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História da Filosofia

Volume doze
Nicola Abbagnano

obra digitalizada por ângelo Miguel Abrantes.


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HISTÓRIA DA FILOSOFIA

VOLUME XII

TRADUÇÃO 'DE: ANTÓNIO RAMoS ROSA CONCEIÇÃO JARDIM EDUARDO LúClõ NOGUEIRA

EDITORIAL PRESENÇA - Lisboa 1970

TITULO ORIGINAL STORIA DELLA FILOSOFIA

Copyright by NICOLA ABBAGNANO

III

BERGSON

§ 692. BERGSON: VIDA E OBRA

A obra de Bergson apresenta-se-nos, logo à primeira vista, como a máxima


expressão do espiritualismo francês, que principia com Maine de Biran e
continua numa numerosa família de pensadores franceses contemporâneos (§ 675).
No entanto, pode ser também legitimamente incluída no quadro do evolucionismo
espiritualista que teve representantes e defensores em todos os países da
Europa (§ 660). Além disso, interessa-se por alguns temas da critica da
ciência e do pragmatismo.

O seu traço mais característico é, no entanto, o espiritualismo. O tema


fundamental, ou antes, o único tema, da investigação bergsoniana, é a
consciência; mas a originalidade desta investigação consiste no facto de não
considerar a consciência como uma energia infinita e infinitamente criadora,
mas

4,

@I, 01, energia finita, condicionada e limitada por situações, circunstâncias


ou obstáculos que podem também solidificá-la, desagradá-la, bloqueá-la ou
dispersá-la. O próprio Bergson declarou sob este aspecto o carácter original
do seu espiritualismo. "0 grande erro das doutrinas espiritualistas - disse
ele (Evolution créatr., 1911, p. 291)-foi o de crer que isolando a vida
espiritual de tudo o mais, suspendendo-a no espaço mais alto possível sobre a
terra, a colocariam assim ao abrigo de qualquer ataque; como se assim não a
tivessem exposto a ser confundida com o efeito de uma miragem". As doutrinas
espiritualistas opuseram o testemunho da consciência aos resultados da ciência
sem ter em conta estes últimos ou até ignorando-os. Bergson pretende, ao
invés, aceitar e fazer seus os resultados da ciência, ter presente a exigência
do corpo e do universo material a fim de entender a vida da consciência e
assim reconduzir a consciência mesma à sua existência concreta, que é
condicionada e problemática. O espiritualismo adquire, por isso, na sua obra
um sentido novo e tende a inserir a própria problematicidade na vida
espiritual.

Henri Bergson nasceu em Paris a 18 de Outubro de 1859 e morreu a 4 de Janeiro


de 1941. Foi durante muitos anos professor no Colégio de França. A primeira
obra que publicou intitula-se o Ensaio sobre os dados imediatos da consciência
(1889), que logo no título mostra o que será o método da filosofia
bergsoniana: libertar das estruturas intelectuais fictícias a vida original da
consciência para a atingir na sua pureza. A segunda obra, Matéria e memória

(1896) é dedicada ao estudo das relações entre corpo e espírito. Reporta a


essência do espírito à memória e atribui ao corpo a função de limitar e
escolher as recordações para os fins da acção. A evolução criadora (1907) é a
sua obra principal, em que apresenta a vida como uma corrente de consciência
(impulso vital) que se insinua na matéria subjugando-a, mas mantendo-se ao
mesmo tempo limitada e

condicionada por ela. Em 1900, Bergson publicou os ensaios sobre o riso, (Le
rire) que continham também a sua doutrina sobre a arte; constituem três
colectâneas de ensaios os livros intitulados A energia espiritual (1919),
Duração e simultaneidade (1922), a

propósito da teoria de Einstein, e O pensamento e o

movente (1934). Em As duas fontes da moral e da religião (1932), Bergson.


mostrou o significado ético e religioso da sua doutrina.

Após a publicação destas obras, Bergson, que era

de origem judaica, foi-se orientando cada vez mais para o catolicismo, no qual
viu, segundo declarou, o

complemento do judaísmo. Mas (como disse num

passo do seu testamento [19371 revelado pela sua mulher), r-enunciou a uma
expressa conversão devido à onda de anti-semitismo que se espalhara pelo
mundo. "Quis-escreveu ele-permanecer entre os

que amanhã serão perseguidos".

§ 693. BERGSON: A DURAÇÃO REAL

O ponto de partida e o fundamento de toda a filosofia de Bergson é a doutrina


da duração real.
O próprio Bergson indicou a fonte desta doutrina, ou

pelo menos, o ponto de partida onde foi buscar a inspiração dela. Perante a
imprecisão de todas as doutrinas filosóficas, "uma doutrina - segundo afirma
(La Pensée et le Mouvant, 1934, p. 8) - parecera-nos já fazer excepção e,
provavelmente por isso, afeiçoaramo-nos a ela desde a nossa primeira
juventude. A filosofia de Spencer visava seguir o rasto das próprias coisas e
modelar-se pelos pormenores dois factos. Sem dúvida que procurava ainda o seu
ponto de apoio em vagas generalidades. Víamos bem a debilidade dos Primeiros
princípios, mas tal debilidade parecia-rios que derivava do facto de que o
autor, insuficientemente preparado, não pudera aprofundar as "ideias últimas"
da mecânica. Ganhou-nos o desejo de desenvolver esta parte da sua obra,
completá-la e

consolidá-la. Foi então que se nos deparou a ideia do tempo. E aí aguardava-


nos uma surpresa". A surpresa consistiu em verificar que o tempo real, que tem
um papel fundamental na filosofia da evolução escapa às ciências matemáticas.
Deste modo, a filosofia de Bergson, nascida da tentativa de aprofundamento de
um capítulo particular do evolucionismo de Spencer, apresenta-se na sua origem
como a transformação do evolucionismo naturalista num evolucionismo
espiritualista, que identifica o

processo contínuo, incessante e progressivo da evolução com o devir temporal


da consciência.

A duração real é, de facto, o dado da consciência, despojado de toda a


superestrutura intelectual ou

simbólica e reconhecido na sua simplicidade originária. A existência


espiritual é uma mudança incessante, uma corrente contínua e ininterrupta que
varia

]o

permanentemente, não substituindo todo o estado de consciência por outro, mas


dissolvendo os próprios estados numa continuidade fluída. Não existe um
substracto imóvel do eu sobre o qual se projectasse a sucessão dos estados
conscientes. A duração é o

processo contínuo do passado que rói o futuro e cresce à medida que avança. A
memória não é uma

faculdade especial, mas é o próprio devir espiritual que espontaneamente


conserva tudo em si mesmo. Esta conservação total é ao mesmo tempo uma criação
total, uma vez que nela cada momento, embora seja o resultado de todos os
momentos anteriores, é absolutamente novo em relação a eles. "Para um ser
consciente - diz Bergson - existir significa mudar, mudar significa
amadurecer, amadurecer significa criar-se indefinidamente a si mesmo" (Evol.
créat., p. 8).

A vida espiritual é, essencialmente, autocriação e liberdade, No Ensaio sobre


os dados imediatos da consciência (1889), Bergson mostrou como toda a

discussão entre deterministas e indeterministas nasce da tentativa de entender


a vida da consciência, que é movimento e duração, servindo-se dos esquemas
extraídos do estudo da matéria, que é extensão e

imobilidade. Não é possível reduzir a duração da consciência ao tempo


homogéneo de que fala a ciência, o qual é constituído por instantes iguais que
se sucedem. O tempo da ciência é um tempo especializado e que perdeu por isso
o seu carácter original. Nem tão-pouco é possível falar de uma multiplicidade
de estados de consciência análoga à multiplicidade dos objectos espaciais que
se separam e se excluem uns

11

os estados de consciência se unificam. Todos


, ,

fluída corrente da consciência, da qual não p

em distinguir a não ser por um acto de abstracção, e o tempo é, na


consciência, a corrente, da mudança, não uma sucessão regulada de instantes
homogéneos. Só o labor abstracto do intelecto e o uso da linguagem, que se
encontra intimamente ligado àquele, transformam esta corrente contínua numa

multiplicidade de estados de consciência diversos, numeráveis e imóveis. Sendo


assim, não se pode dizer (como faz o determinismo) que a alma é determinada
por uma simpatia, por um ódio ou por qualquer outro sentimento, como por uma
força que actue sobre ela. Tais sentimentos, quando atingem uma certa
profundidade, não são forças estranhas à alma, mas cada um deles constitui a
alma inteira; e dizer que a alma se determina sob a influência de um deles
significa reconhecer que se determina por si mesma e, que, portanto, é livre.
Além disso, a liberdade não tem o carácter absoluto que o espiritualismo
algumas vezes

lhe atribui; pelo contrário, admite graus. Sentimentos e ideias que provêm de
uma educação mal compreendida chegam a constituir um eu parasitário que se
sobrepõe ao eu fundamental, diminuindo na mesma medida a sua liberdade.
Muitos, afirma Bergson (Essai, p. 127), vivem assim e morrem sem ter conhecido
a verdadeira liberdade. Em contrapartida, somos verdadeiramente livres quando
os nossos actos emanam da nossa personalidade inteira, quando entre esta e
aqueles existe aquela semelhança indefinível que existe algumas vezes entre o
artista e a sua obra (1b., p. 131). A relação entre o eu e os seus actos não

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pode, portanto, ser explicada mediante o conceito de causalidade que serve


para explicar os liames entre os fenómenos naturais e tomá-los previsíveis. Os
actos livres nunca são previsíveis e, propriamente falando, não se pode dizer
que o eu seja a causa deles, dado que o eu não se distingue deles, senão que
vive e se

constitui neles. A liberdade é indefinível, porque coincide com o próprio


processo da vida consciente. Defini-Ia, isto é, exprimi-Ia numa fórmula de
linguagem, significa transferi-Ia para o plano da consideração espacial e dos
objectos físicos, mas aqui não existe senão o determinismo, porque
desapareceu precisamente o que constitui a consciência: a duração real.

§ 694. BERGSON: ESPÍRITO E CORPO

O evolucionismo espiritualista caracteriza-se, no

que concerne à relação entre espírito e corpo, pela doutrina do paralelismo


(ou monismo) psicofísico (§ 660). Bergson considera, ao invés, que esta
doutrina é equivalente, nos seus resultados, à da consciência como epifenómeno
dos dados físicos, própria do evolucionismo materialista. "Quer se considere-
afirma ele (Matière et mémoire, p. 4)-o pensamento como uma simples função
cerebral e o

estado de consciência como um epifenómeno do estado cerebral, quer se encarem


os estados do pensamento e os estados do cérebro como traduções em duas
línguas diferentes do mesmo original, supõe-se tanto num caso como noutro o
mesmo princípio: se

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pudéssemos penetrar no interior de um cérebro que trabalha e assistir ao


entrecruzamento dos átomos de que é feito o córtex cerebral ou se, por outro
lado, possuíssemos a chave da psicofisiologia, saberíamos pormenorizadamente
tudo o que sucede na consciência correspondente". Contra esta adequação ou
equivalência do psíquico e do físico é dirigida a tese que Bergson expõe em
Matéria e memória (1896). Bergson começa por rejeitar tanto o realismo como o
idealismo, no que concerne à realidade da matéria, Apela para o "senso comum",
o qual afirma, é certo (como faz o realista) que o objecto existe
independentemente da consciência que o percebe, mas crê (como faz o idealista)
que este objecto é perfeitamente idêntico ao dado sensível. Por outros termos,
para o senso comum o objecto não é mais do que uma imagem, mas uma imagem
existente. No sistema de imagens, a que o mundo se reduz, uma, no entanto, se
apresenta com características especiais: o nosso corpo, que é o único meio
para agir sobre as imagens. A percepção é, precisamente, o acto da inserção
activa daquela imagem que é o nosso corpo no sistema das outras imagens: é
acção, e não contemplação.

Há, portanto, uma diferença radical entre a percepção e a recordação.


Considera-se, habitualmente, que a diferença entre estes dois elementos é
apenas de grau, e que a recordação é uma percepção menos intensa ou mais
ténue. Segundo Bergson, isto é um erro comum à psicologia materialista e à
espiritualista. Entre a percepção e a recordação existe, pelo contrário, uma
diferença de natureza. A percepção é o

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poder de acção do corpo vivo, que se insere activamente entre as outras


imagens e provoca o abalo e a readaptação; a recordação, como sobrevivência de
imagens passadas, guia e inspira a percepção (já que se age sempre tendo por
base as experiências passadas) mas só se torna verdadeiramente actual no

acto da percepção mesma. Por consequência, a função do corpo, interposto entre


os objectos que actuam sobre ele e aqueles sobre os quais ele actua, é a de um
condutor, incumbido de recolher os movimentos e de os transmitir, quando não
os detém, a certos mecanismos motores, determinados se a acção for reflexa,
escolhidos se a acção for voluntária. "Tudo se passa, como se uma memória
independente recolhesse as imagens ao longo do curso do tempo, à medida que se
produzem, e como se o nosso corpo, com tudo o que o circunda, não fosse mais
do que uma dessas imagens, a última, a que obtemos a cada momento praticando
um corte instantâneo no devir em geral" (Matière et mémoire, p. 81).

Bergson distingue três termos: a recordação pura, a recordação-imagem e a


percepção, termos estes que explicam a passagem da duração real, como puro
processo espiritual, à percepção, em que a duração se torna acção e reacção
das imagens entre si. "As ideias, as puras recordações, chamadas do fundo da
memória, desenvolvem-se em recordações-imagens cada vez mais capazes de se
inserirem no sistema motor. À medida que estas recordações tomam a
forma de uma representação mais completa, mais concreta e mais consciente,
tendem cada vez mais a confundir-se, com a percepção que as atrai e cujo

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adoptam. Portanto, não há nem pode haver no cérebro uma região em que as
recordações se

fixem e se acumulem. A pretensa destruição das recordações por obra das lesões
cerebrais é apenas a

interrupção do progresso contínuo pelo qual a recordação se actualiza" (1b.,


p. 140). Donde se conclui que a recordação pura (a consciência na sua duração
real) não está ligada a nenhuma parte do corpo e é, portanto, espiritualidade
independente. "0 corpo
- diz Bergson (1b., p. 199) -, sempre orientado para a acção, tem por função
essencial a de limitar, com vista à acção, a vida do espírito". Esta função é
exercida pelo corpo mediante a percepção que é "a

acção possível do nosso corpo sobre os outros corpos". Quando se trata de


corpos circunstantes, separados do nosso por um espaço mais ou menos
considerável, que mede a longinquidade no tempo das suas promessas ou das suas
ameaças, a percepção não faz mais do que destroçar acções possíveis. Quando a
distância decresce, a acção possível tende a transformar-se em acção real, e
quando se torna nula, isto é, quando o corpo se percebe a si mesmo, a
percepção delineia, não já uma acção virtual, mas

uma acção real. Surge então a dor, o esforço actual da parte ofendida para
repor as coisas no seu lugar; e nisto consiste a subjectividade da sensação
efectiva (sentimento).

A vida espiritual transcende, pois, por todos os

lados, os limites do corpo e, por conseguinte, da percepção e da acção que


estão ligadas ao corpo.
O corpo representa somente o plano da acção, ao

passo que a memória pura é o plano em que o

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espírito conserva o quadro de toda a vida passada e se identifica com a


duração. Bergson. substituiu assim o dualismo de corpo e espírito pelo
dualismo da acção (ou percepção) e memória. O escopo de L'évolution créatrice
é a resolução deste dualismo.

§ 695. BERGSON: O IMPULSO VITAL

A Evolução criadora mostra-nos, de facto, como o próprio mundo da acção e da


percepção, enquanto sistema de imagens exteriorizadas e espacializadas e, por
conseguinte, objecto da inteligência e da ciência, se constitui em virtude
daquele mesmo movimento que é o processo temporal da vida consciente. A obra
tende a mostrar que, enquanto a inteligência é incapaz de compreender a
natureza da vida, esta, como evolução espiritual, torna possível explicar a

natureza e a origem da inteligência e dos seus objectos.


Em primeiro lugar, Bergson reporta a vida bio- lógica à vida da consciência, à
duração real. A vida é sempre criação, imprevisibilidade e, ao mesmo tempo,
conservação integral e automática de todo o passado. Tal é a vida do
indivíduo, assim como da natureza;

mas as perspectivas de uma e de outra são distintas. Cada um de nós,


considerando retrospectivamente a sua história, verificará que a sua
personalidade infantil, ainda que indivisível, reunia em si pessoas diversas
que podiam coexistir no estado nascente, mas que a pouco e pouco se foram
tomando incompatíveis, pondo-nos cada vez mais perante a necessi-
17

dàde de uma escolha. "A via que percorremos no

tempo-diz Bergson (Évolution créatr., p. 109)está salpicada de fragmentos de


tudo o que começávamos a ser, de tudo o que poderíamos ter chegado a ser. Nós
não podemos viver senão uma única vida; por isso devemos escolher. A vida da
natureza, ao invés, não é obrigada a semelhantes sacrifícios: conserva as
tendências que num certo ponto se bifurcaram e cria séries divergentes de
espécies que evoluem separadamente. Por outros termos, a vida não segue uma
linha de evolução única e simples. Desenvolve-se "corno um feixe de caules"
criando, pelo simples facto do seu crescimento, direcções divergentes entre as
quais se divide o seu impulso originário. As bifurcações do seu
desenvolvimento são por isso inúmeras. Mas muitas são também as vias sem saída
em relação aos poucos grandes caminhos que ela tem aberto.

A unidade das várias direcções não é uma unidade de coordenação, de


convergência, como se a

vida realizasse um plano preestabelecido. O finalismo, neste sentido, é


excluído; a vida é criação livre e imprevisível. Trata-se, ao invés, de uma
unidade que precede a bifurcação, isto é, da unidade da vis a tergo, do
impulso que a vai pouco a pouco realizando.
O impulso da vida, conservando-se ao longo das linhas de evolução nas quais se
divide, é a causa

profunda das variações, pelo menos das que se transmitem regularmente pela
hereditariedade, que se adicionam e criam novas espécies. Tudo isto, se exclui
o plano preestabelecido de qualquer teoria finalista, exclui também a hipótese
de que a evolução se

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tenha dado mediante causas puramente mecânicas.


O mecanismo não pode explicar a formação de órgãos complicadíssimos que têm,
no entanto, uma função bastante simples, como é o caso do olho. Bergson serve-
se da imagem de uma mão que atravessa a limalha de ferro que se comprime e
resiste à medida que a mão avança. A certa altura, o esforço da -mão esgotar-
se-á e, no mesmo preciso momento, as partículas da limalha ter-se-ão
justaposto e coordenado numa forma determinada: a da mão que se detém e de uma
parte do braço. Se supusermos que a mão e o braço permaneceram invisíveis, os
espectadores procurarão nas partículas de limalha e nas forças internas da
massa, a causa

da sua disposição. Uns explicarão a posição de cada partícula mediante a acção


que as partículas próximas exercem sobre ela: esses serão os mecanicistas.
Outros pretenderão que um plano de conjunto presidiu a cada uma destas acções
elementares: esses serão os finalistas. A verdade é que há um acto invisível,
o da mão que atravessou a linalha: os inexauriveis pormenores dos movimentos
das partículas, como a

sua ordem final, exprimem negativamente este movimento indiviso, porque é a


forma global da resistência, e não uma síntese de acções positivas elementares
(É vol. créatr., p. 102-03). A acção indivisível da mão é a do impulso vital;
subdivisão do impulso vital em indivíduos e espécie, em cada indivíduo na
variedade dos órgãos que o compõem e em

cada órgão nos elementos que o constituem, é devida à resistência da matéria


bruta (correspondente, no

exemplo citado, à limalha de ferro).

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primeira bifurcação fundamental do impulso é a que deu origem à divisão entre


a planta a o animal, O vegetal caracteriza-se pela capacidade de fabricar
substâncias orgânicas com substâncias minerais (função clorofílica). Os
animais, obrigados a

andar e a procurar alimento, evoluíram no sentido da actividade locomotora, e,


portanto, de uma consciência cada vez mais desperta. As duas tendências
dissociaram-se ao crescerem, mas na forma rudimentar implicam-se
reciprocamente; e o mesmo impulso que levou o animal a prover-se de nervos e
centros nervosos, conduziu à aquisição por parte da planta da função
clorofílica (Ib., p. 124). Por outro lado, nem mesmo a vida animal se
desenvolveu ao longo de uma única linha. Os Artrópodes e os Vertebrados são as
linhas em que a evolução da vida animal no sentido da mobilidade e da
consciência teve maior êxito. As outras duas direcções da vida animal, as
indicadas pelos Equinodermes e pelos Moluscos, foram ter a um beco sem saída.
A evolução dos Artrópodes alcançou o seu ponto culminante nos insectos e, em
particular, nos Himenópteros, a dos Vertebrados, no homem. Nestas duas
direcções, o progresso efectuou-se de forma diferente, pois que, na primeira
direcção se dirigiu para o instinto, na segunda para a inteligência.

§ 696. BERGSON: INSTINTO E INTELIGÊNCIA

Instinto e inteligência são tendências diferentes mas conexas e nunca


absolutamente separáveis. Não

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existe inteligência sem traços de instinto, nem instinto que não esteja
rodeado por um halo de inteligência. Contudo, na sua forma perfeita, o
instinto pode ser definido como a faculdade de utilizar e construir
instrumentos organizados, e a inteligência como a faculdade de fabricar
instrumentos artificiais e variar indefinidamente a sua fabricação.
Originariamente, o homem não é homo sapiens, mas homo faber (Ib., p. 151). A
sua característica é a de suprir a deficiência dos órgãos naturais de que
dispõe mediante instrumentos que lhe permitam defender-se contra os inimigos e
contra a fome e o frio. Os instrumentos que o homem cria artificialmente
correspondem, na outra direcção da vida, aos

órgãos naturais -de que o instinto se serve; e por isso o instinto e a


inteligência representam duas soluções divergentes, mas igualmente elegantes,
de um só e mesmo problema (Évol. créatr., p. 155). Mas enquanto a inteligência
se orienta para a consciência, o instinto orienta-se para a inconsciência.
Quando a natureza fornece ao ser o instrumento que deve em.

pregar, o ponto em que tem de aplicá-lo, o resultado que deve obter, a parte
reservada à escolha é extremamente débil, e por isso a consciência será também
muito débil e crepuscular. O instinto será, portanto, consciente só na medida
em que for deficiente, isto é, só na medida das contrariedades e dos
obstáculos que encontrar na sua acção moral. Na inteligência, pelo contrário,
o estado normal é o deficit, isto é, o desnível entre a representação e a
acção. A inteligência deve, de facto, através de mil dificuldades, escolher
para o seu trabalho o lugar
21

a forma e a matéria. E nunca poderá satisfazer-se inteiramente, uma vez que


cada nova satisfação criará novas necessidades. Desta diferença fundamental
derivam as outras: a inteligência é levada a considerar as relações entre as
coisas, ao passo que o instinto se dirige às próprias coisas; a inteligência é
conhecimento de uma forma; o instinto, conhecimento de uma matéria. Esta
última característica constitui, à primeira vista, uma superioridade da
inteligência: uma forma, precisamente por estar vazia, pode ser preenchida da
maneira que se quiser e por isso todo o conhecimento formal é praticamente
iliinitado e um poder inteligente "traz em si o que lhe permite ultrapassar-se
a si próprio". Todavia, esta mesma característica formal priva a inteligência
da capacidade de se deter na realidade de que teria necessidade. "Há coisas
-diz Bergson (1b., p. 165) -
que só a inteligência é capaz de procurar, mas que, por si só, nunca poderá
encontrar. Tais coisas só o instinto as encontraria; mas nunca as procurará".

Tudo isto determina as capacidades e os limites da inteligência humana. A


inteligência está virada, fundamentalmente, para os fins da vida, serve para
construir instrumentos inorgânicos e só se encontra à vontade quando tem que
lidar com a matéria inorgânica. Mas a matéria inorgânica é solidificação,
imobilidade, descontinuidade: a inteligência tende, portanto, a transformar
tudo o que considera em elementos sólidos, descontínuos e imóveis. Por isso o
devir se lhe apresenta como uma série de dados, em que cada um permanece a si
mesmo e, portanto, imutável. Mesmo quando a sua atenção se fixa na mu-
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dança interna de um destes estados, decompõe-no numa série de estados


ulteriores que terão as mesmas

características de fixidez e imobilidade. Assim, a inteligência deixa fugir


precisamente o que há de novo na evolução da vida e caracteriza-se por uma
natural incompreensão do movimento e da vida.

Bergson define o funcionamento da inteligência como um mecanismo


cinematográfico. De facto, a

inteligência colhe instantâneos imóveis do devir e

procura reproduzi-lo mediante a sucessão de tais instantes. Mas este mecanismo


deixa escapar o que é peculiar à vida: a continuidade do devir, em que não se
podem distinguir estados. Daí que todas as

tentativas da inteligência para compreender o devir não consigam senão


transformá-lo numa série de imobilidades sucessivas, que já nada têm da
continuidade originária. Surgem então as objecções de Zenão de Eleia contra o
movimento: objecções irrefutáveis do ponto de vista da inteligência porque
fundadas na espacialização do devir, na sua redução a uma série de
imobilidades sucessivas. A incapacidade da inteligência perante a vida é a
incapacidade da ciência, que se funda na inteligência. A ciência obtém os
maiores sucessos no mundo da natureza inorgânica, onde a duração real da
consciência é substituída por um tempo homogéneo e uniforme (constituído por
instantes iguais), que na realidade já não é tempo, mas espaço. A este tempo
espacializado é aplicável a medida científica; ao invés, o tempo verdadeiro, a
duração, não é susceptível de medida porque não apresenta nenhuma uniformidade
e é criação contínua. Todavia, este método da

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não é uma inferioridade sua, mas a condição êxito. A ciência visa à acção;
saber equivale a **Wo-,kr, isto é, A partir de uma situação dada para **J@f
**etiegar a uma situação futura. Avança por saltos, isto
é., por intervalos, que podem ser tão pequenos quanto se deseje, mas que nunca
constituem uma continuidade. A ciência só revela os seus limites quando
procura compreender a vida. Para compreender a vida é necessário um órgão
completamente diferente da inteligência científica. Existe tal órgão?

§ 697. BERGSON: A INTUIÇÃO

Vimos que a outra direcção fundamental da vida é o instinto. Mas a


inteligência nunca se separa completamente do instinto: é possível, portanto,
um

retorno consciente da inteligência ao instinto: tal retorno é a intuição. A


intuição é um instinto que se tomou desinteressado, consciente de si, capaz de
reflectir sobre o seu objecto e de o estender indefinidamente (Évolut.
Créatr., p. 192). Que um tal esforço é possível, prova-o a presença no homem
da intuição estética, que dá lugar à arte. A intuição estética, na verdade,
faz-nos captar a individualidade das coisas que escapa à percepção comum,
inclinada a reter dos objectos só as impressões úteis para os fim da acção.
Por outros termos, a intuição tira à arte aquele véu que as exigências da
acção interpõem entre nós e as coisas, véu sem o qual todos os hoIliens
poderiam entrar em comunicação imediata com

as coisas mesmas e ser naturalmente artistas. Dado

24

que, ao invés, as exigências da acção obrigam o homem a ler as etiquetas que a


necessidade da prática impõe à s coisas mediante a linguagem, o artista surge
de quando em quando e caracteriza-se pela capacidade de ver, escutar ou pensar
sem se referir às necessidades da acção. Se fosse possível um desprendimento
completo de tais necessidades, ter-se-ia um artista excelente em todas as
artes, Mas, na realidade, acontece que o véu se levanta acidental mente só de
um lado, ou seja, na direcção de um só dos sentidos humanos; e daqui deriva
a diversidade das artes, a especialidade das predisposições (Le Rire, 1908, p.
160).

A intuição estética, no entanto, tende apenas ao individual e não pode ser o


órgão de uma metafísica da vida. Mas pode-se conceber uma investigação
orientada no mesmo sentido que a arte e que tenha por objecto a vida em geral.
Uma investigação deste género será propriamente filosófica, ou melhor,
constituirá o próprio órgão da metafísica. Enquanto a

ciência tem o seu órgão na inteligência e o seu

objecto apropriado na matéria imóvel, a metafísica tem o seu órgão na intuição


e o seu objecto apropriado na vida espiritual. Se a análise é o procedimento
próprio do intelecto, o procedimento próprio da intuição será a simpatia,
"pela qual penetramos no interior de um objecto para coincidir com o que ele
tem de único e, portanto, de inexprimível" (La Pensée et le mouvant, p. 205).
Se a análise intelectual tem necessidade de símbolos, a metafísica intuitiva
é, ao invés, a ciência que pretende dispensar os

símbolos. Com efeito, possui de um modo absoluto

25

e infinitamente a realidade, em vez de a conhecer; coloca-se directamente


nela, em vez de adoptar pontos de vista em torno dela e por isso a atinge para
lá de toda a expressão, tradução ou representação simbólica (Ib., p. 206).

Bergson apela continuamente para a intuição ao

longo de toda a sua investigação. A intuição revela-nos a duração da


consciência e põe-nos em guarda contra a espacialização da mesma operada pela
inteligência. É a intuição que nos torna conscientes da nossa liberdade. É
também a intuição que nos permite recuperar o impulso vital que é a força
criadora de toda a evolução biológica. Na realidade, o

único objecto da intuição é o espírito. Ela é "a visão directa do espírito por
parte do espírito". Contudo, o universo material não se apresenta opaco à
intuição. Se o domínio próprio desta é o espírito, "ela desejaria, no entanto,
realizar nas coisas materiais a sua participação na espiritualidade - e
diríamos na espiritualidade, se não soubéssemos tudo o que de humano ainda se
mistura à nossa consciência, mesmo depurada e espiritualizada" (1b., p. 37). A
intuição pode ter significados diversos e não se pode definir univocamente.
Todavia, a sua característica fundamental é que pensa em termos de duração,
isto é, de espiritualidade ou de consciência pura. E é isto precisamente que
faz dela o órgão específico da metafísica. Entre a metafísica e a ciência,
Bergson não pretende estabelecer uma diferença de valor, mas somente de
objecto e de método. À ciência compete o conhecimento intelectual da matéria;
à metafísica a intuição do espírito. Uma vez

26

que o espírito e a matéria se tocam, também a ciência e a metafísica, hão-de


ter uma superfície periférica comum: poderão assim agir uma sobre a outra e
estimular-se mutuamente.

Para exercer a sua função, a filosofia deverá deixar de ser uma mera análise
de conceitos implícitos nas formas da linguagem e deverá tratar da própria
existência real. Mas toda a existência só pode ser dada numa experiência. Esta
experiência chamar-se-á visão ou contacto ou percepção externa em geral, se se
trata de um objecto material; chamar-se-á intuição se se trata do espírito.
Até onde pode chegar a intuição? Só ela o pode dizer. "Ela diz Bergson (Ib.,
p. 61)-chega. a possuir um fio: ela própria deverá ver se este fio vai até ao
céu ou se se detém a uma certa distância da terra. No primeiro caso, a
experiência metafísica relacionar-se-á com a dos grandes místicos; e eu posso
comprovar, pela minha parte, que esta é a verdade. No segundo caso, as
experiências metafísicas permanecerão isoladas umas das outras, sem no entanto
se oporem umas às outras. Em qualquer caso, a filosofia elevar-nos-á acima da
condição humana".

§ 698. BERGSON: GÉNESE IDEAL DA MATÉRIA

A recusa de Bergson em admitir qualquer diferença de valor entre a metafísica


e a ciência e a sua afirmação de que a metafísica e a ciência se distinguem
unicamente pela diversidade dos seus objec-

27

tos, poderá fazer supor que tal diversidade seja de algum modo irredutível,
isto é, que a matéria e o espírito constituam duas realidades últimas, ainda
que em mútuo contacto e com mútuas possibilidades de aproximação e de
inserção. Porém, a Evolução criadora tem, entre as suas partes mais
significativas, uma "génese ideal da matéria" que é uma tentativa para
explicar a matéria mesma por meio de unia detenção virtual ou possível do
impulso vital, que é pura espiritualidade.

A evolução da vida surge à primeira vista a Bergson como o resultado do


encontro e da luta entre o espírito e a matéria. "Tudo se passa como se uma
ampla corrente de consciência tivesse penetrado na matéria, carregada, como
toda a consciência, de uma enorme, multiplicidade de virtualidades que se
interpenetrassem. Ela impeliu a matéria para a organização, mas o seu
movimento foi a um tempo infinitamente atrasado e infinitamente dividido"
(Évol. créatr., p. 197). Mas a intuição não tarda em compreender que a
materialidade, como interrupção da tensão vital, como detenção virtual do
impulso, como aparição da extensão e da divisão dos entes e como inversão da
ordem vital na ordem estática da matéria, é, de algum modo, presente à própria
consciência humana. "Quanto mais tomamos consciência do nosso progresso na
pura duração - diz Bergson. (1b., p. 219-20) -tanto mais sentimos as

diversas partes do nosso ser entrarem umas nas outras e toda a nossa
personalidade concentrar-se num ponto, ou melhor, numa ponta, que se insere no
futuro, acutilando-o sem tréguas. Nisto consistem a

28

vida e a acção livre. Deixamo-nos ir, ao invés; sonhamos em vez de agirmos.


Neste mesmo acto, o

nosso eu se dispersa; o nosso passado, que até àquele momento se recolhia em


si mesmo no impulso indivisível que nos comunicava, decompõe-se em mil
recordações que se exteriorizam umas em relação às outras. Renunciam a
interpenetrar-se à medida que se solidificam. A nossa personalidade desce
assim na direcção do espaço". A materialidade é, portanto, um movimento, ou
melhor, uma suspensão virtual do movimento ou um obstáculo ao movimento que se
encontra na própria consciência.

Deste ponto de vista, a vida é "um. esforço para ascender pela vertente pela
qual a matéria desce". Se a vida fosse pura consciência, e, por maioria de
razão, se fosse supraconsciência, seria pura actividade criadora (Evol.
créat., p. 267). Mas o limite da sua criatividade é-lhe intrínseco: o seu
movimento para a

frente complica-se com o seu movimento para trás, e este movimento para trás,
a dispersão da vida, a

solidificação que procura deter o fluxo criador, é a

imaterialidade. "Na realidade, a vida é um movimento, a materialidade é o


movimento inverso, e cada um destes dois movimentos é simples, uma vez que a
matéria que forma um mundo é um fluxo indiviso, como indivisa é a vida que a
atravessa, recortando nela os seres vivos, Destas duas correntes, a segunda
opõe-se à primeira; não obstante, a primeira obtém alguma coisa da segunda:
daí resulta aquele modus vivendi que é, precisamente, a organização" (Ib., p
271). A organização biológica, toma, para os nossos, sentidos e para a nossa
inteligência, a forma de

29

partes extrínsecas umas às outras no tempo e no espaço, porque fechamos os


olhos à unidade 1) impulso que, através das gerações, une os órgãos aos
órgãos, os indivíduos aos indivíduos, as espécies às espécies, e faz de toda a
série dos vivos uma única onda que corre através da matéria. Mas assim que,
mediante a intuição, estalamos o esquema solidificado da inteligência, tudo se
põe de novo em movimento e se resolve no movimento. Este movimento é
continuado na natureza unicamente pelo homem, já que, em toda a parte, salvo
no homem, a consciência se viu bloqueada e impedida de chegar à sua

forma. Só o homem continua o movimento criador do impulso vital e o continua


nas manifestações que lhe são próprias: a moral e a religião.

§ 699. BERGSON: SOCIEDADE FECHADA E SOCIEDADE ABERTA

Nem mesmo no mundo humano, que é o mundo social, a consciência é pura


actividade criadora. O antagonismo de movimentos que a intuição descobre na
consciência do eu e que se volta a encontrar na vida como contraste entre
impulso vital e materialidade, domina também o mundo social. As sociedades
humanas que historicamente se formaram e se formam são sociedades fechadas,
nas quais o indivíduo actua unicamente como parte do todo, e que deixam uma
margem mínima à iniciativa e à liberdade. A ordem social modela--se pela ordem
física, conquanto as suas leis não tenham a necessidade absoluta das
30

leis físicas. Mas o indivíduo segue o caminho já traçado pela sociedade:


automaticamente obedece às regras desta e conforma-se aos seus ideais. A
sociedade é a fonte das obrigações morais. Estas não são, como queria Kant,
exigências da pura razão, mas hábitos sociais que garantem a vida e a solidez
do corpo social. A razão entra nestas obrigações só para ditar as modalidades
do seu exercício mas nada tem a ver com a origem delas. Na base da sociedade
existe o costume de contrariar hábitos, e este é o único fundamento da
obrigação moral. O que na outra grande linha da evolução animal a natureza
realizou mediante o instinto, dando origem à colmeia e ao formigueiro, na
linha da inteligência realizou-o mediante o hábito. Nesta linha, deixou uma
certa latitude à escolha individual, e, portanto, todo o hábito moral tem uma
certa contingência- Mas o seu conjunto, isto é, o hábito de contrair hábitos,
tem a mesma intensidade e regularidade que o instinto (Deux sources, p. 21).

Mas além da moral da obrigação e do hábito, que é própria de uma sociedade


fechada, existe a moral absoluta, a dos santos do cristianismo, dos sábios da
Grécia, dos profetas de Israel, que é a moral de uma sociedade aberta, Esta
moral não corresponde a um grupo, mas a toda a humanidade. Tem por fundamento
uma emoção original, e continua o esforço gerador da vida. A moral da
obrigação é imutável e tende à conservação; a moral absoluta está em movimento
e tende ao progresso. A primeira exige a impersonalidade, porque a
conformidade a hábitos adquiridos; a segunda corresponde ao apelo

31

de uma personalidade que pode ser a de um revelador da vida moral ou um dos


seus imitadores, ou também a da própria pessoa que age. A estas duas morais
distintas correspondem dois tipos diversos de religião.

§ 700. BERGSON: RELIGIÃO ESTÁTICA E RELIGIÃO DINÂMICA

O nascimento das superstições religiosas é explicado por Bergson. mediante a


função fabuladora. As superstições têm, de facto, um carácter fantástico, mas
não podem ser reduzidas à fantasia que actua nos inventos científicos e nas
realizações artísticas. A função fabuladora nasce no curso da evolução por uma
exigência puramente vital. A inteligência, que é o instrumento principal da
vida humana (a qual, como se viu, se rege somente enquanto é capaz de fabricar
instrumentos artificiais), ameaça voltar-se contra a própria vida. O ser
dotado de inteligência é levado, de facto, a pensar apenas em si mesmo

e a desprezar os seus laços sociais. A religião é a

reacção defensiva da natureza contra o poder dissolvente da inteligência: os


seus mitos e superstições servem para impelir o homem para os seus
semelhantes, subtraindo-o ao egoísmo em que a inteligência o faria cair. Além
disso, a inteligência mostra claramente ao homem a sua natureza mortal, e isso
representa para uma mentalidade primitiva um segundo perigo, contra o qual a
religião reage com a crença na imortalidade e com o culto dos mortos. Em ter-
32

BERGSON

ceiro lugar, a inteligência faz perceber claramente ao

homem a imprevisibilidade do futuro e, portanto, o

carácter aleatório de todos os seus empreendimentos. A religião exerce também


aqui unia função defensiva, dando ao homem o sentido de uma protecção
sobrenatural, que o subtraia aos perigos e à incerteza do futuro. Finalmente,
a religião fornece mediante as

crenças e as práticas mágicas a possibilidade de crer numa influência do homem


sobre a natureza muito superior à que o homem pode efectivamente alcançar
mediante a técnica.

Uma religião assim constituída é, segundo Bergson, infra-intelectual. É, em


geral, a reacção defensiva da natureza contra o que há de deprimente para o
indivíduo e de dissolvente para a sociedade no exercício da inteligência. É,
pois, uma religião natural no sentido de que é um produto da evolução natural.
Mas a par desta religião estática, a religião dinâmica constitui a forma
supra-intelectual da religião, que retoma e continua directamente o impulso
vital originário. Bergson identifica a religião dinâmica com o nústicismo.

O misticismo é muito raro e pressupõe um homem privilegiado e genial. Mas ele


apela para algo que existe em todos os homens; e mesmo quando não chega a
comunicar aos outros homens a sua força criadora, tende a subtraí-los ao
formalismo da religião estática e produz assim numerosas formas inter- ..
~..=- "0 resultado do misticismo - diz Bergson (Deux Sources, p.
235) -é uma tomada de contacto e, por consequência, uma coincidência par-
33

com o esforço criador que a vida manifesta,

é de Deus, se não é Deus mesmo".


O misticismo antigo, tanto o platónico como o

oriental, é um misticismo da contemplação: não acreditou na eficácia da acção


humana. o misticismo completo é o dos grandes místicos cristãos (5. Paulo,
Sta. Teresa, S. Francisco, Joana de Are), para os quais o êxtase não é um
ponto de chegada, mas o

ponto de partida de uma acção eficaz no mundo.


O amor do místico pela humanidade é o próprio amor de Deus: é um amor que não
conhece problemas nem mistérios, porque continua a obra da criação divina
(Ib., p. 251). A experiência mística fornece a

única prova possível da existência de Deus. O acordo entre os místicos não só


cristãos, mas também pertencentes a outras religiões, é "o sinal de uma
identidade de intuição, que se pode explicar do modo mais simples pela
existência real do Ser com o qual crêem estar em comunicação" (ib., p. 265). A
experiência mística leva a considerar o universo como o

aspecto visível e tangível do amor e da necessidade de amar. "Deus é amor e é


objecto de amor: aqui está todo o misticismo". (1h., p. 270). Só o amor
justifica a multiplicidade dos seres vivos e, portanto, a realidade do próprio
universo, requerido pela existência de seres distintos entre si e por Deus.
Bergson aceita francamente uma concepção optimista do mundo". "Existe um
optimismo empírico-diz ele (1b., p. 280) - que consiste simplesmente em
verificar dois factos: em primeiro lugar, que a humanidade julga boa a vida no
seu conjunto porque está ligada a ela, em segundo lugar, que existe uma
alegria sem

34

mescla, situada para já do prazer e da dor, que é o

estado de alma definitivo do místico".

Bergson aspira a que surja algum génio místico que venha corrigir os males
sociais e morais de que sofre a humanidade. A técnica moderna, estendendo, a
esfera da acção do homem sobre a natureza, tem de certo modo engrandecido
desmedidamente o corpo do homem. Este corpo engrandecido "espera um suplemento
de alma, e a mecânica exigiria uma mística" (Ib,, p. 355). Os problemas
sociais e políticos internacionais que nascem desta desproporção poderiam ser
eliminados por um renascimento do misticismo. Neste caso, a mecânica que
curvou ainda mais a humanidade para a terra, poderia servir-lhe para se
endireitar e olhar o céu. E a humanidade poderia então retomar no nosso
planeta "a função essencial do universo, que é uma máquina de fazer deuses"
(1b., p. 343).

