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Acesso em: 14 jan. 2014.
1704 PERSPECTIVAS PERSPECTIVES

Estado laico, objeção de consciência e


políticas de saúde

Secular state, consciencious objection and


public health policies

Estado laico, la objeción de conciencia y


las políticas de salud

Débora Diniz 1,2

1 Anis Instituto de Bioética A laicidade importa para as políticas de saúde. do Estado brasileiro em saúde – a inquietação
Direitos Humanos e Gênero,
Brasília, Brasil.
Laicidade é mais do que neutralidade religiosa crescente com o dispositivo da objeção de cons-
2 Universidade de Brasília, nos atos de governo – é a condição de possibi- ciência. O que significa objeção de consciência?
Brasília, Brasil. lidade para governamentalidade de um Estado A recusa de profissionais de saúde ao dever de
Correspondência
plural e democrático. Em saúde, importa saber assistência por razões morais. O cenário mais
D. Diniz onde os governantes buscam inspiração para comum é o do aborto: médicos, enfermeiros, as-
Anis Instituto de Bioética seus atos oficiais: no conhecimento acadêmico sistentes sociais ou psicólogos recusam-se, cada
Direitos Humanos e Gênero.
Caixa Postal 8011, Setor ou nas religiões. A inquietação pós-moderna so- um de acordo com seu regime de saber e poder,
Sudoeste, Brasília, DF bre o estatuto da verdade não é suficiente para a acolher uma mulher que deseja realizar um
70673-970, Brasil.
destituir a ciência de seu valor para a formu- aborto. Essa não é uma novidade de um tempo
d.diniz@anis.org.br
lação de políticas públicas. Por isso, nem tudo político em que pastores presidem comissões
vale no campo moral para fundamentar práticas de direitos humanos no Congresso Nacional. A
de saúde como deveres para os cidadãos de um história de Severina aconteceu em 2004, poucos
Estado laico. dias após a liminar de anencefalia ter sido cas-
Meu argumento é simples – religião deve ser sada pelo Supremo Tribunal Federal 1,2. Mesmo
matéria de ética privada, e políticas públicas de diante de um alvará judicial, os médicos anes-
saúde não devem ser fundamentadas em místi- tesistas do serviço de referência para o aborto
cas religiosas sobre o bem-viver. Por isso, trata- legal se recusaram a atendê-la – alegavam razões
mentos psicoterápicos para reversão da homos- religiosas.
sexualidade não são boas práticas científicas, Severina era católica e não entendeu por que
mas charlatanismos. Da mesma forma, proibir uma decisão da Justiça não era suficiente para
pesquisas com células-tronco embrionárias por garantir-lhe o direito ao aborto. Seu documento
reclamar o direito à vida do embrião congelado biográfico era a carteira profissional de trabalho
é dogma religioso e não uma discussão séria so- – uma impressão existencial de sua classe e ori-
bre a morfologia da gênese humana. Ciência ou gem. Foram horas de espera: seu corpo grávido
charlatanismo, pesquisa ou dogma não são ad- de um feto inviável foi incapaz de sensibilizar os
jetivos para qualificar práticas, mas substantivos que tinham por dever assisti-la. Seus potenciais
políticos. cuidadores se descreviam em sofrimento moral:
É como substantivo político que pretendo o aborto era uma grave ameaça ao sentimento
provocar a principal expressão da frágil laicidade de integridade religiosa. Por isso, a recusa seria

Cad. Saúde Pública, Rio de Janeiro, 29(9):1704-1706, set, 2013 http://dx.doi.org/10.1590/0102-311XPE010913


