (USELPA) e Companhia Siderúrgica que, durante a faculdade, antes de
na área de Mecânica de Solos e Fun- Paulista (COSIPA). ter aula com o renomado professor,
dações, com a tese Resistência e Com- já ouvia falar dele e tinha curiosidade
O ex-chefe da Divi-
pressibilidade de Solos Residuais. No de saber quem era essa figura que to-
são de Fundações
ano de 1961, juntamente com quatro dos comentavam. “Eu comecei a ter
da Themag, Ladis-
consultores, fundou a Themag Enge- aula com Milton Vargas no terceiro
lau Paladino, está
nharia, atuando em diversos tipos de ano da Escola Politécnica da Universi-
na empresa desde
obras como na elaboração de proje- dade de São Paulo e, antes de conhe-
Landislau Paladino 1969 e lista alguns

trabalhos em que atuou juntamen-


te com o dr. Milton Vargas, como as
obras rodoviárias da Rodovia dos
Imigrantes; Marginais da Via Anchie-
ta; Rodovia Piaçaguera-Guarujá, na
Baixada Santista; avenida Água Es-
praiada, em São Paulo; e obras me-
troviárias na capital paulista, como
FEPASA – Milton Vargas com a filha Mariana
as estações Jardim São Paulo, Parada e engenheiros. Atrás, motoristas da Themag
20º aniversário da Themag – dezembro de 1981 Inglesa e Vila Madalena. Engenharia – 1986

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cuidadosos e também porto de Congonhas, me tratando com
não conseguimos mais grande respeito e atenção”, explica.
subir no talude”, conta. Fazer a relação entre atividades com-
Didática e prática eram pletamente diferentes e tentar ver
duas características qual a semelhança entre elas foi a
presentes em sua tra- principal lição aprendida com o pai,
jetória profissional. O não somente no trabalho, mas na
engenheiro Celso Or- vida inteira, explica Mariana Vargas,
lando, que trabalhou e uma das quatro filhas do engenheiro.
foi aluno de Vargas na Mariana, que trabalha como geógra-
graduação e no mes- fa na Themag, conta que o pai tinha
100 anos da Poli, na velha Congregação trado, explica que a prazer em trabalhar e que não sepa-
vivência, a visão prática dos proble-
cê-lo pessoalmente, imaginava alguém rava trabalho de lazer, pois um pas-
mas e a tomada rápida de decisão
grandioso, pomposo. Mas ao entrar na eram atitudes claras no professor.
sala, me deparei com uma pessoa sim-
“Logo que entrei
ples, apresentando uma aula atrativa e
na Themag, acon-
que despertou em mim o interesse pela
teceram problemas
área de Mecânica dos Solos”, relata.
de ruptura de solos
A engenheira con- moles em Belém, e
sultora da Themag, Celso Orlando nós ficamos preo-
Maria Regina Moretti, cupados. A equipe foi antes para
conheceu o profes- esperar o professor e depois de dois
sor na graduação, em dias ele estava lá. Todo mundo esta-
Maria Regina Moretti 1979. Na empresa, va apavorado. Quando Milton Var-
Carmen Lucia, secretária, e Mariana, filha caçula
passou a traba-lhar diretamente com gas chegou, viu o problema e falou: de Milton Vargas
Milton Vargas, o que resultou em uma ‘Nossa, que coisa didática’. Isso mos-
relação estreita e de confiança, sempre tra que ele estava vendo além dos seio poderia se transformar em um
acompanhada de histórias e lições, tan- problemas, preocupado em como turismo geológico e geotécnico. “Se
to da profissão quanto de vida. aquele caso serviria de ensino. Ele alguém aparecesse no domingo para
Maria Regina relata um episódio em estava à frente da situação, à frente conversar sobre engenharia, ele esta-
que estavam em uma barragem proje- de todos nós”, diz. va disposto a conversar e ficar horas
tada por ela, e o engenheiro a questio- falando sobre o assunto”, diz.
O professor emérito da Universidade
nou sobre a posição do talude, se ele Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), Fer- E a capacidade de
estava muito íngreme. “Eu disse que nando Emmanuel Barata, não traba- relacionar as ativida-
tinha feito os cálculos de estabilida- des, verificando a uti-
lhou diretamente com Milton Vargas,
de e que tudo estava aparentemente lização delas em dife-
mas esteve com ele várias vezes, prin-
correto, mas ele, sempre disposto a rentes áreas, fez com
cipalmente em eventos. Encontrou
ensinar, me deu um conselho, dizen- Luiz Ferreira Vaz que o engenheiro
Milton Vargas pela primeira vez em
do que quanto mais velho a gente se interessasse pela geologia, transfor-
1951, quando foi para São Paulo para mando a Themag em uma das primei-
fica, mais o talude tem que ficar suave,
ficar três dias no IPT, em um estágio. ras empresas a contratar um geólogo
porque acabamos nos tornando mais
Desse pouco tempo juntos, o mestre para trabalhar junto à engenharia. O
Milton Vargas e Maria Helena, rodeados por Barata guarda na memória a forma geólogo Luiz Ferreira Vaz trabalha na
engenheiro – década de 1950
atenciosa como o professor o empresa desde 1975 e garante que a
tratou, mesmo já sendo reco- convivência com Milton Vargas, por
nhecido no Brasil e no mundo. causa do interesse em comum, sem-
pre foi agradável. “Ele era uma pessoa
“Ele me recebeu no IPT de uma inteligente e de bom senso”. Para Vaz,
maneira formidável, o que me o principal legado do engenheiro foi
impressionou bastante. Eu ti- para a Mecânica dos Solos, por ser um
nha apenas um ano de forma- dos fundadores da geotecnia brasileira.
do e ele me levou para visitar as “A engenharia brasileira deve muito ao
obras da construção do aero- dr. Milton”, ressalta.