A doutrina da religião dinâmica que acabamos de expor é a parte mais débil de


toda a obra de Bergson, e é também aquela em que a elegância imaginativa do
estilo do filósofo se transforma abertamente em ênfase e oratória. A
identificação da religião autêntica com o misticismo não poderia ser

aceite por nenhuma das grandes religiões ocidentais; e a própria identidade,


em que Bergson insiste, das experiências místicas procedentes de religiões
diversas é fortemente suspeita. Na realidade, o misticismo, como o entende
Bergson, tem um pressuposto panteísta: a identidade substancial do homem e de
Deus. O homem, enquanto constituído na sua essência por um impulso vital
super-individual e sobre-hu-

35

~o que, como Bergson diz, "é divino ou é o próprio Deus", não é, na sua
natureza espiritual, senão um ou uma manifestação do divino ou de Deus. Mas a
relação de íntima comunhão entre o homem e Deus, a firmeza e a estabilidade da
comunicação postulada pelo misticismo tal como Bergson o entende, elimina de
um golpe a vida religiosa. Nenhuma religião, e muito menos o catolicismo para
o qual iam as simpatias de Bergson nos últimos anos, poderia considerar o
universo como "uma máquina de fazer os deuses" e os homens iguais a estes
deuses. Bergson repetiu na sua última obra as linhas de um panteísmo romântico
para o qual o finito é manifestação e revelação do infinito e a
individualidade do homem se dissolve ou parece inconsistente e a sua liberdade
se identifica com a espontaneidade criadora da força cósmica.

§ 701. BERGSON: O POSSÍVEL E O VIRTUAL

As categorias metafísicas que Bergson explicitamente elucidou e estabeleceu


como base da sua investigação inspiram-se precisamente neste panteísmo
romântico. Por isso se prestam a justificar a filosofia de Bergson só naqueles
aspectos em que ela é redutível a um tal pensamento, mas não os outros, talvez
mais vivos, pelos quais a filosofia bergsoniana se insere no círculo da
filosofia contemporânea.

A categoria que preside à duração real (na variedade das suas manifestações) é
a própria realidade, é a criação. Bergson define esta categoria como "a

36

novidade imprevisível" da evolução universal, enquanto é sempre evolução


espiritual e que, por isso, se revela directa e imediatamente na consciência.
A ideia de criação não é mais do que a percepção imediata que cada um de nós
tem da sua própria actividade e das condições em que ela se exerce. "Dêem-lhe
o nome que quiserem - diz Bergson (Pensée et Mouv, p. 118-19 -, ela é o
sentimento que temos de ser criadores das nossas intenções, das nossas
decisões, dos nossos actos, e, por consequência, dos nossos hábitos, dos
nossos caracteres, de nós mesmos. Artífices da nossa vida, e também artistas,
quando queremos sê-,lo, trabalhamos continuamente com a matéria que nos
oferece o passado e o presente, a hereditariedade e as circunstâncias, a fim
de plasmarmos uma figura única, nova, original, imprevisível como a forma que
o escultor imprime ao barro".

Esta simples verificação imediata, elimina, segundo Bergson, todos os


problemas da metafísica e da teoria do conhecimento, uma vez que elimina o

problema do ser (e do nada) e o da ordem (e da desordem). O problema da


metafísica consiste em perguntar-se porque é que existe o ser, porque é que Z,

existe qualquer coisa ou alguém em geral, quando, afinal, poderia não existir
nada. Ora, este problema é puramente fictício, porque se baseia no uso
arbitrário do termo nada, que só tem sentido no seu

terreno, precisamente o do homem: o da acção e da fabricação. "Nada" designa a


ausência do que buscamos, do que desejamos ou do que esperamos, mas

não designa positivamente nada do que percebemos

37

ou pensamos. que é sempre um "pleno", nunca um

"vazio". Quando dizemos que não existe nada, pretendemos dizer que o que
existe não nos interessa e que estamos interessados no que já não existe ou
poderia ter existido. De modo que a ideia do nada está ligada à de uma
supressão real ou eventual e, por conseguinte, à de uma substituição. Ora, a
supressão, enquanto substituição, nunca pode ser total, uma vez que nesse caso
não seria substituição. O mesmo se pode dizer do problema da ordem. A ordem
torna-se um problema quando nos perguntamos porque é que ela existe em lugar
da desordem, e implica portanto, como problema, a legitimidade da ideia da
desordem. Mas esta ideia significa simplesmente a ausência da ordem procurada;
e é impossível suprimir, mesmo mentalmente, uma ordem sem fazer surgir dela
outra. O problema fundamental da gnoseologia revela-se, como o da metafísica,
um problema fictício derivado do uso arbitrário das palavras.

Estas análises, que Bergson desenvolveu amplamente na Evolução criadora e


repetiu e confirmou depois, mais recentemente (Pensée et Mouv., p. 122 sgs.),
figuram entre as mais merecidamente famosas da filosofia contemporânea, mas
não serviam para o fim que ele pretende atingir, isto é, a geração do problema
da metafísica ou da metafísica como problema. Com efeito, tais análises não
conduzem à eliminação do nada e da desordem, mas somente à definição destes
como nulidade possível do ser e da ordem, ainda que seja só no sentido da
possível substituição deles por um ser ou por uma ordem em que o homem não
esteja interessado. Estas anã-
38

lises deveriam, portanto, ser completadas com uma

análise da categoria do possível; mas esta, infelizmente, não se encontra nas


obras de Bergson. De facto, Bergson entendeu sempre o possível no sentido de
"virtual", no sentido da potencialidade aristotélica e ignorou simplesmente ou
passou em silêncio o seu significado próprio de problemático. O possível,
segundo Bergson, é apenas "a miragem do presente no passado": à medida que a
realidade se cria a si mesma, sempre imprevisível e nova, a sua imagem
reflecte-se por detrás no passado indefinido. A realidade mesma passa deste
-modo a ser possível, mas precisamente no momento em que se torna realidade:
a sua possibilidade não a precede verdadeiramente, mas segui-a (Ib., p. 128).
Por outras palavras, o possível é, para Bergson, a sombra virtual que a
realidade, autocriando-se, projecta no próprio passado. Esta sombra virtual
não tem, evidentemente, nada a ver com o sentido concreto da possibilidade
presente, mesmo emotivamente, em toda a experiência ou

situação humana. Contudo, este sentido não é estranho à filosofia de Bergson


que pôs em luz na Evolução criadora o bloqueamento e a dispersão do impulso
vital em muitas das suas direcções e correntes, e exprimiu nas páginas finais
das Deux sources as

suas preocupações pela sorte do homem no futuro. Isto implica,


indubitavelmente, o reconhecimento de uma radical incerteza, instabilidade e
insegurança de desenvolvimento da experiência humana, que aliás se encontra
ensombrada pelo carácter de "imprevisibilidade" que Bergson lhe atribui. Pode
dizer-se que a experiência mística subtrai o homem a esta condi-
39
ção (e à categoria da possibilidade que filosoficamente a exprime) para o
vincular a uma certeza em que já não subsistem problemas nem dúvidas sobre o
futuro. Mas a consecução e a consolidação da experiência mística, que vem a
ser para o homem senão uma possibilidade a que agarrar-se, um problema a
resolver?

A filosofia de Bergson rompe, nalguns pontos essenciais, o quadro da


necessidade romântica em

que, explicitamente, o autor quis mantê-la. Sob este aspecto, encontra a sua
continuação e o seu enriquecimento no pragmatismo contemporâneo.

NOTA BIBLIOGRÁFICA

§ 692. Passagens do testamento de B. em A.

BÉGUIN e P. THÉVENAZ, H.B., Neuchâtel, 1941. Sobre a bibliografia: A


Contribution to a Bibliography of H.B., Nova Iorque, 1913; e "Revue
Internationale de Philosophie", 1949, n. 10.

Alguns escritos menores de Bergson encontram-se recolhidos em Ècrits et


Paroles, ao cuidado de R. M. MOSSÉ-BASTIDE, Paris, 1957.

Sobre as relaçõe:s de B. com Maine de Biran: H. GAUBIER, in Études


bergsoniennes, 1, 1948.

J. BENDA, Le Bergsonisme ou une philosophie de Ia mobilité, Paris, 1912; R.


BERTHELOT, Le pragmatisme chez Bergson, Paris, 1913; F. KOLGIATI, La filosofta
di R., Turim, 1914; J. MARITAIN, La philosophie bergsonienne, Paris, 1914; LE
ROY, Une philosophie nauvelle, Paris, 1914; H. H~DING, La philosophie de R.,
Paris,
1916; F. D'AMATO, 11 pensiero di E.B., Città di Castello,
1921; THIBAUDET, Le Bergsonisme, Paris, 1923; J. CHEVALIER, B., Paris, 1929;
JANNÉLÉVITC11, B., Paris, 1931;

40

A. METZ, Bergson et le Bergsonisme Paris, 1933; G. SANTAYANA, II pensiero


americano e aZtri saggi, Milão,
1939, p. 191-248; E. LF, Roy, B. RoMEYER, P. KUCHARSKI, A. FOREST, P. D'AUREc,
A. BRÉMOND, A. RICOEUR, Bergson et le Bergsonisme, in "Archives de
philosophie", V. XVII, e. 1; V. MATI-IIEU, R., II profondo e Ia sua
espressione, Turim, 1954 (com bibl.).

§ 693. J. DELHOMME, Durée et vie dans Ia phitosophie de Bergson, in Êtudes


ber98oniennes, 11, 1949; E. BR£HIER, Images plotiniennes, images
bergsoniennes, in Êtudes bergsoniennes, E, 1949, V. MATMEU, op. Cit.

§ 696. L. HUSSON, L'intelectualisme de, Bergson, Paris, 1947.

§ 697. J. SEGOND, L'intuition bergsonienne, Paris,


1923; R. M. MossÉ-BASTIDE, L'intuition bergsonienne, in "Revue philosophique",
1948, p. 195-206; F. DELATRIZE, Bergs,on et Proust, in Études bergsoniennes,
1, -1948.

§ 700. CARBONARA, in "Logos", Nápoles, 1934; H. IVIAVIT, Lex mesisage de


Bergson, in "Culture humaine,>,
1947, p. 491-501; H. SUNDIN, La théorie bergsonienne de Ia religion, Paris,
1948.

41

IV

O IDEALISMO INGLÊS E NORTE-AMERICANO

§ 702. CARACTERISTICAS DO IDEALISMO

O termo "idealismo" é empregado ordinariamente num sentido gnoseológico e


serve, portanto, para designar toda a doutrina que reduza a realidade a
"ideia", isto é, a sensação, a representação, a pensamento, a dado ou a
elemento de consciência. Neste sentido, o idealismo é o aspecto comum de
doutrinas diversas e díspares e pode servir igualmente para caracterizar, por
exemplo, a doutrina de Berkeley ou de Hume e a de Schelling ou de Hegel. Além
disso, muitas correntes da filosofia contemporânea são, neste sentido,
igualmente idealistas: o espiritualismo e o neocriticismo, o
transcendentalismo in- ,-lês e norte-americano, o idealismo italiano, a
filosofia

43

da acção e grande parte da fenomenologia. Este idealismo gnoseológico é o


dominador comum de todas as filosofias antipositivistas que caracterizaram os
últimos decénios do século passado e os primeiros do nosso; enquanto que o seu
oposto, o realismo, foi,

no mesmo período, uma excepção e só mais recentemente adquiriu uma certa


importância e significação. Neste sentido, portanto, a palavra idealismo não
se presta para indicar nenhuma orientação histórica determinada mas apenas uma
doutrina gnoseológica que, sendo comum a orientações diversas, não caracteriza
historicamente nenhuma.

Neste estudo, empregaremos o termo de idealismo no seu sentido especificamente


histórico, ou seja, no sentido de uma orientação que principia com a
chamada "filosofia clássica alemã" e pretende demonstrar a unidade ou a
identidade de infinito e finito, de espírito e natureza, de razão e realidade,
de Deus e mundo. Neste sentido, só poderão ser compreendidos sob a rubrica
"idealismo" aqueles movimentos que se vinculam estritamente às teses
fundamentais do idealismo clássico alemão, isto é, o idealismo inglês e norte-
americano e o italiano. A característica principal deste idealismo, tal como
se verifica nas demais orientações, reside na maneira como entende e pratica a
filosofia: consiste essa maneira em mostrar a unidade entre o infinito e o
finito, quer partindo do infinito, quer partindo do finito, mas, de qualquer
modo, mediante procedimentos puramente "especulativos" ou "dialécticos".

44

§ 703. AS ORIGENS DO IDEALISMO INGLÊS E NORTE-AMERICANO

O idealismo inglês e norte-americano visa a mostrar a unidade entre o finito e


o infinito partindo do primeiro; ou, como também se pode dizer, por via
negativa, isto é, mostrando que o infinito, pela sua

intrínseca irracionalidade, não é real ou é real na medida em que revela e


manifesta o infinito, que é a

verdadeira realidade, e postulando portanto a resolução final do finito no


infinito.

As manifestações técnicas deste último idealismo são precedidas por uma


verdadeira floração romântica que se verifica na Inglaterra e na América pouco
antes dos meados do século XIX. Em Inglaterra, os poetas Samuel Taylor
Coleridge (1772-1834) e

William Wordsworth (1770-1850) inspiraram-se, nas suas poesias (e o primeiro


também em ensaios literários e filosóficos) no idealismo de Schelling.
Simultaneamente, o idealismo encontrava na Inglaterra e

na América dois expositores e defensores que o revestiam de uma forma


brilhante e popular, embora superficial e enfática: Carlyle e Emerson.

Tomás Carlyle (1795-1881), depois de alguns ensaios e estudos em que se


preocupava em dar a conhecer ao público inglês a literatura romântica alemã,
publicou o Sartor resartus, que é ao mesmo tempo uma sátira alegórica da
sociedade contemporânea e a expressão dos seus princípios filosóficos. Num
trabalho histórico, A revolução francesa (1837), exaltou liricamente as
grandes figuras dessa revolução; e na obra Os heróis (1841) concebeu a
história como

45

o campo de acção das grandes personalidades e estudou diversas manifestações


do heroísmo humano. Em numerosos ensaios posteriores dirigiu uma crítica
mordaz à sociedade mecânica exaltando liricamente, em oposição a ela, o ideal
de uma vida espiritual domina-da pela vontade e pelos valores morais. Em
Sartor resartus, o universo é um vestido, isto é, um

símbolo ou uma aparição do poder divino que se

manifesta e actua em graus diversos em todas as coisas. Carlyle exalta o


mistério que envolve "o mais estranho de todos os mundos possíveis". O
universo não é um armazém ou um fantástico bazar, mas o místico templo do
espírito. A segurança de que a

ciência tem de possuir a chave do mundo da natureza é ilusória. O milagre que


viola uma suposta lei da natureza não pode ser, em compensação, a acção de uma
lei mais profunda, que vise pôr a força material ao serviço da energia
espiritual? Na realidade, todas as coisas visíveis são sinais ou emblemas: a
matéria só existe para o espírito: não é mais do que a encarnação ou a
representação exterior de uma

ideia. No mundo da história, o poder divino manifesta-se naquelas grandes


personalidades a que Carlyle chama heróis. Os heróis são "os indivíduos da
história universal" de que falava Hegel, ou seja, os instrumentos da
providência divina que domina a história, E tudo o que na história humana
encerra de grande e de duradouro é devido à sua acção.

Quase ao mesmo tempo Relph Waldo Emerson (1803-82) arvorava-se na América em


defensor do "transcendentalismo", ou seja, de um idealismo panteísta de cunho
hegeliano. Tal concepção surge pela

46

primeira vez num escrito intitulado Natura (1836) e foi depois defendida em
numerosos Ensaios. A sua obra Homens representativos (1850) reduz (como os

Heróis de Carlyle) a história à biografia dos grandes homens. A convicção


fundamental de Emerson é que em toda a realidade actua uma força superior que
ele denomina de Super-alma ou Deus. A única lei do homem consiste em
conformar-se com esta força. O próprio mundo é um símbolo e um emblema. A
natureza é uma metáfora do espírito humano e os

axiomas da física não são mais do que a tradução das leis -da ética. Mas o
espírito humano é o próprio espírito de Deus. "0 inundo - diz Emerson (Nature,
ed. 1883, p. 68), -procede do mesmo espírito de que procede o corpo do homem:
é uma inferior e mais remota encarnação de Deus, uma projecção de Deus no
inconsciente. Mas difere do corpo num aspecto importante: não está como o
corpo, sujeito à vontade humana. A sua ordem serena é inviolável para nós. Ele
é, portanto, para nós, o testemunho presente do Espírito divino, é um ponto
fixo em

referência ao qual podemos medir os nossos erros.

Assim que degeneramos, o contraste entre nós e a

nossa casa torna-se mais evidente, e nós tornamo-nos estranhos na natureza ao


afastarmo-nos de Deus". Emerson pode afirmar sobre esta base a identidade
romântica entre filosofia e poesia: uma e outra descobrem no mundo a sua força
oculta, a Super-alma que o domina. A Super-alma é o espírito de verdade que se
revela no homem, como um olho que vê através de uma janela aberta de par em
par. É o

47

fundamento da comunicação entre os homens, que só é possível sobre a base de


uma natureza comum e impessoal, de Deus mesmo. É, enfim, a força, que actua no
génio e nos homens a quem a humanidade deve os seus maiores progressos
(Essays, ed. 1893, 1, p. 270). A liberdade humana não consiste, pois, em fugir
ao mundo e à necessidade que o domina, mas sim em reconhecer a racionalidade e
a perfeição desta necessidade e em conformar-se a ela.

A verdadeira especulação idealista inicia-se em

Inglaterra com a obra de Jacob Hutchinson Stirling (1820-1909), O segredo de


Hegel (1865), obra muito pouco original, dedicada à exposição e à defesa do
sistema hegeliano. O segredo de Hegel é, segundo Stirling, a estreita relação
de Hegel com a de Kant, de que a primeira é a legítima e necessária
consequência. Stirling via o ponto basilar do hegelianismo na redução de toda
a realidade ao pensamento infinito de Deus, de que o próprio homem é um
aspecto ou um elemento.

A primeira manifestação original do idealismo inglês deve-se ao filósofo Tomás


Hill Green (1836-82). Green é autor de duas longas Introduções às duas partes
do Tratado da natureza humana de Hume (ed. 1874-1875) e dos Prolegómenos à
ética (1883), que é a sua obra principal, e de outros ensaios menores. A Hume
e, em geral, ao empirismo, Green objecta que é impossível reduzir a natureza

a um conjunto de percepções ou ideias e que é impossível entender a conexão


que tais percepções ou

ideias apresentam entre si. Toda a percepção ou ideia só pode ser reconhecida
na sua singularidade

48

por uma consciência que não é idêntica a elas, porque delas se distingue no
próprio acto do reconhecimento; e toda a conexão ou sucessão de ideias só o é
para uma consciência, que não é em si mesma conexão ou

sucessão, mas compreende em si tais coisas. De facto, o sujeito que reconhece


uma ideia ou a relação entre várias ideias, não pode ser, por sua vez, uma
ideia, porque isto implicaria que uma ideia fosse, ao mesmo tempo, todas as
outras. E não pode ser um composto de sensações ou de ideias porque as ideias
na consciência se sucedem umas às outras, e a sucessão não pode constituir um
composto. É necessário, portanto, que o sujeito esteja fora das ideias para
que perceba as ideias, e fora da sucessão para que perceba a

sucessão. Por outros termos, deve ser um Sujeito único, universal e eterno. Um
sujeito desta espécie é também o pressuposto tácito de todo o naturalismo mas
torna impossível o próprio naturalismo. Se o

mundo é uma série de factos, a consciência não pode ser um destes factos,
porque um facto não pode compreender em si todos os outros. A natureza é uma
contínua mudança; mas uma mudança não pode produzir a consciência de si mesma,
porque esta deve estar igualmente presente em todos os estádios da mudança. As
relações entre os factos surgem mediante a acção de uma Consciência unificante
que não se reduz a um dos factos relativos. Assim, as relações temporais só o
são para uma consciência eterna. Deste modo, Green deduz a necessidade de uma
Consciência absoluta (isto é, infinita e eterna) da própria consideração da
realidade natural a que

49

o empirismo e o positivismo pretendiam reduzir a consciência.


Todavia, a consciência humana tem uma história no tempo, e Green não nos
esconde a dificuldade que este facto fundamental e inigualável apresenta para
a sua teoria da consciência absoluta. A sua solução é que a história não
pertence verdadeiramente à consciência, mas apenas ao processo através do qual
o organismo animal se toma o veículo da consciência mesma. A nossa
consciência, segundo afirma, pode significar duas coisas: ou a função de um
organismo animal, que se tornou, gradualmente

e com interrupções, um veículo da eterna consciência; ou esta mesma eterna


consciência, que faz do organismo animal o seu veículo e está por isso sujeita
a certas limitações, mas conserva as suas características essenciais de
independência em relação ao

tempo e de determinante do devir. A consciência, que varia a cada momento, que


está em sucessão, e em cada um de cujo§ estados sucessivos depende de uma
série de eventos interiores e externos, é consciência no primeiro sentido. A
nossa consciência, com as suas relações características em que o tempo não
entra, que não devêm mas são de uma vez por todas o que são, é a consciência
no outro sentido (Prol. to Ethios, p. 73). Esta distinção elimina toda a
incompatibilidade entre a afirmação da consciência absoluta e a admissão de
que todos os processos do cérebro, dos nervos e dos tecidos, todas as funções
da vida e do sentido, têm uma história estritamente natural. Tal
incompatibilidade só existiria se estes processos e funções constituíssem
realmente o homem

50

capaz de conhecimento; a actividade humana, ao invés, só se pode explicar


mediante a acção de uma consciência eterna, que se serve dela como de um órgão
próprio e se reproduz a si mesma através dela. Porque é que esta repetição
deve existir, porque é que a eterna consciência deve procurar e promover

a sua repetição imperfeita através dos órgãos e das funções do organismo


humano, é um enigma que Green considera insolúvel. "Devemos contentar-nos em
dizer que, por muito estranho que possa parecer, a coisa é assim" (Ib., p.
86). Como quer que seja, Green considera que só o conceito de uma consciência
absoluta pode justificar a ideia de progresso, uma vez que os conhecimentos
novos que o homem adquire não podem vir ao ser no momento em que são
descobertos; são já reais na consciência absoluta e o progresso não é mais do
que a adequação crescente da história animal da consciência à consciência
absoluta (1b., p. 75). Estas considerações estendem-se também à vida moral do
homem. O aperfeiçoamento do homem tende a um termo que é já plenamente real e
completo na consciência absoluta. Quando se diz que o espírito humano tem a
possibilidade de realizar alguma coisa que não se realizou ainda na

experiência humana, pretende dizer-se que há uma

consciência na qual este algo já existe. A consciência eterna, Deus, é, pois,


ab aeterno tudo o que o homem tem a possibilidade de chegar a ser. Não só é o
Ser que nos fez, no sentido de que existimos como um

objecto da sua consciência, como a natureza, mas é também o Ser em que


existimos e ao qual somos idênticos na medida em que é tudo o que o espírito
humano é capaz de chegar a ser (1b., p. 198). A vida moral impele o homem para
o aperfeiçoamento individual e a satisfação das suas próprias exigências; mas
esta tendência universaliza-se e racionaliza-se imediatamente porque o seu
termo é a
consciência absoluta em que todos os homens estão igualmente presentes. Devido
a isto o bem foi concebido como uma actividade espiritual de que todos podem e
devem participar e, portanto, como uma

vida social em que todos os homens devem cooperar livre e conscientemente e em


que deve dominar a

harmoniosa vontade de todos (Ib., p. 311.).

Esta concepção de Green foi a base constante do idealismo inglês posterior.


John Caird (1820-98) fez dele a base de uma filosofia da religião (Introdução
à filosofia da religião, 1880). O fundamento da religião é, segundo Caird, a
unidade do finito e do infinito: unidade que é plenamente realizada e

actual na vida divina, mas que o homem só pode alcançar através de um infinito
progresso, que é exactamente a sua vida religiosa. "A religião é a elevação do
finito para o infinito, o sacrifício de todo o desejo, inclinação ou volição
que me pertence como indivíduo privado, a absoluta identificação do meu querer
com o querer de Deus" (Intr., ed. 1889, p, 283). Eduard Caird (1835-1908)
fazia de uma concepção análoga o critério de uma crítica miinuciosa e pedante
da doutrina kantiana (A filosofia crítica de Kant, 2 vol., 1889) e a base para
entender A evolução da religião (1893). Com efeito, delineia três formas
"teoricamente progressivas da consciência religiosa. A Primeira é a objectiva,
segundo a qual Deus é

52

concebido como um objecto entre os objectos (politeígnio, enoteísmo). A


segunda é a subjectiva, segundo a qual Deus é concebido como uma vontade
espiritual que se revela na autoconsciência dos homens (estoicismo,
profetismo, puritanismo, Kant). A terceira é a final e perfeita, em que Deus é
reconhecido na verdadeira forma da sua ideia, isto é, como a unidade do
sujeito e do objecto e, portanto, como principio comum da exterioridade
cósmica e da interioridade espiritual.

§ 704. BRADLEY

A maior figura do idealismo inglês é Francisco Herberto Bradley (1846-1924)


que elegeu para tema fundamental da sua especulação o antigo e sempre novo
contraste entre aparência e realidade, que dá o título à sua obra principal
(Aparência e realidade,
1893). Bradley é também autor de Estudos éticos, (1876), Princípios de lógica
(1893), Ensaios sobre a

verdade e a realidade (1914) e de muitos outros estudos de filosofia e


psicologia.

Segundo Bradley, todo o mundo da experiência humana é aparência, e só é real a


consciência absoluta. O mundo da experiência é, com efeito, inteiramente
irracional, contraditório e incompreensível; e é assim porque todos os
aspectos dele se baseiam em relações e as relações são inconcebíveis. Bradley
examina a relação entre qualidades primárias e secundárias, entre a coisa e as
suas qualidades, a relação espacial e temporal, a zausal, a que constitui o

53
sujeito ou eu. Bradley encontra em todas elas a mesma dificuldade fundamental:
toda a relação tende a identificar o que é diverso, e nisso é contraditória.
Toda a relação modifica os termos relativos, mas cada um destes termos cinde-
se em duas partes: uma, modificada, e outra, que permanece inalterada: e

estas duas partes não podem unir-se senão por uma

nova relação, o que implica uma nova modificação e uma nova cisão; e assim até
ao infinito. Deste modo, a relação que deveria tornar inteligível a unidade
dos termos relativos, não faz mais do que dividi-los e

multiplicá-los internamente até ao infinito: por isso é contraditória. Todo o


sistema da experiência humana, assente nas relações, se pulveriza, mediante a

reflexão filosófica, numa miríade de termos no interior de outros termos que


não estão juntos de nenhuma maneira inteligível. Nem mesmo o eu, segundo
Bradley, escapa a esta dificuldade. É, no entanto, verdade que a existência do
eu está de algum modo fora de qualquer dúvida, mas só como unidade da
experiência imediata, anterior à reflexão racional. Esta unidade deveria ser
entendida e justificada racionalmente; mas logo que se inicia esta tentativa
introduzindo a distinção entre eu e não eu, as dificuldades inerentes a toda a
relação deparam-se-nos imediatamente e o eu torna-se inconcebível.

Nenhum aspecto do inundo finito se salva da contradição, e nenhum deles pode


ser considerado real. Nem sequer o mundo da pura lógica se salva da
contradição. Os Princípios de lógica de Bradley e os numerosos ensaios que
dedicou a problemas de lógica põem em relevo as contradições que se ani-
54

nham no acto lógico fundamental. O juízo é, segundo Bradley, a referência de


uma ideia à realidade, a qualificação da realidade mediante um conceito que é
tomado como símbolo e significado dela. Por outros termos, todo o juízo
implica uma ideia que não é uma simples ideia, mas uma qualidade do real. Mas
se é assim, a multiplicidade e a variedade dos juízos implica que estes sejam
incompatíveis e contraditórios. É bem certo que todo o juízo qualifica a
realidade sob certas limitações ou condições; mas, dado que estas limitações
ou condições qualificaria, por seu

turno, a própria realidade, a contradição não é eliminada mas apenas


multiplicada (Essays, p, 229).
O facto de todo o mundo da experiência e do pensamento ser aparência não
significa que se possa admitir uma realidade em si para além dele mesmo.

Toda a realidade era si não poderia ser senão o termo de uma experiência ou de
um acto lógico e

cairia por isso nas mesmas dificuldades fundamentais.

Todavia, esta mesma condenação radical implica, segundo Bradley, a posse de um


critério absoluto de verdade. Se rejeitarmos como aparente o que é
contraditório, consideramos implicitamente como real o que é isento de
contradições e, portanto, absolutamente consistente e válido. A ausência de
contradição implica um carácter positivo e não deve ser uma pura abstracção.
As aparências devem pertencer à realidade porque o que parece de algum modo
existe, quanto mais não seja como aparência. A realidade que o critério da não
contradição nos faz entrever deve portanto conter em si todo o mundo
fenoménico de forma coerente e harmoniosa. Além
55

disso, não pode ser outra coisa senão consciência porque só a consciência é
real. Ao mesmo tempo, esta consciência universal, absoluta e perfeitamente
coerente, não pode ser determinada mediante nenhum dos aspectos da consciência
finita (sensação, pensamento, vontade, etc.), porque tais aspectos são
contraditórios. Por outro lado, não deve conter a divisão entre objecto e
sujeito que é própria da consciência finita. Todas estas determinações
negativas implicam a impossibilidade de um conhecimento pormenorizado da
consciência absoluta. Pode-se ter dela uma ideia abstracta e incompleta,
embora verdadeira: mas não se pode reconstruir a

experiência especifica em que ela realiza a sua perfeita harmonia. Tão-pouco a


moralidade pode ser

atribuída ao absoluto. Pode-se supor que neste cada coisa finita atinja a
perfeição que busca; mas não que obtenha a perfeição que busca. No absoluto, o

finito deve ser mais ou menos transmudado e, portanto, desaparecer como


finito; e tal é também o destino do bem. Os fins que a afirmação e o
sacrifício do eu podem atingir estão para lá do eu e do significado dos actos
morais. No absoluto, onde nada se pode perder, todas as coisas perdem o seu
carácter mediante uma nova acomodação ou um complemento mais ou menos radical.
Nem o bem nem o mal se subtraem a este destino (Appearance, p. 420). Assim
entram, certamente, no absoluto o espaço, o tempo, a individualidade, a
natureza, o corpo, a alma; mas tudo entra nele, não com a sua constituição
finita, mas com uma reconstituição radical, cujas características é-
impossível determinar com precisão. No abso-
56

luto tão-pouco pode subsistir a diversidade entre o sujeito e o objecto, que é


inerente a todo o pensamento finito, o qual é sempre pensamento de algo ou
acerca de algo, e implica portanto uma relação interna que o tome
contraditório. O absoluto não pode ser concebido como alma ou como complexo de
almas, porque isto implicaria que os centros finitos de experiência se
mantivessem e fossem respeitados dentro do absoluto: e esse não é o destino
final e último das coisas. Não conhece progressos nem retrocessos. Estes são
aspectos parciais, próprios da aparência temporal e têm apenas uma verdade
relativa. "0 absoluto não tem história, embora contenha inúmeras histórias"
(Ib., p. 500). Nem é pessoa, uma vez que uma pessoa que não seja finita é algo
sem sentido (Ib., p. 532).

Desta doutrina substancialmente negativa do absoluto não deduz Bradley que o


conhecimento humano seja totalmente erróneo. Se este conhecimento não alcança
nunca a verdade, que seria a sua perfeita conversão e total conformidade com o
absoluto, pode no entanto atingir diversos graus de verdade. De duas
aparências, a mais vasta e mais harmoniosa é a mais real, porque se aproxima
mais da verdade omnicompreensiva e total. A verdade e o facto de requererem,
para se converterem no absoluto, uma acomodação e uma adição menor, são mais
verdadeiros e

reais. O argumento ontológico pode ser interpretado como uma ilustração desta
doutrina dos graus de verdade. Decerto que se deve reconhecer que desde o
momento em que a realidade é qualificada como pensamento, deve possuir todas
as características im-
57
plícitas na essência do pensamento. No entanto, a
prova ontológica vai além deste princípio genérico quando afirma não só que a
ideia deve ser real mas também que deve ser real como ideia. isto é falso,
segundo Bradley, dado que um predicado como tal nunca é realmente verdadeiro:
deve estar sujeito, para o ser, a adições e a acomodações. Assim, toda a ideia
existente na minha mente pode qualificar verdadeiramente a realidade absoluta;
mas quando a

falsa abstracção do meu particular ponto de vista for corrigida e ampliada,


essa ideia pode ter desaparecido completamente. Por isso, nem toda a ideia
será verdadeiramente real; contudo, quanto maior é a perfeição de um
pensamento, a sua possibilidade e a sua interna necessidade, tanto maior será
a realidade que ele possui. A esta exigência nem mesmo

a ideia do absoluto se subtrai, já que toda a ideia, por muito verdadeira que
seja, nunca inclui a totalidade das condições requeridas e é por isso sempre
abstracta, enquanto que a realidade é concreta.

Bradley renovou assim a tese hegeliana da identidade entre o finito e o


infinito, mas renovou-a com o espírito de um cepticismo radical que se recusa

a determinar, seja de que maneira for, as vias e as formas de uma tal


identidade. O processo do pensamento que para Hegel é uma dialéctica que
demonstra efectivamente tal identidade, é, para Bradley ao invés, a
confirmação da natureza contraditória do finito e, portanto, da exigência da
sua transmutação total no infinito. Bradley admite, na verdade, diversos graus
de verdade e de realidade; mas, ao mesmo tempo entre os graus mais altos e o
absoluto

58

abre um fosso intransponível, uma vez que tudo no absoluto deve ser
transformado e reajustado até nos seus mais íntimos elementos (Appearance, p.
529). A identidade do finito e do infinito, que levara Hegel a demonstrar a
intrínseca racionalidade do finito e a aceitá-la como infinito, levou Bradley
a

negar a realidade finita como tal e a exigir a sua transmutação no infinito.

§ 705. DESENVOLVIMENTO DO IDEALISMO INGLÊS

Creen e Bradley inspiraram numerosos pensadores ingleses que apresentam de


maneira diversa a doutrina de uma consciência infinita na qual encontra a sua
última realidade o mundo finito.

Alfredo Eduardo Taylor (1869-1945), tão conhecido pelos seus estudos sobre
Platão (1926) e sobre a filosofia grega, numa obra que obteve muito êxito na
Inglaterra, Elementos de metafísica (1903), tenta preencher com algum conteúdo
concreto a ideia do absoluto que na doutrina de Bradley era uma pura forma
vazia, indeterminável. Entende o absoluto como uma sociedade de indivíduos que
estivessem teleologicamente ordenados à unidade do conjunto. Uma sociedade
humana, em sentido próprio, é de facto uma unidade de estrutura finalista, que
não o é apenas para o observador sociólogo, mas também para os seus membros, a
cada um dos quais activamente atribui um lugar em relação a todos os outros.
Embora o eu e a sociedade não sejam
59

n**xak'@b que aparências finitais, Taylor crê que o predomínio da categoria da


cooperação na vida humana tornará ~Ivel considerar o absoluto como uma
sociedade espiritual. Frente a estas determinações mais positivas da natureza
está o ponto de vista negativo de H. H. Joachim, que se atém às teses de
Bradley (A natureza da verdade, 1906; Estudos lógicos, 1948) e as utiliza como
critério para uma crítica da unida-de da substância ---spinosiana (Estudo
sobre a ética de Espinosa, 1911).

Mais próximo do hegelianismo original encontra-se Bernardo Bosanquet (1848-


1923), o qual, no entanto, renovou por sua conta os princípios da lógica de
Bradley (Lógica ou morfologia do conhecimento, 2 vol., 1888) e é autor de uma
História da estética (1892). No Princípio da individualidade e do valor (1911)
viu na contradição lógica uma experiência vivida, análoga à dor e à
insatisfação -e considerou-a como o motor de todo o progresso espiritual. Isto
significa que a negatividade não é uma imperfeição da experiência humana,
destinada a desvanecer-se, mas uma característica fundamental da realidade
mesma. De facto, quando se resolve uma contradição, resta sempre a
negatividade, a qual, impelindo continuamente todo o ser para além de si
mesmo, é a própria lei da vida. A contradição é uma negação não conseguida ou
obstruída; a negatividade é uma contradição vitoriosa e resolvida. A exigência
necessária da negatividade leva Bosanquet a negar a identidade entre natureza
e espírito. A função da natureza é a de ser um objecto para a subjectividade
espiritual, o correlato exterior do espí-
60

rito finito. É somente pela existência da natureza que os espíritos finitos


adquirem a sua consistência e se tornam a cúpula viva entre a natureza e o
absoluto. O reconhecimento da negatividade elimina, segundo Bosanquet, todas
as dificuldades do conceito de absoluto. A prova positiva a seu favor apoia-
se, logicamente, no principio de contradição, entendido do modo concreto a que
nos referimos. Quando o processo pelo qual a contradição é normalmente
removida nas questões humanas é considerado absolutamente válido, pode-se ver
nele uma unidade perfeita, na qual as contradições são completamente
destruídas, embora permaneça a diversidade ou o aspecto negativo. Com a
solução das contradições, a experiência humana transmuda-se radical. mente na
vida quotidiana; pode-se entender portanto a sua total transmutação no
absoluto. Neste está eternamente e perfeitamente realizado aquele processo de
unificação lógica que na vida humana é progressivo e gradual.

§ 706. MCTAGGART

A nova orientação do idealismo, devida aos pensadores que acabámos de


examinar, implica uma divisão radical do significado e da importância que
Hegel atribuíra à dialéctica; e tal revisão é obra de John McTaggart (1866-
1925), autor de Estudos sobre a dialéctica hegeliana (1896), de Estudos sobre
a cosmologia hegeliana (1901), de um Comentário à lógica de Hegel (1910) e de
uma obra em dois volumes, A natureza da existência (1921-27). Na primeira das
suas

61

~s McTaggart mostrou que a lei da dialéctica hegeliana não se mantém


inalterada desde o princípio até ao fim do seu processo. Nas primeiras
categorias da lógica (a do ser) a passagem da tese à antítese não é a
transição a uma fase superior e complementar, e a síntese é uma consequência
da tese e da antítese conjuntas. Mas nas categorias da essência, a antítese é,
ao invés, complementar da tese, é mais concreta e verdadeira do que ela e

representa um progresso; a antítese já não resulta do confronto entre tese e


antítese mas procede unicamente desta última. Finalmente, nas categorias do
conceito, os momentos já não se opõem um ao outro, de maneira que a antítese
não é uma antítese real e cada termo é um progresso em relação ao outro. Isto
demonstra, segundo McTaggart, que a mola real do procedimento hegeliano não é
a contradição (como o próprio Hegel afirmou) mas a discrepância entre a ideia
perfeita e concreta que está implícita na consciência e a ideia abstracta e
imperfeita que se tornou explícita. A característica do processo dialéctico é
a busca, por parte do momento abstracto ou imperfeito da consciência, não da
sua negação como tal, mas do seu complemento. A dialéctica não constitui a
verdade, uma vez que o processo da verdade excluiria a dialéctica mesma. Isto
levou MeTaggart a impugnar o principio fundamental de Hegel: a racionalidade
de real. A realidade, não se pode revelar ao homem na sua perfeita
racionalidade, já que implica sempre, e não outra coisa, a contingência dos
dados sensíVeis, sem os quais as categorias da razão ficam Vazias, e a
insatisfação dos nossos desejos, que não

62

poderia existir num universo perfeito. O processo dialéctico revela esta


imperfeição porque, enquanto existe, não há perfeição, já que o processo tende
a uma síntese que está longe de verificar-se. Mas se

o processo dialéctico pertence ao espírito finito que vive no tempo e se


aproxima gradualmente do futuro, isso coloca o absoluto no futuro do próprio
processo, isto é, no último estádio de uma série em que os outros estádios se
apresentam como temporais. A ideia eterna e infinita encontra-se, pois, no
termo

do processo temporal e é qualificada, não pela determinação da


contemporaneidade e do presente, mas pela do futuro. O absoluto não é um
eterno presente segundo a concepção clássica, que o hegelianismo primitivo e o
próprio idealismo inglês haviam admitido, mas é antes o termo do futuro. O
tempo urge para a eternidade e cessa na eternidade. Isto torna possível a
esperança no triunfo final do bem no mundo.

Além disso, analogamente a Taylor, MeTaggart admite uma concepção pluralista e


sociológica do absoluto. Crê, de facto que o eu finito é o elemento último e
irredutível da realidade. A natureza do eu é paradoxal: por um lado, nada
existe fora do eu porque tudo é objecto do seu conhecimento; por outro lado, o
eu distingue-se enquanto conhece tudo o que conhece e pressupõe por isso que
tudo o que conhece está fora dele. Assim, o eu inclui e exclui ao mesmo tempo
aquilo de que é consciente (Studies in Hegelian Cosmology, p. 23). Não existe
outra explicação possível desta natureza paradoxal senão a de que o eu é a
absoluta realidade, a necessária

63

diferenciação do Absoluto. Os eus são, portanto, eternos e o Absoluto não é


mais do que a unidade destes eus: uma unidade que é tão real como as suas
diferenciações e como a própria unidade do ou finito, tal como este se
manifesta -imperfeitamente neste mundo imperfeito. Como unidade de um sistema
de eu, o absoluto não pode ser entendido como pessoa ou eu, e, portanto, não
pode ser qualificado como
Deus. Para entender em que consiste a sua unidade, McTaggart examina os vários
aspectos da experiência humana. Exclui que a unidade sistemática do absoluto
possa ser concebida como uma unidade de conhecimento: o conhecimento
verdadeiro, sendo uniforme em todos os eus, não explica a sua diferenciação
originária. Pelo mesmo motivo, o absoluto não pode ser vontade porque a
vontade perfeita, como satisfação perfeita, é uniforme e não explica a
diferenciação. Resta então a emoção. Se o perfeito conhecimento e a perfeita
satisfação são idênticos em todos os eus, não há razão para supor que o
perfeito amor

não seja, em troca, diferente em cada eu e não seja, portanto, a base -da
diferenciação requerida pelo absoluto. O conteúdo da vida do absoluto não pode
ser, portanto, senão o amor: não a benevolência, nem o amor da verdade, da
virtude ou da beleza, nem o desejo sexual, mas "o amor apaixonado que tudo
absorve e tudo consome" (Ib., p. 260). Só o amor supera a dualidade e
estabelece um equilíbrio completo entre o sujeito e o objecto. Enquanto o
conhecimento deixa sempre fora de si o objecto conhecido

e a volição nunca se satisfaz inteiramente porque o

objecto da satisfação lhe é estranho, o amor identifica

64

completamente objecto e sujeito. O amor não é uni

dever ou uma imposição, mas uma harmonia em que as duas partes têm iguais
direitos. Não se ama uma

pessoa pelas suas qualidades, mas é antes a atitude perante as suas qualidades
que é determinada pelo facto de elas lhe pertencerem. Ademais, o amor

justifica-se por si mesmo. E o ponto mais próximo do absoluto que o homem pode
alcançar é precisamente um amor de que não se pode dar outra razão que não
seja o facto de duas pessoas pertencerem uma

à outra (Ib., p. 278 sgs.).