ESTADO LAICO, OBJEÇÃO DE CONSCIÊNCIA E POLÍTICAS DE SAÚDE 1705

uma forma legítima de omissão. Nenhum médi- enfermeiras ou parteiras realizá-lo mesmo em
co anestesista do hospital se prontificou a acal- regiões longínquas do país. Os médicos são li-
mar suas dores. Severina esperou e peregrinou vres para professar suas crenças morais, sejam
por hospitais; por fim, foi supervisionada por elas religiosas ou não. As mulheres são livres para
um anestesista voluntário de um serviço privado decidir se querem abortar quando vítimas de um
de saúde para um aborto realizado em hospital estupro. Esse é o cenário que tensiona reclames
público. por sofrimentos e direitos: as mulheres têm o di-
A objeção de consciência pode ser enten- reito ao aborto e não querem ser atendidas por
dida como um direito fundamental ou como médicos em sofrimento.
uma proteção a um sentimento. Em matéria de Existem, pelo menos, duas maneiras de en-
políticas públicas de saúde, minha provocação frentar a questão da objeção de consciência em
é entender a objeção de consciência como um um marco laico de políticas públicas de saúde,
dispositivo de proteção a sentimentos, poden- isto é, onde crenças religiosas não são absolu-
do ser garantido por medidas administrativas de tas e tampouco definidoras do pacto político. A
acomodação interna aos serviços de saúde. Sim, primeira maneira aposta que ajustes adminis-
arrisco redescrever o dispositivo da objeção de trativos nos serviços são capazes de equacionar
consciência como um ajuste de proteção, mas necessidades e sentimentos. Em uma linguagem
não como um direito absoluto quando ameaça biomédica, haveria medidas de regulação e pre-
necessidades de saúde. Justifico-me: quero crer venção: (a) montagem de escalas de trabalho sem
que todos devemos ter o direito inalienável à de- profissionais objetores; e (b) não participação de
sobediência civil – a resistência à convocação pa- profissionais objetores em práticas contrárias às
ra as guerras é um belo exemplo. Queremos um suas consciências. O Hospital Pérola Byington,
Estado que proteja nossas crenças individuais, em São Paulo, um dos centros de referência no
seja para professar crenças ou para marchar por país para o aborto legal, foi ousado em uma me-
liberdades. Mas não basta declarar a liberdade de dida preventiva – o edital do recente concurso
pensamento e expressão para que a objeção de público para psicólogo explicita o destino do fu-
consciência seja também um direito absoluto e turo funcionário do Estado: o serviço de aborto
universal. Ao menos para a assistência em saúde. legal. Mas é a segunda maneira a que mais me in-
Se assim fosse, os serviços públicos de saú- teressa aqui: é preciso afastar o tema da objeção
de sofreriam uma grave ameaça com a crescente de consciência da esfera religiosa e localizá-lo no
sobreposição entre religiões e direitos na política campo das relações de poder e dominação.
brasileira. De funcionários administrativos a pro- Um Estado laico acredita na sinceridade das
fissionais biomédicos, todos estariam protegidos crenças de seus cidadãos. Um médico que decla-
pelo princípio constitucional da liberdade de ra objeção de consciência por sofrimento religio-
consciência para abdicar de seus deveres profis- so no cuidado à saúde sexual de um homem ho-
sionais, fosse ele o preenchimento de uma ficha mossexual ou de uma mulher vítima de estupro
de acolhimento, a realização de um aborto ou a que deseja abortar deve ser ouvido em suas dores.
higienização de uma paciente. As possibilidades Ser cuidado em suas angústias não é o mesmo
são exponenciais e intimidam quem busca cui- que garantir a omissão de seus deveres. A sobre-
dado pelas aflições, pelos medos ou pelas dores posição entre sofrimento e direito à objeção de
nas unidades de saúde. Esse é o caso de uma mu- consciência é resultado antes da hegemonia do
lher violentada quando alcança a rota crítica do poder médico que de uma medida refletida sobre
aborto nos serviços públicos. Mas poderia ser de justiça em saúde. Uma mulher violentada que
diversas outras situações em que moralidades e busca um aborto legal e se confronta com equi-
deveres se cruzam com direitos e necessidades. pes objetoras sofre discriminação, além de uma
Há quem sustente que médicos não pode- suspensão injusta de cuidados em saúde. Assim,
riam ser objetores. A recusa de assistência seria se é possível reconhecer a objeção de consciên-
uma medida moral incompatível com a natureza cia como um arranjo institucional de equipes, é
da profissão médica 3. Essa me parece uma com- também justo afirmar que as instituições de saú-
preensão que se baseia antes em tipos profissio- de têm o dever de garantir a assistência, sem que
nais ideais que mesmo em sujeitos concretos, as mulheres sejam perturbadas por demandas
cuja vida moral é, ao mesmo tempo, uma escolha individuais de recusa de assistência.
e uma herança. Melhor que confrontar médicos A verdade é que a objeção de consciência não
em suas crenças e fragilidades, a saída é organi- se estende a todos os sujeitos como um direito
zar o tenso encontro entre dogmas, sentimentos absoluto de intimidade. As normas técnicas que
e necessidades de saúde. Os sujeitos são livres regulamentam o aborto legal no Brasil reservam-
para transformarem-se em médicos. O aborto -na aos sujeitos diretamente envolvidos nos pro-
é um ato exclusivo de médicos, sendo vedado a cedimentos do aborto, isto é, aos médicos 4. Se,

Cad. Saúde Pública, Rio de Janeiro, 29(9):1704-1706, set, 2013


1706 Coutinho ESF, Figueira I

por um lado, essa reserva moral é um alento às 1. Diniz D, Brum E. Uma história Severina [internet].
mulheres e suas necessidades de saúde, por ou- Brasília: ImagensLivres; 2005 (acessado em 01/
tro, é também um indício daquilo que se protege Ago/2013). Vídeo: 23’. http://www.youtube.com/
com a objeção de consciência como um disposi- watch?v=65Ab38kWFhE.
tivo médico – hierarquias antes que crenças. É a 2. Oliveira RM, Silva EQ. Interview with Debora Diniz
about the film The House of the Dead. Vibrant: Vir-
hegemonia médica o que se resguarda quando se
tual Brazilian Anthropology 2012; 9:535-50.
reconhece a intocabilidade dos sentimentos dos 3. Savulescu J. Conscientious objection in medi-
médicos. Mas é também o tabu do aborto como cine. BMJ 2006; 332:294-7.
uma questão religiosa o que se reafirma quando 4. Diniz D. Objeção de consciência e aborto: direitos
a objeção de consciência se transforma em um e deveres dos médicos na saúde pública. Rev Saú-
direito médico. Ao final, a laicidade torna-se um de Pública 2011; 45:981-5.
adjetivo das políticas públicas e não um substan-
Recebido em 02/Ago/2013
tivo que legitimaria as práticas políticas sobre o
Aprovado em 06/Ago/2013
justo em saúde.

Cad. Saúde Pública, Rio de Janeiro, 29(9):1704-1706, set, 2013

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