FUNDAÇÕES & OBRAS GEOTÉCNICAS • 13


Mesmo aos 97 anos, pai que ensinou mais do que corrigiu,
Milton Vargas com- sempre acompanhando e auxiliando
parecia sistematica- nos trabalhos.
mente na empresa;
e antes, quando
João Pimenta acompanhava as Muito além da
obras, não se contentava em per- engenharia
manecer no asfalto. “Aos 75 anos, Um engenheiro diferente com uma
Vargas ainda subia em talude. O predisposição natural para apren- Milton Vargas recebendo o título de Professor
que me impressionava nele era que, der sobre aquilo que via. Esse era Honoris Causa, pela UFRJ
em pouco tempo de observação o Milton Vargas. Sua irmã Maria Te-
continuavam a conversar, trocando
em uma obra, já sabia identificar a resa acredita que o interesse tanto
correspondências que, na verdade,
necessidade e qual era o problema. pela engenharia quanto pela filoso-
eram artigos sobre diversos temas,
Ele era uma pessoa completa”, diz o fia e literatura sempre caminharam
situações que estavam acontecendo
engenheiro João Pimenta, que está juntos.
no momento e que se transformarão
a 23 anos na Themag.
Amigo do pensador e filósofo Vilém em livro no futuro.
Flusser, os dois mantinham um nú-
De acordo com Mi-
cleo intelectual, com reuniões na casa
guel Flusser, Milton
de Flusser frequentadas por arquite-
Vargas não deve ser
tos, artistas, literários e pessoas de
visto apenas como
diferentes áreas que se encontravam engenheiro. Ele era
para realizar discussões acaloradas Miguel Flusser um homem de inte-
sobre todos os tipos de assuntos. resse e conhecimento universal, atu-
Segundo o filho de Villém Flusser, ante no mundo intelectual e literário
Miguel Flusser, mesmo depois que de forma intensa. “Meu pai o consi-
seu pai se mudou para a França, eles derava um homem extraordinário”,
Automóvel Club. Da esquerda para a direita, Te-
lêmaco Langendonck, Milton, Terzaghi, Arnaldo
acrescenta Miguel.
Vilares, A Ackermann e H. Jorge Guedes
Em 1951, Vargas ajudou na fundação
do Instituto Brasileiro de Filosofia
Carmen Lucia, secretária do Milton
(IBF), ministrou cursos de Filosofia da
Vargas na Themag há mais de 40
Ciência no Instituto e publicou diver-
anos, pode ser considerada o braço
sos artigos sobre filosofia e história da
direito dele. Ela relata que aprendeu
ciência, apresentando contribuições
com o engenheiro especialmente a
sobre esses temas em vários congres-
humildade. “Mesmo com todo o co-
sos nacionais e internacionais de His-
nhecimento e cultura que ele tinha, Dr. Milton Vargas, em Congresso em Foz do Iguaçu tória da Ciência.
era humilde e sabia lidar com todos”,
conta. Nos anos de convivência, Car-
men Lucia explica que o engenheiro a
orientava sempre a não barrar as pes-
soas, aqueles que apareciam ou liga-
vam para conversar. Era para sempre
permitir a entrada. “Ele dava atenção
para todo mundo”, completa.
Para o ex-chefe de
departamento e Participação no Congresso
Luso-Brasileiro de História
atual consultor sê- da Ciência e da Técnica
nior interno na área – Coimbra – 2000
de geomecânica da
Giácomo Re Themag, Giacomo
Re, nos 42 anos em que conviveram,
o engenheiro e professor foi para ele
mais que um mestre. Foi como um
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30 anos da ABGE, em 1998