Na sua última obra, A natureza da existência (1921-27) McTaggart expôs de novo


em forma sistemática as conclusões a que chegara através da crítica da
doutrina de Hegel. O primeiro volume desta obra examina as características
gerais da' existência: não da existência enquanto pensada, isto é, do
conhecimento ou do pensamento, mas de toda a existência em geral, e, portanto
também do conhecimento, do pensamento e da crença que, como tais, são
igualmente existências. McTaggart declara que deste modo se vincula a um
idealismo ontológico, cujos representantes são Berkeley, Leibniz e Hegel.
O método de que se serve na descrição da existência em geral é o a priori; mas
em dois pontos McTaggart, apela para a experiência: para provar que algo
existe e para provar que o que existe é diferenciado. Fora destes dois pontos,
o seu procedimento é a priori, e é dialéctico no sentido que ele mesmo admitiu
como próprio desta palavra, ou seja, não no sentido de negatividade e de
contradição, mas no de um procedimento racional, necessário e progressivo. A
di-
65

ferenciação da existência implica que ela tenha qualidades, as quais terão,


por seu turno, outras qualidades e assim sucessivamente; no início da série
deverá haver algo existente que tenha qualidades

sem ser qualidade: e isso será a substância. É indubitável que a substância


não é nada fora das suas qualidades-, mas isto não quer dizer que ela não seja
algo em conjunção com elas. A substância é diferenciada, isto é,
verdadeiramente unia pluralidade, de substâncias, entre as quais devem existir
relações. A relação é uma determinação última e indefinível, como a qualidade;
e gera, por seu turno, qualidades, porque os termos relativos adquirem, como
tais, novas qualidades. Cada substância tem a sua própria natureza e pode ser
individualizada nesta natureza por uma descrição suficiente. Os grupos de
substâncias são infinitos, porque cada grupo pode ser assumido como membro de
si próprio; e a substância que compreende todas as outras como partes suas é o
universo. O universo é caracterizado intrinsecamente pela posse de diversas
substâncias, de modo que, se uma destas fosse diferente, o próprio universo na
sua totalidade seria diferente. Toda a substância é infinitamente divisível,
isto é, tem partes dentro de partes até ao infinito. Para explicar a relação
entre -uma substância e as suas partes e entre as várias substâncias,
MeTaggart introduz o conceito da correspondência determinante. É uma forma de
correspondência tal que, se se verifica entre uma substância C e a parte de
uma substância B, uma descrição suficiente de C, que inclua a sua relação com
a parte de B, determina intrinsecamente uma descrição suficiente desta

66

parte de B e de cada membro do grupo B-C, assim como de cada membro de uma
parte de tais membros, e assim sucessivamente até ao infinito. A
correspondência determinante é uma relação causal, que estabelece e funda a
ordem do universo. A sua natureza é esclarecida pela aplicação que MeTaggart
faz Ma no segundo volume da sua obra: é a percepção imediata que um eu tem de
outro eu.

De facto, depois de ter descrito as características da existência, MeTaggart


procede (no segundo volume) à determinação dos aspectos do Universo que devem
ser considerados reais. Declara irreais o tempo, a matéria, a sensação e toda
a forma de pensamento (incluídos o juízo e a imaginação) que não seja
percepção. A razão disto está em que nenhum destes aspectos da realidade se
presta a ser determinado pela correspondência determinante e, portanto, todos
devem ser considerados inconsistentes e contraditórios. A percepção, como
consciência imediata da substância, ou seja, do eu, é, em troca, perfeitamente
definida pela correspondência determinante. De facto, um eu que percebe o
outro eu tem ao mesmo tempo a percepção de si próprio e do outro e a percepção
destas percepções, e assim sucessivamente até ao infinito. De sorte que uma
descrição suficiente da percepção de um deles implicará a suficiente descrição
até ao infinito de partes desta percepção. Por outros termos, estabelecer-se-á
entre as duas substâncias um sistema inexaurível de relações ao mesmo tempo
racionalmente inteligíveis e imediatamente vividas. E, de facto, a percepção
de que fala McTaggart não é nem volição nem pensamento, mas emoção e pre-
67

cisamente emoção de amor. O resultado das análises deste filósofo, em que o


princípio idealista se alia curiosamente a um método de análise que se
assemelha muito ao da lógica' matemática e ao critério objectivista do
realismo contemporâneo, é o reconhecimento de um universo formado de centros
espirituais, de eus, que uma forma de experiência imediata (a percepção
emotiva ou amor) unifica num sistema dialecticamente organizado. McTaggart
conclui a sua obra com a esperança que já havia formulado nas suas análises
hegelianas, a saber: dado que se deve entender o absoluto não como presente
mas como futuro, ele deverá realizar-se como um bem infinito após um período
finito, embora longuíssimo, de tempo; e deverá realizar-se como estado de amor
perfeito, comparado com o qual até o mais alto arroubo místico não é mais do
que uma tentativa aproximativa e longínqua. Para MeTaggart, o passado e o

presente, são manifestações imperfeitas e preparatórias do futuro. Isto é, sem


dúvida, uma repetição do conceito de Fichte e de Schelling do progresso
necessário da história, com a diferença, porém, de que o

progresso não é até ao infinito, mas tende para um

termo que será alcançado após um período muito longo, mas finito, de tempo.

§ 707. ROYCE

Na América o primeiro representante do neo-idealismo é William Torrey Harris


(1835-1909), autor de uma exposição crítica da Lógica de Hegel

68

(1890), assim como de uma Introdução ao estudo da filosofia (1890) e de um


ensaio sobre, Dante (0 sentido espiritual da "Divina Comédia", 1889), O
interesse de Harris é fundamentalmente religioso. Admite três estádios do
conhecimento: o que considera o

objecto, o que considera as relações entre os objectos e o, que considera as


relações infinitas e necessárias da existência dos objectos. Este terceiro
estádio é preparatório do conhecimento teológico e, portanto, da religião,
porque descobre a actividade autónoma e infinita que sustenta todas as coisas.

A maior figura do (dranscendentalismo" americano e o que mais contribuiu para


a difusão do idealismo de tipo anglo-saxónico foi Jostah Royce (1885-1916). Os
escritos principais de Royce são os seguintes: O aspecto religioso da
filosofia, 1885; O espírito da filosofia moderna, 1892; A concepção de Deus,
1895; Estudos sobre o bem e sobre o mal,
1898; O mundo e o indivíduo, 2 vol., 1900-1901; A concepção da imortalidade,
1904; A posição actual do problema da religião natural, 1901-02; Apontamentos
de psicologia, 1903; Herbert Spencer, 1904; A relação dos princípios da lógica
como os fundamentos da geometria, 1905; A filosofia da fidelidade,
1908; W. James e outros ensaios de filosofia da vida,
1911; As fontes da intuição religiosa, 1912; Princípios da lógica, 1913; O
problema do cristianismo, -1913; Conferências sobre o idealismo moderno, 1919;
Ensaios fugitivos, 1920. Entre estes escritos, O mundo e

o indivíduo e O problema do cristianismo são os que exprimem as fases


principais do pensamento de Royce.

,69

O ponto de partida de Royce é a distinção entre o significado exterior e o


significado interno da ideia.
O significado externo da ideia é a sua referência a uma realidade exterior e
diversa; o significado interno é, ao invés, constituído pelo fim que a ideia
se propõe, enquanto não é apenas imagem de uma coisa, mas também a consciência
do modo como nos propomos actuar sobre a coisa que representa. -Royce procura
reduzir o significado externo ao significado interno. Crê-se, de ordinário,
que a ideia é verdadeira quando corresponde ao objecto real; mas o objecto
real, que pode servir como medida da verdade da ideia, é só aquele a que a
ideia mesma se refere, isto é, o designado pelo significado interno dela. Não
existe um critério de verdade puramente externo: as ideias são como os
instrumentos, existem para um fim: são verdadeiras, como os instrumentos são
bons, quando convêm para tal fim. Por consequência, unia ideia não é um
simples processo intelectual, mas também um processo volitivo; e é
indispensável ter em conta o fim para o qual a ideia tende para ajuizar da
validade da ideia. Isto implica que a ideia tende sempre a encontrar no seu
objecto o seu próprio fim, incorporado de um modo mais determinado do que
aquele em que ela o tem por si mesma. Por conseguinte, ao procurar o seu
objecto, uma ideia não procura outra coisa senão a própria determinação
explícita e, finalmente, completa. O único objecto em relação ao qual se pode
medir a verdade da ideia não é portanto outro senão a completa realização do
fim implícito na própria ideia. Neste

70

sentido, Royce diz que a ideia é -uma vontade que busca a sua própria
determinação. Mesmo as ideias expressas como hipóteses ou definições
universais

ou como juízos de tipo hipotético ou -matemático, não fazem mais do que


destruir certas possibilidades e implicar a determinação do seu objectivo
final mediante determinadas negações.

O limite ou a meta deste processo de determinação crescente é um juízo em que


a vontade exprime a sua determinação final. Mas este juízo não pode ser senão
o acto de uma Consciência que conclua e complete o que o sujeito finito a cada
momento se propõe conhecer. Todo o mundo da verdade e do ser deve estar
presente numa Consciência singular, que compreende todos os intelectos finitos
numa única visão intuitiva eternamente presente. Esta consciência não é só
temporal, mas implica também uma visão compreensiva da totalidade do tempo e
do que este significa, Daí o título da obra principal de Royce: o mundo é uma
totalidade individual, na qual todos os fragmentos da experiência encontram o
seu complemento e a sua perfeição; é Deus mesmo. No absoluto encontram lugar a
ignorância, o esforço, o desaire, o erro, a temporalidade, a limitação-, mas
também têm aí lugar a solução dos problemas, a consecução dos fins, a
superação dos defeitos, a correcção dos erros, a

concentração do tempo na eternidade, a integração do que é fragmentário.


Sobretudo, o indivíduo que procede moralmente encontra em Deus o cumprimento
total da sua boa vontade: pode ser concebido como uma parte que é igual ao
todo, e precisamente

71

por ser igual, unida no todo dentro do qual habita. Toda a consciência finita
se dilata assim no absoluto até se identificar com ele, mas esta identificação
não implica o anulamento da individualidade mas antes o seu complemento, a
realização de uma

individualidade inteiramente determinada e perfeita. Royce afirma


energicamente a exigência da conservação das individualidades no absoluto; e
para tornar inteligível esta conservação, assim como para obviar às
dificuldades que Bradley opusera a todas as determinações do absoluto, recorre
à teoria dos números.

O longo "Ensaio complementar" acrescentado ao primeiro volume da sua obra


principal é talvez a

parte mais interessante da obra de Royce. Recorre à teoria dos números como
havia sido elaborada por Cantor e por Dedekind: o número é um sistema auto-
representativo, um sistema cujas partes representam o todo, no sentido de que
têm, por seu

turno, elementos que correspondem. termo a termo aos elementos do todo. Royce
esclarece por sua

conta este conceito como o exemplo de um mapa geográfico idealmente perfeito


que deve, para o ser, conter tanto a ubicação como os contornos da sua própria
posição: de modo que acabará por conter mapas dentro de mapas até ao infinito.
Os sistemas auto-representativos são, por outros termos, os sistemas que
contêm infinitas partes semelhantes ao

todo; e a Consciência absoluta seria um sistema auto-representativo deste


género no sentido de que, compreendendo em si a totalidade dos espíritos
individuais, implicaria precisamente uma série ou cadeia

72

de imagens próprias, um sistema de partes dentro de partes até ao infinito.


Uma concepção semelhante do infinito já não está sujeita às dificuldades que
Bradley apresentara. A infinita subdivisão a que dá lugar, segundo Bradley,
toda a relação, logo que é considerada analiticamente, e que era para ele o

sinal da natureza contraditória e irracional da contradição (isto é, de todo o


mundo da experiência humana) já não é tal quando se considera até ao infinito
um sistema auto-representativo cuja natureza é definida precisamente por uma
cadeia infinIta de partes semelhantes. A proposição fundamental da lógica do
ser: "tudo o que existe faz parte de um sistema que se representa a si mesmo"
permite, segundo Royce, conceber a verdadeira união do uno e do múltiplo. Há
uma multiplicidade que não é absorvida e transmudada mas sim conservada no
absoluto, e é a multiplicidade dos indivíduos que se unificam no absoluto. O
absoluto, o universo, é neste sentido, um sistema auto-representativo que,
como sujeito-objecto, implica uma imagem ou concepção completa ou perfeita de
si. É uno pela sua estrutura, porque é um sistema individual; mas, ao mesmo
tempo, é infinito, porquanto é uma cadeia de fins conseguidos. A sua forma é,
pois, a de um eu, que se multiplica nas imagens, por sua vez infinitas, que o
absoluto determina por si mesmo nos eus individuais.

Esta doutrina do absoluto marca a primeira fase do pensamento de Royce. A


segunda fase, caracterizada por uma tentativa diferente, a de determinar a
natureza intrínseca do absoluto, aparece pela

73

primeira vez na Filosofia da fidelidade (1908) e

encontra a sua melhor expressão no Problema do cristianismo (1913). Na


primeira fase, Royce havia encontrado na teoria dos números de Cantor e
Dedckind o instrumento daquela determinação; na segunda fase encontra esse
instrumento na doutrina de Peirce (§ 750), que pusera em relevo o significado

e a importância do processo da interpretação considerado como o terceiro e


superior processo cognitivo, juntamente com a percepção e o pensamento. A
consideração deste processo é necessária, segundo Royce, quando se trata de
objectos que não podem ser assimilados nem à percepção nem ao

conceito. É evidente, por exemplo, que "o espírito do nosso próximo" não é um
dado sensível nenhuma noção universal e que deve ser objecto de uma

terceira forma de conhecimento, que é precisamente a interpretação. A


interpretação é uma relação triádica, na qual alguém, isto é, o intérprete,
interpreta algo para alguém. Supõe uma ordem determinada destes três termos,
porque se a ordem muda, muda o próprio sentido da interpretação. A relação
interpretativa pode verificar-se também na interioridade de uma única pessoa,
e também neste caso existem três termos: o homem do passado, cujos desejos e
recordações são interpretados; o eu presente, que interpreta tudo isto, e o eu
futuro, para o qual esta interpretação é dirigida. A interpretação tem por
objecto sinais, do mesmo modo que a percepção tem por objecto coisas e o
conceito universal.

74

A tese de Royce é a de que o universo é constituído por sinais reais e pela


sua interpretação; e

que o processo da interpretação tende a fazer do universo uma comunidade


espiritual. Uma interpretação é real, se for real a comunidade que ela
exprime, e só é verdadeira se a comunidade alcança o seu objectivo através
dela. Toda a filosofia é, inevitavelmente, uma doutrina que nos aconselha a
proceder como se o mundo tivesse certas características. Mas, contrariamente
ao que Vaihinger afirma (§ 753), Royce crê que o como se não é apenas uma
ficção ou um sistema de ficções, senão que pode justificar uma única atitude
frente ao mundo: a que tende a considerar praticamente real um reino do
espírito, uma comunidade universal e divina, e reconhece claramente que é
impossível ao indivíduo salvar-se por si só, do ponto de vista prático: e que
também é impossível, do ponto de vista teorético, que ele encontre por si só a
verdade no âmbito da sua experiência privada, sem ter em conta a

velação que o liga à comunidade. Tal é, segundo Royce, a atitude própria do


cristianismo e, em particular, do cristianismo paulino, que vê o reino dos
céus realizado na igreja, isto é, na comunhão dos fiéis. O amor cristão
assume, na pregação de S. Paulo, a forma da fidelidade à comunidade: e a
fidelidade à comunidade exprime a natureza mesma da vida moral.

De facto, na Filosofia da Fidelidade, Royce vê o fundamento da moralidade na


fidelidade a uma tarefa, a uma missão livremente escolhida: tarefa ou missão
que inclui sempre a solidariedade com os

75

outros indivíduos, ou melhor, com uma comunidade de indivíduos. A fidelidade


é, também, o, critério que permite medir o valor das tarefas humanas, já que é
evidentemente má uma tarefa que toma impossível ou nega a fidelidade aos
demais. A fidelidade à fidelidade é, portanto, o critério supremo da vida
moral.
Os últimos escritos de Royce tratam de delinear o que ele chamava de "Grande
Comunidade": uma

comunidade que é real não porque se encontre historicamente realizada, mas por
ser o eterno fundamento da ordem moral. Todavia, quis sugerir também um meio
prático para a realização desta grande comunidade, e viu tal meio num sistema
de seguros. Com efeito, o seguro é uma associação fundada no princípio
triádico da interpretação: o seguro, o segurador e o beneficiado, e nela os
obstáculos à associação transformam-se numa ajuda à associação mesma (A
esperança da grande comunidade, 1916). Royce sugeriu também o seguro contra a
guerra (Guerra e seguro, 1914). Mas esta curiosa mescla de negócios e de
moralismo cristão não nos deve impedir de considerar um dos espíritos mais
abertos e geniais do idealismo contemporâneo. Afinal de contas, se o infinito
é a imagem ou a reprodução do infinito, também os negócios em geral, e

os seguros em particular, podem servir como instrumentos de manifestação ou de


realização do infinito. E o sistema de seguros, a que Royce aconselhava
recorrer, é certamente um progresso em relação ao esta-do prussiano, ao qual o
seu mestre Hegel

76

pretendia confiar a total realização da Ideia infinita do mundo.

§ 708. OUTRAS MANIFESTAÇõES DO IDEALISMO INGLÊS E NORTE - AMERICANO

Numa discussão pública efectuada em 1885, entre Royce e outros filósofos na


Universidade da Califórnia, G. H. Howison (1834-1916) reprovou a Royce o
anular no eu infinito a personalidade finita do homem e a do próprio Deus. Ao
idealismo monista de Royce, Howison contrapunha um idealismo pluralista,
segundo o qual a realidade é, nas suas diversas ordens, uma sociedade de
espíritos eternos, em que os membros encontram a sua igualdade na tarefa comum
de alcançar o único ideal racional, que é Deus mesmo (A concepção de Deus,
1897). A uma preocupação análoga obedecia em

Inglaterra J. H. Muirhead (Os, elementos da ética,


1892; Filosofia e vida, 1902-, Objectivos sociais, 1918) que, no entanto, via
a salvação da autoconsciência finita na necessária presença daquela negação
dialéctica, na qual já Bosanquet havia insistido.

As teses gerais do idealismo foram mais tarde apresentadas na América por


James Greighton (1861-1924); (Estudos de filosofia especulativa, 1925) e por
Mary Whiton Calkins, que se vincula directamente à especulação de Royce; e em
Inglaterra por David George Richte (1853-1903) e por John Stuart Mackenzie
(1860-1935) em (Apontamentos de metafísica, 1902; Leituras sobre o humanismo,
1907;

77

Elementos de filosofia construtiva; Valores Últimos,


1924).

Ocupam um lugar intermédio entre o idealismo

e o espiritualismo Simão Somerville Laurie (1829-1909) e o americano William


Ernest Hocking. O primeiro desenvolveu numa série de obras (Metafísica nova e
velha, 1884-, Ética, 1885; Sintética,
1906) um "realismo natural", que é, na realidade, um idealismo, e distingue
vários planos de realização do absoluto, considerando o absoluto mesmo
imanente em todos e cada um dos planos particulares. A distinção dos planos de
realidade serve a

Laurie para reivindicar a autonomia do indivíduo. No indivíduo, o absoluto


mesmo afirma o seu ser, dando-lhe um carácter específico e um conteúdo a
afirmar e fazendo-o subsistir no seu pleno direito: na sua função de negação,
que recebe do absoluto, o indivíduo é capaz de resistir ao próprio absoluto
(Synthetica, 11, p. 75). Segundo Hocking, em troca, Deus é conhecido
directamente pelo homem, na própria experiência sensível. Esta tem um

único conteúdo dos diversos indivíduos e deve ter um único cognoscente, que é
Deus mesmo; o qual é, portanto, o conhecedor universal, implícito em

todo o conhecimento objectivo. De modo que os

homens conhecem as outras coisas ou os outros espíritos só porque conhecem


Deus: o conhecimento de Deus fornece, de facto, a noção da experiência social,
sem cuja posse prévia o reconhecimento dos eus humanos não seria possível.
Tão-pouco a ideia de Deus, pressuposta pela experiência sensível e

pela experiência social, pode ser uma mera ideia e

78

não implicar a sua própria existência, já que, como

simples ideia, não poderia oferecer o critério para ser reconhecida como tal,
de modo que nem mesmo

a ideia da experiência social seria possível se tal experiência não fosse real
(0 significado de Deus na experiência humana, 1912; O eu, o seu corpo e a sua
liberdade, 1928; Tipos de filosofia, 1929; Pensamentos sobre a morte e sobre a
vida, 1937; A ciência e a ideia de Deus, 1944).

Uma visão mais próxima do idealismo italiano é a do norte-americano George P.


Adams, que afirma a independência da actividade espiritual do conteúdo da
consciência e vê precisamente em tal actividade o princípio criador da
realidade. A actividade espiritual não pode certamente ser considerada como um
objecto sujeito ao domínio geral da experiência e não pode ser descrito como
uma forma

ou uma relação objectiva. Mas pode ser reconhecida e conhece-se nos produtos
da sua criação: nos valores éticos, religiosos e sociais e no mundo da
história (0 idealismo e a idade moderna, 1918). Uma opinião análoga sobre a
actividade espiritual encontra-se na obra do inglês Richard Burdon Haldane
(1857-1928) que se valeu do principio da relatividade do conhecimento para
determinar a natureza do absoluto (0 reino da relatividade, 1921; outras obras
suas: O caminho da realidade, 2 vol. 1903-04; A filosofia do humanismo, 1922).
O princípio da relatividade implica que o significado da realidade não é o
mesmo em todos os graus em que ela se divide, e que só pode ser expresso em
cada grau nos termos que lhe são peculiares. De acordo com isto, Deus

79

ph41. of T. H. G., Londres, 1896; A. E. TAILOR, The Problem of Conduct,


Londres, 1901, p. 50-88; H. SIDGWICK, Lectures on the Ethic8 of T. H. Green,
M. H. Sp~er and J. Martineau, Londres, 1902; P. L. NETTLESHIP, Memoir of T. H.
G., Londres, 1906. ,Sobre Eduarido Caird: H. JONES,e J. H. MUIRHEAD, The Life
and Phil. of E. C., Glasgow, 1921.

§ 704. De BrAdley, lista dos -escritos menores em ABBAGNANO, op. cit., p. 265.

Sobre Bradley: STRANGE, in "Mind", N. S., 1911; BROAD, ibid., 1915; DE ;SARLO,
Filosofia del tempo nostro, Florença, 1916, p. 115-56; TAYLOR, WARD, STOUT,
DAWES, MCKS, MUIRHEAD, SCHILLER, in ",3"d", 1925; E. DuPRAT, Bradley, París;
R. W. CHuRcff, B.s, Nova Iorque, 1942; W. F. LOFTHOUsE, F. H. B., Londres,
1949.

§ 705. Sobre Bosanquet: H. BOSANQUET, B. B., Londres, 1924; MUIRIlEAD, in


"Mind", N. S., 1923; ID, in "Journal Gf Plúl.", 1923, n., 25; HOERLE, ibid,
1923, n., 18; F. HOUANG, Le néo-hegelianisme en Angleterre. La philosophie de
B. B., Paris, 1954.

§ 706. Sobre MeTaggart: F. C. S. ScHiLLER, in "Mind", N. S., 1895; WATSON, in


"Philosophical ReVi,eW", 1895; MCGILVARY, in "Mind", N.S., 1898; BROAD in
"Mind", 1921; C. D. BROAD, Examination of Me. T's Philosophy, 2 vol.
Cambrtdge, 1934-38.

§ 707. Sobre ROYCE: o número que lhe dedicou a "Ph~ophical Review", 1916, 111,
com colaboração de HOWISON, DEWEY, CALKINS, ADAMS, BARON, SPAULDING, COHEN,
CABOT, HORNE, HOCKING, RAND. ALGRATI, Un pensatore americano: J.R., Milão,
1917; TEDESCH, in "Giorn. critico della fil. italiana", 1926; ALBEGGIANI, II
@@i&tema filosofico di J.R., Palermo, 1929; 1-1. G. TOWSEND, Philosophical
Ideas in the United States, Nova lorque, 1934, cap. I; R. B. PERRY, In the
Spirit of William James, New Haven, 1938, cap. I; G. MARCEL, La Métaphysique
de Royce, Paris, 1945; J. E.

82

Smim, R.s Social Infinite Nova lorqule, 1950; J. H. COTTON, R. on the Human
Self, ~bridge, Mass, 1954.

§ 708- Sobre Umison: G. H. Hotoison, Philosopher and Teacher; a Selec~ from


his Writings with a Biographical Sketch, ao cuidado de J. W. BucKHAm,
Berkeley. Cal., 1934 (com bíblIog.).

Sobre Creighton: H. G. ToWNSEN, Philosophical Ideas in the Unite-d States,


Nova IoTque, 1934, p. 187 segs.

83

O IDEALISMO ITALIANO

§ 709. IDEALISMO ITALIANO: CARACTERISTICAS

E ORIGENS DO IDEALISMO ITALIANO

Na segunda metade do século XIX a doutrina de Hegel teve na Itália o seu


centro de estudo e de difusão na Universidade de Nápoles, onde a professaram
Augusto Vera (1813-85), um modesto mas típico hegeliano da direita com
tendências teístas e catolicizantes, e Bertrand Spaventa (1817-83). Spaventa
iniciou a sua actividade cerca de 1850 com ensaios sobre Hegel e a filosofia
moderna italiana e europeia (recolhidos mais tarde por Giovanni Gentile com os
títulos de Escritos filosóficos, 1901; Princípios de Ética, 1904; De Sócrates
a Hegel,
1905). Os seus escritos mais completos e significativos são: Prólogo e
introdução às lições de filoso-
85

fia na Universidade de Nápoles (1862), publicados de novo por Gentile em 1908


com o título de A filosofia italiana e as suas relações com a filosofia
europeia, e os Princípios de filosofia (1867) publicados também de novo por
Gentile com acrescentamento de partes inéditas e com o título de Lógica e
Metafísica (1911). Spaventa é também autor de uma monografia intitulada A
filosofia de Gioberti, de que apenas saiu o primeiro volume em 1963, e de um
estudo com o título Experiência e metafísica publicada postumamente por Jaia
em 1888.

A importância de Spaventa consiste sobretudo na

sua tentativa de subtrair a cultura filosófica italiana ao provinciamismo em


que a queria confinar o espiritualismo tradicionalista dominante em meados do
século XIX, vinculando-a de novo à cultura europeia. O espiritualismo
tradicionalista (§ 627) insistia numa tradição filosófica italiana que iria
dos pitagóricos a Vico e a Gioberti, à qual deviam manter-se fiéis todas as
manifestações filosóficas italianas. Spaventa faz seu o conceito da
nacionalidade da filosofia italiana, mas vê a marca de tal nacionalidade na
universalidade, pela qual nela deveriam reunir-se todos os opostos e encontrar
uma unidade harmónica todas as tendências do pensamento europeu. Spaventa
explica as diferenças e

as afinidades entre as filosofias europeias mediante uma pretensa unidade da


estirpe ariana, indo-germânica, ou indo-europeia, que se teria dividido em
seguida, progredindo umas vezes mais outras vezes

menos, e mais na Alemanha do que nos países latinos (A fil. ital., 1909, p.
49). A filosofia italiana

86

devia, pois, voltar a pôr-se ao nível da alemã. Com efeito, no Renascimento, a


Itália foi a iniciadora da filosofia moderna. Bruno equivale, sem mais, a
Espinosa, só com a diferença de que nele existe uma certa perplexidade quanto
ao conceito de Deus, entendido umas vezes como sobrenatural outras como a
natureza mesma (Ib., p. 105). Vico, substituindo a metafísica da mente pelo
ser, desempenha na

Itália a função que na Alemanha desempenhou Kant. Gallupi é um "kantiano, mau


grado seu".

Rosmini, como Kant, descobre "a unidade do espírito", embora deixe na


obscuridade e incompreendido este conceito; e, finalmente, Gioberti completa
Rosmini, como Fichte, Schelling e Hegel completam Kant, e descobre a
verdadeira Ideia que não é o ser, mas sim o Espírito. Será talvez supérfluo
chamar a

atenção dos leitores da presente obra, para o carácter arbitrário destas


determinações históricas. Espinosa não pode ser identificado com Bruno, porque
supõe o racionalismo geometrizante de Descartes e

Hobbes. Vico faz parte do movimento iluminista e é o Leibniz da história;


a sua metafísica da mente nada tem a ver com a doutrina de Kant, a não
ser pela comum exigência de delimitar e marcar as efectivas possibilidades
humanas. Gallupi, Rosmini e Gioberti vinculam-se não à filosofia alemã, mas
sim à francesa do seu tempo, e fazem parte do retorno romântico à tradição. A
sua afinidade com o idealismo não assenta, pois, em categorias lógicas,

mas num princípio mais profundo e menos aparente, que é a comum fé romântica
na tradição. Quanto à pretensa "nacionalidade" da filosofia italiana, tra-
87

de 1 uma fábula não menos pueril do que a "tradição itAlica" de que falavam os
giobertianos, com a agravante da não inócua mitologia da estirpe ariana, indo-
germânica ou indo-europeia.

Foi necessário determo-nos um instante nas valorizações históricas de


Spaventa, pois tiveram muito êxito entre os seguidores italianos do
hegelianismo, que a repetiram servilmente sem se darem conta da sua
inconsistência crítica. Exerceram, no entanto, nas mãos de Spaventa, uma certa
função útil: contribuíram para despertar a filosofia italiana daquele tempo do
letargo autocontemplativo e narcisista em que caíra (e que amiúde a ameaçara)
e a interessá-la pela filosofia europeia, e especialmente alemã. Quanto à
especulação sistemática de Spaventa, carece de toda a originalidade. Os seus
Princípios de filosofia não fazem mais do que reassumir e comentar
prudentemente alguns pontos basilares da Fenomenologia do espírito e toda a
Lógica de Hegel. Num único ponto, Spaventa se permite uma certa originalidade:
na interpretação da primeira tríade da lógica hegeliana, a de ser, não ser e
devir, Spaventa sublinha aqui a necessária presença do que ele chama
"mentalidade pura", isto é, do pensamento consciente, no movimento destas
categorias, de maneira que parece supor que de um extremo ao outro da
dialéctica o pensamento se move no âmbito da autoconsciência racional, o que
não parece ter sido negado pelo próprio Hegel, que definiu a lógica como "a
exposição de Deus, tal como é na sua eterna essência, antes da criação da
natureza e de um espírito finito" (§ 572). E a afirmação de

88

Spaventa de que "as primeiras categorias exprimem, da maneira mais simples e


abstracta, a natureza, o organismo e diria mesmo o ritmo da mente" (Scritti
fil., II, p. 239) é também, de um ponto de vista hegeliano, plenamente
ortodoxa.

Ao hegelianismo aderiram na Itália, na segunda metade do século XIX, inúmeros


literatos, historiadores, juristas e médicos além de filósofos, mas nenhum
deles acrescentou fosse o que fosse ao pensamento do filósofo alemão.
Originalidade e força só as adquire o idealismo com Gentile e Croce. Estes
dois pensadores distinguem-se radicalmente do idealismo inglês e norte-
americano, como também se distinguem entre si. Distinguem-se do idealismo
inglês e norte-americano, por crerem que a unidade entre finito e infinito é
demonstrável, não negativamente por causa do carácter aparente e contraditório
da experiência finita, mas positivamente e de um modo real, reportando ao
espírito infinito os traços fundamentais da experiência finita. Assim, a
doutrina dos dois idealistas italianos renova a tentativa de Hegel, mas
distingue-se de Hegel por ser uma

reforma da dialéctica, que exclui a consideração do pensamento lógico e da


natureza e se apoia exclusivamente no espírito. As duas doutrinas distinguem-
se, pois, entre si, porquanto uma, a de Gentile, é um subjectivismo absoluto
(actualismo), a outra, a de Croce, um historicismo absoluto. O característico
que as assemelha é a negação de toda a transcendência e a redução de toda a
realidade à pura actividade espiritual.

89

§ 710. GENTILE: VIDA E OBRA

Giovanní Gentile nasceu em Castelvetrano, na Sicília, a 30 de Maio de 1875.


Professor primeiramente em Palermo e em Pisa, em seguida em Roma, foi nomeado
ministro da instrução pública com o

advento do governo fascista (1922-24). Não existem afinidades particulares


entre o idealismo de Gentile e o fascismo; de início, o fascismo não possuía
uma doutrina, a não ser que se queira chamar tal a um genérico e intolerante
nacionalismo. Todavia, Gentile chegou a descobrir no novo regime a expressão
mesma da racionalidade ou da espiritualidade absoluta e converter-se no seu
maior expoente intelectual. Foi o autor de uma vasta e radical reforma da
escola italiana que, no entanto, o próprio fascismo havia de desmantelar em
parte ou modificar nos anos seguintes. Devido aos numerosos cargos culturais e

políticos que desempenhou, assim como o de presidente da "Enciclopédia


Italiana", exerceu um vasto poder sobre a cultura italiana e especialmente
sobre o seu aspecto administrativo e escolar. Caído o fascismo em Julho de
1943 e ocupada, em Outubro do mesmo ano, a Itália central e sententrional
pelas tropas alemãs, Gentile deu a sua adesão pública ao

governo fantoche que aquelas haviam instaurado. Isto foi talvez para ele um
acto extremo de fidelidade romântica ao regime que o honrara como o seu máximo
representante cultural; a muitos italianos pareceu, ao invés, uma traição. Foi
morto no limiar da sua habitação, em Florença, a 15 de Abril de
1944. A sua filosofia, no entanto, deve ser entendida

90

e julgada independentemente do fascismo, no qual não tem decerto raízes nem


buscou inspiração; e

a sua personalidade pode ser agora melhor recordada na generosidade dos seus
traços humanos do que nas suas atitudes políticas.

Gentile expôs pela primeira vez o princípio da sua filosofia no ensaio O acto
do pensamento como acto puro (1912); e logo depois definiu a sua atitude em
relação a Hegel em A reforma da dialécttica hegeliana (1913). A sua obra mais
vigorosa é A teoria geral do espírito como acto puro (1916); a mais vasta e
complexa é o Sistema de lógica como teoria do conhecer (2 vol., 1917-22). Em
1912 publicou o

Sistema de pedagogia como ciência filosófica; em

1916, Os fundamentos da filosofia do direito. Em A filosofia da arte (1931)


está latente uma polémica com a esté tica de Croce. O último escrito, Génese e
estrutura da sociedade foi publicado postumamente (1946). Foi também notável a
actividade historiográfica de Gentile, em particular a respeitante ao

Renascimento italiano (Rosmini e Gioberti, 1898; A filosofia de Marx, 1899; De


Genovesi a Gallupi,
1903; O modernismo e as relações entre religião e

filosofia, 1909, Os problemas da escolástica e o pensamento italiano, 1913-,


Estudos sobre Vico, 1904; As origens da filosofia contemporânea em Itália,
3 vol., 1917-23; O ocaso da cultura siciliana, 1918; Giordano Bruno e o
pensamento do Ressurgimento,
1925; Gino Capponi e a cultura toscana do século XIX, 1922; Estudos sobre o
Renascimento, 1923, Os profetas do Ressurgimento italiano: Mazzini e

Gioberti, 1923).

91

§ 711. GENTILE: O ACTO PURO

O erro de Hegel consistiu, segundo Gentile, em ter tentado uma dialéctica do


pensado, ou seja, do conceito ou da realidade pensável (como lógica e

como natureza), dado que só pode haver dialéctica, isto é, desenvolvimento e


devir, do pensante, ou

seja, do sujeito actual do pensamento. O sujeito actual do pensamento, ou


pensamento em acto, é a

única realidade. O sujeito é sempre, certamente, sujeito de um objecto,


enquanto pensa, pensa necessariamente algo, mas o objecto do pensamento, seja
a natureza ou Deus, o próprio eu ou o dos outros, não tem realidade fora do
acto pensante que o constitui e o põe. Este acto é, pois, criador e, enquanto
criador, infinito, porque não tem nada fora de si que possa limitá-lo.

Este princípio que leva decididamente até às suas últimas consequências a tese
apresentada por Fichte na primeira Doutrina da ciência, realiza a rigorosa e
total imanência de toda a realidade no sujeito pensante. Nem a natureza nem
Deus, nem sequer o passado e o futuro, o mal e o bem, o erro e a verdade,
subsistem de qualquer forma fora do acto do pensamento. Os desenvolvimentos
que Gentile deu à sua doutrina consistem essencialmente em mostrar a imanência
de todos os aspectos da realidade no pensamento que os põe, e em reduzi-los a
este. O pensamento em acto é o Sujeito transcendental, o Eu universal ou
infinito. O sujeito empírico, o homem individual e particular, é um objecto do
Eu transcendental, um objecto que ele põe (isto é,

92

cria), pensando-o, e cuja individualidade-e, por consequência, supera no


próprio acto em que o põe.
O verdadeiro sujeito, o Sujeito infinito ou transcendental, não pode nunca
tomar-se objecto para si próprio. " A consciência-diz Gentile (Teoria gen.,
1, § 6)-, enquanto objecto de consciência, já não é consciência; enquanto
objecto apercebido, a apercepção originária já não é apercepção; já não é
propriamente sujeito, mas objecto; já não é Eu, mas sim não-eu... O ponto de
vista transcendental é o que se obtém na realidade do nosso pensamento, quando
o pensamento se considera não como acto consumado, mas, por assim dizer, como
acto em acto: acto que não se pode absolutamente transcender, pois que ele é a
nossa própria subjectividade, isto é, nós mesmos; acto que não se pode nunca
nem de modo algum objectivam. Os outros eus são, por sua vez, objectos,
enquanto outros, mas no acto de os conhecer o eu transcendental unifica-
os. Os problemas morais surgem, em troca, no terreno da diversidade e da
oposição recíproca entre os eus

empíricos; mas não se resolvem nesse terreno. "Não se resolvem senão quando
o homem chega a sentir as necessidades dos outros como necessidades próprias,
e a própria vida, por conseguinte, não encerrada no apertado círculo da sua
personalidade empírica, mas -entendida sempre em expansão, na actividade de um
espírito superior a todos os outros interesses particulares, e ao mesmo tempo
imanente no centro mesmo da sua personalidade mais profunda" Qb., 2, § 5).

93

O pressuposto de tudo isto é o postulado segundo o qual "conhecer é


identificar, superar a alteridade como tal" Qb., 2, § 4). Em virtude deste
pressuposto, Gentile pode afirmar que ws outros fora de nós, não podem
existir, falando com rigor, se nós os conhecermos e falarmos deles"; e' que o
outro (isto é, a outra pessoa) é, simplesmente, uma etapa através da qual se
passa, mas na qual não nos devemos deter. "0 outro não é tanto outro que não
seja nós mesmos" (ib., 4, § 5). Não se vê como se pode conciliar com
afirmações tão explícitas aqueloutra, feita com o propósito de distinguir o
idealismo do misticismo, de que "a realidade do eu transcendental implica
também a realidade do eu empírico" e que o eu absoluto unifica mas não destrói
em si o eu particular e empírico Ub, 2, § 6). E, de facto, os eus empíricos
poderão distinguir-se entre si como objectos diversos do Eu transcendental, do
pensamento em acto, mas não já subsistir como eu, isto é, como sujeitos na
unidade simples e infinita daquele Eu. Isto é tão verdadeiro que o próprio
acto da educação é conhecido por Gentile como a unidade do mestre e do aluno
no espírito absoluto, unidade que chega a eliminar o problema da comunicação
espiritual (Sumário de pedagogia, 1, 2.o 4, § 3). O próprio pressuposto do
conhecimento como unificação e identificação entra em jogo na polémica contra
tudo o que está "fora" do espírito e da consciência. A consciência é infinita
e nada existe fora dela. O "fora" está sempre dentro porque designa uma
relação entre dois termos que, exteriores um ao outro, são no en-
94

tanto interiores à consciência mesma. Pelo mesmo motivo não pode haver
verdadeira dialéctica do ser

(no sentido platónico-aristotélico) ou da natureza.


O devir só é próprio do sujeito pensante; e as dificuldades em que se envolve
a lógica de Hegel para o deduzir da unidade de ser e não ser, são eliminadas
se pelo ser se entende precisamente o ser do

pensamento que o define e, em geral, pensa.

O sujeito pensante realiza a coincidência entre a particularidade e a


universalidade e é, por conseguinte, o verdadeiro indivíduo. Com efeito, o
pensamento é ao mesmo tempo a máxima universalidade possível e, portanto, a
máxima afirmação do eu que pensa. Gentile identifica a individualidade
com a positividade; e a positividade pertence propriamente ao pensamento, que
é auto-posição e auto-criação (autoctisis) e por isso se identifica com a

universalidade do próprio pensamento (Teoria gen.,


8, § 8). O universal do pensamento não é um dado

ou um objecto que o pensamento deva reconhecer ou respeitar, mas sim o fazer-


se universal, o universalizar-se, como o indivíduo é o individualizar-se: os
dois actos coincidem, portanto, no acto único e simples do eu que pensa. "Eu
penso e pensando realizo o indivíduo que é universal, e é, por isso, tudo o
que deve ser absoluta-mente: além dele, fora dele, não se pode procurar outro"
(Ib., 8, § 16).

Deste ponto de vista, é evidente que a natureza, como uma realidade


pressuposta ao pensamento, é uma ficção; e como multiplicidade empírica de
objectos espaciais e temporais, se resolve na actividade espacializadora e
temporalizadora do eu que a pensa

95

e, pensando-a, a unifica e a resolve em si mesmo. Isto exclui toda a acção


condicionante da natureza sobre o espírito. Só o pensamento em acto, é
absolutamente incondicionado porque é a condição de toda e qualquer outra
realidade. O carácter condicionado da realidade não exprime outra coisa senão
a sua dependência do pensamento pensante. "0 ser

(Deus, natureza, ideia, facto contingente) é necessário, sem liberdade porque


já está posto pelo pensamento: é o resultado do processo, resultado que é,
precisamente porque o processo terminou, isto é, se concebe terminado,
fixando-o e abstraindo-o um momento como resultado" (1b., 12, § 19). O
pensamento pensante é sempre livre, mas uma liberdade que se identifica com a
sua intrínseca necessidade racional e é, portanto, hegelianamente entendida
como coincidência de liberdade e necessidade.

§ 712. GENTILE: A DIALÉCTICA DO CONCRETO E DO ABSTRACTO

A elucidação desta necessidade intrínseca do acto pensante é o objectivo


fundamental da Lógica de Gentile. O acto do pensamento é, como tal, sempre
verdade, positividade, valor, bem, liberdade; mas

enquanto se objectiva e deve necessariamente objectivar-se, é erro


necessidade, negatividade, mal. O problema da lógica gentiliana consiste em
mostrar a imanência destes aspectos negativos na unidade e na simplicidade do
acto espiritual infinito. Gentile

96

GENTILE

examina, pois, o que ele chama o logos abstracto, ou seja, a consideração


abstracta pela qual o objecto em

geral, que é a raiz de toda a negatividade ou desvalor e portanto, também do


erro ou do mal, é considerado uma realidade por si, independente do espírito
que a pensa. Parte do princípio de que o logos abstracto é necessário ao logos
concreto. "Para que se actualize a concreção do pensamento, que é negação da
imediatez de toda a posição abstracta, é necessário que a abstracção seja não
so negada mas também afirmada; do mesmo modo que para manter aceso o fogo que
destrói o combustível é necessário que haja sempre combustível e que este não
seja subtraído às chamas devoradoras, mas seja efectivamente queimado" (Sist.
di log., 1, J.a , 7 ; § 9).
O lugar abstracto é considerado na expressão que assumiu na lógica
tradicional, cujas formas são por isso submetidas à análise crítica. Conceito,
juízo e

silogismo são as formas do pensável, isto é, do objecto pensado enquanto tal:


exprimem, portanto, a objectividade, o ser, a natureza e não são susceptíveis
de movimento, de progresso, de dialéctica, tudo coisas que pertencem à
actividade espiritual que só podem, portanto, entender-se e justificar-se na
subjectividade do sujeito pensante. O logos abstracto, objecto da lógica grega
e medieval é, pois, enquanto abstracto, um erro; mas é um erro necessário,
porque é devido à necessária objectivação do sujeito pensante e é
continuamente resolvido e superado na actividade deste sujeito: "A lógica do
abstracto nasceu historicamente e nasce eternamente, se assim nos podemos
exprimir, naquele estado de espírito

97

em que este não adquiriu consciência de si e não

vê por isso a abstracção do abstracto e o confunde com o concreto. Estado


naturalista, em que o real é pressuposto pelo espírito. Estado a que o
espírito está destinado a subtrair-se e a que se subtrai até ao infinito,
porquanto já no próprio acto em que julga realizá-la, a supera, afirmando não
propriamente a

natureza, como ele crê, mas o próprio conhecimento da natureza, não o


concreto, mas o seu conceito do conceito" (Sist, li log., 11, 3a4, § 3).

Com este ponto se relaciona a teoria do erro, que é um dos aspectos mais
característicos da atitude filosófica de Gentile. O pensamento em acto é
sempre, como tal, verdade, realidade, bem, prazer, positividade. O erro, o
mal, a dor, etc., subsistem nele apenas como os seus momentos superados, como
posições já ultrapassadas e desvalorizadas. "Toma-se qualquer erro e
demonstra-se bem que é tal; e

ver-se-á que não há ninguém que o queira perfilhar ou sustentar. O erro é,


pois, erro enquanto superado: por outras palavras, enquanto se apresenta ao

nosso conceito, como o seu não-ser. É, portanto, como a dor, não uma realidade
que se opõe à realidade do espírito (conceptus sui), mas a própria realidade
enquanto alcança a sua realização: num

seu momento ideal" (Teoria gen., 16, § 8). O erro é sempre imanente à verdade
como o não-ser é imanente ao ser que devém. O conhecimento do erro, é, com
efeito, verdade: o conhecimento como tal é sempre verdadeiro (Sist. di log.,
I, 1.a 5 §§ 9-10). Naturalmente, esta teoria do erro não explica o

erro que não seja conhecido ou reconhecido como

98

tal; não explica, por exemplo, as doutrinas ou as opiniões filosóficas


diversas das do filósofo idealista. Mas Gentile declara que o filósofo
idealista não tem a obrigação de explicar este género de erros.

"0 idealista da imanência absoluta -afirma (1b.,


11, 3.a, 1, § 122)-não deve explicar pela dialéctica do acto espiritual
qualquer verdade e qualquer erro, mas a verdade e o erro do meu pensamento,
que só para ele é verdadeiramente tal: a verdade minha no acto que penso, e o
meu erro no mesmo acto. Pedir-lhe que com a mesma explicação explique o

que, vulgarmente e segundo outros sistemas filosóficos por ele criticados, é


também pensamento, e implica um correspondente modo de conceber verdade e

erro, é decerto uma pretensão absurda. O erro actualmente superado pelo seu
contrário (que é o único erro do qual o nosso idealismo pode falar) não é
certamente o erro, por exemplo, de quem está contra nós, e

resiste aos nossos argumentos e persiste na sua afirmação para nós


evidentemente falsa; nem o erro cometido, para dar um outro exemplo, por
Platão na

sua teoria da transcendência das ideias". Na universalidade do espírito a


oposição entre o filósofo idealista e o seu antagonista é anulada de golpe, já
que o

próprio antagonista é interior ao filósofo e só é real nele; e mesmo quando


ressurge até ao infinito na sua distinção, esta distinção volta sempre a ser
anulada.
O traço característico desta teoria é a identificação entre o filósofo
idealista e o espírito universal: basta que a anulação "de golpe" dos erros
adversários se realize na interioridade do filósofo idealista para que se
considere essa anulação realizada até ao infinito

99

na unida-de e na eternidade do sujeito pensante. É apenas necessário fazer


notar que na base desta teoria está o pressuposto que sustenta toda a teoria
de Gentile: conhecer é identificar e, portanto, conhecer os outros na sua
alteridade e nos seus erros significa resolver a alteridade e o erro na
unidade e na verdade do sujeito pensante.

Como quer que seja, tal pressuposto domina todo o desenvolvimento do


pensamento de Gentile. O ignoto, por exemplo, enquanto é conhecido como

tal, já não é o ignoto; "é enquanto não é". E assim a morte, a qual "não
existe". "A morte é temível porque não existe, como não existe a natureza nem
o passado, como não existem os sonhos. Há o homem que sonha, mas não as coisas
sonhadas. E assim a morte é negação do pensamento mas não pode ser actual o
que se realiza pela negação que o

pensamento faz de si mesmo. Com efeito, só se pode conceber o pensamento como


imortal, porque é infinito" (Sist. di log. II, 4.a 2 § 3). E assim a
ignorância só existe no acto em que é reconhecida como

tal e, por isso mesmo, superada como ignorância; e não existem problemas senão
enquanto resolvidos, embora toda a solução se transforme num novo problema que
é, no entanto, imediatamente uma nova solução (1b., 11, 4 a, 5, §§ 4-5).
Por consequência, a filosofia é perene, porque é sempre esta filosofia, ou
seja, filosofia do acto pensante; idealismo. E dado que não existe uma
filosofia estritamente objectiva "a verdade da filosofia ou a filosofia
verdadeira a que o filósofo tende, não pode ser outra senão uma elaboração da
sua própria

100

filosofia, cujo desenvolvimento é também o desenvolvimento da verdade


filosófica" (Ib, 5, § 5). O método da filosofia não pode ser, portanto, senão
o

da imanência de toda a realidade ou verdade no pensamento pensante e, por


conseguinte, a filosofia identifica-se com a lógica (Ib., epílogo, 2, § 2).

É fácil dar-se conta da apreciação que se pode fazer da ciência deste ponto de
vista. A ciência é sempre particular porque tem a seu lado outras ciências e
carece, portanto, da universalidade que é própria da filosofia. Pressupõe
primeiramente, e

diante de si, o seu objecto; é, portanto, dogmática e tende necessariamente


para o naturalismo e o materialismo. Dela não há história porque só há
história do acto pensante, ou seja, da filosofia que a

inclui em si (Teor. gen., 22, §§ 1-7). É este o único elemento que, de algum
modo, a salva, porque o

cientista, sendo como homem também filósofo, reincorpora a abstracção da


ciência na concreção do seu

acto pensante (Sist. di log., 11, epílogo, 3 § 6).

A conclusão inevitável da dialéctica do abstracto e o concreto, conclusão,


aliás que Gentile explicitamente aceita e mantém até às suas últimas
consequências, é a de que o homem, como sujeito pensante e na pontualidade do
seu acto pensante, está sempre na verdade e no bem, no infinito e no eterno,
mais ainda, é, ele mesmo, todas estas coisas. Isto implica também que a
história do homem (que tem história só como acto pensante) é um permanecer
imóvel na eternidade; e a isto se reduz a doutrina da história de Gentile. De
facto, começa por negar a distinção entre história (res gestae) e
historiografia

101

Ir-,

(histori" rerum gestarum) e por reduzir a história à historiografia, ou seja,


à contemporaneidade do acto pensante, de um "presente absoluto que não
desaparece e não se precipita no seu oposto" e que é "0 eterno, tal como reluz
no acto do espírito que o busca, no acto do pensamento que pensa" (Sist. di
log., 11, 4a, 6 § 2). A pretensa objectividade da verdade histórica não é
outra senão a mediação ou sistematização do pensamento que, mediando-se ou
demonstrando-se, se põe como verdade imutável e é já, em rigor, tal pela
imanente mediação pela qual o eu se põe como não-eu (1b., § 8). A busca da
individualidade nos acontecimentos históricos não pode ser senão a busca
daquele verdadeiro eu que e o Eu universal e pensante. "0 Sócrates histórico,
com a sua positiva individualidade, então sim, torna-se apreensível; mas
enquanto o construímos como personalidade que revive na nossa e actualmente é
a nossa (ib., § 4). Uma vez mais parte do postulado do conhecer como
identificação do sujeito consigo mesmo.

§ 713. GENTILE: A ARTE

Na Teoria Geral e no Sumário de pedagogia Gentile pusera o carácter peculiar


da arte na sua subjectividade, pela qual o mundo do artista se distingue do da
vida prática e da religião e representa uma libertação em relação a ele. O
preciso significadO da subjectividade da arte é examinado na Filosofia da arte
(1931). O pressuposto capital da oVa é, contudo, o que determina a especulação

102

gentiliana: conhecer algo significa para o sujeito assimilá-lo a si e


identificá-lo consigo. "A obra que se conhece-diz Gentile (Fil. dellarte, p.
100)-, não é a que está ali, no tempo, dividida por nós, mas

a que, ao invés, vamos procurar longe de nós (e precisamente pela actual


experiência por nós vivida), mas que, uma vez encontrada, se nos manifesta e
faz valer como próxima, ou melhor, como nossa e constitutiva da nossa actual
experiência". Posto isto, o significado da arte, de toda a obra de arte, não
poderá consistir senão no próprio objecto pensante; e, precisamente, na "forma
do eu como puro sujeito" (1b., p. 131). Mas como puro sujeito o eu nunca é
actual, porque a sua actualidade, o acto do seu pensar está no seu objectivar-
se; mas

neste objectivar-se a arte, como pura subjectividade, já foi transcendida. "A


arte pura é inactual e, por isso, não pode ser apreendida na sua pureza. Isto
não significa, porém, que ela não existe, mas somente que não se pode separar,
tal como é e por aquilo que é propriamente, do resto do acto espiritual, em
que existe, e em que, ademais, demonstra toda a sua energia existencial" (1b.,
p. 135). Por conseguinte, a arte não é, como se costuma dizer, um produto de
fantasia; não existe uma fantasia como faculdade, ou função especial da
actividade espiritual, distinta do pensamento. A actividade espiritual é
sempre pensamento, ainda quando, na interioridade do pensamento, se possam
distinguir vários momentos. A arte é o momento da subjectividade pura ou
inactual que se torna actual no pensamento, se converte em expressão. A
expressão

103

estética é, pois, pensamento, e a arte não é a expressão de um sentimento, mas


é o próprio sentimento como pura, íntima e inefável subjectividade do sujeito
pensante (Ib., p. 197).

O sentimento conserva em Gentile todos os seus característicos românticos: é


indefinível, inexprimível e ineliminável: é o infinito espiritual, isto é,
livre de determinações conceptuais necessárias e, por isso, é constitutivo da
subjectividade pura do sujeito (Fil. dell'arte, p. 176 segs.). Precisamente
como tal, a infinidade do sentimento é a infinidade do homem, na sua
universalidade e, portanto, está acima e

para além da diversidade empírica dos homens individuais (ib., p. 205).


Sentimento é o corpo não na sua presumida imediatez física, mas na sua
actualidade consciente-, sentimento é também a linguagem, que é decerto
pensamento na multiplicidade do seu

desenvolvimento, mas continua sendo sentimento na unidade subjectiva deste


desenvolvimento (1b., p.
226-30).

Por outro lado, a técnica artística é, em troca, pensamento; mas é um


pensamento "que retorna ao sentimento e com ele se encontra e é por isso
dirigido e animado por ele" (Ib., p. 237). A pretensa exteriorização da obra
de arte não é, na realidade, senão a sua interna realização por obra do
sujeito. No sujeito encontra também a sua beleza a natureza, "não já dividida
nas suas partes, mas reunida naquela unidade e infinidade que é própria do
sujeito e do mesmo sujeito" (1b., p. 262). Se como pura objectividade e,
portanto, como puro sentimento, a

arte não é moral, encontra a sua moralidade, ao

104

mesmo tempo que a sua actualidade, no pensamento, isto é, na filosofia.


Possui, portanto, uma eticidade imanente pela qual pode valer como educadora
do género humano. Nas suas produções históricas (embora não esteticamente
válidas, porque só o são no pensamento e para o pensamento) a arte tem também,
segundo Gentile, um carácter nacional (Ib., p. 237). Quanto à relação entre
arte e religião, trata-se de uma correlação necessária que implica a sua
recíproca oposição e exclusão dialéctica. Com efeito, a arte é o momento da
pura subjectividade espiritual, a religião é o momento da pura objectividade,
do objecto que é absolutamente negador do sujeito (Deus), do infinito como
objecto.

§ 714. GENTILE: A RELIGIÃO

Este conceito da religião foi formulado por Gentile na Teoria geral do


espírito e no Sumário de pedagogia e confirmado nos Discursos de religião
(1920). A religião é "a exaltação do objecto, subtraído aos vínculos do
espírito, em que consiste a

idealidade, a cognoscibilidade e racionalidade do objecto mesmo" (Teoria, 14,


§ 7). Como negação do sujeito no objecto, a religiosidade determina a

negação da liberdade espiritual. "Substitui o conceito da criação como


autoctisis pelo da criação como heteroctisis; e o conceito do conhecer como
posição que o sujeito faz do objecto, pelo da revelação que o objecto faz de
si mesmo, o conceito da boa vontade, que é a criação que a vontade faz do bem
(isto é, de si mesma como bem)

105

pelo da graça que o bem (Deus) faz de si ao sujeito" (Somm. di ped., 1, 3


a, 4, § 4). A essência da religião é, portanto, o misticismo que é a anulação
do sujeito no objecto e pela qual o ser de Deus é o não ser do sujeito (Disc.
di rel., p. 78). A consequência da religiosidade é o agnosticismo, que é o
carácter negativo de todas as teologias místicas ou estritamente religiosas
Qb., p. 81). A religiosidade pertence, pois, propriamente ao lugar abstracto,
isto è, à posição abstracta e errónea de um objecto, que se supõe anterior ao
sujeito e considerado independente dele. Somente a filosofia a restitui à sua
concreção, mostrando no próprio objecto da religião uma posição ou criação do
sujeito. E, neste sentido, a filosofia imanentista é a "verificação do
cristianismo" , que foi o primeiro a afirmar o princípio da interioridade
espiritual. Por sua vez, o acto espiritual, a única realidade positiva e
concreta já não pode ser divinizada e tornar-se objecto de adoração ou de
culto. "0 acto é a filosofia: e a filosofia da filosofia não é mais do que
filosofia. Assim, o acto, na sua imanente realidade, não se objectiva e não se
põe diante de si mesmo" (Ib., p. 88). De maneira

que a religião só é imortal na filosofia; e se o homem tem necessidade de


Deus, tem também necessidade de reflectir sobre ele e de o reduzir ao acto do
seu pensamento. "E este Deus, como pode ser vontade que cumpre reconhecer, a
que se tem de rezar e. invocar, e a que é necessário submetermo-nos, se Deus
está dentro do homem, do seu eu, e é propriamente o seu eu ao realizar-se?"
(Sist. di log., 11, 4.a 8, § 4).

Nalguns artigos e ensaios dos últimos anos da

106

sua vida, Gentile insistiu na religiosidade da sua

filosofia (Sobre uma nova demonstração da existência de Deus, 1932; A minha


religião 1943). Falou também de uma religião sua e até mesmo de um catolicismo
seu. Mas, evidentemente, o adjectivo destrói aqui o substantivo. Para chegar a
reconhecer a validade da religião, Gentile deveria ter abandonado, como fez
Fichte, o princípio da identidade do finito e do infinito e chegar a admitir
que o

infinito está para além do finito, isto é, do homem que filosofa, do sujeito
pensante, o qual em comparação com ele não é mais do que a imagem ou a

repetição temporal do seu eterno processo. Mas nada estaria mais longe da
intenção de Gentile, o

qual, nestes artigos, não fez senão reafirmar a sua

fé na infinidade do sujeito pensante e na impossibilidade da transcendência.

§ 715. GENTILE: O DIREITO E O ESTADO

Uma sociedade de homens, isto é, de seres finitos ligados entre si e ao mundo


que os alberga por necessidades e exigências de diversa natureza é, do ponto
de vista de Gentile, um verdadeiro absurdo. Por isso, nos Fundamentos da
filosofia do direito (1916), assim como no seu último escrito Génese e
estrutura da sociedade (1946), e noutros escritos menores circunstanciais e
políticos, Gentile não faz outra coisa senão reduzir à interioridade do acto
espiritual a sociedade e o estado, a moral, o direito

e a política e, em geral, toda a gama das relações

107

entre os homens. Sociedade e estado, e, por conseguinte, direito e política


não estão, segundo ele, inter homines, mas in interiore homine. Na primeira
obra, procurou esclarecer a natureza do direito recorrendo à dialéctica de o
que quer e o querido, que é perfeitamente idêntica à de pensante e pensado, já
que nenhuma distinção é possível entre pensamento e

vontade: o pensamento como actividade criadora e

infinita é vontade criadora e infinita. Em relação à moralidade, que é vontade


do bem, isto é, criação do bem no acto de o querer, o direito é o querido, ou
seja, não já vontade em acto mas vontade passada ou conteúdo do querer;
portanto, também, "não já liberdade que é força, mas força sem liberdade, não
já objecto que é sujeito, mas objecto oposto ao

sujeito" (Fond., p. 58-59). A vontade que quer é já para si mesma o seu


próprio mandato ou a sua

própria lei; quando encontra diante de si uma ordem ou uma lei, trata-se de um
momento seu objectivado, e fixado abstractamente nessa sua objectividade. "0
poder soberano, o querer tom-no já em si; e fora dele, onde empiricamente se
vê armado de espada, não pode vê-lo senão através do que já tem no seu

íntimo, onde está a raiz e a verdadeira substância da sociedade e do estado"


(Ib., p. 61). Por conseguinte, a coactividade do estado ou das normas
jurídicas é, ela também, interior e espiritual; e direito e moral, em última
análise, identificam-se, como se identificam o estado e o indivíduo, na
actualidade do querer volitivo ou do sujeito pensante (1b., p. 69).

Esta é já uma justificação do estado absolutista e totalitário; e a


justificação é explícita no último

108

escrito de Gentile. Aqui rejeita-se a distinção entre o privado e o público e


com ela a possibilidade de pôr limites à acção do estado. E, com efeito, a
distinção não pode manter-se se se admite como único indivíduo o Eu universal
e infinito: na realidade, tal distinção pressupõe a singularidade e a
irredutibilidade do indivíduo e, ao mesmo tempo, a sua

constitutiva relatividade social. Gentile, aceitando o carácter totalitário e


autoritário do estado, declara, com um movimento característico do seu
pensamento, que se pode dizer também o oposto, q saber "que neste estado, que
é própria vontade do indivíduo enquanto universal e absoluto, o indivíduo
absorve o estado, e que a autoridade (a legítima autoridade), não podendo ser
expressa, aliás, senão pela actualidade do querer individual se reduz
integralmente à liberdade". Deste modo, a verdadeira democracia seria, não a
que quer limitar o estado, mas a "que não põe limites ao estado que se
desenvolve na intimidade do indivíduo e lhe confere a força e o direito na sua
absoluta universalidade" (Génese, etc., p. 121). Também aqui, como na teoria
do erro, Gentile identifica o indivíduo universal e absoluto com o filósofo
idealista que teoriza, sobre este indivíduo. De modo que o miolo da sua
demonstração é que o estado autoritário, identificando-se com o filósofo
idealista, realiza a liberdade deste filósofo; por isso, não é autoritário. É
evidente que, neste círculo, o pensamento de Gentile se

mostra constitucionalmente incapaz de um colóquio com outros homens e até


mesmo de polemizar com eles.

109

Neste ponto crucial, deparamos mais uma vez


com o pressuposto que sustenta toda a dialéctica de Gentile: conhecer é
identificar, eliminar a alteridade, assimilar ao sujeito pensante tudo o que
não é o

sujeito pensante. A este pressuposto, que é a herança mais pesada do


pensamento romântico, contrapõe-se a filosofia contemporânea na sua parte
militante: o realismo, a fenomenologia, o positivismo lógico, o
existencialismo, o instrumentalismo. A filosofia de Gentile inscreve-se
inteiramente no círculo cerrado do romantismo e é a mais audaz, rigorosa e
extrema expressão do mesmo.

É necessário somente notar que a actividade

historiográfica de Gentile, dominada como é pelo pressuposto citado e pelo


conceito de que a história

não é mais do que a eternidade no acto pensante, não tem valor -senão como
aspecto da sua especulação sistemática. Nos seus numerosos trabalhos
históricos, Gentile procurou sempre rastrear no passado apenas os elementos
assimiláveis à filosofia -do actualismo. A sua historiografia filosófica
reduz-se, pois, a isolar certos elementos de pensamento dos complexos
individuais e históricos -de que fizeram parte e a assimilá-los aos conceitos
próprios do actualismo. Esta forma de historiografia filosófica foi com
frequência seguida por numerosos discípulos que Gentile teve na Itália nos
anos que vão da primeira à segunda guerra mundial com resultados quase nulos
ou decepcionantes, seja do ponto de vista historiográfico, seja do teorético.

110

§ 716. CROCE: VIDA E OBRA

Bene-detto Croce, nasci-do em Pescasseroli, nos Abruzos, a 25 de Fevereiro de


1866, e falecido em Nápoles a 20 de Novembro de 1952, permaneceu sempre
arredado do ensino universitário. Salvaguardado das necessidades materiais por
uma grande fortuna pessoal, desenvolveu como escritor independente uma
ininterrupta e intensa actividade nos mais variados campos da filosofia, da
história, da literatura e da erudição. Ligado por estreita amizade a Govarmi
Gentile (que foi durante muitos anos, e

até ao início de 1903, colaborador da sua revista "La Critica"), Croce rompeu
com ele quando se

declarou hostil ao governo fascista (já instaurado havia alguns anos) de que
Gentile se tornara o expoente filosófico oficial. A esta ruptura, seguiu-se,
por ambas as partes, uma polémica miúda, azeda e

pouco edificante, que durou muitos anos. O regime fascista, certamente para se
salvar de um alibi face aos meios culturais internacionais, permitiu
tacitamente a Croce uma certa liberdade de crítica política, de que ele usou
efectivamente nos livros e nas notas que ia publicando na "Critica" para fazer
a

defesa dos ideais da liberdade, tanto mais eficaz quanto era alheia a toda a
retórica e impregnada de cultura e de pensamento. Nos anos do fascismo e

da segunda guerra mundial a figura de Croce assumiu por isso, aos olhos dos
italianos, o valor de um

símbolo pela sua aspiração à liberdade e a um

mundo em que o espírito prevaleça sobre a violência. E assim se mantém ainda


hoje, embora se verifique

111

o eclipso das ideias filosóficas de Croce até nos domínios em que exerceram a
maior influência, ou seja, na estética e na teoria da história.

Croce chega a formular o seu sistema filosófico partindo da consideração de


problemas literários e

históricos. A primeira forma da sua estética (Tese fundamental de uma estética


como ciência da expressão e linguística geral, 1900) foi-lhe sugerida pela
necessidade de uma orientação precisa na crítica literária; e nasceu como
tentativa de dar uma sistematização filosófica rigorosa aos princípios
críticos que presidiram à obra de Francesco De Sanctis (1818-83) que ele
considerava como o seu verdadeiro mestre. A estética foi, pois,
incessantemente reelaborada por Croce; e da Estética como ciência da expressão
e linguística geral (1902) ao Breviário de estética (1912) e ao volume A
poesia (1936), bem COMO em numerosos ensaios e escritos menores, Croce foi
dilucidando as suas teses fundamentais que permaneceram no entanto as mesmas
quanto ao essencial (Problemas de estética, 1910-, Novos ensaios de estética,
1920; últimos ensaios, 1935). Em torno do núcleo da estética, condensou-se
pouco a pouco o resto do sistema crociano: Lógica como ciência do conceito
puro (1909)-, Filosofia da prática, económica e ética (1909); Teoria e
história da historiografia (1917). Juntamente com a doutrina estética, a que
sofreu maior reelaboração foi a doutrina da história (A história como
pensamento e como acção,
1938; O carácter da filosofia moderna, 1941; Filosofia e historiografia, 1949;
Historiografia e idealidade moral, 1950). São fundamentais as monografias

112

dedica-das por Croce a Vico e a Hegel (A filosofia de Vico, 1911; Ensaio sobre
Hegel, 1912) e os estudos reunidos na sua obra Materialismo histórico e
economia marxista (1900). Os Escritos de história literária e política,
constituem, pois, um esclarecimento e uma reforinulação dos princípios
filosóficos de Croce perante um grande número de problemas críticos.

§ 717. CROCE: A FILOSOFIA DO ESPIRITO

A filosofia de Croce qualificou-se ou autoqualificou-se como "historicismo


absoluto". Pouco importa que se rejeite ou admita esta qualificação; o

que importa, em todo o caso, é -dar-se conta de que nela o adjectivo modifica
radicalmente o substantivo e que, portanto, o historicismo crociano é
radicalmente diverso -do resto do historicismo contemporâneo. Este (como
veremos, § 735), centra-se em

torno do problema crítico da historiografia, isto é, do problema relativo à


possibilidade e ao fundamento (no sentido kantiano) -do saber histórico. Este
problema não existe para Croce, que entende por historicismo "a afirmação de
que a vida e a realidade é história e nada mais do que história" (A história,
1938, p. 51). É evidente que, deste ponto de vista, o problema crítico da
historiografia é eliminado e

substituído pelo principio hegeliano da identidade entre racionalidade e


realidade, entre ser e dever ser. Croce, de facto, contrapõe o historicismo ao
ilumi-
113

nismo que, como "racionalismo abstracto", considera "a realidade dividida em


supra-história e história, num mundo de ideias ou de valores e num mundo que
os reflecte ou os reflectiu até agora, de um modo fugaz e imperfeito, e ao
qual convirá impô-los de uma vez, fazendo suceder à história imperfeita, ou à
história pura -e simplesmente, uma realidade racional perfeita". O
historicismo crociano não é, pois, senão o racionalismo absoluto hegeliano. E,
de facto, Croce vê (a justo título) e louva em Hegel, sobretudo, "o ódio
contra o abstracto e o imóvel, contra o dever ser que não é, contra o ideal
que não é real" (Ensaio sobre Hegel, 1927, p. 171). "Com Hegel-diz ainda Croce
(0 carácter da filosofia moderna, p. 41) -Deus -descera definitivamente do céu
à terra, e já não havia que buscá-lo fora do mundo, onde apenas se encontraria
uma pobre abstracção, forjada pelo espírito do homem em determinados momentos
e para certos fins. Com Hegel adquirira-se a consciência de que o homem é a
sua história, a história a única realidade, a história que se faz como
liberdade e se pensa como necessidade, e já não é a sucessão caprichosa dos
eventos contra a coerência da razão, mas actuação da razão, a qual deve ser
qualificada de irracional só quando se despreza e se desconhece a si mesma na
história. A este historicismo absoluto, reduziu também a doutrina de Vico,
pondo de parte na filosofia de Vico todos os elementos contraditórios ou, que
de qualquer forma, não eram compatíveis com tal ponto de vista.

Contudo, Croce reprovou a Hegel o ter admitido a possibilidade da natureza


como "algo diferente

114

do espírito", o ser tornado pesado e escolástico o seu sistema com o uso e o


abuso da forma triádica e, sobretudo, a confusão do nexo dos distintos com a
dialéctica dos opostos. Isto é, Hegel confundiu a distinção e a unidade que
existe entre as formas e os

diversos graus do espírito com a oposição dialéctica que se encontra no âmbito


de cada grau (belo e feio na arte, verdadeiro e falso na filosofia, útil e
inútil na economia, bem e mal na ética). os opostos condicionam-se mutuamente
(não existe belo sem feio, etc.), mas os distintos, isto é, os graus do
espírito, condicionam-se só na ordem da sua sucessão. Croce admite quatro
destes graus que se reagrupam nas

duas formas fundamentais do espírito: a teorética

e a prática. Arte e filosofia constituem a forma teorética; economia e ética a


forma prática. A arte é conhecimento intuitivo ou -do particular; a filosofia
conhecimento lógico ou do universal; o momento económico é a volição do
particular; o momento ético é a volição do universal. Cada momento condiciona
o momento subsequente, mas não é, por sua vez, condicionado por ele: a
filosofia é condicionada pela arte, que lhe fornece com a linguagem o

seu meio de expressão, a actividade prática é condicionada pelo conhecimento


que a ilumina; e na forma prática, o momento económico, isto é, a força e a
eficácia da acção, condiciona o momento ético que dirige a vontade eficaz e
praticamente activa para fins universais. A vida do espírito desenvolve-se
circularmente no sentido de que torna a percorrer incessantemente os seus
momentos ou formas fundamentais; mas torna-os a percorrer enriquecida de

115

cada vez pelo conteúdo das precedentes circulações e sem se repetir nunca.
Nada existe fora do espírito que devém e progride incessantemente: nada existe
fora da história, que é precisamente este progresso e

este devir.

§ 718. CROCE: A ARTE

A arte é o primeiro momento do espírito universal. Croce define-a como visão


ou intuição, mas considera-a como -teoria ou contemplação e atribui-a à forma
teorética do espírito. "0 artista produz uma

imagem ou fantasma; e aquele que aprecia a arte dirige o olhar para o ponto
que o artista lhe indicou, olha pelo respiradouro que aquele lhe abriu e
reproduz em si aquela imagem" (Novos ensaios de estética, p. 9). Mas intuição
significa "a imagem no seu valor de mera imagem, a pura idealidade da
imagem"-, exclui, pois, a distinção entre realidade e irrealidade, que é
própria do conhecimento conceptual e filosófico. Este é sempre realista porque
tende a

estabelecer a realidade contra a irrealidade, ou a rebaixar a irrealidade


incluindo-a como momento subordinado na realidade mesma. A arte, ao invés,
desfaz-se e morre quando se transforma em reflexão e juízo. Por isso nem
sequer é religião ou mito, pois estes incluem também aquela pretensão de
realidade que é própria da filosofia. Como forma teorética, a

arte não é um acto utilitário e nada tem a ver com o útil, e com o prazer ou
com a dor; nem é um acto moral, e por isso exclui de si as valorizações pró-
116

prias da vida moral. A boa vontade nada tem a ver

com a arte. Uma imagem poderá mesmo copiar um

acto reprovável, mas enquanto imagem não é nem

louvável nem reprovável. O artista, como tal, é sempre moralmente inocente. A


sua verdadeira moralidade é intrínseca ao seu escopo ou à sua missão de
artista, é o seu -dever para com a arte.

A intuição artística não é, todavia, um fantasma desordenado: tem em si um


princípio que lhe dá unidade e significado e este princípio é o sentimento.
"Não é a ideia, mas sim o sentimento que confere à arte a aérea ligeireza do
símbolo: uma aspiração fechada no círculo de uma representação, eis o que é a
arte" (Novos ensaios de estética, p. 28). Neste sentido, a arte é sempre
intuição lírica: é síntese a priori de sentimento ede imagem, síntese da qual
se pode dizer que o sentimento sem a imagem é cego, e a

imagem sem o sentimento é vazia. A arte distingue-se, pois, tanto do vão


fantasiar como -da passionalidade tumultuosa do sentimento imediato. Recebe do
sentimento o seu conteúdo, mas transfigura-o em pura forma, ou seja, em
imagens que representam a libertação da imediatez e a catarse do passional.

Como intuição, a arte identifica-se com a expressão. Uma intuição sem


expressão não é nada: uma fantasia musical só existe quando se concretize nos
sons, uma imagem pictórica só o é quando pintada. A expressão artística é
intrínseca à intuição e identifica-se com ela. Mas a expressão artística é
diversa da expressão técnica que é devida à mera necessidade prática de tomar
possível a reprodução da imagem para si e para os outros. A técnica é consti-
117

túída: por actos práticos, guiados, como todos os actos práticos, por
conhecimentos. Como tal, é diferente da intuição, que é pura teoria: e pode-se
ser

grande artista e mau técnico. É pela técnica que "com a palavra e com a música
se unem as escrituras e os fonógrafos; com a pintura, as telas e os retábulos

e as paredes cheias de cores; com a escultura e a arquitectura, as pedras


talhadas e entalhadas, o ferro e o bronze e os outros metais fundidos, batidos
e diversamente forjados".

O corolário fundamental, que decorre da definição da arte corno intuição e


expressão, é a identificação entre linguagem e poesia. A expressão primeira e
fundamental é, de facto, a linguagem. O homem fala a todo o instante como o
poeta, porque, como o poeta, exprime as suas impressões e os seus sentimentos
sob a forma da conversação familiar, a qual não está separada por nenhum
abismo das formas propriamente estéticas da poesia e da arte em geral. A
linguagem não é o sinal convencional das coisas, mas a imagem significante
espontaneamente produzida pela fantasia. O sinal mediante o qual o homem
comunica com o homem supõe já a imagem e, portanto, a linguagem, a qual é,
pois, a criação originária do espírito. A identidade entre poesia e

linguagem explica o poder que esta exerce sobre todos os homens: se a poesia
fosse uma língua à parte, uma "linguagem dos deuses", os homens nem sequer a
entenderiam.

Nos últimos escritos, e sobretudo no volume Poesia (1936), Croce insiste cada
vez mais no carácter expressivo da arte. A expressão poética, enquanto

118

acalma e transfigura o sentimento, é uma "teorese, um conhecem que une o


particular ao universal e, por conseguinte, tem sempre uma marca de
universalidade e totalidade. Dela se distingue a expressão sentimental ou
imediata, a da prosa, a expressão oratória e a literária. A expressão
sentimental ou

imediata é uma pseudo-expressão porque não tem carácter teorético e -se


determina, não numa verdadeira linguagem, mas em "sons. articulados", que
fazem parte integrante do sentimento. Mesmo quando esta expressão dá lugar a
livros inteiros ou séries de livros, não se distingue do sentimento e não o
supera, mas mantém-se nele sem alcançar o nível da poesia. De facto, na
expressão poética o sentimento não preexiste como conteúdo já formado e
expresso, mas é criado juntamente com a forma; de modo que o puro sentimento é
para a poesia um nada, que é real só como outra forma de vida espiritual, ou
seja, como forma prática. A poesia é a morte do sentimento imediato, é "o
ocaso do amor, quando toda a

realidade se consome em paixão de amor". Reporta o indivíduo ao universal, o


finito ao infinito, eleva "sobre a angústia do finito a extensão do infinito"
(A poesia, p. 9 segs.). Assim como a expressão do sentimento imediato é "som
articulado" mas não palavra, assim também não é palavra a expressão em prosa,
já que "só a expressão poética é a verdadeira palavra". A expressão em prosa
relaciona-se com a poética, como a filosofia se relaciona com a poesia. Dá
lugar a símbolos ou sinais de conceitos, que não são palavras porque não são
imagens ou intuições. Também se distingue da expressão poética

119

a expressão oratória, que por isso mesmo também

dá lugar, não a palavras, mas a sons articulados, dos quais a actividade


prática se serve para suscitar determinados estados de alma. A expressão
literária, é "uma das partes da civilização e da educação semelhante à
cortesia ou ao galanteio", e consiste na harmonia entre as expressões poéticas
e as

não poéticas (passionais, em prosa, oratórias), de modo que estas últimas, no


seu curso, embora sem se renegarem a si mesmas, não ofendem a consciência
poética e artística (1b., p. 33). O que há de fundamental na expressão poética
é o ritmo, "a alma da expressão poética, e, portanto, a expressão poética
mesma, a intuição ou ritmo do universo, como o

pensamento é a sistematização dele". E o ritmo é próprio de toda a arte: em


cada uma delas toma caminhos próprios, que são infinitos e inclassificáveis.
Sobre a sua natureza e sobre a sua relação com a

expressão, Croce pouco diz, a não ser que o subentenda nas explicações que deu
sobre o ritmo e a harmonia na história -da estética desde a antiguidade até
hoje. Através das expressões não poéticas e, sobretudo, através da expressão
oratória o espírito é reportado ao sentimento, que é a própria vida prática, a
partir da qual recomeça um novo ciclo, constante no seu ritmo já assinalado,
ritmo que cresce sobre si mesmo, num incessante aperfeiçoamento e

enriquecimento (1b., p. 28).

Este último desenvolvimento da -estética crociana vai, indubitavelmente, ao


encontro da exigência própria da crítica literária de determinar e condicionar
melhor a natureza da expressão estética para a dis-
120

CROCE

tinguir facilmente das expressões que não são estéticas. Todavia, o próprio
reconhecimento da realidade de tais expressões assinala o acto de decadência e
de morte da filosofia do espírito. Se existem formas ou modos de expressão que
não são poesia ou arte, a poesia ou arte não são tais enquanto expressão
condicionada de uma determinada maneira; e se as condições que fazem da
expressão uma expressão poética são a teorese, o conhecer, a universalidade, a
totalidade, a infinidade, etc., ou seja, caracteres ou determinações que
encontram a sua
realidade plena no conhecimento lógico, o carácter específico da expressão
poética dissolveu-se e o próprio fundamento da estética crociana foi
abandonado. Se o sentimento que se manifesta ou realiza na expressão poética
não é o que pertence à forma prática do espírito, mas é criado ou suscitado ad
hoc, a passagem da forma prática à arte ou da arte à forma prática torna-se
impossível. Se a forma prática e o conhecer lógico possuem por sua conta a sua
expressão adequada, mesmo que seja em sons articulados ou símbolos, e não em
palavras e língua-,,em, a unidade e a conexão necessária entre estas formas
toma-se impossível e elas deixam de ser formas, ou seja, momentos de uma única
história espiritual para se tornarem faculdades, uma a par da outra, como na
velha psicologia metafísica. A teoria da linguagem como expressão poética
suscita a crise de toda a filosofia do espírito de Croce. Do ponto de vista do
literato que a acha útil e conveniente para os seus fins, isto pode parecer
uma feliz incongruência do filósofo; mas do ponto de vista filosó-
121

fico, a coisa é, pelo menos, desconcertante. Acrescente-se que a redução (que


aquela teoria implica) das expressões não poéticas (filosóficas ou oratórias)
a "sons articulados" vem a ter o seu oposto simétrico na tese de alguns
epistemologistas contemporâneos (por ex., Ayer) que reduzem a simples
"emissões de voz" as expressões não científicas ou, pelo menos, não
verificáveis empiricamente, e este elucidativo confronto tomará inútil o
juízo. É, enfim, evidente que a identificação da linguagem com a

expressão poética toma impossível entender a unidade da poesia com as outras


artes (música, pintura, escultura, etc.); e de facto, para justificar esta
unidade, Croce é obrigado a recorrer ao antiquado e, segundo parecia, já
inútil conceito de ritmo.

Contra a exigência, que se manifesta em muitas ocasiões, de compreender a


personalidade do artista (ou do filósofo, ou do político) para poder ajuizar
da sua obra, Croce afirma a pura e simples identidade entre a personalidade e
a obra. "0 poeta nada mais é do que a sua poesia: afirmação não paradoxal se
se considerar que também o filósofo nada mais é do que a sua filosofia e que o
estadista nada mais é do que a sua acção e criação política" (La poesia, p.
147). Mas a poesia do poeta ou a filosofia do filósofo, etc., não é, como
Croce crê, somente a forma numérica das suas poesias ou dos seus livros
escritos. Não é possível entender e determinar o valor de uma obra referindo-
se incessantemente àquele objectivo e àquela missão que o artista, ou em
geral, o autor reconhece como sendo própria de si e cuja realização procurou
no seu tra-
122

balho. Este aspecto intencional, próprio de toda a

autêntica personalidade humana, e que se traduz igualmente nas obras e na vida


(a qual, por isso, não pode ser excluída ao julgar-se a obra), não é
devidamente considerada nas formulações teóricas e nas

críticas literárias de Croce.

§ 719. CROCE: A CIÊNCIA, O ERRO E A FORMA ECONóMICA

A tese fundamental da Lógica (1908) é a identidade entre filosofia e história.


Croce defende esta tese mostrando a identidade entre o conceito e o juízo
definidor que o expressa, e entre o juízo definidor e o juízo individual ou
percepção, que é o juízo sobre a realidade concreta ou fáctica. Mas o juízo
sobre a realidade concreta ou fáctica é o juízo histórico: de modo que o
verdadeiro pensar, o pensar lógico, é sempre pensar histórico; mais ainda,
identifica-se com a história enquanto pensamento. Todavia, este conceito, que
acaba por se revelar idêntico ao saber histórico, é, sobretudo, o Conceito:
isto é, o próprio Espírito na forma da sua autoconsciência racional. Não tem,
pois, nada que ver com os conceitos de que se fala na linguagem comum e na
ciência; e estes, segundo Croce, não são verdadeiramente conceitos, mas
pseudo-conceitos. ou ficções conceptuais. Para explicar a sua origem e a sua
função, Croce recorre à forma prática do espírito e reproduz a doutrina de
Mach (§ 785) sobre a função económica dos conceitos científicos. Os pseudo-
conceitos

123

servem o interesse prático que provê à conservação do património dos


conhecimentos adquiridos. "Embora -diz Croce (Lógica, 1920, p. 23) -, em
sentido absoluto tudo se conserve na realidade e nada que tenha sido uma vez
feito ou pensado desapareça do seio do cosmos, a conservação de que agora se

fala tem a sua utilidade, porque facilita a recordação dos conhecimentos


possuídos e- permite extraí-los oportunamente do seio do cosmos ou do
aparente, mente inconsciente e esquecido. Para este fim se constroem os
instrumentos das ficções conceptuais, que tornaram possível, por meio de um
nome, despertar e unificar a multidão das representações, ou, pelo menos,
indicar com suficiente exactidão qual a

forma -de operação a que convém recorrer para as

poder encontrar de novo e reproduzir". Na mesma

forma prática tem lugar o erro, que cai fora do conhecimento, que é sempre
verdade absoluta. "Aquele que comete um erro não tem nenhum poder para Iorcer,
desvirtuar ou corromper a verdade, que é o seu próprio pensamento, o
pensamento que opera nele como em todos; ainda mais, logo que toca o

pensamento, é tocado por ele: pensa e não erra. Tem apenas o poder prático de
passar do pensamento ao

facto; e um fazer e não já um pensar é abrir a boca ou emitir sons aos quais
não corresponda um pensamento ou, o que é o mesmo, não corresponda um

pensamento que tenha valor, precisão, coerência, verdade: sujar uma tela a que
não corresponda uma

imagem, rimar um soneto combinando frases de outros que simulem a genialidade


ausente" (1b., p. 254-55). As ciências, como pseudoconceitos, e os erros de

124

toda a espécie são, por conseguinte, rejeitados em

bloco por Croce na forma prática do espírito e considerados para todos os


efeitos não como conhecimentos, mas como acções.

A forma económica do espírito desempenha na

doutrina de Croce a mesma função que a natureza desempenhava na doutrina de


Hegel: acolhe em si o irracional, o contingente, o individual, e, portanto, as
necessidades, as paixões, etc., numa palavra, tudo o que não pode ser reduzido
à expressão poética ou

ao saber histórico. O próprio Croce acabou por empregar a palavra "natureza"


para indicar o "processo prático dos desejos, dos apetites, da cupidez, das
satisfações e insatisfações que surgem, das -emoções que os acompanham, dos
prazeres e das dores" (últimos ensaios, 1935, p. 55). Mas acrescenta que se
deve conceber a natureza "dentro do espírito, como uma forma particular ou
categoria do próprio espírito, e como a mais elementar das formas práticas,
aquela em que também a forma prática superior, ou seja, a eticidade,
perpetuamente se traduz e se encarna e na qual o próprio pensamento e a

fantasia se incorporam, fazendo-se palavra e expressão e passando, neste


fazer-se, pelas alternativas de todas as comoções e pelas antíteses do prazer
e da dor" (Ib., p. 55). Mas como pode um espírito infinito, ou seja, por
definição auto-suficiente, numa categoria sua (por definição, universal) ser
necessidade, paixão, individualidade, etc., que são características
constitutivas do finito como tal e elementos ou manifestações da sua natureza,
é um problema que Croce (como Hegel) nunca considerou.