Milton Vargas, o segundo em pé, da esquerda para a direita, perfilado com os membros da Academia
Paulista de Letras

Na Escola Politécnica da Universida-


de de São Paulo, nos anos de 1963 a
1967, lecionou Filosofia e Evolução da
Ciência e ministrou um curso de pós- Milton Vargas e esposa, em jantar da CESP em 1999
graduação na EPUSP sobre Metodo-
logia da Pesquisa Tecnológica, o que
resultou em um livro com o mesmo
Homenagem da ABMS e ABGE, em 2010. Ao fundo,
nome, publicado em 1985. a filha Mariana e a irmã de Milton, Maria Teresa

Milton em obra no Metrô

Além dessa publicação, lançou a obra


Verdade e Ciência e foi autor de quase
Na UFRJ, evento para recebimento do título de Professor Honoris Causa 100 crônicas sobre aspectos da realida-
de filosófica-social-econômica do País
Dr. Milton Vargas,
em Congresso em
e da América Latina, veiculadas no jor-
Foz do Iguaçu nal Folha de S. Paulo.
Milton Vargas, em 1989, foi eleito mem-
bro da Academia Paulista de Letras,
realizando pronunciamentos nas se-
ções desse grupo seleto. Publicou ar-
tigos literários, como o livro Poesia e
Verdade, em 1991, em sua revista e na
Revista Brasileira da Academia Brasilei-
ra de Letras. Lançou também em 1994
o livro Para uma Filosofia da Tecnologia.
“A participação dele no mundo cultural
era bem ativa e precisa ser reconhecido
também nessa área paralela à enge-
nharia”, enfatiza Miguel Flusser.

FUNDAÇÕES & OBRAS GEOTÉCNICAS • 15


história
Obras Milton Vargas

Foto Maior – Obra: Construção Foto Menor – Obra: Construção do


do Banespa Banespa – Prova de Carga
Local: São Paulo Local: São Paulo
Data: 1939 Data: 1939
Acervo do IPT – Instituto de Pesquisas Acervo do IPT – Instituto de Pesquisas
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Tecnológicas
• FUNDAÇÕES & OBRAS GEOTÉCNICAS Tecnológicas
Obra: Sondagens para a
Hidrelétrica Euclides da Cunha
Local: São José do Rio Preto – SP
Data: 1952
Acervo do IPT – Instituto de Pesquisas
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Tecnológicas
& OBRAS GEOTÉCNICAS

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