125

§ 720. CROCE: DIREITO E ESTADO COMO ACÇõES ECONóMICAS

-Pertencem à forma económica do espírito além da ciência natural, o erro, o


mal, etc., e até o direito e o estado. Já em 1907, num ensaio intitulado
Redução da filosofia do direito à filosofia da economia, Croce sustentara esta
tese, a qual mais tarde confirma e sistematicamente, desenvolve no terceiro
volume da Filosofia do espírito (Filosofia da prática, económica e ética,
1909) e mantém e defende nos escritos posteriores (Ética e política, 1931). Já
na primeira destas obras, Croce identifica resolutamente a categoria do
direito com a da utilidade e da força. Reconhecia, portanto, a existência de
direitos imorais ou até direitos inerentes às associações delituosas. "0
direito de uma associação a delinquir - dizia (Rid., et., ed., 1926, p. 40) -
encontra a oposição do direito de uma sociedade mais vasta; submeter-se-á a
este segundo, como ao mais forte; submeter-se-á merecidamente, como o não
moral ao moral: mas vive como direito e está submetido como direito". Todavia,
o direito não é imoral mas amoral, isto é, precede a vida moral e é
independente dela. É força enquanto acção eficaz que atinge um determinado fim
útil; e é condição da própria moral, enquanto esta não pode deixar de
traduzir-se em acção e, por conseguinte, em utilidade e força. Estas teses
fundamentais foram sempre mantidas firmemente por Croce. Portanto, o estado é
considerado por ele nada mais do que "um processo de acções úteis de um

grupo de indivíduos ou entre componentes desse

126

grupo" (Ética e pol., p. 216). As leis, as instituições o os costumes em que


se concretiza a vida do estado não são mais do que "acções dos indivíduos,
vontades que eles actuam e mantêm firmemente, concernentes a certas directivas
mais ou menos gerais, que se considera útil promover". Neste sentido o estado
realiza-se inteiramente no governo e não se distingue dele (1b., p. 218). A
vida do estado é unia relação dialéctica de força e consenso, autoridade e
liberdade. "Todo o consenso é forçado, mais ou menos
forçado, mas forçado, isto é tal que surge sob a "força" de certos factos e,
por conseguinte, "condicionado" : se a condição de facto muda, o consenso,
como é natural, é retirado, desencadeia-se o debate e a luta, e um novo
consenso se estabelece sob nova condição. Não há formação política que se
subtraia a esta alternativa: no mais liberal dos estados, como na mais
opressiva das tiranias, existe sempre o consenso, e é sempre forçado,
condicionado e mutável. Se assim não fosse, não haveria nem o Estado nem a
vida do Estado" (Ib., p. 221). O erro da concepção ética do estado, tal como,
por exemplo, se encontra em Hegel, consiste em ter concebido a vida moral numa
forma da vida política e do estado inadequada para ela. A vida moral, ao
invés, não se deixa reduzir à vida política mas transborda dela e contribui
para desfazer e refazer perpetuamente a vida do estado. É igualmente erróneo,
segundo Croce, o

democratismo que se baseia no pressuposto da igualdade dos indivíduos,


igualdade que juntamente com

a "liberdade" e a "fraternidade" são palavras vazias que merecem todos os


vitupérios e cuja verdadeira

127

origem reside "nos esquemas da matemática e da mecânica, inaptos a compreender


o ser vàvente" (1b., p. 226).

Croce vê o antecedente histórico da sua doutrina em Maquiavelli, que descobriu


"a necessidade e autonomia da moral, da política que está para além, ou,
antes, aquém -do bem e do mal ' que tem as suas leis, contra as quais é
inútil revoltarmo-nos; que não admite exorcismos nem ser expulsa do mundo com
água benta" (1b., p. 251). E identifica a sua doutrina política com o
liberalismo, não por ser uma doutrina política especial, mas porque é "uma
concepção total do mundo e da realidade". O liberalismo encontra o seu centro
na ideia da dialéctica, ou seja, do desenvolvimento que "mercê da diversidade
e da oposição das forças espirituais aumenta e nobilita continuamente a vida e
lhe confere o seu único e total significado". Ao liberalismo, como concepção
imanentista, contrapõem-se as concepções fundadas no transcendente, e pouco
importa que este seja entendido no sentido religioso dos ultra-montanos ou

no sentido materialista dos socialistas e dos comunistas: num e noutro caso, o


ideal transcendente que se procura traduzir em factos não pode deixar de ser
simplesmente imposto à humanidade. Esta concepção pode lar lugar, não a
revoluções, mas a reacções; a ela se devem todas as crises e doenças nas

quais se verifica uma negação ou suspensão do princípio de liberdade. A


superioridade da concepção liberal resulta evidente pelo facto de que é capaz
de justificar teoricamente e historicamente a conceção oposta. Com efeito, só
ela pode fazer justiça

128

aos adversários da liberdade e aos períodos históricos em que a liberdade é


amarfanhada ou suprimida. "Presta, pois, justiça também aos primeiros (a
saber, "aos tempos de reacção e aos homens das reacções"), não ao coração da
humanidade, mas à mente liberal, não já enquanto fundamento de vida e de luta
prática, mas enquanto juízo histórico que considera as suspensões de liberdade
e os períodos reaccionários como doenças e crises de crescimento, como
incidentes e meios da mesma eterna vida da liberdade, e portanto entende o
papel que desempenharam e a obra útil que realizaram (1b., p. 290).
O liberalismo está, pois, ao mesmo tempo, fora da luta e dentro dela; fora da
luta, como juízo histórico o concepção dialéctica da realidade; dentro da luta
como "fundamento de vida e de luta prática". Pode-se perguntar o que é o
liberalismo neste último aspecto, já que, evidentemente, enquanto luta e

nega a legitimidade do seu contrário, não pode, ao

mesmo tempo, contê-lo em si e justificá-lo. É então precisamente, "vida e luta


prática": economia, utilidade, força que se contrapõe a outras forças. Que é
que o justifica então enquanto tal? Se, enquanto se justiça a si mesmo,
justifica também os seus opostos e é concepção dialéctico-histórica
(conhecimento puro, não acção), enquanto luta e age, nada, evidentemente, o
pode justificar: é, como os seus opostos, uma manifestação contingente da
forma económica. O liberalismo, como Croce o entende, ou justifica tudo ou
nada justifica. O pensamento político de Croce permanece encerrado nesta
antinomia que o paralisa e que jaz, como se verá, no fundo da

129

sua concepção da história. Perante a democracia, que é um liberalismo armado


que pretende reforçar e garantir a liberdade, nos seus modos particulares e
nas suas formas concretas e históricas, o liberalismo de Croce continua a ser
abstracto e indefeso, e, por conseguinte, inoperante. A própria obra do homem
Croce, o precioso testemunho que prestou à liberdade, não se deixa inscrever
na sua doutrina nem justificar por ela.

§ 721. CROCE: HISTóRIA E FILOSOFIA

A identificação entre história e filosofia exposta pela primeira vez na Lógica


(1908), foi o tema fundamental da filosofia crociana. "Se o juízo - diz Croce
(A história como pensamento e como acção,
1938, p. 19)-,é relação entre sujeito e predicado, o sujeito, ou seja o facto,
qualquer que seja, que se julga, é sempre um facto histórico, algo que devêm,
um processo em curso, porque factos imóveis não se encontram nem se concebem
no mundo da realidade". É juízo histórico a mais óbvia percepção judicativa,
por exemplo a de uma pedra: "porque a

pedra é, na realidade, um processo em curso, que resiste às forças de


desagregação ou cede só pouco a pouco, e o meu juízo refere-se a um aspecto da
sua história". Nenhuma distinção é possível entre factos históricos e factos
não históricos. Um dos mais óbvios e dificílimos problemas da historiografia,
o da distinção entre factos históricos (ou seja, signi-
130

ficativos) e factos não históricos (insignificantes ou banais) e do critério


para os distinguir ou seleccionar é totalmente abolido e eliminado por Croce.
Toda a história é história contemporânea, "porque, por remotos ou remotíssimos
que pareçam cronologicamente os factos que entram nela, ela é, na realidade,
história sempre referida à necessidade e à situação presente, na qual os
factos propagam as

suas vibrações" (1b., p. 5). As fontes da história (documentos ou relíquias)


não têm outro fim senão o de estimular e formar no historiador estados de alma
que já existem nele. "0 homem é um microcosmos, não em sentido naturalista,
mas em sentido histórico, um compêndio da história universal" (1b., p. 6). A
necessidade e o estado de alma constituem, no entanto, apenas a matéria
necessária da história; o conhecimento histórico não pode ser a sua reprodução
passiva, mas deve superar a vida vivida para a representar em forma de
conhecimento. Devido a esta transfiguração, a história perde o seu

aspecto passional e torna-se uma visão necessária, logicamente necessária da


realidade. Nela, já não têm lugar as antíteses que se defrontam na vontade, e
no sentimento já não existem factos bons e factos maus, mas factos sempre
bons, quando sejam entendidos no seu carácter concreto, isto é, na sua íntima
racionalidade. "A história nunca é justiceira, mas

justifica sempre; e só poderia tornar-se justiceira se fosse injusta, ou seja,


se confundisse o pensamento com a vida e escolhesse para juízo do pensamento
as atracções e as repulsões do pensamento" (Teoria e história da
historiografia, 1917, p. 77). É devido

131

a esta sua natureza que a história pode libertar o

homem do peso opressivo do passado. Num certo sentido, o homem é o seu próprio
passado, que o

circunda e o comprime de todos os lados. O pensamento histórico converte a


relação com o passado em

conhecimento, redu-lo a problema mental e a verdade, que vale como premissa


para a acção futura. "Só o juízo histórico, que liberta o espírito da
compreensão do passado e, puro como é e alheio às partes em conflito, guardião
contra os seus ímpetos e os seus engodos, mantém a sua neutralidade e procura
unicamente fornecer a luz que se lhe pede; só ele toma possível a formação do
propósito prático que abre a vida ao desenvolver-se da acção e, com o

processo -da acção, às oposições, entre as quais ela deve actuar, do bem e do
mal, do útil e do nocivo, do belo e do feio, do verdadeiro e do falso, e, em

suma, do valor e -do desvalor. (A história, p. 35).

Talvez pareça assim, que o sentimento e a acção cairiam fora da história, que
é conhecimento racional perfeito. Pelo contrário, caem, segundo Croce, somente
fora do conhecimento, no domínio da forma prática do espírito. As angústias,
as esperanças, as lutas, etc., todos os impulsos dos homens, pertencem à
consciência moral, são "história. no seu fazer-se". Mas seja como acção
vivida, seja como conhecimento lógico, a história é sempre racionalidade
plena, progresso. O chamado elemento irracional da história é constituído
pelas manifestações da vitalidade: vitalidade que não é decerto a civilidade
ou a moralidade, mas condição e premissa necessária de uma e de outra; e como
tal, plenamente racional (A his-
132

tória, p. 160-61). Quanto à decadência, é um conceito aplicável só a


determinadas obras ou ideais; "mas em sentido absoluto e na história, nunca
existe decadência que não seja ao mesmo tempo formação ou

preparação de nova vida e, portanto, progresso" (1b., p. 38). Nem poderia ser
de outro modo porque o verdadeiro sujeito -da história é, sempre, em última
análise, o espírito infinito. A -história não é "a
obra impotente, e sempre ininterrupta do indivíduo empírico e irreal, mas a
obra daquele indivíduo verdadeiramente real, que é o espírito no seu eterno
individualizar-se. Por isso ela não tem de defrontar nenhum adversário, pois
todo o adversário é também o seu súbdito, isto é, um dos aspectos daquele
dialectismo que constitui o seu ser íntimo" (Teoria e história da
historiografia, p. 87).

Todavia, nos últimos escritos, sob o impulso das vicissitudes históricas


contemporâneas que se prestam mal a confirmar a perfeita racionalidade da
história e a sua total justificação, Croce introduz uma

distinção que deveria evitar que aquela tese servisse para a cínica aceitação
do facto consumado ou do êxito. Quer dizer, distinguiu a racionalidade da
história da racionalidade do imperativo moral. Tudo na história é racional
porque tudo nela "tem a sua

razão de sem. Mas racional é também o imperativo moral, ou seja, "aquilo que a
cada um de nós, nas condições determinadas em que é colocado, a consciência
moral manda fazem -(A história, p. 199). Ora, o imperativo moral neste sentido
é próprio do dever ser que pretende dar lições ao ser, contra o qual se
encarniçou sempre o desprezo de Hegel e

133

do próprio Croce. E este reconhecimento de um "racional" diferente da


racionalidade necessária -da história, tem o mesmo efeito que, no domínio da
estética, tinha o reconhecimento de formas ou modos de expressão diferentes
dos da expressão poética: a

saber, o de tomar impossível a unidade e a circularidade da vi-da espiritual e


destruir o próprio pressuposto da filosofia do espírito. De facto, a passagem
da forma teorética à forma prática (do pensamento à acção) justifica-se
somente no sentido -de que a primeira deve iluminar e dirigir a segunda, que
seria cega e irracional sem ela. Mas se todo o conhecimento é história, se
toda a história é justificação do que aconteceu e acontece, a única atitude
legítima, a um tempo teorética e prática, é a de quem vê em

toda a decadência um progresso, em todo o mal um bem e na obra do diabo a


própria obra de Deus. Tal foi, de facto, sempre a atitude de Hegel e tal
continua a ser a atitude de Croce filósofo. Apelar então para o imperativo
moral como para algo racional de outro género, significa querer dar, como
indivíduo, lições à história, como homem lições a

Deus. Por outras palavras, traduzir, não um racional mas um irracional, e


restaurar a desprestigiada e

ridicularizada situação do iluminismo.

A filosofia de Croce orienta-se, pois, para uma

contradição que não é de modo algum dialéctica porque carece,


desesperadamente, de solução. Por outro lado, Croce insiste no conceito da
história como visão divina do mundo, completa e total e

no seu conjunto imediata, à qual não se pode reportar o progresso, já que só


se pode referir este
134

ao nosso conceito das categorias e não às categorias mesmas (A história, p.


25). E por esta visão é levado a considerar as dúvidas e as desconfianças que
às vezes surgem, com respeito ao progresso, como impulsos sentimentais e cegos
que devem ser banidos pela reflexão histórica (0 progresso como estado de alma
e o progresso como conceito filosófico, "Critica", Julho de 1948). Por outro
lado, insiste na liberdade e na responsabilidade do indivíduo frente às suas
tarefas e, por conseguinte, na obrigatoriedade moral de atitudes que não sejam
a pura e simples aceitação do facto consumado. Num ensaio de 1929 (últimos
ensaios, 1935, p. 295 segs.) exprimiu este contraste equiparando-o ao que
existe entre a graça e o livre arbítrio; e viu a solução do mesmo no
"alternado operar do pensamento e da acção, da teoria a da práxis, de duas
categorias do espírito e da realidade, que só o são uma mediante a outra, e no
seu distinguir-se ou pôr-se se resolvem naquela ú nica unidade concebível que
é o

eterno unificar-se". Mas é precisamente este eterno unificar-se que resulta


impossível. Não se trata, com efeito, de simples proposições ou posições
lógicas, mas de atitudes humanas; e a atitude de quem tudo justifica, exclui e
condena a atitude de quem se sente responsável pelos ideais e pelas acções que
livremente escolheu.

A identidade entre filosofia e história conduz à negação de toda a filosofia


que não se reduza à consideração da história e dos seus problemas, e à
definição da filosofia como "metodologia da historiografia". O conceito de uma
filosofia que se situe

135

para além e fora da história ou que se ocupe de problemas universais eternos é


"a ideia da filosofia". Ela só pode dar origem a discussões intermináveis,
próprias dos filósofos de profissão, mas completamente fora do círculo vital
do pensamento. "Qualquer problema filosófico resolve-se unicamente quando é
posto e tratado com referência aos factos que o fizeram nascer e que cumpre
entender para o entendem (A história, p. 144). A unidade do problema com a sua
solução exclui que haja problemas insolúveis. A solução elimina o problema e

novos problemas são postos ou impostos pela vida e pela acção. À filosofia não
é dado pensar os universais sem os individualizar e, portanto, sem os

tomar históricos, como não é possível à historiografia conhecer a


individualidade dos factos sem os

universalizar. Em nenhum sentido se pode distinguir historiografia e


filosofia. A filosofia como tal está morta, e ressurge na historiografia.

A filosofia de Croce constitui a última e decisiva crise do idealismo


romântico. Este idealismo que se

apresentava em Gentile (como em Hegel) pacificado e feliz na consciência da


perfeita entidade entre finito e infinito, apresenta-se em Croce,
especialmente nas

suas últimas manifestações, como infelicidade e contraste de posições


inconciliáveis. As exigências e
os problemas que ele procurou fazer seus estilhaçam o quadro das categorias
prévias e revoltam-se contra elas. Mas precisamente por este aspecto a obra de
Croce é extremamente significativa para a filosofia contemporânea-

Esta obra exerceu uma grande influência sobre

136

a cultura italiana do período compreendido entre as duas guerras. Actuou no


mesmo sentido que a filosofia de Gentile, apesar da inimizade que se criou
entre os dois filósofos e da diversidade das suas doutrinas. Contudo, não deu
lugar, no campo filosófico, a nenhum desenvolvimento original ou
enriquecimento das suas teses fundamentais; em troca, determinou novos rumos
no campo da crítica literária e artística, especialmente em Itália, apesar de
tal influência estar actualmente a desaparecer da cultura italiana.

NOTA BIBLIOGRÁFICA

§ 709. Sobre Vera: **R0SENK1LANZ, Hegels Naturphilosophie und die Bearbeitung


derselben durch den italienischen Philosoph A. V., Rerlim, 1868; R. MARIANO;
A.V., Saggio biografi-co, Nápoles, 1887; G. GENTILE, Origini de" fil. contemp.
in Italia, M, Messina,
1921.

Sobre Spaventa: V. FAzIO-ALLMAYER, in "Giorn. critico della fil. italiana",


1920; G. GENTILE, Origini, ete. (cit.); IOD., in "Annali della ScuoIa Normale
Superiore di Pisa", 1934; VicoRiTA, B.S., Nápoles, 1938 (com bibliog.).

Estã em curso a edição dm obras completas de Gentile, ed. Sansoni de Florença.


Bibliog. de V. A. BELLEzzA, Bibliogr. degli scritti di G.G., vol. IIII de
G.G., Ia vita e il p~ero, ao cuidado da fundação "Gentile", Florença, 1950.

Sobre Gentile: E. CM0CCHETT1; La fil. di G.G., Milão, 1922; V. LA VIA,


L'idealismo attuale di G.G., Trani, 1925; R. W. HOLMES; The ideali~ of G.G.,
Nova Iorque, 1927; E. Paci, Pensicro, exist"za, valore, Milão, 1940; p. 1-14;
H. S. HARRIs, The Social Philo&ophy of G.G., Urbana, 111, 1960.

137

os volumes publicados pela "Fundação G.G. para os estudos filosóficos" e


inütulados: G.G. La i>ita e il pensiero contêm numerosos escritos
(interpretativos e

evocativos) sobre diversos aspectos da filosofia de G.G. O último destes


volumes é o X, saído em 1962.

§ 711. Um desenvolvimento do **aetuah@'smo gentiliano no sentido de um


espiritualismo religioso foi tentado por A. CARLINI nos esoritos: La vita
dello spirito, Florença, 1921; La relig"ità.

138

vi

O NEO-CRITICISMO

§ 722. CARACTERES DO NEO-CRITICISMO


A filosofia passou a ser entendida e aplicada, desde o neo-criticismo, como
reflexão crítica sobre a

ciência (ou sobre qualquer outra forma da experiência humana) tentando


encontrar na ciência (ou, em geral, nessa outra forma de experiência) as
condições que a tornam válida. O neo-criticismo admite assim a validade da
ciência, do mesmo modo que aceita a validade do mundo moral e estético. Mas o
criticismo é contrário à afirmação do carácter absoluto ou metafísico da
verdade científica, defendido pelo positivismo; e é, por outro lado, contrário
a qualquer tipo de metafísica ou de integração metafísico-religiosa do saber
científico, segundo as vias do espiritualismo e do idealismo. A metafísica

139

da matéria e a metafísica do espírito estão igualmente afastadas dos


interesses do neo-criticismo e constituem, até os alvos das suas atitudes
polémicas. Isto pressupõe a defesa da distinção kantiana entre a validade da
ciência (da moral ou da arte) o as condições de facto empíricas, psicológicas
ou

subjectivas que se encontram ligadas à ciência, à moralidade ou à arte. Assim


acontece com o neo-criticismo, se bem que esteja impregnado pela polémica
contra o empirismo e o psicologismo, que reduzem a validade do conhecer (ou da
moralidade ou da arte) às condições em que estas actividades se manifestam no
homem. O "retorno a Kant" é portanto o retorno ao ensinamento fundamental do
filósofo de Kõnigsberg, isto é, à exigência de não reduzir a filosofia à
psicologia, à fisiologia, à metafísica ou à teologia, mas sim de restituí-Ia à
sua tarefa de análise das condições de validade do mundo do homem.

§ 723. ORIGENS DO NEO-CRITICISMO NA ALEMANHA

O retorno a Kant verificou-se na Alemanha pouco depois dos meados do séc. XIX.
O primeiro impulso partiu dos escritos de **HeIraholtz, do aparecimento da
monografia de Kuno Fischer sobre Kant (1860) e da obra de Zeller Sobre a
significação e o

fim da gnoseologia (1862). Em 1865, Otto Uebmann (1840-1912) publicou o livro


Kant e os seus epígonos, em que traçava a análise de cada uma das quatro
orientações da filosofia alemã post-kantiana

140

(idealismo de Fichte, de Schelling e de Hegel; realismo de Herbert, empirismo


de Fries e transcendentalismo de Schopenhauer) com o lema: "Deve, pois,
voltar-se a Kant". O próprio Liebmann contribuiu com sucessivos escritos
(Análise da realidade, 1876; Pensamentos e factos, 1882-1904) para este
retorno a Kant, entendido por ele como criação de uma metafísica crítica que
tomasse como fundamento o

princípio kantiano da dependência do objecto relativamente ao sujeito e


admitisse, em consequência, apenas a consciência como facto originário.

A primeira manifestação do neo-criticismo na

Alemanha foi a de Hermann Helmholtz (1821-1894), que chegou a uma


interpretação fisiológica do kantismo partindo de exigências e de factos
inerentes às duas ciências que cultivava: a fisiologia e a física (Sobre a
vista humana, 1855; Teoria das sensações sonoras, 1863; Manual de óptica
fisiológica, 1856-66-, Os factos da percepção, 1879). Dado que os efeitos da
luz e do som sobre o homem dependem do modo de reacção do seu sistema nervoso,
Helnlholtz considera, as sensações como os sinais produzidos nos

nossos órgãos dos sentidos por acção das forças externas. Os sinais não são
cópias nem reproduzem os

caracteres dos objectos externos; mas, contudo, estão relacionados com eles. A
relação consiste em que o mesmo objecto, nas mesmas circunstâncias, provoca o
aparecimento do mesmo sinal na consciência. Esta relação permite-nos comprovar
as leis dos processos externos, isto é, a sucessão regular das causas e dos
efeitos, o que basta para provar que as leis do mundo real se reflectem no
mundo dos sinais e,

141

por conseguinte, para fazer deste último um conhecimento verdadeiro. Helmholtz


aceita a doutrina kantiana do carácter transcendental do espaço e do tempo mas
nega que tenham carácter transcendental os axiomas da geometria. A existência
das geometrias não-euclideanas demonstra que os espaços matemáticos, mesmo
sendo intuíveis, não se baseiam em axiomas transcendentais porque são
construções empíricas que têm como fundamento comum a intuição pura do espaço.
Segundo Helmholtz, idealismo e realismo são puras hipóteses que é impossível
refutar ou provar de modo decisivo. O único facto independente de qualquer
hipótese é a regularidade dos fenómenos e, por isso, o único carácter
essencial da realidade é a lei. O mérito imortal de Kant foi, precisamente, o
ter demonstrado que o princípio da causalidade, no qual toda a lei se funda, é
uma noção a priori. 'Na mesma linha se move Frederico Alberto Lange (1828-75),
conhecido principalmente pela sua História do materialismo (1866, enriquecida
e aumentada na 2.a ed. de 1873), que constitui uma

tentativa para chegar ao criticismo através da crítica do materialismo. Com


efeito, reconhecida a tese fundamental do materialismo, isto é, a estreita
conexão ida actividade espiritual com o organismo fisiológico, é preciso ainda
reconhecer, segundo Lange, que este mesmo organismo, como todo o mundo
corpóreo, do qual faz parte, só é conhecido por nós através das imagens que
produz. As conclusões. fundamentais da teoria do conhecimento são, por
conseguinte, três: "l.a -o mundo sensível é um pro-
142

duto da nossa organização. 2.1 -Os nossos órgãos visíveis (corpóreos) são,
como as restantes partes do mundo fenoménico, somente imagens de um objecto
desconhecido. 3 a-o fundamento transcendente da nossa organização é, pois,
desconhecido para nós, do mesmo modo que as coisas que actuam sobre ela. Só se
nos depara o produto de dois factores: o nosso organismo e o objecto
transcendente (Gesch. des Mater., 11, 7 a ed., 1902, p. 423). Uísto resulta
que "o reduzir todo o elemento psíquico ao mecanismo do cérebro e dos nervos
(como faz o materialismo) é o caminho mais seguro para chegar a

admitir que aqui termina o horizonte do nosso saber sem alcançar o espírito em
si" (Ib., p. 431). Nesse sentido é aceite a tese kantiana de que toda a
realidade, apesar da sua rígida concatenação causal, não é mais que fenómeno.
A coisa em si não é mais que um conceito limitativo, algo inteiramente
problemático, que se admite corno causa dos fenómenos, mas da qual nada se
pode afirmar positivamente (Ib., p. 49). Lange crê que o verdadeiro Kant é o
da Crítica da Razão Pura e que a tentativa de Kant de sair, como fez nas
outras obras, dos limites do fenómeno para alcançar o mundo noménico é
impossível, Os próprios valores morais e estéticos têm a sua raiz no mundo dos
fenómenos e carecem de significado fora dele (1b., p. 60). Existe, certamente,
um caminho para ir mais além dos fenómenos, mas não e o do saber positivo: é o
caminho da livre criação poética. O homem tem, certamente, necessidade de
completar a realidade fenoménica, com um mundo ideal criado por ele próprio.
Mas a livre criação

143

deste mundo não pode tomar a forma enganadora de uma ciência demonstrativa; e
se a toma, o materialismo ali está para destruir o valor de toda a especulação
audaz e para manter a razão dentro dos limites do que é real e demonstrável
(1b., p. 45). Deste ponto de vista, o valor da religião não consiste no seu
conteúdo teórico, mas no processo espiritual de elevação por sobre o real e na
criação de ,uma pátria espiritual que ela determina. "Acostumemo-nos - diz
Lange (1b., p. 548) - a atribuir ao princípio da ideia criadora em si,
deixando de lado toda a sua conformidade com o conhecimento histórico e
científico e também toda a falsidade deste conhecimento, um valor superior
àquele que se lhe tem atribuído até agora: acostumemo-nos a ver no

mundo das ideias uma representação figurada da verdade na sua totalidade, tão
indispensável para o

progresso humano como os conhecimentos do intelecto, e procuremos medir a


maior ou menor importância de cada ideia com princípios éticos ou estéticos".

Uma redução análoga da metafísica à actividade prática ou fantástica, valiosa


do ponto de vista humano mas não do ponto de vista científico, é defendida por
Luís RiehI (1844-1924), autor, entre outras, de uma vasta obra intitulada O
criticismo filosófico e a sua significação para a ciência positiva (1876-87) e
de um Guia para a filosofia contemporânea (1903). Riehl acentua em sentido
realista a interpretação fisiológica do kantismo, que recebe de Helmholtz.
A ;sensação é uma modificação da consciência, produzida pela acção da coisa em
si: como tal, não

144

revela nada sobre a natureza da coisa em si, mas permite afirmar a sua
existência. o facto de que a

uma sensação sucede outra (por ex., a passagem do azul ao roxo) implica uma
alteração produzida no objecto em si, ainda que não permita decidir em que
consiste. A realidade do objecto em si não é excluída pelo facto da
consciência ter simplesmente uma relação com ele. "Não contradiz nenhum
conceito do nosso pensamento supor que o que se converte em objecto, ao entrar
na relação que constitui a ciência, exista também independentemente desta
relação. MaIs ainda, esta afirmação está necessariamente unida à ideia de
relação: o que não existe não pode entrar em nenhuma relação" (Des phil.
Kritizismus, 11, 11, p. 142). O objecto em

si só pode ser caracterizado dizendo-se que é aquele que fica da nossa


representação total dos fenómenos depois de ter eliminado dela todos os
elementos subjectivos: este resíduo objectivo não é mais do que a regularidade
dos próprios fenómenos e, por isso, como Helmholtz, reconhece Rielid na lei o
único carácter da realidade em si (Ib., p. 173). Por outro lado, a mesma
função sintética do sujeito que unifica e ordena os dados sensíveis deve ter a
sua contrapartida objectiva na realidade. Com efeito, se não houvesse nada que
correspondesse à unidade lógica do pensamento, esta unidade seria inaplicável;
por isso ela é somente o reflexo da unidade na natureza e no pensamento (1b.,
11, 1, págs. 219 e segs.;
11, R, págs. 61 e segs.). É evidente que, deste ponto de vista, a oposição
entre sujeito e obj=to perio o seu carácter originário: o eu e o não-eu só são

145

diferentes funcionalmente, enquanto que a consciência originária é indiferente


(1b., 11, 1, págs. 65 e segs.). Só mente a elaboração da experiência que o
pensamento realiza mediante as suas leis a priori estabelece tal oposição. E
esta elaboração tem sempre carácter social: "A experiência-diz Rielil (1b.,
11, IL p. 64) -não é um conceito psicológico-individual, mas um conceito
social". A consciência universal consi** 'ituida pelas categorias que
condicionam a elaboração da experiência, não é mais do que w sistema das
coordenadas intelectuais, relativamente às quais eu penso todo o
conhecimento".

A possibilidade de uma metafísica como conhecimento hipotético, fundada na


experiência da coisa em si, é defendida também em artigos e ensaios por
Eduardo Zeller (1814-1908), o grande historiador da filosofia grega que, como
dissemos, foi um dos primeiros defensores do retorno a Kant na Alemanha.

§ 724. RENOUVIER: A FILOSOFIA CRíTICA

Na mesma altura do ressurgimento do criticismo na Alemanha, o retorno a Kant


era defendido em França por Charles Renouvier (1815-1903), que publicou entre
1854 e 1864 os quatro volumes dos seus Ensaios de crítica geral (Análise geral
do conhecimento, 1854; Psicologia racional, 1859; Princípios da
natureza, 1864; Introdução à filosofia analítica da história, 1864). A
esta, que é a sua obra principal, se,-u-ir-se-ão: A ciência da moral,
1869; Ucronia, 1876; Ensaio de unia classificação sistemática

146

das doutrinas filosóficas, 1885-6; A nova monadologia (de colaboração com L.


Prat), 1899; Os dilemas da metafísica pura, 1903; História e solução dos
problemas metafísicos, 1901; O personalismo,
1901. Renouvier declara explicitamente que aspira a continuar e levar a termo
a obra de Kant, e que aceita do positivismo a redução do conhecimento às leis
dos fenómenos porque esta redução concorda com o método de Kant,(Essais, 1,
1854, págs. X-XI). Por conseguinte, a filosofia tem por objecto estabelecer as
-leis gerais e os limites do conhecimento (Ib., p. 363); e Renouvier considera
idolatria e fetichismo filosófico toda a metafísica, descobrindo o seu
princípio na distinção entre Tealidade e representação. Como tantos outros
kantianos e neo-kantianos, crê que o princípio fundamental do criticismo é a
redução de toda a realidade à representação (Ib., p. 42).

A primeira consequência deste princípio é a eliminação da coisa ' em si e de


todo o absoluto. Enquanto representação a realidade não é mais do que
fenómeno. Mas o fenómeno é essencialmente relatividade; só existe em relação
com outros fenómenos, dos quais é parte ou nos quais entra como parte de um
todo. Tudo o que se pode representar e definir é relativo e a afirmação de uma
coisa em
si ou de um absoluto é intrinsecamente contraditória, porque pretende
estabelecer ou definir mediante relações o que está fora de toda a relação
(1b., p. 50). Na relatividade dos fenómenos baseia-se a lei, que Renouvier
define como "um fenómeno composto, produzido e reproduzido de modo constante,
e re-
147

presentado como a relação comum das relações de outros fenómenos diferentes"


(Ib., p. 54). Deste ponto de vista, todos os seres são "conjuntos de fenómenos
unidos por funções determinadas". Assim, a

consciência é uma função especial dos fenómenos que se manifestam nessa esfera
representada que é o indivíduo orgânico (Ib., p. 83). O saber e a ciência
tendem a estabelecer as relações entre os fenómenos e entre as leis,
procurando uma síntese única cujos limites corresponde à crítica estabelecer
(1b., págs.
86 e segs.). Todo o saber se baseia, portanto, na

categoria de relação, da qual são determinações e

especificações as outras categorias do conhecimento: o número, a extensão, a


duração, a qualidade, o devir, a força, a finalidade, a personalidade. Esta
última é a própria categoria da relação na sua forma vivente e activa.

A introdução da personalidade (ou consciência) e da finalidade entre as


categorias, constitui o aspecto mais original da doutrina de Renouvier
relativamente à de Kant. No que se refere à finalidade, Renouvier observa que
a lei do fim não é menos essencial para a constituição do espírito humano do
que a lei da causalidade, e que o homem que a impõe em todos os seus actos e a
aplica para dirigir todos os seus juízos é o mesmo e único homem que considera
causas e qualidades (Essais, 1, p. 407). Quanto à categoria da personalidade,
Kant excluiu-a das categorias; introduziu-a depois como eu pensante, abrindo
assim caminho ao idealismo; na realidade, da é uma forma dos nossos juízos,
tal como as outras categorias. "Deverá a consciência, pelo facto
148

de se identificar com o filósofo, impedir este de lhe dedicar uma parte na


obra que ela reivindica totalmente? O objecto da crítica é precisamente
estudar o eu como algo distinto do eu e como uma entre outras coisas
representadas" (Ib., p. 398).

O conceito do saber como relação e sistema de relações leva Renouvier a


considerar a possibiEdade de um sistema total, de uma síntese completa das
relações, a qual seria o mundo. Renouvier elimina as antinomias enumeradas por
Kant: a propósito desta ideia, eliminando dela o carácter de infinidade, ou
seja, aceitando sem restrições as teses das antinomias kantianas e destruindo
as antíteses. O infinito é sempre intrinsecamente contraditório quando se
considera real: pode ser admitido no campo do possível, não no da realidade
fenoménica. É contraditório admitir um todo infinito **d&o, já que 3

que é dado possui, necessariamente, as determinações que fazem dele algo


finito. O mundo real é um todo finito e as teses das antinomias kantianas são
verdadeiras. É necessário, pois, admitir que o mundo é limitado, no espaço e
no tempo, que a sua divislibilidade tem um termo e que depende ele uma ou

mais causas, que não são efeitos, mas causas primeiras. "0 mundo-diz Renouvier
(Ib., 1, pág-s.
282-3) depende de uma ou mais causas que não são efeitos, mas actos
antecedentes: tende para um ou mais fins, cujos meios adquiridos não se
prolongam interminavelmente no passado nem no futuro; e e~ fins e estas causas
estão n&e, de algum modo, já que todo o devir implica força e paixão; e como

todo o fenómeno supõe a representação e toda a

149

representação supõe a consciência, o mundo compreende uma ou mais consciências


que se aplicam ao seu conteúdo". Esta última alternativa refere-se ao problema
de Deus e à relação entre o inundo e Deus. Renouvier exclui a hipótese da
criação, que reduz a consciência primeira a um ídolo indefinível: "unia força
que produza a força, um amor que ame o amor, um pensamento que pense o
pensamento". Fica a hipótese da emanação; mas, nesta hipótese, ou o uno
originário se

considera em sentido absoluto e, portanto, como

algo que exclui toda a pluralidade, sendo incapaz de a explicar, ou se


considera como uma verdadeira consciência, como uma força e uma paixão
dirigida a outros actos e a outros estados e, neste caso, a pluralidade, e
precisamente a pluralidade das pessoas, é-lhe já intrínseca. A hipótese da
emanação coincide pois, substancialmente, com a da pluralidade múltipla, o
todo, pela única razão de que o

é, para Reinouvier, o dado originário. "Nós subsfituímos o Uno puro, ídolo dos
metafísicos, pela unidade múltipla, a todo, pela única razão de que o

mundo, actual e originariamente, é uma síntese determinada, não, uma tese


**abstraci 'a" (Essais, 1, p. 357). Renouvier sustenta que isto é tudo quanto
se pode dizer sobre síntese total do mundo e que to-aos os

outros problemas que a metafísica põe sobre as

suas ulteriores determinações não podem encontrar resposta, porque não têm um
sentido definível nos limites do conhecimento, humano.

Na Nova monadologia (1899) volta a propor, não obstante, tais problemas e,


reafirmando substancial-
150

mente -as teses dos Ensaios, chega a renovar a concepção cíclica do mundo tal
como se encontra nos Padres da Igreja grega, especialmente em Orígenes (§
146). Renouvier aceita explicitamente (Nova monad., p. 505) a tese de uma
pluralidade de mundos sucessivos, nos quais a passagem de um mundo para outro
é determinada pelo uso que o homem faz da liberdade em cada um deles; e
pretende corrigir a

tese de Orígenes no sentido de que "o fim alcançado volta a unir-se com o
princípio, não na indistinção das almas mas na humanidade perfeita, que é a

sociedade humana perfeita". Este fazer reviver as

velhas concepções metafísicas, que estão em oposição com o delineamento


crítico da filosofia de Renouvier, é provocado pela necessidade de fazer
depender o destino do mundo da acção da liberdade humana.
§ 725. RENOUVIER: O CONCEITO DA HISTÓRIA

Esta necessidade domina o seu conceito da história. Podem reconhecer-se na


história duas espécies de leis: em primeiro lugar as leis empíricas,
estabelecidas pela observação, e contingentes na sua aplicação; em segundo
lugar, as leis a priori, que deveriam depender de uma única dei e originar o

desenvolvimento do destino humano em todos os aspectos do pensamento e da


acção de todos os

povos do mundo. "As leis empíricas pressupõem o livre arbítrio humano e a não
predeterminação dos grandes acontecimentos, pêlo menos do ponto de

151

vista da nossa ignorância, mesmo que fossem concatenados e determinados de um


modo desconhecido para nós. As Idis a priori implicam, pelo contrário, o
determinismo absoluto e o poder do espírito humano para definir e abarcar todo
o seu desenvolvimento" (Intr. à Ia phil. anal. de 1'hist., págs.
149-150). O reconhecimento de leis a priori na história conduz ao fatalismo: é
esta a conclusão da filosofia da história de Hegel, tal como do positivismo de
Saint-Simon. Por outro lado, o pessimismo de Schopenhauer é, também,
determinista; e a todas as concepções a priori, optimistas ou pessimistas,
Renouvier opõe a sua filosofia analítica da história, que tende "a determinar
as origens e as concatenações reais das ideias, das crenças e dos factos, sem
outras hipóteses a não ser as que sejam inevitáveis devido às induções
psicológicas e morais e ao grau de incerteza dos documentos" (ib., p. 152).
Através ,do estudo analítico da religião e da moral das épocas primitivas,
Renouvier chega a estabelecer a função da liberdade humana na história. O ser
e o dever ser não coincidem na história. Segundo Renouvier, existe uma moral
diferente da história, isto é, das suas próprias realizações. Mas a história,
de certo modo, é uma função da moral, no sentido de que * pensamento julga,
corrige, refaz os juízos, os actos * os acontecimentos históricos. E, por
outro lado, a

moral é uma função da história, no sentido de que a própria consciência moral


se formou e desenvolveu através da história, que é a própria experiência
humana no seu desenvolvimento (Ib., págs. 551-2).
O progresso não é, pois, uma lei fatal. Considerá-lo

152

como tal significa debilitar a consciência imoral e dispor-se a declarar como


necessário e justo tudo o

que sucedeu (1b., p. 555). A história é o cenário da liberdade em luta e só


quando a liberdade se afirma e se realiza a si mesma, é que a história
progride e se molda à vida moral. Este é, com efeito, o domínio da liberdade.
Na Ciência da moral (1869), Renouvier vê, no princípio de que "o homem está
dotado de razão e se julga livre", o fundamento necessário e suficiente de
toda a moralidade humana. "A moralidade consiste na capacidade e,
praticamente, no acto de determinar-se pelo melhor, isto é, de reconhecer,
entre as diferentes ideias do agir, a ideia particular de uma acção
obrigatória e

de conformar-se com ela" (Science de la morale, ed. 1908, p. 3). Renouvier


adopta totalmente o conceito Kantiano do imperativo categórico e baseia-o no
conhecimento originário que o homem possui sobre o que deve ser e deve fazer,
conhecimento oposto àquele que lhe é dado pelas suas próprias manifestações
(Ib., p. 215).

A convicção da problematicidade da história conduz Renouvier, na Ucronia (a


utopia da história) à surpreendente tentativa de construir "a história
apócrifa do desenvolvimento da civilização europeia, como teria podido ser e
não foi". Renouvier parte da consideração de que "se numa época determinada os
homens tivessem acreditado firme e dogmaticamente na sua liberdade, em vez de
tentarem crer nela de maneira lenta e imperceptível, mediante um progresso que
é talvez a própria essência do progresso, desde essa época a face do mundo
teria

153

mudado bruscamente" (Uchro-nie, 2.a ed., 1901, p. IX). Baseando-se nesta


consideração, imagina os

traços que caracterizariam a história da Europa se

se admitisse a possibilidade real de que a série de acontecimentos, desde o


Imperador Nerva até ao

Imperador Carlos Magno, tivesse sido radicalmente diferente do que de facto


foi. Neste caso, a Europa encontrar-se-ia agora numa condição de paz e de
justiça social. As guerras religiosas teriam acabado e teriam conduzido à
tolerância universal. Também teriam acabado as guerras comerciais, parecendo
incapazes de criar o monopólio único para que tende a avidez de cada nação, e
as guerras nacionais ou

de proeminência teriam, por seu lado, cedido o seu lugar à implantação da


liberdade e da moralidade no Estado. **Mém disso, o trabalho seria tão honrado
como o exercício mais digno da actividade humana e a obra do governo
considerada como um trabalho de interesse público dirigido para o bem comum
(1b., págs. 285-6).

A utopia histórica de Renouvier parece basear-se precisamente na tese que


nega: uma profecia, tanto no que se refere ao passado como ao futuro, somente
é possível se se admite a necessidade da história. O carácter problemático da
história torna indeterminadas as relações entre os acontecimentos, e por isso
não se pode encontrar nenhuma relação nas hipóteses fictícias que se podem
formular, nos

se que podem ser introduzidos na consideração dos factos. Renouvier dá-se


parcialmente conta desta dificuldade e observa no fim da obra que, admitido um
desvio possível num certo momento do curso

154

histórico, outros desvios -se apresentam noutros pontos, tornando sumamente


incerta e arbitrária a construção hipotética. Mas afirma que a sua finalidade
foi eliminar a ilusão do facto consumado, "a ilusão da necessidade preliminar
devido à qual o facto realizado seria o único, entre todos os outros
imagináveis, que teria podido realmente suceder" Ub., p. 411). Dado que se
trata de uma fusão, deve poder-se dissipá-la reclamando o direito de
introduzir na série efectiva dos factos da história um certo número de
determinações diferentes das que se produziram, Esta tentativa terá, em todo o
caso, "obrigado o espírito a deter-se um momento no pensamento dos possíveis
que não se verificaram e elevar-se assim mais resolutamente ao pensamento dos
possíveis que estão ainda em suspenso no mundo" (ib., p. 412). A utopia
histórica, por outras palavras, é sugerida a Renouvier pela exigência de
subtrair o homem à tirania do facto e da **Ausão da necessidade. E pode
duvidar-se da eficácia da utopia, mas não do valor da exigência.

§ 726. O CRITICISMO INGLÊS

A lógica (1874) de Lolze renovou e valorizou a distinção estabelecida por Kant


entre o aspecto psicológico e o aspecto lógico-objectivo do conhecimento. Esta
distinção converte-se em característica das diversas tendências do neo-
criticismo. O neo-criticismo inglês desenvolveu-se em estreita conexão

com o pensamento de Kant, e especialmente, com

155

a escola de Marburgo, dado que apresenta como aspecto característico uma certa
tendência para o empirismo.

Shadworth H. lIodgson (1832-1912) é o autor

de uma vasta obra intitulada A metafísica da experiência (4 vols., 1898), de


outros livros e ensaios menores (Tempo e espaço, 1865; A teoria da prática,
1870; A filosofia da reflexão, 1878; e de numerosos ensaios publicados nas
actas da Aristotelian Society e no "Mind"). A metafísica da experiência é unia
análise subjectiva da experiência que tem por fim reconhecer o significado e
as condições da consciência, por um lado, e das realidades diferentes da
consciência, por outro. A análise da consciência neste sentido é, segundo
Hodgson (Met. of Exp.,
1, págs. IX-XI), a mesma que Kant tinha iniciado, mas liberta do pressuposto a
que o próprio Kant e os filósofos que dele receberam a sua inspiração o
tinham vinculado, isto é, da distinção entre sujeito e objecto, dado como
verdade última fora de discussão. A distinção entre sujeito e objecto é
substituída em Hodgson pela distinção entre o conteúdo objectivo da
consciência e o facto ou o acto da sua percepção. A análise do mais simples
estado de consciência, por exemplo, de um ;som, revella imediatamente estes
dois aspectos distintos e, contudo, inseparáveis. "Designando o conteúdo pelo
qual (whatness) da percepção ou da experiência, podem chamar ao facto de que
seja percebido o seu que (thatness), isto é, a sua existência enquanto é
conhecida no presente. Nenhuma 'destas duas partes da experliência total
existe separadamente da outra: são
156

distinguíveis, inseparáveis e medidas uma pela outra" (Met. of Exp., 1, p.


60). Essência e existência, qual o que, são os dois aspectos opostos e conexos
da experiência: a existência identifica-se com o ser percebido, conforme a
fórmula de BerLdIcy esse est percipi; a essência é o próprio conteúdo da
percepção, é o qual do que existente.

Estas considerações de lIodgson, ainda que apresentadas em polémica com Kant e


com os kantianos, tendem para o mesmo objectivo das correntes do neo-
criticismo contemporâneo: o de distinguir o
conteúdo objectivo da experiência (na validade que lhe é própria) dos actos ou
factos psíquicos aos quais se apresenta unido. Hodgson distingue, com efeito,
o aspecto psicológica do conhecimento intelectual e

o seu aspecto lógico. Pode ser considerado como um processo ou facto existente
e denomina-se então pensamento, juízo ou raciocínio, e pode ser considerado
como um modo de conhecimento e é então uma forma conceptual, que utiliza
conceitos tais como

condição, possibilidade, alternativa, etc. (Ib., p. 383). Do mesmo modo, a


consciência (ou a experiência na sua totalidade) pode ser considerada como
uma realidade existente ou como conhecimento; como realidade existente
desenvolve-se para diante e move-se do presente para o futuro; como
conhecimento é reflexiva e do presente volta ao passado. Por isso o
problema da consciência pode ser duplo: ou é problema relativamente à essência
da consciência e corresponde à metafísica, ou é problema relativamente à
existência da consciência, isto é, relativamente às condições do seu ser de
facto, e

157

respeito à psicologia. Hodgson revela assim, em todas as suas análises, a


preocupação de assinalar os limites precisos entre a investigação -psicológica

e a gnoseológica, que é própria do neo-criticismo e que encontra a sua mais


decidida e rigorosa expressão na escola de Marburgo.

Mesmo quando Hodgson parte do princípio esse est percipi, e afirma que o
sentido geral da realidade é o facto de que se dá a experiência (1b., p. 458),
não se detém na tese idealista; analisa assim a formação, no seio da
experiência, de uma realidade objectiva e, também, de unia realidade que
existe independentemente de ser percebida. ou pensada (mesmo quando não é
independente do acto de pensamento que a reconhece como tal). Contudo, o
"mundo externo" de que nos fala é considerado externo unicamente em relação ao
corpo, enquanto ocupa um lugar no espaço juntamente com os outros objectos da
experiência (Met. of Exp., 1, p. 267).

De inspiração kantiana é, também, aquilo que Hodgson chama "a parte


construtiva da filosofia". A filosofia é uma análise da experiência e a
experiência não pode ser transcendida. Contudo, os seus limites e as suas
lacunas fazem pensar num "mundo invisível" do qual não temos conhecimento
positivo, e de que só possuímos aquelas características gerais que podem
inferir-se das suas relações necessárias com o

mundo visível. Pretende neste ponto **combinuar a

Crítica da Razão Prática de Kant (1b., IV, p. 399). "Os sentimentos, cuja
eleição prática é um mandato da consciência e cujo triunfo é a convicção da
fé, são conhecidos e experimentados por nós justamente

158

como sentimentos pessoais, apenas enquanto são sentidos por certas pessoas
relativamente a outras. Mas quando pensamos que o seu triunfo se baseia
providencialmente na natureza do universo, não podemos pensar o próprio,
universo senão como pessoal, apesar de esta tentativa de realizar
especulativamente o pensamento falhar necessariamente e

se converter em contraditória" (ib., IV, p. 400). A consciência moral é, pois,


o fundamento da fé no mundo invisível, isto é, numa "força divina que suporta
todas as coisas -e que é distinta, mas inseparável, tanto de nós próprios como
do mundo visível e mesmo do mundo invisível".

Encontram-se as -mesmas exigências na obra de Robert Adamson (1852-1902),


autor de duas monografias sobre Kant (1879) e sobre Fichte (1881) e de vários
escritos publicados depois da sua morte com o título de O desenvolvimento da
filosofia moderna (2 vols., 1903). Adamson coloca explicitamente toda a -sua
filosofia na necessidade de um regresso à doutrina kantiana e de um exame novo
dos problemas tal como saíram das mãos de Kant (Phil. of Katit, p. 186, Tre
Developement, II, p. 13). A principal lição que tira de Kant é a distinção
entre o ponto de vista da psicollogia e o ponto de vista da gnoseologia,
distinção pela qual "a origem de certa modificação especial da nossa
experiência não pode determinar de modo algum a sua validade ou o seu valor
para o conhecimento" (The Developement, 1, p. 245). Assim como a psicologia se

ocupa dos fenómenos da consciência enquanto experiências imediatas e dos


processos em virtude'dos

159

quais se desenvolve, por tais experiências, a distinção entre sujeito e


objecto, a gnoseologia, contrariamente, ocupa-se do valor ou da validade dos
conceitos baseados nesta distinção; e os seus problemas surgem do
reconhecimento da antítese, da qual a psicologia traça a formação.

Nesta base, as análises de Adamson tendem a mostrar dois princípios


fundamentais. O primeiro é o da distinção entre o acto de apreender e o
conteúdo apreendido, distinção que, contudo, não implica o isolamento
recíproco ou a independência dos dois factos. O segundo princípio é que os
actos ou estados de consciência não têm como objectos próprios o seu modo de
existência (a sua realidade como modificação de um sujeito). Por outras
palavras, uma ideia não pode ser considerada como um acto de conhecimento
interno que tenha por objecto a

própria ideia. O estado psíquico pelo qual o conteúdo é apreendido não


participa dos caracteres deste conteúdo: o acto de apreender o vermelho não é,
ele próprio, vermelho, bem como o acto de apreender um triângulo não é
triangular. Nós temos consciência nos nossos estados mentais e através deles;
mas não temos consciência deles. Este segundo princípio corta a passagem para
o idealismo subjectivo, já que evita a redução do objecto conhecido a um

estado do sujeito cognoscente (The Developement,


1, p. 234).

Adamson não considera que a unidade da percepção seja um princípio primitivo;


será antes um

produto refinado do desenvolvimento da experiência. Tudo o que se pode


conceder à tese de Kant é que,

160

quando representamos um universo de factos relativos e conexos, só os podemos


representar em referência a uma experiência consciente. Mas a experiência
consciente tem infinitos graus e só o último e mais completo deles pode ser
caracterizado como autoconsciência (Ib., págs. 255-6). Deste modo, Adamson
conduz o criticismo às teses empiristas.
O pensamento que organiza a experiência é, por sua vez, estimulado e dirigido
pela experiência; e as

categorias são unicamente os modos por que o espírito organiza e acomoda as


suas experiências, modos que foram também plasmados pela experiência que
organizam. Vislumbra-se na doutrina de Adamson a tendência para o real-ismo,
que devia tomar como

ponto de partida, precisamente, os -pressupostos que Adamson pôs a descoberto.

Um traço notável da especulação de Adamson é a repulsa da ideia romântica do


progresso (tão grata aos idealistas e naturalistas do seu tempo),

como uma aproximação gradual e contínua para um fim supremo, do qual seriam
realizações parciais ,todos os desenvolvimentos da realidade cósmica e humana.
A noção de fim, segundo ele, é uma categoria prática que não encontra
aplicação para além dos limites da experiência individual. Por isso, o

decurso dos fenómenos não pode ser, de modo algum

e em qualquer domínio, concebido como uma sucessão de mudanças predeterminadas


por um objectivo final. Não obstante, Adamson admite que, dado que o
pensamento é sempre idealizante, pode conceber-se um espírito infinito que
esteja com o processo total da realidade na mesma relação que o nosso

161

conhecimento está com a limitada porção da realidade que lhe é dada. Mas crê
que o problema da existência deste espírito não pode ser definitivamente
resolvido.

George Dawes Hicks (1862-1941) autor de um

estudo sobre Os conceitos de fenómeno e nómeno lia sua relação segundo Kant
(escrito em alemão e publicado na Alemanha, 1897) e de dois livros, As bases
filosóficas do teísmo (1937) e Realismo crítico 1(1938), pode considerar-se
discípulo, de Adamson. Hicks toma como ponto de partida a distinção feita já
por Hodgson e Adamson, entre existência e essência, o qual e o que; e serve-se
dela para chegar à conclusão de que o objecto é apenas uma

fase mais completa e melhor determinada do próprio conhecimento. Com efeito, a


soma das características apreendidas de um qualquer objecto (o conteúdo
apreendido ou a aparência do objecto) nunca iguala a soma das características
que constituem a essência completa (ou conteúdo) do próprio objecto. A
primeira nunca pode ser considerada como realidade existente porque é sempre
uma selecção das características constitutivas do objecto. Ela é o qual, e a

essência total do objecto é o que; ou ainda, se se preferir, a primeira é o


fenómeno e a segunda é a realidade. O contraste entre fenómeno e realidade é,
pois, apenas um contraste entre uma realidade parcial ou imperfeitamente
conhecida nas suas características. A função do juízo, ao qual se reduz a
actividade fundamental do conhecer, é a de captar um número cada vez maior de
características do objecto e acercar-se, portanto, cada vez mais (Ia

162
realidade como tal. Este conceito da realidade, considerado como termo final
do processo cognitivo (mais do que como seu ponto de partida), é o

**ii@z@smo que se encontra na escola de Marburgo.

§ 727. A FILOSOFIA DOS VALORES: WINDELBAND

As duas expressões máximas do criticismo germânico, são a Escola de Baden e a


Escola de Marburgo. Possuem em comum a exigência abertamente kantiana de
considerar a validade do conhecimento independente da condição subjectiva ou
psicológica em que o conhecimento se verifica. A escola de Baden responde a
esta exigência com uma teoria dos valores considerados independentes dos
factos psíquicos que os testemunham. A escola de Marburgo responde a esta
exigência reduzindo o processo, subjectivo do conhecer ao método objectivo que
garante a validade do conhecimento.

O fundador da escola de Baden foi Guilherme Winddiband (1848-1915), professor


em Zurique, Estrasburgo e Heidelberga e um dos mais conhecidos historiadores
da filosofia. O seu Manual de história da filosofia é elaborado por problemas,
sendo o desenvolvimento histórico dos mesmos considerado como relativamente
independente dos filósofos que os abordam. As ideias sistemáticas de
Windelband estão contidas na colecção de ensaios e discursos intitulados
Prelúdios (1884, muito aumentada em edições sucessivas). Outros dos seus
escritos notá-
163
eis são: A liberdade do querer (1904), Princípios de lógica (1912) e
Introdução à filosofia (1914).

Windelband considera a filosofia como "a ciência crítica dos valores


udiversais". Os valores universais constituem o seu objecto; o carácter
crítico caracteriza o seu método. Por esta via encaminhou Kant a filosofia.
Kant foi o primeiro que distinguiu nitidamente o processo psicológico, em
conformidade com cujas leis os indivíduos, os povos e a espécie humana alcança
´m determinados conhecimentos, do valor de verdade de tais conhecimentos. Todo
o pensamento que pretende ser conhecimento contém uma ordenação das
representações, que não é só produto de associações psicológicas mas também a
regra a que deve ajustar-se o pensamento verdadeiro. Na multiplicidade de
séries representativas que se formam em cada indivíduo segundo a necessidade
psicológica da associação, há algumas que expressam esta regra, a qual lhes
confere a objectividade e é, portanto, o único objecto do conhecer. Kant
destruiu definitivamente a concepção grega da alma como espelho passivo do
mundo e da verdade como cópia ou imagem de uma realidade externa. Para Kant, o
objecto do conhecimento, o que mede e determina a sua verdade, não é uma
realidade externa (que como tal seria inalcançável e inverificável), mas a
regra intrínseca do próprio conhecimento. Posto isto, a tarefa da filosofia
crítica é a de interrogar-se sobre a existência de uma ciência, um pensamento
que tenha um valor absoluto e necessário de verdade; a existência de urna
moral, isto é, um querer e um agir que tenham valor absoluto e necessário de
bem;

164

e a existência de uma arte, ou seja, um intuir e um sentir que possuam valor


absoluto e necessário de beleza. Em nenhuma das suas três partes a filosofia
tem como objecto próprio os objectos particulares que constituem o material
empírico do pensamento, do querer, do sentir, mas somente as normas
às quais o pensamento, o querer e o sentir devem conformar-se para ser válidos
e possuir o valor a que aspiram.

Por outras palavras, a filosofia não, tem por objecto juízos de facto, mas
juízos valorativos (Beurteilungen), isto é, juízos do tipo "esta coisa é boa",
que incluem uma referência necessária à consciência que julga. Todo o juízo
valorativo é, com efeito, a reacção de um indivíduo dotado de vontade e
sentimento ante um determinado conteúdo representativo. O conteúdo
representativo é produto da necessidade natural ou psicológica; mas a reacção
expressa no juízo que o valora pretende uma validade universal, não no sentido
de que o juízo seja reconhecido de facto por todos, mas unicamente rio sentido
de que deve ser reconhecido. Este deve possuir é uma obrigatoriedade que nada
tem que ver com a necessidade natural. "0 sol da necessidade natural afirma
Windelband (Prãludien, 4.a ed.,
1911, 11, págs. 69 e segs.), resplandece por igual sobre o justo e sobre o
injusto. Mas a necessidade, que observamos, de validade das determinações
lógicas, éticas e estéticas, é uma necessidade ideal, uma necessidade que não
é a do Müssen e do não-poder- ser-de-outro-modo, mas a do Sollen e do poder-
ser-de-outro-modo". Esta necessidade ideal consti-
165

tui uma consciência normativa que a consciência, empírica encontra em si e à


qual deve conformar-se. A consciência normativa não é uma realidade empírica
ou de facto, mas um ideal, e as suas leis não são leis naturais que devam
necessariamente verificar-se em todos os factos singulares, mas normas às
quais devem conformar-se todas as valorações lógicas, éticas e estéticas. A
consciência normativa é um sist ema de normas que, assim como valem
objectivamente, também devem valer subjectivamente, ainda que na realidade
empírica da vida humana só em parLe. A filosofia pode também definir-se, por
conseguinte, como "a ciência da consciência normativa"; e como tal, ela
própria é um conceito ideal que só se realiza dentro de certos limites. A
realização das normas na consciência empírica constitui a liberdade, a qual se
pode, por isso, definir como "a determinação da consciência empírica por parte
da consciência normativa". A religião considera a

consciência normativa como uma realidade transcendente e supramundana que


Windelband designa por santo. "0 santo é a consciência normativa do
verdadeiro, do bem e do belo, vivida como realidade transcendente". Tal
realidade transcendente é concebida pela religião com as categorias de
substância e de causalidade c.. portanto, como uma personalidade na qual é
real tudo o que deve ser e não o é o que não deve ser: como a realização de
todo o

ideal. Nisto consiste a santidade de Deus, Nisto também consiste a antinomia


insolúvel da religião. "A representação transcendente deve identificar em

Deus a realidade e a norma, enquanto a necessidade

166

de libertação do sentimento religioso as divide. O santo deve ser a substância


e a causa do seu contrário. Disto depende a completa insalubilidade do
problema da teodiceia, o problema da origem do mal no mundo" (Prãludien, 4.11
ed., 1911, p. 433).

Num ensaio de 1894, História e ciência natural, retomando e criticando a ideia


exposta por Dilthey na Introdução às ciências do espírito (1883), Windelband
delineou uma teoria da historiografia, estabelecendo a distinção entre
ciências naturais e ciências do espírito. As ciências naturais procuram
descobrir a lei a que obedecem os factos e SãO, por isso, ciências
noinotéticas; as ciências do espírito, por outro lado, têm como objecto o
singular na

sua forma historicamente determinada e são, por isso, ciências ideográficas.


As primeiras têm como objectivo final o reconhecimento do universal; as
segundas tendem, contrariamente, para o reconhecimento do singular, quer seja
um facto ou uma série de factos, a vida ou a natureza de um homem ou de um
povo, a natureza e o desenvolvimento de uma língua, de uma religião, de uma
ordem jurídica ou

de qualquer produção literária, artística ou científica. As primeiras são


ciências de leis; as segundas, de factos. Windelband contrapõe esta distinção
de natureza puramente metodológica à distinção objectiva estabelecida por
Dilthey; mas é forçado a admitir que nem mesmo Dilthey tinha compreendido esta
distinção num sentido puramente objectivo e que para ele a distinção entre os
métodos e a distinção entre os objectos são simultâneos (§ 736). Segundo
Windelband, um mesmo objecto pode ser estudado

167

por ambas as espécies de ciências e, por vezes, os

dois tipos de consideração entrecruzam-se numa mesma disciplina, como sucede


na ciência da natureza orgânica, a qual tem carácter nomotético enquanto
descrição sistemática e carácter ideográfico ao considerar o desenvolvimento
dos organismos sobre a

terra. As ciências ideográficas são essencialmente históricas, sendo a


finalidade da história fazer reviver o passado nas suas características
individuais, como se estivesse idealmente presente. A história dirige-se para
o que é intuível e a ciência da natureza tende para a abstracção. O momento
histórico e o momento naturalista do saber humano não, se deixam reduzir,
segundo Windelband, a uma única fonte. "A lei e o acontecimento ficam um ao
lado do outro como últimas grandezas incomensuráveis

na nossa representação do mundo. Este é um dos pontos limites em que o


pensamento científico tem apenas por missão levar o problema à luz da
consciência, mas não está em condições de o resolvem (Prãludien, 4aed., 1911,
p. 379).

§ 728. RICKERT

Em estreita relação com Windelband está a filosofia de Heinrich Rickert (1863-


1936), que foi professor em Friburgo e Heidelberga. Os seus escritos
principais são: O objecto do conhecimento (1892); Os limites da formação dos
conceitos científicos (1896-1902); Ciências da cultura e ciências da natureza
(1899); A filosofia da vida (1920), Sistema de

168

filosofia (1921); Problemas fundamentais da filosofia (1934); Imediatez e


significado (colecção póstuma de ensaios, 1939). A obra de Rickert representa
a sistematização dos temas filosóficos de Windolband; mas não se pode dizer
que com tal sistematização tenham adquirido maior evidência e profundidade.
Em O objecto do conhecimento, Rickert critica todas as doutrinas que
interpretam o conhecimento como relação entre o sujeito e um objecto
transcendente, independente daquele, e com o qual o próprio conhecimento deve
conformar-se. A representação e a coisa representada são ambas objectos e

conteúdos da consciência e, por isso, a sua relação não é a que existiria


entre um sujeito e uma realidade transcendente, mas a que existe entre dois
objectos ;do pensamento. Por conseguinte, o critério e a medida da verdade do
conhecimento (o seu verdadeiro objecto) não é a realidade externa. Conhecer
significa julgar, aceitar ou refutar, aprovar ou reprovar: significa, pois,
reconhecer um valor. Mas enquanto valor, que é objecto de uma valoração
sensível (por exemplo, de um sentimento de prazer), vale somente por
determinado eu individual e num momento dado, o valor que é reconhecido no
juízo deve valer para todos e em todos os tempos. O juízo que eu formulo,
ainda que se refira a representações que vão e vêm, tem um valor duradouro
enquanto não puder ser diferente do que é. No momento em que se julga,
pressupõe-se algo que vale eternamente, e

esta suposição é propriedade exclusiva dos juízos lógicos. Nestes, eu sinto-me


ligado por um senti-
169

monto de evidência, determinado por uma **patéacia à qual me submeto e que


reconheço como obrigatória. Este sentimento dá ao juízo o carácter de no-,
cessidade incondicionada. Mas tal necessidade não tem nada que ver com a
necessidade causal das representações: é uma necessidade ideal, um imperativo
cuja legitimidade se reconhece e é aceite conscientemente. Neste imperativo,
neste dever ser, consiste a verdade do juízo. O objecto do conhecimento,
aquilo que dá ao conhecimento o seu valor de verdade, é o dever ser, a norma.
Negar a norma

é impossível, porque significa tornar impossível qualquer juízo, inclusive o


que nega. O dever ser precede o ser. Não se pode dizer que um juízo é
verdadeiro por exprimir o que é; mas só se pode dizer que algo é se o juízo
que o expressa é verdadeiro pelo seu

dever ser. O dever ser é transcendente relativamente


* toda a consCiência empírica individual, porque é
* consciência em geral, uma consciência anónima, universal e ,impessoal, à
qual toda a consciência

individual se reduz ao expressar um juízo válido. Esta consciência universal


não é só lógica, mas também ética e estética. A oposiição entre o teórico e o
prático desvanece-se relativamente a ela, e todas as disciplinas filosóficas
encontram nela a sua raiz, já que a filosofia tem precisamente por objecto os
valores, as normas e as formas do seu reconhecimento. Este conceito de
filosofia é confirmado por Rickert num ensaio que trata precisamente deste
tema (in "Logos", 1910). A filosofia deve distinguir o mundo da realidade do
reino dos valores. Estes últimos não são realidades, mas valem e o seu reino
170

está 'para além do sujeito e do objecto. A filosofia deve também mostrar a


relação recíproca entre o mundo da realidade e o reino dos valores. Esta
relação é o acto de valorar, que expressa o sentido do valor e que. por isso,
determina uma terceira esfera, que se situa junto à da realidade e à dos
valores: o reino do significado. O acto de valorar não tem uma existência
psíquica porque se encaminha, para além desta, para os valores; mas também não
é um valor; é um terceiro reino ao lado dos outros dois.

O Sistema de filosofia é a ampliação destes fundamentos e, ao mesmo tempo, uma


tentativa de classificação escolástica dos valores. Ás três esferas
mencionadas Rickert faz corresponder, no homem, três actividades que as
expressam: o explicar, o entender e o significar. E distingue seis campos ou
domínios do valor: a lógica, que é o domínio do valor-verdade; a estética, que
é o domínio do valor-beleza, a mística que é o domínio da santidade impessoal,
a ética, que é o domínio da moralidade; a erótica, que é o domínio da
felicidade, e a filosofia religiosa, que é o domínio da santidade pessoal. A
cada um destes domínios faz corresponder um bem (ciência, arte, um todo,
comunidade livre, comunidade de amor, mundo divino), uma relação com o sujeito
(juízo, intuição, adoração, acção autónoma, unificação, devoção), assim como
uma determinada intuição do mundo (intelectualismo, esteticismo, misticismo,
moralismo, eudemonismo, teísmo ou politeísmo). Mas neste método classificativo
e escolástico, em que os problemas ficam
171

suprimidos e ocultos, dilui-se a mais profunda exigência dessa filosofia dos


valores que Rickert quer defender. E os sarcasmos que num escrito polémico, A
filosofia da vida, dirige a Nietzsche, Dilthey, Bergson e outros, frente aos
quais afirma que a filosofia não é vida, mas reflexão sobre a vída, dissimula
mal o seu ressentimento relativamente a umponto de vista que acentua um
aspecto do homem que não encontra reconhecimento nem **caNmento algum na
**fossillização escolástica a que ele próprio reduziu o mundo dos valores.
Estes são, com efeito e antes de mais, possibilidades da existência humana e,
precisamente por isso, são ignorados ou negados por Rickert.

A parte mais interessante da sua filosofia é a que se refere à distinção entre


ciências da natureza e ciências do espírito, distinção que Rickert toma
substancialmente de Windelband e que comenta largamente na sua obra Sobre os
limites da formação do conceito científico que tem como subtítulo "Introdução
lógica às ciências históricas". A distinção entre ciências naturais e ciências
históricas não se baseia no objecto, mas no método. A mesma realidade empírica
pode ser considerada, segundo um e outro ponto de vista lógico, como natureza
ou como

história. "É natureza se a considerarmos relativamente ao universal e


converte-se em história se a considerarmos relativamente ao particular e ao
individual" (Die Grenzen, 2.a ed., 1913, p. 224). O que é individual e
singular interessa às ciências naturais só quando pode ser expresso por uma
lei universal; mas constituí, em troca, o único objecto da investi-
172

gaÇão histórica. Nem todos os acontecimentos individuais suscitam, contudo, o


interesse histórico, mas apenas aqueles que têm uma particular importância e
significado. O -historiador efectua e deve efectuar uma selecção, e o critério
desta selecção será constituído pelos valores que integram a cultura. Deste
modo, o conceito de uma determinada individualidade histórica deverá ser
constituído pelos valores apreendidos ou apropriados pela civilização a que
ela pertence. O procedimento histórico é uma contínua referência ao valor: o
que não tem valor é insignificante historicamente e põe-se de parte. Mas nem
por isso o historiador formula um juízo de valor sobre os acontecimentos de
que trata. O historiador, como tal, não pode formular nenhum juízo sobre o
valor de um qualquer facto; procura reconstituir o facto só porque tem um
valor. Por outras palavras, o valor é pressuposto pela própria história, que
não o cria, mas que se limita a, reconhecê-lo onde se encontra. Os valores em
si não podem, segundo Rickert, ser historiados, embora resplandeçam no seu
firmamento imutável que constitui o guia e a orientação da história. Rickert
polemiza, por isso, contra todas as formas de historicismo, que equipara ao
relativismo e ao nülismo (Ib., p. 8.). Assim, a validade do conhecimento
histórico depende da validade absoluta dos valores a que é referido. "A
validade da representação histórica, afirma Rickert, não pode deixar de
depender da validade dos valores a que é referida a realidade histórica e, por
isso, a pretensão de validade incondicional dos conceitos históricos pressupõe
o reconhe-
173

(Ib., p. 389). Ora, segundo Rickert, esta pretensão é antes um direito. A


história não é o fundamento possível de nenhuma "intuição do mundo" limitada
ou parcial; e a filosofia tem como única tarefa dirigir-se, seguindo os
valores que a história encarna, para o intemporal e o eterno.

§ 729. OUTRAS MANIFESTAÇÕES DA FILOSOFIA DOS VALORES

A filosofia dos valores teve, na Alemanha, nos primeiros decénios deste


século, numerosos partidários, que renovaram, desenvolvendo-os em diversas
direcções, os temas propostos por Windelband e Rickert e muitas vezes
influenciando-os pelos de outras correntes contemporâneas.

Bruno Bauch (1877-1942), numa monografia sobre Kant (1917), que é a sua obra
principal, interpreta a coisa em si no sentido da filosofia dos valores como
regra lógica que vale, independentemente do nosso entendimento, para o nosso
entendimento; e segue, contrariamente, a tendência da escola de Marburgo ao
eliminar o **&afismo kantiano entre intuição e categoria e ao considerar o
conhecimento como um progresso infinito do pensamento para a determinação da
experiência.

Por outro lado, o germano-americano Hugo Münsterbera

g (1,863-1916), autor de uma Filosofia dos valores (1908) e de numerosas obras


de psicologia, procura fazer uma síntese da filosofia dos

174

valores com o idealismo de Fichte. Põe como fundamento de todos os valores uma
actividade livre, um super-eu ou eu universal do qual cada eu singular é uma
parte. Esta actividade, de cunho fichteano, encontra a sua expressão
originária no valor religioso, isto é, na santidade, à qual se reduzem,
portanto, todos os outros valores. Estes são agrupados em duas grandes
classes: valores imediatos ou vitais e valores criados ou culturais. Cada uma
destas classes divide-se numa esfera tripla: o mundo externo dos objectos, o
mundo dos sujeitos e o

mundo interno. Em cada uma destas classes de valores, Münsierberg estabelece


divisões e subdivisões, até apresentar um quadro escolástico exaustivo de
todos os valores possíveis. Mas nesta sistematização de Münsterberg, assim
como na de Rickert, a filosofia dos valores revela claramente o seu carácter
pesado e dogmático: os problemas são, não resolvidos, mas simplesmente
eliminados com a

posição arbitrária de um determinado valor. Muito mais benemérita é a obra de


MUnsterberg no campo da psicologia e principalmente da psicologia aplicada
(psicoteonia) à qual dedicou um importante trabalho (,Fundamentos de
psicotecnia, 1914).

Em Itália, foi seguida uma direcção semelhante por Guido Della Vafle (1884-
1962) que utilizou a

filosofia dos valores como fundamento de uma teoria da educação (Teoria geral
e formal do valor como fundamento de uma pedagogia filosófica. As premissas da
axiologia pura, 1916; A pedagogia realista como teoria da eficiência, 1924).

175

Teve, pelo contrário, um êxito decididamente teológico na filosofia dos


valores. o trabalho do americano Wilbur Marshall Urban (1873-1952) que se
inspirou principalmente em Rickert (caloração, a sua natureza e as suas leis,
1909; O fundo inteligível, 1929; Humanidade e divindade, 1951).

§ 730. A ESCOLA DE MARBURGO: COHEN

Na escola de Marburgo, a direcção lógico-objectiva do criticismo encontra a


sua mais rigorosa e

completa expressão. A distinção kantiana entre conhecimentos objectivamente


válidos e percepções ou experiências que são meros factos psíquicos, é levada
até às suas últimas consequências. A ciência, o conhecimento, o pensamento e a
própria consciência reduzem-se ao seu conteúdo objectivo, à sua validade
puramente ló gica, absolutamente independente do aspecto subjectivo ou
psicológico pelo qual se inserem na vida de um sujeito psíquico.

Em certo sentido, a escola de Marburgo representa a antítese simétrica do


idealismo pós-kantiano; este considera a subjectividade pensante como única
realidade, aquela considera como única realidade a objectividade pensável. Mas
a objectividade pensável não tem nada que ver com a objectividade empírica
(isto é, com as coisas naturais) a qual é só uma sua determinação particular.
Deste modo, os

filósofos da escola de Marburgo são levados a integrar Kant com Platão, que
viu na ideia pura o

176

significado e o valor objectivo de todo o conhecimento possível.

O fundador da escola de Marburgo é Hermann Colien, (1842-1918), que foi


professor em Marburgo e cuja actividade começou com trabalhos históricos sobre
Kan-t (A teoria de Kant sobre a experiência pura, 1871; O fundamento da ética
kantiana, 1871; A influência de Kant na cultura alemã, 1833; O fundamento da
estética kantiana, 1889). Concomitantemente com os estudos Kantianos, Cohen
cultivou os estudos de história das matemáticas, atendendo sobretudo ao
cálculo infinitesimal (0 princípio do método infinitesimal e a sua história,
1883); o seu estudo sobre Platão é também evidente em cada página da sua obra
fundamental, Sistema de filosofia, dividida em três partos: Lógica do
conhecimento puro, 1902; Ética do querer puro, 1904; Estética do sentimento
puro, 1912. Cohen dedicou também dois escritos ao problema religioso: Religião
e eticidade, 1907, e O conceito da religião no sistema de filosofia, 1915. Foi
ainda defensor de um socialismo não materialista e da superioridade espiritual
do povo alemão (Sobre o carácter próprio do povo alemão, 1914). À tendência
sensualista e eudemonista da filosofia inglesa, Cohen contrapõe a tendência
espiritualista da filosofia alemã, que faria desta a legítima continuadora da
grega. E vê realizada em
Kant "a espiritualidade ética da Alemanha".

A primeira e fundamental preocupação de Cohen é a de eliminar do pensamento e


do conhecimento todo o elemento subjectivo. O ser e o pensamento coincidem;
mas o pensamento é o pensamento do
177

conhecimento, isto é, dos conteúdos objectivamente válidos do próprio


conhecimento (Logik, 2.a ed.@
1914, p. 15). Isso só se encontra e apenas é válido no conhecimento, quando se
trata do pensamento da ciência e da unidade dos seus métodos; deste modo a
lógica, que o observa e constitui a sua autoconsciência, é sempre únicamente
lógica da matemática e das ciências matemáticas da natureza (Logik, p. 20). Os
termos que costumam expressar o aspecto subjectivo do pensamento, tal como
"actividade", "autoconsciência", "consciência", são reduzidos por Cohen a um
significado lógico-objectivo.

"A própria actividade é o conteúdo, a produção é o produto, a unificação é a


unidade. Só nestas condições a característica do pensamento se deixa elevar ao
ponto de vista do conhecimento puro" (Ib., p. 60). A unidade transcendental da
consciência, de que fala Kant, não é mais do que "a unidade da consciência
científica" (Ib., p. 16). E a consciência, em geral, não é mais do que a
própria categoria da possibilidade, uma espé cie determinada dos juízos que se
referem ao método (Ib., p. 424). À consciência como categoria da possibilidade
se reduzem, pois, não só a lógica, que considera a possibilidade das ciências
matemáticas da natureza, como também a
estética e a ética, que consideram a possibilidade do sentimento e da acção
moral. Lógica, estética e ética são as três ciências que abarcam todo o
campo da filosofia.

Cohen rejeita a distinção kantiana entre intuição e pensamento, distinção pela


qual o pensamento teria o seu princípio em algo que lhe seria externo.
178

O pensamento não é síntese mas antes produção (Erzeugung), e o princípio do


pensamento não é um dado, independente dele de um ou outro modo, mas a origem
(Urspring). A lógica do conhecimento puro é uma lógica de origem Qb., p. 36).
Mas a produção, como acto puramente lógico, não é mais do que a produção de
uma unidade ou de uma multiplicidade lógica, isto é, unificação ou distinção:
juízo. E distingue quatro espécies de juízos: leis do pensamento, juízos da
matemática, juízos das ciências matemáticas da natureza e juízos de método.

As leis do pensamento são os juízos de origem, de identidade e de contradição;


mas, entre estes, o

mais universal e fundamental é o juízo de origem. * este juízo se deve que


-alguma coisa seja dada. * "dado" não é um material bruto oferecido ao
pensamento mas, como se torna nítido nas matemáticas, é o que o próprio
pensamento pode encontrar. Um dado é, neste sentido, o sinal x das
matemáticas, que significa não a indeterminação mas a

determinabilidade (ib., p. 83). Entre os juízos da matemática (realidade,


pluralidade, totalidade), o da realidade é fundamental. O juízo de realidade é
sempre um juízo de unidade; e daqui deriva também o valor que o indivíduo ou
pessoa tem no campo moral: o indivíduo é, com efeito, a unidade última e
indivisível, o absoluto (1b., p. 142).

Os juíZos das ciências matemáticas da natureza são os de substância, lei e


conceito. A substância resolve-se na relação e a relação não é mais do que a
passagem de um juízo a outro, isto é, o movimento em sentido lógico. O
movimento implica a

179

resolução do espaço (conjunto de relações) no tempo (conjunto de conjuntos)


(Log., p. 231). Lei e conceito unificam-se na categoria do sistema, que é a

fundamental. "Sem a unidade do objecto, afirma Cohen (1b., p. 339), não há


unidade da natureza. Mas o objecto tem a sua unidade não na causalidade, mas
no sistema. Portanto, a categoria do sistema, como a categoria do objecto, é a
categoria da natureza. Por isso determina o conceito do objecto como objecto
da ciência matemática da natureza". O conceito não é nunca uma totalidade
absoluta, mas somente o princípio de uma série infinita que avança de termo a
termo.

Os juízos de método são os da possibilidade, da realidade e da necessidade.


Como se viu, a possibilidade identifica-se com a consciência, que é o

horizonte de todas as possibilidades objectivas. A realidade (Wirklichkeit)


não consiste na sensação, mas na categoria do singular, pela qual, na unidade
do sistema do conhecimento, se tende a procurar e a individualizar a unidade
de cada um dos seus objectos (1b., p. 471). Quanto à necessidade, é a

categoria que torna possível unir o caso individual e o universal na lei


científica e é, por isso. o fundamento da dedução e do procedimento
silogístico (1b., págs. 256 e segs.). Ã dedução reduz-se também a indução, a
qual não é mais do que uma dedução d'isjunti-va. No âmbito desta categoria
encontram-se os fundamentos da ló gica do raciocínio, em que termina e culmina
a lógica do juízo.

A lógica de Cohen, nascida como investigação transcendental sobre o


conhecimento científico, desen-
180

volveu-se como uma duplicação da própria ciência, duplicação que pretende


fundar as bases da mesma, mas que não consegue mais do que torná-las rígidas,
eliminando aquele carácter funcional e operativo que as torna instrumentos
prontos e eficazes da investigação científica. Reduzindo o seu conhecimento ao
seu conteúdo objectivo, a indagação sobre a ciência converte-se em
investigação sobre conteúdos objectivos da ciência; mas esta indagação não
pode ter a pretensão, que conserva em Cohen, de fundar a validade de tais
conteúdos de uma maneira diferente da que a ciência utiliza operatoriamente e,
por assim dizer, caminhando. Pode dizer-se, pois, que a lição confiada
implicitamente no princípio de Cohen foi mais efiicazmente realizada pelas
correntes metodológicas, que evitam hipostasiar os resultados

e os procedimentos do pensamento científico num sistema de categorias.

Juntamente com a lógica, Cohen admite, como ciências filosóficas, a ética e a


estética, entendidas respectivamente como "ciência do querer puro" e
"ciência do sentimento puro". Mas, neste terreno, a obra de Cohen é muito mais
débil e menos original que no da lógica.

O objecto da ética é o dever ser (Sollen) ou ideia: e a -Ideia não é mais do


que "a regra do uso prático da razão". "Sóra-ente no dever ser consiste o
querer. Sem dever ser não há querer, mas unicamente desejo. Através do dever
ser a vontade realiza e conquista um autêntico sem (Ethik, 2.a ed.,
1907, p. 27). A ética é uma ciência pura, precisa-
181

mente enquanto considera o dever ser como condição e possibilidade do querer.

O dever ser é, como a regra do pensamento, uma

lei de unidade. A acção a que ele obriga é a unidade de acção; e na unidade de


acção consiste a

unidade do homem (1b., p. 80). Mas o homem não é unidade, isto é,


individualidade e pessoa, no seu isolamento, mas apenas como membro de uma
pluralidade de indivíduos, e toda a pluralidade pressupõe, finalmente, uma
totalidade. Por seu lado, toda a totalidade tem graus diversos até à sua
verdadeira unidade, que é a humanidade no seu conjunto, na

qual apenas o homem individual encontra a sua realização. Cohen insiste, por
isso, na fórmula do imperativo categórico de Kant, que prescreve a cada um
tratar a humanidade, tanto nas outras pessoas como em nós mesmos, sempre como
um fim, nunca como um meio. O sistema dos fins é o objectivo final do dever
ser moral e, neste sistema dos fins, Cohen vê a ideia do socialismo, a qual
exige, precisamente, que o homem valha como fim para si mesmo e seja
reconhecido na liberdade e dignidade da sua pessoa. "Como se concilia
-pergunta Cohen (Ib., 2.a ed., 1907, p. 322)-a dignidade da pessoa com o facto
de que o valor do trabalho seja determinado no mercado como o de uma
mercadoria? Este é o grande problema da política moderna e, por isso, também
da ética moderna". Contudo, Cohen é contrário ao

socialismo materialista de Marx (1b., págs. 312 e

segs.), e concebe a marcha da humanidade para a

realização do reino dos fins como uma exigência

182

moral implícita -no aperfeiçoamento progressivo da humanidade como tal,


perante o qual devem inclinar-se as formas do direito e do estado.

O mesmo ideal da humanidade domina a estética de Cohen. O sentimento puro, que


é o órgão da estética, assim como o querer puro o é da ética, é o amor dos
homens na totalidade da sua natureza, que é também natureza animal. Se a obra
de arte não se reduz à pura materialidade do mármore e da tela, isso deve-se
ao facto de ser a representação de um ideal de perfeição humana, do qual tira
o seu

valor eterno.

A religião não ;tem lugar no sistema de Cohen. Enquanto :aplica a Deus o


conceito de pessoa, a
relIgião pertence ao mito e fica encerrada no círculo do antropomorfismo.
Filosoficamente falando, Deus não é mais do que a ideia da Verdade como
fundamento de uma totalidade humana perfeita. O seu

conceito e a sua existência significam somente que não é uma ilusão crer,
pensar e conhecer a unidade dos homens. Deus proclamou-a, Deus garante-a; à
parte isto, Deus não explica nada nem significa nada. Os atributos, em que
consiste a sua essência, não são propriedade da sua natureza, mas antes as
direcções nas quais se irradia toda a sua relação com os

homens e nos homens" (Ethik, p. 55). Deus é, pois, um simples conceito moral;
e, na moral, a religião encontra a sua única justificação possível, Quando, em
troca, atribui a Deus características (como as

de vida, espírito, pessoa, ete), que a moral não justifica, desemboca


fatalmente no mito.

183

§ 731. ESCOLA DE MARBURGO: NATORP

O outro representante da escola de Marburgo é Paul Natorp (1854-1924), autor


de numerosos estudos históricos (sobre Pestalozzi, Herbart, Kant), o

mais importante dos quais versa sobre Platão: A doutrina platónica das ideias
(1903). Natorp recolhe e justifica historicamente nesta obra a interpretação
de Platão exposta esporádica e ocasionalmente nas obras de Cohen. Esta
interpretação é a antítese da tradicional, iniciada por Aristóteles, segundo a
qual o mundo das ideias é um mundo de objectos dados, de super-coisas,
análogas e correspondentes às coisas sensíveis. Neste sentido, as ideias não
são objectos mas 1&s e métodos do conhecimento. Com efeito, são concebidas por
Platão como objectos do pensamento puro, e o pensamento puro não pode impor
uma realidade existente, ainda que absoluta, mas

unicamente funções cognitivas que valham como

fundamentos da ciência. "A ideia expressa o fim, o ponto infinitamente


afastado, ao qual conduzem os caminhos da experiência; são, por isso, as leis
do procedimento científico" (Matos Ideenlehre, págs.
215, 216). A "participação" dos fenómenos no mundo ideal significa que os
fenómenos são graus de desenvolvimento dos métodos ou procedimentos que são as
ideias. E que as ideias sejam arquétipos dessas imagens que são as coisas,
significa somente que o

conceito puro é o originário e que o empírico é o derivado (1b., p. 73). A


dialéctica platónica é, portanto, a ciência do método. E a importância de
Platão consiste em ter descoberto a logicidade como

184

NATORP

legalidade do pensamento puro (Ib., p. 1). Natorp põe, por isso mesmo, como
subtítulo da sua monografia platónica o de "Guia para o idealismo", entendendo
por idealismo (do mesmo modo que Coheri) o seu neo-criticismo objectivista.
A principal obra de Natorp é a que versa sobre os Fundamentos lógicos das
ciências exactas (1910), cujos resultados são recapitulados na breve, mas
completa, apresentação da sua doutrina, intitulada Filosofia (1911). Dedicou,
porém, uma grande parte da sua actividade à psicologia e à pedagogia
(Pedagogia social, 1899; Pedagogia geral, 1905; Filosofia e

pedagogia, 1909; Ensaios de pedagogia social, 1907; Psicologia geral, 1912).


Natorp foi, como Cohen, defensor de um socialismo não materialista (Idealismo
social, 1920); e também, como Cohen, da superioridade e primado espiritual do
povo alemão (A hora dos alemães, 1915; Guerra e paz, 1916; A missão mundial
dos alemães, 1918).

Segundo Nalorp, "a ciência não é mais do que a consciência no ponto mais
elevado da sua clareza e determinação. O que não pudesse elevar-,se ao nível
da ciência seria apenas uma consciência obscura e, por conseguinte, não uma
consciência no pleno sentido da palavra, se é que consciência significa
clareza e -não obscuridade" (Phil. und Pãd., 2.a ed
1923, p. 20). A filosofia é também conhecimento; mas conhecimento que não se
dirige ao objecto, mas sim a unidade do próprio conhecimento. O objecto do
conhecimento é inesgotável e o conhecimento pode aproximar-se mais ou menos
dele, mas nunca o alcança. Todo o conhecimento é um pro-
185

cesso infinito, mas é um processo que não está privado de lei nem de direcção.
Se o objecto do conhecimento é o ser, é preciso dizer que só no

eterno progresso, no método do conhecimento, o ser alcança a sua concretização


e determinação. O ser

é o eterno x (o que deve ser conhecido) que cada passo do conhecimento


determinar melhor; mas o

valor da determinação depende exclusivamente do método do conhecimento, do seu


proceder; neste sentido a filosofia é, essencialmente, método.

Também Natorp, divide a filosofia em lógica, ética e estética. A lógica


considera o método do conhecimento tal como está em acto nas ciências exactas,
isto é, na matemática e nas ciências matemáticas da natureza. Matemática e
lógica são substancialmente** Uônticas. "A matemática versa sobre o
desenvolvimento da lógica; em particular, sobre a

sua última unidade central, aquela à qual toda a

ló-ica deve ser reconduzida" (Phil., 3 a ed., 1921, p. 41). Esta unidade
central da lógica é o pensamento, como criação ou processo vivente. A forma
originária do juízo, na qual o pensamento se expressa, não é A=A, mas XA, onde
X representa um problema, uma indeterminação, que o pensamento procura
resolver numa certa direcção. Esta resolução é um processo de separação e
unificação, no qual as variantes não são dadas (como acreditava Kant) mas, são
consideradas pelo pensamento juntamente com a característica que lhes é comum.

Deste processo de separação e unificação surge toda a matemática. Mas


separação e unificação não são mais do que relações; por isso, todos os
conceitos da

186
matemática e, em geral, das ciências matemáticas da natureza, são relações e
relações de relações. A isto se reduzem também o espaço e o tempo, que não são
formas dadas pela intuição, mas unicamente produtos da conexão dinâmica em que
consiste o pensamento. Espaço e tempo condicionara a experiência no sentido de
que as regras do pensamento encontram neles a sua concretização; tais regras
são aplicadas de modo a produzirem a experiência imediata do objecto, isto é,
o próprio objecto, numa determinação que não (possui nas regras gerais do
intelecto (Phil., p. 54). A intuição empírica não constitui, portanto, um
acréscimo ou um contributo externo para o pensamento, mas o realizar-se do
próprio pensamento na sua determinação final. "A singularidade do objecto, que
implica como condição própria a singularidade da ordem espaço-tempo, não pode
significar mais do que a determinação perfeita: a determinação na qual nada
deve permanecer indeterminado" (Ib., p. 55). O (lado situa-se nesta doutrina
não já no começo do processo do conhecimento, como um seu material em bruto
(tal como na doutrina kantiana), mas no fim do processo, como sua determinação
final.

Mas com isto o dado torna-se o "dever ser" da experiência e situa-se no


próprio coração da lógica. "0 dever ser, afirma Natorp, mostra-se como o mais
profundo fundamento de toda a validade de ser que seja própria da experiência.
A lei do dever ser deve ser considerada em função do progresso infinito da
experiência. Assim, encontramo-nos lançados na

eterna marcha da experiência; a única condição é que

187

não fiquemos parados num determinado estádio dela, que não nos detenhamos aí,
mas que avancemos sempre" (Ib., p. 71). A ética é precisamente a ciência deste
dever ser, o qual, enquanto lei -da vontade, prescreve o progresso para uma
comunidade total e

harmoniosa, o estádio perfeito cujo ideal foi expresso por Platão.

Nas suas obras Pedagogia social e Religião nos

limites da humanidade, Natorp debruça-se sobre o

problema da arte e da religião. A arte tem como objecto o absolutamente


individual, em cuja determinação podem entrar, porém, elementos de carácter
universal (pertencentes; à ordem científica e moral), mas apenas sob a
condição de perderem a sua universalidade e de se fundirem na individualidade
do objecto. Por isso a análise estética, quando analisa os elementos da obra
de arte, depara a certa altura com o irracional que não é redutível ao
conceito que por isso é chamado intuição, fantasia ou sentimento. Quanto à
religião, ela tom para Natorp, o

mesmo conteúdo objectivo das três ciências filosóficas (!lógica, ética e


estética) mas vivido sob a forma de subjectividade, isto é, da intimidade
espiritual. Apesar disso, a religião faz desta subjectividade um

objecto -Deus ou o -divino -que considera superior à realidade do mundo e da


experiência, como um supramundo ao qual se subordinam as próprias leis do
mundo empírico. A religião deveria, segundo Natorp, reduzir-se "aos limites da
humanidade", isto é, eliminar a transcendência do supramundo e constituir-se
como "religião sem Deus", analogamente
188

psicologia, que se tornou uma ciência quando se

constituiu como <psicologia sem alma".

§ 732. CASSIRER

A escola de Marburgo influiu eficazmente sobre a filosofia alemã dos primeiros


decénios deste século; as ressonâncias do seu princípio fundamental (redução
do conhecimento a objectiVidade pensável) notam-se também em orientações
filosóficas diversas: na filosofia dos valores, na fenomenologia e em certas
formas de realismo (como a teoria dos objectos). A interpretação ética do
socialismo, proposta por Cohen e Natorp, encontrou também numerosos
continuadores; entre outros, Karl Vorlânder, autor de um estudo comparativo de
Kant e-Marx, e Eduard Bernstein, discípulo de Marx, autor de uma obra
intitulada Sobre a história e a teoria do socialismo (1901).

A doutrina da escola de Marburgo teve uni

desenvolVimento notável na obra de Ernst Cassirer (1874-1945), que foi


professor em Berlim e Hamburgo e, nos últimos anos, na Universidade de Yale,
na América. Cassirer é autor de estudos históricos fundamentais sobre o
Renascimento e o Iluminismo, volume de monografias sobre Leibniz (1902), Kant
(1918) e Descartes (1939), e de uma vasta obra sobre o Problema do
conhecimento na filosofia e

na ciência da época moderna (4 vols., 1906-1950).


O pensamento teórico de Cassirer é exposto nas

obras Conceito de substância e conceito de função (1910); A teoria da


relatividade de Einstein (1921);

189

A forma do conceito no pensamento mítico (1922); Filosofia das formas


simbólicas (3 vols., 1923-29). As últimas obras de Cassirer são o Ensaio sobre
o homem (1944), que resume os resultados mais importantes da sua especulação,
e O mito do Estado (1946).

A originalidade da posição de Cassirer em relação à escola de Marburgo está no


facto de acentuar a importância da expressão simbólica, isto é, da linguagem,
na constituição de todo o mundo do homem, desde o mundo da ciência até ao do
mito, da reli-ião e da arte. A sua doutrina enquadra-se portanto, mesmo
utilizando um ponto de vista específico, naquele vasto moVimento da filosofia
contemporânea que considera precisamente a linguagem, como objecto primeiro e
privilegiado da indagação filosófica. Mas, por outro lado, a investigação de
Cassirer permanece ligada à orientação da escola de Marburgo na medida em que
tenta encontrar as

origens dos objectos da ciência ou das outras actividades humanas nas


estruturas que garantem a valida-de de tais objectos.

Em primeiro lugar essas estruturas são funções e não substâncias. Na sua obra
intitulada Conceito de substância e conceito de função, Cassirer estabelece
uma posição entre os dois conceitos e nota como a ciência tinha abandonado, a
partir dos Princípios da mecânica (1894) de Hertz, o conceito de substância e,
simultaneamente, a noção da ciência como

imagem das substâncias naturais. O predomínio do conceito de função implica o


reconhecimento do valor do signo; e ao reconhecê-lo aparece-nos como

190

decisiva a finição constitutiva da linguagem em relação aos objectos de que se


ocupa a ciência. A obra seguinte de Cassirer, Filosofia das foi-mas
simbólicas, estende estas considerações do mundo da ciência à totalidade do
mundo do homem. **Ndla, a "crítica, da razão científica", isto é, a indagação
sobre a validade do conhecimento científico, torna-se uma "crítica da
civilização", isto é, uma indagação sobre as formas específicas da
civilização: o mito, a arte, a religião, a própria ciência e, em primeiro
lugar, o

instrumento que está na origem da validade de tais formas, ou seja, a


linguagem. Deste ponto de vista, a linguagem não é apenas, nem principalmente,
um

instrumento de comunicação. É antes a actividade que organiza a experiência e


a conduz do mundo passivo das impressões puras para a autêntica objectividade
racional. Para justificar esta passagem Colien e Natorp recorriam, assim como
Kant, às categorias, Cassirer recorre à expressão simbólica. "0 símbolo,
afirma, não é o revestimento meramente acidental do pensamento mas o seu orgão
necessário e essencial. Ele não serve apenas para comunicar um conteúdo
conceptual já construído mas

é, pelo contrário, o instrumento em virtude do qual esse conteúdo se constitui


e adquire a sua formulação acabada. O acto da determinação conceptual de um
conteúdo ocorre simultaneamente com o acto de fixação desse conteúdo num
qualquer símbolo característico."(Phil. der symbolischen Formen, 1, lntr., §
11). E ao participar na constituição dos conceitos, o símbolo expressivo
participa na constituição do próprio objecto real, já que a distinção entre o
191

subjectivo e o objectivo, na qual se baseia todo o conhecimento válido, só se


pode fazer a partir dos conceitos e das suas expressões simbólicas.

Deste ponto de vista, a tarefa da filosofia já não é a de remontar ao


imediato, ao primitivo, ao dado originário, mas antes a de compreender a via
pela qual este dado se transforma, com a expressão simbólica, numa realidade
espiritual. "A negação das formas simbólicas, em vez de apreender o conteúdo
da vida, destrói a forma espiritual à qual esse conteúdo se encontra
necessàriamente ligado" (Ib., Intr., § IV). E do mesmo modo o progresso da
linguagem não consiste em avizinhar-se da realidade sensível até quase
integrá-la em si mesma, mas antes em afastar-se dela de forma cada vez mais
radical, até excluir toda a identidade directa ou indirecta entre realidade e
símbolo. "O valor e a natureza específica da linguagem, assim como da
actividade artística, residem não na vizinhança com o dado imediato mas no seu
progressivo afastamento, dele. Esta distância em relação à existência imediata
e à experiência imediatamente vivida é a condição essencial da perspicácia e
do conhecimento da linguagem. Esta começa sómente onde acaba a relação directa
com a impressão e a emoção sensíveis" (1b.,
1, 1, cap. 11 § 2). A diferença entre a linguagem humana e as "manifestações
linguísticas articuladas" dos animais superiores consiste na ausência, nestas
manifestações, do afastamento em relação à sensibilidade imediata, que é
próprio da linguagem. O estudo no mito, realizado por Cassirer no segundo
volume da sua obra, obedece a estes conceitos. que
192

encontram ainda maior justificação no terceiro volume, o qual é dedicado à


fenomenologia do conhecimento. O conceito científico, por exemplo, é tanto
mais rigoroso quanto menos intuitivo. "Na sua forma mais restrita, no que
respeita ao seu carácter especificamente lógico, o conceito deve ser diferente
dos **IM=EreToTW*M são apenas a representação

viva da lei que governa uma sucessão concreta de imagens intuitivas. O


significado de um conceito já não adere a um substracto intuitivo, a um datum
ou dabile, sendo pelo contrário uma bem definida estrutura relacional adentro
de um sistema de juízos e de verdades" (Ib., 111, 111, cap. 11).

Quando Cassirer tenta resumir numa definição do homem os resultados das suas
investigações sobre o

mundo humano, afirma que o homem é um animal simbólico, isto é, falante. "A
razão, afirma, é um termo assaz inadequado para compreender todas as

formas da vida cultural do homem em toda a sua riqueza e variedade. Mas todas
estas formas são simbólicas. Por consequência, em vez de definir o homem como
animal rationale, podemos defini-lo como animal symbolicum. Fazendo assim.
indicamos aquilo que especificamente o distingue e podemos percorrer a nova
estrada que se abre ao homem, a estrada para a civilização" (Essay on Man,
cap.
11). O campo específico da actividade humana, aquele campo onde o homem
manifesta de forma evidente a sua liberdade de iniciativa e a sua
responsabilidade, ou seja, a história, é ele mesmo, segundo Cassirer,
condicionado pela expressão simbólica. De facto, não é possível fazer história
sem

193

interpretar os acontecimentos; e tudo aquilo que se

disse sobre a "compreensão" dos factos, das personalidades e das instituições


históricas, exprime precisamente a exigência de referir factos, personalidades
ou instituições a uma interpretação que lhes revela o seu verdadeiro
significado. Com efeito, um facto não é histórico se não tiver um significado.
"0 suicídio de Catão não foi apenas um acto físico; foi um acto simbólico. Foi
a expressão de um

grande carácter; foi o último protesto do espírito republicano romano contra


uma nova ordem das coisas" (Ib., cap. X). Também a história é uma "forma
simbólica".

§ 733. BRUNSCHVIEG

A historização da atitude crítica - o reconhecimento de que a actividade


organizadora do mundo do conhecimento e do mundo dos valores humanos está em
contínuo devir - é característica do neo-criticismo de Léon Brunschvieg (1869-
1944), que foi professor da Sorbonne. Aceita e mantém rigorosamente o
princípio crítico: a filosofia não aumenta a quantidade do saber humano; é uma
reflexão sobre a qualidade deste saber (L'idéalisme contemporain,
1905, p. 2). Por outro lado, o saber não é um sistema cerrado e completo, mas
um desenvolvimento histórico, cujas partes se podem distinguir e definir, mas
que nunca termina. A história do saber humano é o <laboratório do filósofo".
Brunschvieg considera todos os aspectos da civilização ocidental na sua
história: as ciências matemáticas (As etapas da filo-
194

sofia matemática, 1912); as ciências físicas (A experiência humana e a


causalidade física, 1922); as

doutrinas metafísicas, morais e religiosas (0 progresso da consciência na


filosofia ocidental, 1927); e a própria atitude espiritualista de auto-exame.
(0 conhecimento de si, 1931). Finalmente, o seu último escrito, Herança de
palavras, herança de ideias (1945), é ainda uma consideração histórica de
algumas palavras fundamentais (razão, experiência, liberdade, amor, Deus,
alma), com o objectivo de investigar

o seu significado primordial. É também autor de estudos históricos sobre


Espinosa (1894) e Pascal (1932), e expressou pela primeira vez os seus pontos
de vista fundamentais num livro intitulado A modalidade do juízo (1897).

É missão da filosofia, segundo Brunschvieg, o

conhecimento do conhecimento: um objectivo especificamente crítico no sentido


kantiano, pelo qual a filosofia se apresenta como conhecimento integral. Com
efeito, o único conhecimento que se adequa ao seu objecto é o conhecimento do
próprio conhecimento (La modalité du jugement, 2.11 ed., 1934, p. 2). Assim
como no conhecimento científico o espírito que conhece e o objecto a conhecer
se enfrentam na sua fixidez imutá vel, no conhecimento integral da filosofia o
espírito procura descobrir-se a si mesmo no seu movimento, na sua actividade,
na sua acção viva e criadora. "Uma actividade intelectual que adquire
consciência de si mesma: eis aqui o estudo integral do conhecimento integral,
eis aqui a filosofia" (Ib., p. 5). Este princípio conduz Brunschvicg a
identificar o princípio espiritual, que

195

produz o saber científico e as outras manifestações humanas (arte, moral,


religião), com o princípio crítico, que reflecte sobre estas produções
espirituais. A redução total do espírito, em todas as suas manifestações, à
reflexão crítica, é o fim que Brunschvicg tenta atingir em todos os campos,
procurando demonstrar que é própria do desenvolvimento histórico do saber do
mundo humano em geral.

Assim, as etapas da filosofia matemática foram as etapas da libertação do


espírito relativamente ao horizonte cerrado das representações sensíveis e,
por conseguinte, as etapas da actividade livre do pensamento que subordina a
experiência a si mesmo. Do mesmo modo, a evolução da física (considerada na
obra A experiência humana e a causalidade física) consiste na formação de uma
consciência intelectual, pela qual a vida espiritual se eleva por sobre a
inconsciência instintiva, na qual a ordem biológica está naturalmente
encerrada (L'expérience humaine, 1922, p. 614). Mas esta consciência
intelectual não anula a objectividade do mundo. O idealismo crítico (como
Brunschvieg preferentemente denomina a sua doutrina) não coloca o eu diante do
não-eu ou o não-eu perante o eu; eu e não-eu são, para ele, dois resultados
solidários de um mesmo processo da inteligência. O progresso da ciência torna
mais humano o nosso conhecimento das coisas; mas torna também mais objectivos
os procedimentos do nosso conhecimento (1b., p. 613).
É evidente que este ponto de vista exclui todo o realismo, qualquer afirmação
de unia realidade em si que não se reduza ao objecto considerado ou

196

produzido pelo acto de entender. Exclui, pois, uma realidade empírica


independente do pensamento reflexivo. Mas não reconhece à razão a liberdade
absoluta de mover-se e produzir sem limites nem disciplina. Contrariamente à
imaginação criadora do artista ou do poeta, a razão está submetida à prova dos
factos e à sua obscura oposição: encontra, a

cada passo, resistências imprevistas, que desfazem as generalizações


prematuras, as limitações temerárias, as extrapolações demasiado fáceis (1b.,
p. 605). A experiência actua sobre a razão mediante choques (chocs), que a
arrancam à sua preguiça dogmática e a incitam a criar novos princípios de
estratégia, novas técnicas para superar os obstáculos (Ib., p.
399). Contudo, não se pode hipostasiar o que está para além destes choques,
imaginando uma realidade que os produza. Tudo o que se pode dizer é que a
experiência oferece à razão, através deles, pontos de referência, em relação
aos quais a actividade da razão se orienta, se cimenta, se constitui como
verdade. Deste ponto de vista, interioridade e exterioridade não são
contraditórias, mas prolongam-se uma

na outra e constituem a totalidade do conhecer e do ser (1b., p. 610).

Como no saber científico, também no mundo moral e religioso o progresso


consiste no prevalecimento gradual do princípio critico sobre o princípio da
espiritualidade imediata. A história da humanidade traduz o choque de duas
atitudes hostis: a do homo credulus, que se entrega à inércia Jo instinto, e a
do homo sapienv, fiel à autonomia da razão. O progresso da reflexão, que
dissipou no

197

produz o saber científico e as outras manifestações humanas (arte, moral,


religião), com o princípio crítico, que reflecte sobre estas produções
espirituais. A redução total do espírito, em todas as suas manifestações, à
reflexão crítica, é o fim que Brunschvieg tenta atingir em todos os campos,
procurando demonstrar que é própria do desenvolvimento histórico do saber do
mundo humano em geral.

Assim, as etapas da filosofia matemática foram as etapas da libertação do


espírito relativamente ao

horizonte cerrado das representações sensíveis e, por conseguinte, as etapas


da actividade livre do pensamento que subordina a experiência a si mesmo. Do
mesmo modo, a evolução da física (considerada na obra A experiência humana e a
causalidade física) consiste na formação de uma consciência intelectual, pela
qual a vida espiritual se eleva por sobre a inconsciência instintiva, na qual
a ordem biológica está naturalmente encerrada (L'expérience humaine, 1922, p.
614). Mas esta consciência intelectual não anula a objectividade do mundo. O
idealismo crítico (como Brunschvieg preferentemente denomina a sua doutrina)
não coloca o eu diante do não-eu ou o não-eu perante o eu; eu e não-eu são,
para ele, dois resultados solidários de um mesmo

processo da inteligência. O progresso da ciência torna mais humano o nosso


conhecimento das coisas; mas torna também mais objectivos os procedimentos do
nosso conhecimento (1b., p. 613).

É evidente que este ponto de vista exclui todo o realismo, qualquer afirmação
de uma realidade em

si que não se reduza ao objecto considerado ou

196

produzido pelo acto de entender. Exclui, pois, uma realidade empírica


independente do pensamento reflexivo. Mas não reconhece à razão a liberdade
absoluta de mover-se e produzir sem limites nem disciplina. Contrariamente à
imaginação criadora do artista ou do poeta, a razão está submetida à prova dos
factos e à sua obscura oposição: encontra, a

cada passo, resistências imprevistas, que desfazem as generalizações


prematuras, as limitações temerárias, as extrapolações demasiado fáceis (Ib.,
p. 605). A experiência actua sobre a razão mediante choques (chocs), que a
arrancam à sua preguiça dogmática e a incitam a criar novos princípios de
estratégia, novas técnicas para superar os obstáculos (Ib., p.
399). Contudo, não se pode hipostasiar o que está para além destes choques,
imaginando uma realidade que os produza. Tudo o que se pode dizer é que a
experiência oferece à razão, através deles, pontos de referência, em relação
aos quais a actividade da razão se orienta, se cimenta, se constitui como
verdade. Deste ponto de vista, interioridade e exterioridade não são
contraditórias, mas prolongam-se uma

na outra e constituem a totalidade do conhecer e do ser (1b., p. 610).

Como no saber científico, também no mundo moral e religioso o progresso


consiste no prevalecimento gradual do princípio crítico sobre o princípio da
espiritualidade imediata. A história da humanidade traduz o choque de duas
atitudes hostis: a do homo credulus, que se entrega à inércia Jo instinto, e a
do homo sapiens, fiel à autonomia da razão. O progresso da reflexão, que
dissipou no

197

terreno especulativo a concepção realista do mundo e da verdade, deve


conduzir, no domínio moral, à destruição do peso da tradição, à constrição da
autoridade externa, às sugerências acanhadas do ambiente social (Le progrès de
Ia conscience, p. XIX). E assim como na ordem teórica é necessário renunciar a
todo o sistema de categorias, do -mesmo modo o

advento da razão prática exige o abandono de qualquer código de preceitos já


construídos, de toda a

escala de valores fixos, e cede ao homem a liberdade do seu futuro (1b., p.


726). O espírito humano cria os valores morais, como cria os científicos e os
estéticos. "Em todos os domínios, os heróis da vida espiritual são aqueles
que, sem referir-se a modelos superados, a precedentes já anacrónicos,
lançaram à sua frente as **"bas da inteligência e verdade destinadas a criar o
universo moral, do mesmo modo que criaram o universo material da gravitação e
da electricidade" (Ib., p. 744). Do mesmo modo que a

consciência intelectual, a consciência moral nasceu no dia em que o homem


rompeu o cerco do seu egoísmo. A reflexão fez-nos sair do centro puramente
individual dos nossos desejos e dos nossos interesses pessoais, para revelar-
nos, na nossa condição de filhos, de amigos, de cidadãos, uma relação da qual
nós somos apenas um dos termos, e

para introduzir assim na raiz da nossa vontade unia condição de reciprocidade,


que é a regra da justiça e o fundamento do amor (Ib., págs. 11, 12).

No domínio religioso, só a reflexão subtrai a consciência a toda a crença


antropomórfica ou supersticiosa e faz ver em Deus somente o valor

198

supremo que é verdade e amor e não pode estar revestido de nenhum outro
atributo (De Ia connaissance de soi, p. 190). Brunschvicg, que chama também
humanismo à sua doutrina, afirma a total imanência de Deus no mundo e
precisamente no esforço da reflexão humana. "Um Deus está presente em

todo o esforço de coordenação racional, em virtude do qual o espírito une a


mínima parte do ser, o

mais pequeno acontecimento da vida, à totalidade do futuro universal" (Le


progrès de la conscience, p. 797), Fora desta unidade, que o espírito realiza
consigo mesmo no acto da reflexão crítica, nada se pode encontrar, porque nada
se pode procurar.
O humanismo substitui a imaginação de um criador transcendente pela "realidade
do homem, artesão da sua própria filosofia" (Eexpérience humaine, p. 610). Só
o homem é o instrumento desse progressus ordinans que a reflexão pode produzir
em todos os campos do mundo humano. Deus realiza-se precisamente neste
progresso. "0 Deus que nós procuramos, o Deus adequado à sua prova, não é o
objecto de uma verdade, mas aquele para quem existe a

verdade. Não é alguém que façamos entrar no círculo dos nossos afectos, que
converse connosco no decurso de um diálogo, no qual, quaisquer que sejam a sua
altura e a sua beleza, é certo que só o

homem formula as perguntas e as respostas. Deus é aquele a quem dedicamos o


nosso amor, é a presença eficaz donde procede todo o prog ,resso que a pessoa
humana alcançará na ordem dos valores impessoais" (Héritage de mots, héritage
Xidées, p. 65).

199

A filosofia de Brunschvieg é um enxerto do princípio criticista no tronco do


espiritualismo francês tradicional. A actividade crítica ou reflexiva que
segundo Brunsohvieg, o único a priori de todo o

mundo humano, é concebida por ele como actividade espontânea e em certa medida
criadora, de acordo com o modelo do impulso vital de Bergson.
O tom da filosofia de Brunschvicg é decididamente optimista: o progresso é a
lei do desenvolvimento da actividade crítico-racional; e todo o futuro da
história humana é o progressivo prevalecer desta actividade.

§ 734. BANFI

As teses fundamentais do criticismo foram incorporadas à filosofia italiana


por António Banfi (1886-1957), que se apropriou também de algumas ekigências
da filosofia da vida (especialmente de Simmel) e, nos últimos tempos, do
maryásmo original A principal obra de Banfi intitula-se Princípios de uma
teoria da razão (1926), precedida por uma outra obra importante, A filosofia e
a vida espiritual (1922) e à qual se seguiu Vida da arte (1947) e numerosos
ensaios entre os quais o próprio Banfi recolheu os mais importantes no volume
intitulado O homem coperneano (1950). São ainda numerosos os escritos crítico-
históricos de Banfi dedicados especialmente à filosofia contemporânea
(actualmente recolhidos sob o título Filósofos contemporâneos, 1961).

Banfi partilha com todos os pensadores neo-criticistas a polémica contra o


psicologismo, ou seja,

200

BRUNSCI1VICG

contra a tendência de basear a validade do conhecimento nas condições


orgânicas, psíquicas ou subjectivas que a tornam possível de facto. Um tal
psicologismo, nota Banfi, torna inexplicável "o momento de objectividade
universal que caracteriza o conhecimento e que constitui o princípio da sua
validade espiritual e da continuidade do seu processo" (Princ. di una teoria
della ragione, p. 39). Se, de acordo

com o psicologismo, o juízo é uma relação entre duas ideias, entre dois
elementos de consciência, para BanE ele é uma relação objectiva, uma "relação
essencial" entre os seus termos, relação e que pertence

a uma objectividade ideal, independente da origem e da determinação


psicológica"; e é também a afirmação da existência dessa relação (1b., p.
121). Mas o primeiro ponto em que Banfi se afasta das teses do neo-criticismo
alemão é o reconhecimento da problematicidade do conhecer, que ele considera
dependente da problematicidade da relação entre sujeito e objecto. O neo-
criticismo tinha retirado a estes dois termos todo o carácter substancial,
tendo-os considerado como os limites ideais do processo cognitivo; mas, para
Banfi, o sujeito e o objecto, mesmo permanecendo unidos no plano
transcendental, apresentam-se, em qualquer situação cognitiva, numa relação
problemática que, apesar de ser esclarecida por essa situação, é representada
desde o princípio por uma situação diferente. Por outro lado, a razão origina,
através deste desenvolvimento problemático, a constituição de um sistema; mas
trata-se de um sistema que não é nem um ponto de partida nem um ponto de
chegada definitivo, mas sim uma "lei

201

do pensamento" em virtude da qual se constitui e transforma toda a ordenação


sistemática da experiência (1b., p. 232).

Apesar de estas teses estarem fundamentalmente de acordo com os princípios do


neo-criticismo, elas conduzem a doutrina de Banfi a resultados diferentes. Em
primeiro lugar, a razão de que ede fada não é somente o pensamento científico
mas também e sobretudo o pensamento filosófico, com a sua mais radical
capacidade de crítica e de desenvolvimento; e enquanto razão filosófica,
representa uma actividade não simplesmente teórica, mas simultaneamente
teórica e prática, ou seja, vida. Banfi pode portanto utilizar algumas
exigências de Simmel e reconhecer na vida a determinação própria de uma razão
que é ao mesmo tempo ordem e mutação. "0 conceito de vida, afirma Banfi,
exprime a ilimitada dissolução do estável, do determinado, não numa
multiplicidade incoerente mas no dinamismo idas sínteses que no

seu processo transcendem infinitamente toda a sua determinação enquanto


actividade espontânea e criadora. Tal é pre m~ente o carácter das sínteses
fenomenológicas em que se acentua a estrutura transcendental da experiência"
(1b., págs. 585-86). O privilégio da arte baseia-se no carácter vital da
razão; assim se explica, que Banfi tenha dedicado muita da sua actividade ao
conceito ide vida. "A arte, o

mundo diverso e vivo da arte, se não se quer prender à vida interior que se
encontra, em todos os seus aspectos, em profunda tensão... deve ser concebida
em função das leis a priori que constituem
O seu princípio de autonomia estética, e segundo as

202

quais ela organiza, desenvolve e significa, num ilimitado processo de


constituição e de resolução, os conteúdos, relações e valores pelos quais se
interessa a sua realidade vivente" (Vita delParte, pággs.
36-37). A arte tem assim todos os caracteres da vida enquanto razão e da razão
enquanto vida, Banfi atribuía por isso à arte a tarefa de conduzir o homem
para uma "razão enamorada da realidade", ou seja, uma razão que se inserisse
na vida e na história como princípio director e libertador. Neste aspecto,
Banfi defende nos seus últimos escritos a

tese típica do marxismo segundo a qual a filosofia deve transformar o mundo em


vez de se limitar a interpretá-lo. O materialismo dialéctico aparece agora a
Banfi como o instrumento conceptual de uma razão concreta e histórica. Com
efeito ele elimina do conhecer, em primeiro lugar, o momento mítico, dogmático
ou abstractamente valorativo e

tende por isso a garantir "o desenvolvimento infinito e a articulação aberta


do saber". E em segundo lugar elimina a sabedoria abstracta e reconhece à
acção uma função construtiva e criadora sendo, nesse sentido, um "humanismo
histórico", isto é, a realização de uma nova humanidade de acordo com a

concepção de Copérnico: o mesmo é dizer, de uma humanidade dona de si própria


e do seu mundo (,Uuomo copernicano, 1950, págs. 240 e segs.).

NOTA BIBLIOGRÁFICA

§ 723. Sobre Liebmann: "Kantstudien", 17, 1910, fascículo de estudos, de


vários autores, que lhe são dedicados.

203

De Helmholtz, adém dos escritos citados: Vortrãge und Reden, 5.a ed.,
Braunschweig, 1903; Schriften zur Erkenntnisstheorie, ed. por P. Hertz e M.
Schlick, Berlim, 1921.

Sobre Helmholtz: L. KONIGSBERGER, H. v. H., 3 vols., Braunschweig, 1902-1903;


A. RIEHL, H. in seine VerhaZtniss zur Kant, Berlim, 1904; J. REINER, H. V. H.,
Leipzig, 1905; L. ERDMANN, Die philosophische GrundIagen von Ws
Wahrnehmungstheorie, em "Abhandlungen der Berliner Akad.", 1921, classe
histór.-filos., n., 1.

De Lange, a História do materíalismo (trad. ital. de A. Treves, 2 vols.,


Milão, 1932).

Sobre Lange: H. VAMINGER, Hartmann, DOring und Lange, Iserlohn, 1876; E. von
HARTMANN, NeUkantianismus, jgchopenhauerianismus und Hegelianismus in ihrer
Stellung zu den philosophischen Aufgaben der Gegenwart, Berlim, 1877; H. COMN,
em "Preussische Jahrbücher", 1876; S. H. BRAUN, F. A. L. aIs Sozia10konom.,
Halle, 1881.

De Zeller: Ueber Bedeutung und Aufgabe der Erkenntnisstheorie, Heidelberga,


1862; Ueber Metaph. aIs Erfahrungwissenschaft, em "Archiv für systematischie
Philosophie", 1, 1895; Vortrãge und Abhandlungen, Lieipzig, 1865; Kleine
Schriften, 3 vols., Berlim,
1910-11.

Sobre Renouvier: H. MIÉVILLE, La phil. de M. Ren. Setembro de 1908.

§ 724. De Renouvier, além dos ;escritos cit.: Correspondance de R. et


Secrétan, Paris, 1910; La recherche dlune première vérité (fragmentos
póstumos), Paris, 1924.

Sobre RenGuvier: H. MIÉVILLE, La phil. de M. Ren. et le Vroblème de Ia


connaissance religicuse, Lausanne,
1902; JANSSENs, Le Néo-criticisme de C. R., Paris,
1904; G. SÉAILLES, La phil. de C. R., Introduction à Pétude du néo-criticisme,
Paris, 1905; P11. BRIDEL, C. R. et sa phil., Laus=e, 1905; A. ARNAL, La phil.

204

religieuse de O. R., Paris, 1907; P. ARCHAMBAULT, R., Paris, 1910; E.


CASSIRER, Ueber R. s. Logik, em Die Geisteswissenchaften, 1913, págs. 634 e
segs.; O. RAmLIN, Le 6yst~e de R., Paris, 1927.

§ 726. Sobre Hodgson: H. WILDON CARR, em "Mind", N. S., VIIII, 1899; ld., em
"Mind", 1912; J. S. MACKENZIE, em "International Journal of Ethics", 1899; DE
SARLO, em "Riv. Fil.", 1900; L. DAURIAC, em "L'Année Philosophique", 1901.
,Sobre Adamson: H. JONES, em "Mind", N. S., XI,
1902; G. DAWES HICKS, em "Mind", N. S., XIII, 1904; Id., Critical Realism, em
"Studies in the Phil. of Mind and Nature", Londres, 1938.

De Dawes Hicks: Critical Realism, em "Studies in the Phil. of Mind and


Nature", Londres, 1938.

§ 727. Sobre Windelband: H. RiCKERT, W. W., Tübingen, 1910; B. JA~ENKO, W. W.,


Praga, 1941; C. Rosso, Figure e dottrine della filosofia dei valor!, Turim,
1949,

728. Sobre Rickert: RuYsSEN, em "Revue de Mét. et de Mor.", 1893; ALIOTTA, em


"Cultura Fil.",
1909; SPRANGER, em "Logos", 1922; BAGDASAR, Der Begriff des theoretisches
Wertes bei R., Berlim, 1927; BOEHM, em "K@intstudien", 1933; FEDERICI, La fil.
dei valori di H. R., Florença, 1933, (como bibliografia); G. RAMMING, K.
Jaspers und H. R., Berna, 1946; C. Rosso, Figure e dottrine della filosofia
dei valori, Turim, 1949.

§ 730. Sobre Coben: E. CASSIRER, em "Kant-studien" 17, 1913; P. NATORP, H. C.


aIs Mensche, Lehrer und Forscher, Marburgo, 1918; Id., H. C.'s philosophísche
Leistung, Berlim, 1918; J. KLATZKIN, H. U., Berlim, 1919; W. KINKEL, H. CI.s
Leben und Werk, Stuttgart, 1924; T. W. RosMARIN, Religion of Reason. H. CI.s
System of Religious Philos., Nova Iorque, 1936.

205

§ 731. De Natorp, póstumo: Philosophische Systematik, Hamburgo, 1958 (com um


estudo de H. G. Gadamer).

Sobre Natorp: E. CASSIRER, em "Kantstudien", 1925, pãgs. 273 e segs.; H.


SCHNEIDER, Die Einheit aIs Grundprinzip der Philos. P. N.Is, Tübingen, 1936;
L. LuGARINI, em "Rivista di storia della filosofia", 1950, págs. 40 e segs.

§ 732. De Cassirer, além dos escritos citados no texto: Determinismus und


Indeterminismus in der modernen PhysiL-, Gõteborg, 1936; Zur Logik der
Kulturwissenschaften, Gõteborg, 1942; The Philos. of E. C., dirigido por P. A.
SchiIpp, Evam ton, 1949 (com bibliografia).

§ 733. De Brunschvieg, além dos já citados no texto: Introduction à Ia vie de


l'esprit, Paris, 1900; Llidéalisme contemporain, 2.a ed., Paris 1921; Nature
et liberté, Paris, 1921; e ainda artigos no "Bulletin de Ia Soe. franç. de
phil.", 1903, 1910, 1913, 1921,
19231 1930 e em "Revue de Métaph. et de Morale",
1908, 1920, 1923, 1924, 1925, 1927 e 1930.

Sobre Brunschvieg: C. CARBONARA, L. B., Nápoles,


1931; J. MESSAUT, La philos. de L. B., Paris, 1938; NI. DESCHoux, La philos.
de L. B., Paris, 1949 (com bibliografia); E. CENTINEO, La fil. dello spirito
di L. B., Palermo, 1950.

§ 734. De Banfi: existe uma edição completa das suas obras, em italiano, pela
Ed. Parenti de Florença.

Sobre Banfi: N. ABBAGNANO, in "Rendiconti della Classe di Seienze Morali,


Storiche e Filologiche" da Ace. Naz. dei Lince!, 1958, p. 385-396; FULVIO
PAPI, Il pe-nsiero di A. B., Florença, 1961 (com bibliografia); PAOLo Rossi,
Hegelismo e socialismo nel giovane B., in "Riv. Critica di storia della
filoisofia", 1963, págs. 45-77.

206

VII

O HISTORICISMO

§ 735. A FILOSOFIA E O MUNDO HISTóRICO

Pode-se designar pelo nome de historicismo toda a filosofia que reconheça,


como sua tarefa exclusiva ou fundamental, a determinação da natureza e da
validade dos instrumentos do saber histórico. O historicismo não é, ou pelo
menos não pretende ser exclusivamente uma metafísica ou uma teologia da
história, uma sua visão ou interpretação global que pode obter-se mesmo
prescindindo das limitações do saber histórico de que o homem dispõe e dos
meios através dos quais o conseguiu. Se o termo fosse compreendido deste modo,
ele seria inadequado para designar uma corrente específica da filosofia
contemporânea porque se prestaria igualmente a designar quaisquer concepções
do mundo histórico, ou como tal quali-
207
ficadas. O objecto próprio e específico do historicismo como filosofia são os
instrumentos do conhecimento histórico e, portanto, os objectos possíveis
desses instrumentos. As características do historicismo podem então exprimir-
se assim:

1.---0 historicismo supõe que os objectos do conhecimento histórico têm um


carácter específico que os distingue dos objectos do conhecimento natural. A
diferença entre história e natureza é portanto óbvia, e desenvolveu-se
paralelamente à fase positivista das ciências naturais.

2.0-0 historicismo supõe que os instrumentos do conhecimento histórico são,


pela sua natureza ou, quanto mais não seja, pela sua modalidade, diferentes
dos utilizados pelo conhecimento natural. Surge aqui, a propósito do
conhecimento histórico,

o mesmo problema que surgira ao criticismo kantiano e ao neo-criticismo a


propósito do conhecimento natural: remontar do conhecimento histórico às
condições que o tornam possível, ou seja, que estão na base da sua validade.
Por este motivo, o historicismo une-se às escolas contemporâneas do neo-
criticismo, uma das quais (a escola de Baden) considerava o problema da
história nos mesmos termos (§§ 727-28).

Partindo destes dois pressupostos o historicismo preocupou-se, por um lado, em


caracterizar a natureza específica do objecto do conhecimento histórico (ou em
geral das ciências culturais) e, por outro lado, em esclarecer quais os seus
instrumentos. A natureza dos objectos do conhecimento histórico seria a
própria individualidade, oposta ao carácter gené-
208

rico, uniforme e reprodutível dos objectos do conhecimento natural. E o


compreender (Verstehen) foi considerado pelo historicismo como sendo a
operação fundamental do conhecimento histórico, sendo a sua natureza
diferentemente explicada por cada historicista, se bem que todos lhe
reconheçam capacidade para constatar e descrever a individualidade histórica.
O historicismo preocupou-se igualmente com a determinação da natureza e da
tarefa de uma filosofia centrada no problema do conhecimento histórico. E, no
âmbito desta filosofia, deu grande importância ao chamado problema dos
valores, ou seja, o problema da relação entre o devir da história e os fins ou
os ideais que os homens procuram realizar, e que constituem as constantes de
valoração e

de orientação na variabilidade dos eventos históricos. Introduz-se assim uma


teoria dos valores como parte integrante das filosofias historicistas.

O historicismo apresenta-se com estas características na corrente da filosofia


alemã que vai de Dilthey a Weber e que encontra neste último a sua

expressão mais conseguida; e ainda na rica literatura metodológica que


enriquece ou aperfeiçoa os

resultados por ela conseguidos. A definição que Croce deu da filosofia como
"metodologia da historiografia" presta-se bem a exprimir a natureza do
historicismo. Mas a tese de Croce de que toda a realidade é história e nada
mais do que história elimina os

pressupostos fundamentais do historicismo: não se


pode portanto interpretar a filosofia de Croce, que é de facto uma
manifestação contemporânea do idealismo romântico (§ 716), como historicista.

209

§ 736. DILTHEY: A EXPERIÊNCIA VIVIDA E O COMPREENDER

O fundador do historicismo alemão foi Wilhelm Dilthey, nascido em Biebrich, no


Reno, a 19 de Novembro de 1883 e que morreu em Siusi a 1 de Outubro de 1911.
Professor em Berlim. (onde foi sucessor de Lotze), contemporâneo dos maiores
historiadores alemães (Mommsen, Burckhardt, Zeller), foi ele mesmo, antes de
tudo, um historiador que trabalhou durante toda a sua vida numa história
universal do espírito europeu, publicando partes dela sob a forma de estudos.
Tais estudos versam especialmente sobre a Vida de Schleiermacher (1867-70);
sobre o Renascimento e a Reforma (A intuição da vida no Renascimento e na
Reforma, 1891-1900); sobre os escritos juvenis de Hegel (1905); sobre o

Romantismo (Experiência vivida e poesia, 1905), e, ainda, sobre estética


moderna ( As três etapas da estética moderna, 1892). Enquanto nestes e em
outros

ensaios menores Dilthey continuava a investigação histórica, ia ao mesmo tempo


elaborando o problema do método e dos fundamentos de tal investigação:
Introdução às ciências do espírito (1883); Ideias para uma psicologia
descritiva e analítica (1894); Contribuição para o estudo da individualidade
(1896); Estudos sobre os fundamentos das ciências do espírito (1905); A
essência da filosofia (1907); A construção do mundo histórico nas ciências e
no espírito (1910); Os tipos de intuição do mundo (1911). Novos estudos sobre
a construção do mundo histórico nas ciências

e no espírito (póstumo).

210

Os últimos escritos ou, melhor dizendo, os posteriores a 1905, são os mais


importantes visto conterem a expressão mais amadurecida do pensamento de
Dflthey.

Já na Introdução às ciências do espírito Dilthey tinha insistido na


diversidade do objecto destas ciências relativamente às ciências naturais. O
objecto de tais ciências é, em primeiro lugar, o homem nas suas relações
sociais, ou seja, na sua história. A historicidade essencial ou constitutiva
do homem e, em geral, do mundo humano, é a primeira tese fundamental de
Dilthey. Em segundo lugar, o mundo histórico é constituído por indivíduos que,
enquanto "unidades psicofísicas vivas", são os elementos fundamentais da
sociedade: é por isso que o objectivo das ciências do espírito é "o de reunir
o singular e o individual na realidade histórico-social, de observar como as
concordâncias (sociais) agem na formação do singular". Por isso, no domínio
das ciências do espírito, a historiografia tem um carácter individualizante e
tende a ver o universal no particular

e a prescindir do "substracto que constitui em qualquer tempo o elemento comum


da natureza humana", enquanto a psicologia e a antropologia, e em geral todas
as ciências sociais, procuram descobrir a uniformidade do mundo humano. Como
já vimos, Windelband e Rickert (§§ 727-28) insistiram no carácter
individualizante das ciências historiográficas. Em terceiro lugar -e é esta,
para Dilthey, a diferença fundamental-o objecto das ciências do espírito não é
externo ao homem mas interno: não é conhecido, como o objecto natural, através
da expe-
211

riência externa, mas sim através da experiência interna, a única pela qual o
homem se apreende a

si mesmo. Dilthey chama Erlebenis a esta experiência, e considera-a como a


fonte donde o mundo externo retira "a sua origem autónoma e o seu material"
(Gesammelte Schriften, 1, p. 9). Erlebenis significa "experiência vivente" ou
"vivida" e distingue-se, por exemplo, da "reflexão" -de Locke porque tem não
só o carácter de uma representação mas, também, o do sentimento e da vontade.
Isto constitui a quarta distinção fundamental entre ciência da natureza e

ciência do espírito: as primeiras têm um carácter exclusivamente teórico; as


segundas, devido ao órgão que lhes é próprio, têm simultaneamente carácter
teórico, sentimental e prático.

No entanto, esta diferença entre os objectos de cada um dos dois grupos de


ciências não se baseia, segundo Dilthey, numa diversidade metafísica ou de
substância que lhes seja inerente. Também não é redutível, como queria
Windelband, a uma simples diferença de método, terá antes a sua raiz numa
diversidade de atitude, ou seja, na diversidade de relações que o homem vem a
estabelecer entre si e o objecto de cada um dos dois grupos de investigação.
Nas ciências naturais o homem tenta construir uma totalidade a partir de uma
pluralidade de elementos separados, enquanto que nas ciências do espírito
parte da relação imediata que existe com o objecto. É por isso que o ideal das
ciências da natureza é a conceitualidade e o das ciências do espírito é a

compreensão (Ges. Schr., V, p. 265).

212

O compreender é assim a operação cognitiva fundamental no campo das ciências


do espírito; e o

material ou o ponto de partida desta operação é a

experiência vivida. O objecto do compreender é a

individualidade; mas, como a individualidade não pode ser atingida a não ser
através de um conjunto complexo de actos generalizantes, ela apresenta-se, nas
ciências do espírito, sob a forma de tipo. No Contributo ao estudo da
individualidade, Dilthey considera o tipo como sendo o termo médio entre a
uniformidade e o indivíduo, isto é, como um conjunto de caracteres constantes
que têm relações funcionais um com o outro, que variam correlativamente e que
se acompanham constantemente (1b., V, p. 270).
O tipo é, segundo Dilthey, o objecto específico da poesia e, em geral, da
arte, que ele considera, por isso, um "órgão da compreensão da vida" Qb., p.
274); e esta noção serve-lhe para definir a tarefa das ciências do espírito
como sendo a "de unir num sistema a constatação do elemento comum num

certo campo e a individualização que nele se realiza", isto é, compreender a


individualidade a partir da uniformidade em que ela se insere (Ib., p. 272).
O compreender, tendo por objecto os tipos e as suas relações internas
funcionais, distingue-se assim do explicar, que é a operação generalizante
própria das ciências naturais e que consiste em esclarecer as conexões causais
entre os objectos externos da experiência sensível.

Todas as análises de Dilthey, que nos seus escritos revia sistematicamente as


suas posições, a fim de aclarar e determinar (nem sempre com sucesso)

213

o seu pensamento, centram-se sobre a natureza do compreender e da experiência


vivida que é o seu

ponto de partida ou fundamento. Dado que a experiência vivida é, enquanto tal,


subjectiva, íntima e

incomunicável, não permite por si só fundar uma

ciência qualquer; por isso Dilthey dirigiu os seus

esforços no sentido de encontrar as relações entre ela e os elementos que


possam tornar possível e que justifiquem a objectivação e a comunicação dessa
experiência vivida. Nos Estudos sobre os fundamentos das ciências do espírito
e na Construção do mundo histórico Dilthey viu na expressão e no

compreender os elementos que, unidos à experiência vivida, dão a esta última


universalidade, comunicabilidade e objectividade, constituindo portanto,
juntamente com ela, a atitude fundamental das ciências do espírito. Esta
atitude toma-se possível pelo facto de essa experiência vivida estar sempre
ligada à compreensão de outras experiências vividas que nos são dadas sob a
forma de expressão, ou seja, de um

"processo em que, de forma externa, reconhecemos algo interno" (Ges. Schrift.,


VII, p. 309). O homem deixa de estar isolado, a sua vida deixa de estar
fechada na intimidade do seu ou, pois encontra em si mesma uma existência
autónoma e um desenvolvimento próprio. As relações com a natureza externa e
com os outros homens pertencem à sua vida e encontram o seu órgão fundamental
no compreender. O compreender é, deste ponto de vista, o reviver e o
reproduzir a experiência doutrem: é assim possível um sentir em conjunto com
os outros e um

214

participar das suas emoções (1b., VII, p. 205). No compreender realiza-se pois
a unidade do sujeito e

do objecto que é característica das ciências do espírito. "0 compreender,


afirma Dilthey, é o reencontro do eu no tu; mas o espírito atinge graus sempre
superiores de conexão, e esta identidade do espírito no eu, no tu, num
qualquer sujeito de uma comunidade, em qualquer sistema de cultura e,
finalmente, na totalidade do espírito e na história universal, torna possível
a colaboração das diversas operações nas

ciências do espírito. O sujeito do saber é aqui idêntico ao seu objecto e este


é o mesmo em todos os graus da sua objectivação" (Ib., p. 191).

Ora, segundo Dilthey, o compreender realiza-se através de diversos


instrumentos que constituem as
categorias da razão histórica. Tais categorias não são formas a priori do
intelecto; constituem antes os modos de apreensão do mundo histórico e também
as estruturas fundamentais desse mundo. O seu significado objectivo é, porém,
o mais relevante, já que não pode ser esclarecido senão através de uma análise
do mundo histórico.

§ 737. DILTHEY: AS ESTRUTURAS DO MUNDO HISTÓRICO

A primeira categoria do mundo histórico, sobre a qual se baseiam todas as


outras, é a vida. A vida não é, para Dilthey, nem uma noção biológica nem

um conceito metafísico, mas sim a existência do

215

indivíduo singular nas suas relações com os outros

indivíduos. Ela é pois a própria situação do homem no mundo, sempre


determinada espacial e temporalmente, pelo que compreende inclusive todos os
produtos da actividade humana associada e o modo como os indivíduos os
executam ou os avaliam. Se a experiência vivida é a própria vida imediata, o
compreender a vida é a sua objectivação; e a objectivação da vida é designada
por Dilthey, em termos

hegelianos, espírito objectivo. Mas o espírito objectivo, que para Hegel era a
própria razão tornada instituição ou sistema social, é para Dilthey apenas o
conjunto das manifestações em que a vida se objectivou no decurso do sou
desenvolvimento e que acompanham este desenvolvimento. Afirma Dilthey: "Tudo
sai da actividade espiritual e adquire portanto o carácter de historicidade,
inserindo-se, como produto da história, no próprio mundo sensível. Desde a
distribuição das árvores num parque ou das casas numa estrada, desde os
instrumentos do trabalhador manual até às sentenças de um tribunal, tudo está
à nossa volta, em qualquer altura, surgindo historicamente. O espírito, hoje,
introduz-se nas próprias manifestações da vida e, amanhã, faz a sua

história. Enquanto o tempo passa, nós continuamos rodeados pelas ruínas de


Roma, pelas catedrais, pelos castelos. A história não está separada da vida,
não se distingue do presente pela sua distância temporal" (Ges. Schrilt. VII,
p. 148).

A segunda categoria fundamental da razão histórica é a da conexão dinâmica


(Wirkungszusamme-
216

DILTHEY

nhang). A conexão dinâmica distingue-se da conexão causal da natureza na


medida em que "produz valores e realiza fins". Dilthey fala por isso do
carácter "teleológico-imanente" da conexão dinâmica e considera como conexões
dinâmicas (ou "estruturais", como também afirma) os indivíduos, as
instituições, a comunidade, a civilização, a época histórica e a

própria totalidade do mundo histórico que é constituída por um número infinito


de conexões estruturais. O traço característico da estrutura é a auto-
centralidade: toda a estrutura tem o seu centro em si própria. "Assim como o
indivíduo, afirma Dilthey, também qualquer sistema cultural, ou qualquer
comunidade, tem o seu centro em si mesma. Nele se ligam num todo único a
interpretação da realidade, a valoração e a produção de bens" (1b., p. 154).
Esta auto-centralidade estabelece entre as parte e o

todo de uma estrutura uma relação que constitui o

seu significado. O significado de uma estrutura qualquer pode por isso ser
determinado a partir dos valores e dos fins em que ela se centra.

Segundo Dilthey, a época histórica possui em alto grau esta característica de


auto-centralidade. "Toda a

época é determinada de uma forma intrínseca pelo sentido da vida, do mundo


sentimental, da elaboração dos valores e das respectivas representações ideais
dos fins. É histórico todo o agir que se insira neste sentido: ele constitui o
horizonte da época e

determina o significado de qualquer parte do seu

sistema. É esta a auto-centralidade da época, na qual se resolve o problema do


significado e do sentido

217

que se possam encontrar na história" (Ib., p. 186). Não existe porém um


determinismo rigoroso no que respeita à natureza e ao comportamento dos
indivíduos que pertencem a determinada época histórica; em todas as épocas se
podem encontrar forças contrárias às que constituem a estrutura dominante.
Cada época implica uma referência à época precedente, da qual recebe os
efeitos nas suas forças activas e implica, desse modo, o esforço criador que
prepara a época seguinte. "Assim como ela se originou pela insuficiência da
época precedente, do mesmo modo leva consigo os limites, os desacordos e as
dores que preparam a época futura". O florescimento de uma época é breve; e de
uma época a

outra vai-se transmitindo "a sede de uma satisfação total, que nunca pode ser
saciada" (Ib., p. 187).

A esta sucessão das épocas não preside, segundo Dilthey, nenhum princípio
infinito ou providencial. Dilthey pensa que "toda a forma da vida histórica é
finita" e que, portanto, não é possível o recurso

ao absoluto. Os próprios valores nascem e morrem

na história e, mesmo quando se apresentam como incondicionados, são na


realidade relativos e transitórios (Ges. Schrif., VII, p. 290). O que dá
continuidade, à história é somente "a continuidade da força criadora", ou
seja, da actividade humana que produz o mundo histórico. Mas "a consciência
histórica da finitude de todo o fenómeno histórico, de toda a situação humana
e social, a consciência da relatividade de todas as formas de fé, é o último
passo para a libertação do homem" (Ib., p. 290).

218

§ 738. DILTHEY: O CONCEITO DA FILOSOFIA

A historicidade e a relatividade dos fenómenos históricos chocam-se, segundo


Dilthey, com a própria filosofia. A filosofia é historicamente condicionada,
do mesmo modo que qualquer outro produto do homem, e as suas formas históricas
são por isso diferentes e irredutíveis entre si; mas, por outro lado, a sua
consideração histórica mostra que existem em

todas as filosofias "traços de natureza formal" que são essencialmente dois:


toda a filosofia se baseia, em primeiro lugar, na totalidade da consciência e

procura, partindo desta base, esclarecer o mistério do mundo e da vida: e, em


segundo lugar, toda a

filosofia tenta alcançar uma validade universal. Devido à primeira


característica, a filosofia é uma intuição do mundo e apresenta, portanto, uma
forma fundamental comum com a religião e a arte. De facto, em cada momento da
nossa existência está implícita uma relação da nossa vida singular com o

mundo que nos rodeia como uma totalidade intuída. A intuição filosófica do
mundo distingue-se da religiosa pela sua validade universal e da artística por

ser uma força que quer reformar a vida (Das Wesen der Phil., em Ges. Schrift.,
V, p. 400). Quando a

intuição do mundo é compreendida conceptualmente, ficando assim definida e


dotada de validade universal, recebe o nome de metafísica. A metafísica pode
ter infinitas formas que diferem entre si por diferenças substanciais ou
acidentais. Contudo, podem-se distinguir alguns tipos fundamentais, que se
radicam

219

nas diferenças decisivas das várias intuições do mundo. Estes tipos são três:

O primeiro é o do naturalismo materialista ou positivista (Demócrito,


Lucrécio, Epicuro, Hobbes, os Enciclopedistas, os materialistas modernos,
Comte). Esta intuição do mundo baseia-se no conceito de causa e, portanto, da
natureza como conjunto de factos que constituem uma ordem necessária. Na
natureza assim entendida não há lugar para os conceitos de valor e de fim, e a
vida espiritual aparece forçosamente como "uma interpolação na contextura do
mundo físico".

O segundo tipo de intuição filosófica do mundo é o idealismo objectivo


(Heraclito, estóicos, Espinosa, Leibniz, Shaftesbury, Goethe, Schelling,
Schleiermacher, Hegel). Esta intuição do mundo baseia-se na

vida do sentimento e é dominada pelo sentido do valor e significação do mundo.


Toda a realidade aparece como expressão de um princípio interior, sendo por
isso entendida como uma conexão espiritual que actua consciente ou
inconscientemente. Este ponto de vista leva a ver nos fenómenos do mundo
manifestações de uma divindade imanente (Pariteísmo).

O terceiro tipo de intuição do mundo é o do idealismo da liberdade (Platão,


filosofia helenístico-romana, Cícero, especulação cristã, Kant, Fichte, Maine
de Biran, etc.). Esta doutrina interpreta o

mundo em termos de vontade e, portanto, afirma a independência do espírito


relativamente à natureza, isto é, a sua transcendência. Da projecção do
espírito sobre o universo originam-se os conceitos de perso-
220
nalida,de divina, de criação, de soberania da pessoa sobre o curso do mundo.

Cada um destes tipos dá às diferentes produções de uma qualquer personalidade


singular uma unidade intrínseca; e nisto reside a sua força. Cada tipo emprega
um facto último de consciência, uma categoria. O materialismo, a categoria de
causa; o idealismo objectivo, a categoria de valor; o idealismo subjectivo, a
categoria de finalidade. Cada uma destas categorias fundamentais é uma relação
entre o

homem e o mundo; mas não é possível uma relação total que resulte do conjunto
destas três categorias. Isto significa que a metafísica é impossível: deverá,
com efeito, tentar unir ilusoriamente tais categorias ou mutilar a nossa
relação vivida com o mundo, reduzindo-a a uma só delas. A metafísica é
impossível mesmo no âmbito de cada um dos três tipos fundamentais, já que não
é possível determinar a unidade última da ordem causal (positivismo), nem o
valor incondicionado (idealismo objectivo), nem o fim absoluto (idealismo
subjectivo). Contudo, a última palavra não é a relatividade das intuições do
mundo mas a soberania do espírito frente a todas elas e, ao mesmo tempo, a
consciência positiva de que na sua

diversidade se expressa a plurilateralidade do mundo e de que esta consciência


constitui precisamente a

única realidade do mundo (Ib., p. 406). O carácter mais universal da filosofia


consiste na natureza da compreensão objectiva e do pensamento conceptual, no
qual se baseia. O proceder do pensamento expressa a necessidade da natureza
humana de estabelecer solidamente a posição do homem frente ao

221

mundo, o esforço por romper os laços que prendem a vida às suas condições
limitadoras. Este esforço constitui a função universal da filosofia e a última
unidade de todas as suas manifestações históricas.

§ 739. SIMMEL

Na obra de Dilthey, a metodologia das ciências do espírito foi enriquecida por


determinações e esclarecimentos, os quais constituíam modificações ou

desenvolvimentos substanciais em relação à obra de Weber. Os outros


historiadores alemães, que desenvolveram as suas doutrinas em polémica com
Dilthey ou continuando-o, manifestam a tendência para acentuar aspectos
subordinados ou parciais da filosofia de Dilthey ou para corrigi-lo recorrendo
ao absoluto e evidenciando um retorno parcial ao hegelianismo. Entre os
primeiros, Simmel e Spengler desenvolvem o relativismo de Dilthey tentando
fazer dele uma metafísica da vida. Entre os segundos, Troeltsch e Meinecke
procuram conciliar o historicismo com valores absolutos e efectuam um retorno
parcial ao conceito romântico da história. Vimos anteriormente (§§ 727-28) que
Windelband e Rickert, seguindo a mesma orientação, polemizaram contra o
relativismo dos valores, colocando-os a um nível em que não podem ser
alternados pelas vicissitudes da história.

George Simmol (1858-1918) é autor de numerosas obras filosóficas e


sociológicas: O problema da filosofia da história (1892); Introdução à ciência
moral
222

(1892); Filosofia da moeda (1900); Sociologia (1910); Problemas fundamentais.


da filosofia (1910); Problemas de Sociologia (1917); A intuição da vida
(1918); e ainda de trabalhos históricos sobre l(ant (1903), sobre Schopenhauer
e Nietzsche (1916) e sobre a situação espiritual da época da primeira guerra
mundial (A guerra e a decisão espiritual, 1917; O conflito da cultura moderna,
1918).

Se bem que a filosofia de Siminel se oriente para o relativismo, ela começou


por defender algumas exigências da escola de Baden, em primeiro lugar a de
reconhecer ao valor ou dever ser uni status independente das situações
históricas. Assim, na Introdução à ciência moral, Simmel afirma que o

dever ser é uma "categoria natural do pensamento", do mesmo modo que o ser,
reconhecendo depois que ele age e vive somente na consciência empírica do
homem e em relação com o conteúdo psicológico dela. E nos Problemas
fundamentais, da filosofia, juntamente com o sujeito e o objecto, considerados
nas suas relações funcionais, Simmel reconhece a

existência de um terceiro reino de conteúdos ideais independentemente das suas


realizações no sujeito ou no objecto, o reino das ideias platónicas, e ainda
um quarto reino que é o das exigências ideais e do dever ser. No entanto, nada
disto impediu Simmel de se orientar para uma forma de relativismo radical
baseada numa metafísica da vida. Simmel foi conduzido a esta orientação pela
exigência de criação das ciências do espírito, especialmente a historiografia
e a sociologia.

223

Por se preocupar com o problema da história, Simmel. é levado a pô-lo em


termos análogos aos utilizados por Kant ao considerar o problema da natureza:
trata-se agora de determinar a possibilidade da história, do mesmo modo que
Kant determinou a possibilidade da natureza. Mas a solução dada por Simmel é
completamente diferente da de Kant. A possibilidade da história não reside em
condições a

priori, em formas intelectuais independentes da experiência: as categorias e


princípios que ordenam o

material historiográfico e o constituem numa imagem que não é de modo algum a


cópia dos dados em que se baseia, são eles próprios empíricos e pertencem à
experiência psicológica, pelo que "a psicologia é o a priori da ciência
histórica" (Die Probleme der Geschichtesphilosophie, p. 33). Como condições
psicológicas, as categorias da investigação histórica podem modificar-se, e
modificam-se, com o desenvolvimento histórico; e, assim, acontece que a
realidade histórica pode ser interpretada segundo diversas categorias e dar
lugar a diversas representações historiográficas. Não são portanto, no sentido
próprio, leis da realidade histórica. O reagrupamento dos factos segundo um
determinado conceito não vale como lei determinante que supõe a acção de
factores objectivos constantes (Ib., p. 91). Deste ponto de vista, não se pode
pôr o problema do significado total da história e toda a sua solução é
reenviada para o domínio da fé (Ib., págs. 72 e segs.). Analogamente, a
sociologia não pode ter a pretensão de esclarecer a natureza e o significado
da sociedade como um todo; ela tem simplesmente como objecto

-9 2 4
as formas de associação assumidas pelas relações entre os indivíduos. E
distingue-se das ciências sociais particulares porque enquanto nestas os
fenómenos sociais são considerados nos seus conteúdos, na sociologia são
apenas considerados como modalidade das relações entre os indivíduos
(Soziologie, p. 12).

Num artigo de 1895, ao polemizar contra a noção de verdade absoluta, Simmel


chega a reconhecer o carácter pragmático da própria verdade. Se, de facto,
negarmos o valor absoluto da verdade, não poderemos aplicar-lhe outro critério
senão o da sua utilidade, ou seja, o da sua coerência com a prática, e nesse
caso a verdade é o resultado da selecção biológica e identifica-se com a
própria finalidade da espécie humana. Estes conceitos orientam a sua ulterior
actividade para uma metafísica da vida. Deste ponto de vista, a filosofia não
é uma ciência objectiva mas "a reacção do homem à totalidade do sem.

É assim que ela aparece definida nos Problemas, fundamentais da filosofia. O


que a impede de reduzir-se

a uma opinião do sujeito individual é a sua tipologia, ou seja, o facto de ela


não exprimir o indivíduo mas antes a espiritualidade típica: a qual garante
uma possibilidade de comunicação entre os indivíduos que filosofam, mas não a
concordância das suas filosofias. As análises históricas de Simmel tendem
precisamente a caracterizar algumas destas espiritualidades típicas; é assim
que ele vê em Schopenhauer e Nietzsche dois tipos opostos e inconciliáveis de
filosofia: a negação do valor da vida e a afirmação do seu valor para além de
qualquer pri-

225

vação ou dor. Mas deste ponto de vista a vida torna-se o verdadeiro e único
sujeito da história e -a

única substância das coisas: uma realidade metafísica. Mais do que para
Dilthey, que considerara a vida apenas enquanto situação do homem no

mundo, esta noção remete talvez para Bergson. Simmel entende a vida no sentido
da duração real de Bergson. (§ 693), ou seja, como continuidade em que o
presente inclui o passado e não como sucessão de estados diferentes ou
diferenciáveis. Neste sentido a vida é o próprio tempo concreto, enquanto que
o

tempo é, em si, a forma abstracta da vida (Lebensanschauung, págs. 11-12). A


vida prossegue dentro de formas determinadas mas ultrapassando essas formas na
continuidade do seu processo. Devido a esta continuidade ela será mais-vida
(Mehr-Leben), porque se transcende a si mesma; enquanto que nas formas por ela
criadas é mais-que-vida (Mehr-als-Leben), por se conseguir impor ao seu
processo temporal. Logo, este processo inclui a morte, isto é, o destino
inevitável de todas as formas de vida (Ib., págs. 22 e segs.). O mundo
histórico, aquele que é objecto do conhecimento histórico, é uma forma da vida
no sentido muito específico de ser uma emergência de uma estrutura ideal acima
da continuidade do processo vital: uma emergência que reivindica uma certa
autonomia relativamente a esse processo e que entra em relação ideal com
outras formas da vida, por permanecer, tal como essas outras formas,
sobreposta à continuidade da vida. A relação e, simultaneamente, a separação
entre a vida e um qualquer elemento
226

ideal (valor, dever ser, forma, mundo histórico) parece ter sido o tema
constante da filosofia de Simmel.

§ 740. SPENGLER

O relativismo histórico, relevando de uma metafísica da história, de Oswald


Spengler (1880-1936), teve um êxito extraordinário. Spengler é autor de uma
obra que teve grande expansão e que suscitou inúmeras discussões: O ocaso do
Ocidente. Esboço de uma morfologia da história do mundo (2 vols.,
1918-22). Esta obra fora precedida de um ensaio sobre Heraclito (1904), no
qual o Logos heraclitiano era interpretado como a lei do destino que rege o

devir do mundo. Os escritos posteriores são principalmente políticos:


Prussianismo e socialismo (1919), Deveres políticos da juventude alemã (1924);
Reconstrução do Estado alemão (1924); O homem e a

técnica (1931); Anos de decisão (1933). Estes escritos defendiam, contra o


liberalismo, a democracia e o capitalismo, um ideal político semelhante ao do
nazismo: um estado autoritário baseado no poder militar e numa classe
trabalhadora disciplinada e

privada de influência política. Este ideal era apresentado como sendo o


conveniente para a "Europa" e, em geral, para a "raça branca"; mas o
instrumento da sua realização deveria ser a Alemanha.

Spengler imobiliza numa dualidade metafísica a diferença objectiva que Dilthey


tinha reconhecido existir entre a natureza e a história. Para Dilthey, a
natureza e a história eram dois objectos diferentes

227

estudados por duas ordens de investigação diferentes, para Spengler são duas
realidades metafísicas incomensuráveis. A natureza é o mundo dos produtos do
devir, daquilo que foi produzido pela vida e que se destacou dela; a história
é o mundo do devir, da vida que cria incessantemente novas formas. Na natureza
vale a necessidade causal que se manifesta na uniformidade e na repetição e
que pode ser

expressa por fórmulas matemáticas; na história vale a necessidade orgânica que


é própria do que é singular e não-repetitivo. A natureza pode ser apreendida
por uma lógica mecânica; a história só o pode ser por uma ló gica orgânica que
encontra o seu

instrumento na experiência vivida (Erlebnis) compreendida como uma penetração


intuitiva, portanto imediata, das formas assumidas pelo devir histórico. A
lógica orgânica permite formular uma "morfologia da história universal", ou
seja, uma descrição da "forma" ou "fisionomia" da unidade que constitui o
elemento da história. Esta unidade é a cultura (Kultur). Toda a cultura é um
organismo que, como todos os organismos, nasce, cresce e morre segundo um
ritmo imutável. "Toda a cultura, o seu aparecimento, o seu desenvolvimento
e o seu declínio, diz Spengler, cada um dos seus graus e dos seus
períodos internamente necessários, tem uma duração determinada, sempre igual,
tomando sempre a forma de um símbolo" (Untergang des Abendlandes, I, p. 147).
Qualquer cultura realiza progressivamente tudo aquilo que lhe é possível. Ao
completar esta tarefa ela chega ao seu termo. É por -isso que o culminar de
uma cultura, a civilização

228

(Zivilisation), onde ela alcança "os estados extremos e mais refinados" de que
já são apenas capazes os

homens superiores, é a sua conclusão, o seu fim necessário e irrevogável.

Dilthey tinha falado da "auto-centralidade das estruturas históricas", no


sentido de que cada estrutura histórica admite um núcleo central de valores ou
ideais que dá significado a todas as suas manifestações: Spengler,
considerando a cultura como um organismo e o organismo como uma totalidade
cujas partes têm necessariamente relações recíprocas, pensa que cada aspecto
da cultura é uma manifestação necessária da própria cultura e que não tem
sentido fora dela. Toda a cultura tem uma forma específica de considerar a
natureza, ou melhor, tem uma "natureza" própria, uma ciência, uma filosofia,
uma moral, que lhe estão indissoluvelmente ligadas do mesmo modo que os
membros de um organismo se encontram ligados ao seu todo. No âmbito da
cultura, todas estas manifestações têm um valor absoluto; fora dela não têm
nenhum valor. No entanto, se bem que não exista nenhuma ciência, filosofia ou
moral universal que seja válida para todas as

culturas, toda a ciência, filosofia ou moral é absoluta e necessária no seio


da cultura a que pertence.
O relativismo dos valores, que era um dos resultados da filosofia de Dilthey,
transforma-se em Spengler num absolutismo relativo dos valores: relativo
porque é limitado à duração da cultura em que se integra. Devido à conexão de
todos os aspectos de uma cultura e à necessidade que preside ao seu surgir, ao
seu florescer e à sua morte, nenhuma

229

cultura oferece aos homens qualquer possibilidade de escolha, quer no que


respeita ao seu desenvolvimento ou às suas articulações internas, quer no que
respeita ao seu ciclo vital. Uma necessidade inexorável preside a todo o seu
desenvolvimento e a todas as suas vicissitudes; esta necessidade é o destino
(Untergang des Abendlandes, 1, págs. 152 e segs.). Os homens podem certamente
tentar opor-se ao destino da cultura a que pertencem; mas o insucesso
inevitável da sua acção em tal sentido equivale a

uma reprovação moral e histórica. A única acção justificada e justificável é a


inspirada pelo reconhecimento do destino e orientada na mesma direcção em

que ele se manifesta: é o próprio sucesso desta acção que a justifica. "Nós,
diz Spengler, não temos a liberdade de realizar isto ou aquilo, mas sim a
liberdade de fazer aquilo que é necessário ou de não fazer nada; e qualquer
tarefa que tenha surgido por necessidade da história irá avante com a ajuda de
cada um dos indivíduos ou contra eles. Ducunt fata volentem, nolentem trahunt"
(Ib., 11, p, 630).

É a partir destas bases que Spengler prevê o inevitável ocaso da cultura


ocidental. Esta já atingiu a fase de "civilização", ou seja, da plena
maturidade que inicia a decadência e precede a morte. A crise da moral e da
religião, e especialmente a desta última já que "a essência de todas as
civilizações é a religião"; o prevalecer da democracia e do socialismo que
subvertem as relações naturais do poder; a equivalência, própria da
democracia, entre o dinheiro e o poder político, e que significa o

triunfo do dinheiro sobre o espírito; e, numa pa-


230

lavra, o "desabar de todos os valores" de que Nietzsche foi o profeta mas que
o Ocidente mostra já em acto, são os precursores infalíveis da morte da
civilização ocidental. O último acto desta civilização será um retorno ao
cesarismo, que constituirá o prelúdio de um retorno ao estado primitivo (Ib.,
11, cap. V).

A obra de Spengler assinala o predomínio, no

historicismo alemão, das categorias românticas e, sobretudo, da categoria da


necessidade. Spengler substituiu a necessidade do progresso, que era o mito
romântico, pela necessidade do ciclo orgânico da cultura, o conceito da
história como previsão infalível Post factum pelo conceito da história como
previsão infalível ante factum. Assim se ilude a exigência mais radical do
historicismo alemão que era

precisamente % de subtrair a história à necessidade e de restituir aos homens


a possibilidade de escolha histórica decisiva e responsável.

§ 741. TROETSCH

A relação entre o historicismo e a religião, ou


melhor, entre o devir histórico e os valores eternos que a religião encarna ou
defende, é o tema da investigação levada a cabo, no âmbito do historicismo,
por Troeltsch e Meinecke.

Ernesto Troeltsch (1865-1923) foi sobretudo um historiador do cristianismo e


um teólogo. As suas

obras principais são: O absoluto do cristianismo e

a história da religião (1902); Psicologia e teoria do

231

conhecimento na ciência da religião (1905); O significado do protestantismo


para a origem do mundo moderno (1906); A importância da historicidade de Jesus
para a fé (1911); A doutrina social da Igreja e dos grupos cristãos (1908-12);
e ainda numerosos escritos e artigos importantes.

O ponto de partida de Troeltsch, que o coloca imediatamente no âmbito do


historicismo, é o reconhecimento do carácter histórico da religião e, por
isso, do próprio cristianismo. Troeltsch entrou em polémica com a concepção
romântica da religião, principalmente na sua forma hegeliana, como essência
universal de que as religiões históricas seriam a progressiva realização. As
religiões são factos históricos individuais e irredutíveis e o próprio
cristianismo é um fenómeno histórico que sofre "o condicionamento de qualquer
fenómeno histórico individualizado" a par das outras religiões (Die
Absolutheit des Christentums und die Religionsgeschichte, p. 49). Mas um
fenómeno histórico não está, por esse facto, privado de validade; e Troeltsch
coloca o problema da validade da religião em termos de um problema critico no
sentido kantiano: trata-se de encontrar, para a religião, o elemento a priori
que a torna possível.
Troeltsch admite assim, na obra Psicologia e teoria do conhecimento na ciência
da religião, um a

priori religioso que pertence à própria razão e cuja existência é demonstrada


pelo sentimento de obrigação que acompanha a religião, assim como pela posição
orgânica que ela ocupa na economia da consciência e pela causalidade autónoma
que a re-
232

ligião mostra ter no mundo histórico. Apesar de estar em relação com as outras
formas do processo histórico (economia, política, ciência, arte, etc.) e

sendo em certos aspectos condicionada por essas

formas (Troeltsch não exclui sequer a influência, mostrada por Marx, do


processo histórico sobre a religião, se bem que pense que ela não se manifesta
necessariamente), a religião manifesta uma causalidade autónoma em virtude da
qual certos acontecimentos religiosos (como seja o aparecimento do
Cristianismo e da Reforma) mostram ser produtos de factores especificamente
religiosos. Segundo Troeltsch, esta causalidade autónoma da religião pode ser

interpretada como a manifestação ou a presença do infinito (ou seja, de Deus)


no finito, isto é, na consciência individual do homem (Gesammelte Schriften,
II, p. 764). Com efeito, pode-se considerar o mundo espiritual como sendo
independente da causalidade natural e submetido à acção imediata de Deus: uma

acção que pode ser mais forte ou mais débil, mais ou menos compreensível, mais
ou menos pessoal; mas que justifica a superioridade do Cristianismo o

qual, melhor do que as outras religiões, a reconheceu e afirmou no seu


carácter sobrenatural e transcendente.

A especulação de Troeltsch sobre a religião move-se assim entre dois polos:


por um lado o reconhecimento da historicidade radical ida religião e, por
outro, o reconhecimento do seu fundamento transcendente na base da causalidade
autónoma da história religiosa. Esta polaridade mantém-se nas análises que fez
do historicismo, primeiro na obra O his-
233

toricismo e o seu problema (1922), onde se reúnem os ensaios sobre este


assunto que escrevera des&-,
1916, e depois em cinco lições que deveria ter proferido em Inglaterra, mas
que não pôde dar por ter sido surpreendido pela morte, e que foram publicadas
postumamente com o título O historicismo e _q sua superação (1924). O
historicismo, para Troeltsch, é a historização de toda a realidade e de todo o
valor, o dissolver-se, no fluxo heraclitiano do devir, de todas as criações
humanas: estado, direito, moral, religião, arte, etc.. Do ponto de vista
historicista, a

categoria histórica fundamental é a da totalidade individual, no sentido da


estrutura auto-centralizada de Dilthey. Totalidades individuais serão, para
além dos indivíduos, os povos, os estados, as classes, as culturas, as
correntes espirituais, as religiões, etc. Mas-e aqui Troeltsch introduz no
historicismo a exigência de transcendência dos valores deduzida por Rickert (§
728)-a compreensão de uma totalidade individual só é possível se a
relacionarmos com os valores, Com efeito, aquilo que é importante no histórico
é a determinação do que é essencial, o que é único e irrepetível, numa
totalidade singular; o essencial consiste no único valor ou no único
significado que é próprio da consciência dessa totalidade e que, como tal, não
pode ser aplicado como medida ou critério de qualquer outra totalidade. Ora
aquilo que é próprio da relação entre o objecto histórico e o valor que o
individualiza é, segundo Troeltsch, a sua conexão com o absoluto (Gesammelte
Schriften, 111, p. 212). O absoluto dos valores manifesta-se na sua
relatividade às totalidades a que

234

pertencem. "A relatividade dos valores, diz Troeltsch, só tem sentido se neste
relativo existe um absoluto vivo e criador. Se assim não acontecesse, tratar-
se-ia de uma mera relatividade e não de uma relatividade dos valores. Esta
última pressupõe um

processo vital do Absoluto, através do qual este surge em cada ponto da forma
mais apropriada a

esse ponto" (Ib., 111, p. 212). Por outras palavras, a relatividade, histórica
e o absoluto dos valores coincidem: por se encontrarem nas suas formas
históricas relativas, os valores constituem a presença, na

própria história, de um princípio absoluto que Troeltsch chama, assim como


Leibniz, "consciência universal" e que, ainda de acordo com Leibniz, se
manifestaria nas consciências individuais. Estas relevam, precisamente, de uma
identidade ou encontro do Infinito e do finito; e é por essa razão que podem
comunicar entre si. Todo o mónada se pode entender com os outros mónadas
através da transmissão da consciência universal de que todos eles constituem
manifestações (1b., p. 685).

A identidade entre infinito e finito, entre o absoluto dos valores e a


relatividade histórica, não é apenas uma dimensão vertical da história,
devendo também encontrar a sua realização no próprio decorrer da história.
Esta realização está confiada, segundo Troeltsch, ao esforço criador dos
homens e, em particular, a uma filosofia da história que se

proponha obter "um critério, um ideal, -uma ideia de uma nova unidade cultural
a criar partindo daquilo que existe no presente, presente este considerado
como sendo uma situação complexa resultante

235

de séculos de história" (Ib., 111, p. 112), Tal realização consiste, portanto,


na elaboração de um ideal de civilização que valha como indicação dos fins que
o desenvolvimento histórico deve atingir e

simultaneamente como critério de avaliação das fases anteriores de tal


desenvolvimento. Esta tarefa, consistindo na determinação de um sistema de
valores que servem para avaliar a história e orientá-la para o futuro, é uma
tarefa ética,, em particular, ela diz respeito não só aos valores culturais
aplicáveis a uma cultura ou a um grupo social particular, mas

igualmente aos valores espirituais que condicionam a dignidade e a unidade da


personalidade humana (Der Historismus und seine Uberwindung, págs. 27 e
segs.).
§ 742. MEINECICE

A obra de Friedrich Meinecke aproxima-se dia de Troeltsch, tendo-a, de resto,


influenciado na sua última fase, Meinecke (1862-1954) foi principalmente um
historiador da Alemanha moderna, tendo começado por ver na história do Estado
Alemão uma

fusão feliz do poder material e dos valores espirituais ou, segundo a sua
expressão, do Kratos e do Ethos. Esta fusão era considerada por ele (sobretudo
na obra Cosmopolitismo e estado nacional, 1908) não apenas como a justificação
histórica do estado nacional alemão mas, também, como o critério da avaliação
histórica e da orientação política; critério que ele considerava ser a maior
conquista do romantismo contra o iluminismo. Meinecko via no

236

romantismo, e com razão, o reconhecimento da conciliação e da identidade entre


o dever ser e o ser ou, mais especificamente, entre a moral ideal da dignidade
e liberdade do indivíduo e a realidade política que é uma força ou poder
material. A **erÍ&@ que se seguiu à primeira guerra mundial induziu Meinecke a
reconhecer, em principio, a possibilidade de um conflito entre os dois
elementos em cuja unidade tinha acreditado; e na obra A ideia da razão de
estado na história moderna, este conflito é ilustrado por ele em toda a sua
extensão, como tratando-se da própria essência do mundo histórico-político.
"Entre Kratos e Ethos, afirma M-**eíne,cke, entre a conduta guiada pelo
impulso da força e a conduta guiada pela responsabilidade moral, existe, no
cume da vida política, uma ponte, a chamada razão de estado: a consideração
daquilo que é conveniente, útil e benéfico, daquilo que o estado deve fazer
para atingir em todas as circunstâncias o mais alto ponto da sua existência...
E é precisamente neste ponto que se notam claramente as terríveis
dificuldades, anteriormente, ocultas, da coexistência do ser e do dever ser,
da causalidade e da idealidade. da natureza e do espírito na vida humana. A
razão de estado é um princípio de conduta que oferece a maior duplicidade: por
um lado, releva de uma natureza física, por outro lado, do espírito. E tem
ainda, por assim dizer, um aspecto intermédio no qual aquilo que pertence à
natureza se mistura com aquilo que pertence ao espírito". (Die Ideen der
Staatsràson in der neuren Geschichte, p. 5). Deste ponto de vista, a tarefa do
historiador

237

consistirá em considerar, não a identidade daqueles dois princípios, mas a sua


polaridade: isto é, a oposição que os relaciona e através da qual podem
encontrar uni equilíbrio que, no entanto, nunca é estável ou definitivo.

Já aqui se encontrava implícito, o problema da relação entre os -valores e a


história; Meinecke considerou essa questão na obra O nascimento do
historicismo (1936), que se destinava a mostrar a formação histórica do
historicismo a partir da dissolução da filosofia do direito natural. Esta
filosofia constituía, segundo Meinecke, " uma firme estrela polar no meio das
tempestades de toda a história universal", visto que considerava a razão
humana como eterna e intemporal e se destinava precisamente a guiar o homem na
enorme variedade das vivências históricas. O reconhecimento da individualidade
de todos os fenómenos históricos, efectuado pelo historicismo, individualizou
a própria razão, ou

melhor, transformou-a numa força histórica que assume diferentes fisionomias


em diferentes épocas e que por isso conduz a uma radical relatividade dos
valores. Meinecke julga subtrair-se a esta relatividade retomando Goethe "que
concebeu a missão individual e, do ponto de vista humano, relativo, da própria
vida, como desejada por Deus e, portanto, absoluta" e que aconselhou a não
perder, quando se admitem os condicionalismos históricos, "a obscura nascente
de forças que é constituída pela fé nos valores últimos absolutos e numa fonte
última, igualmente absoluta, de toda a vida" (Die Entstehung des Historismus,
11, p. 625). E, além de Goethe,

238

Meinecke recorre a Ranke sintetizando assim as suas posições: "um Deus


superior ao mundo que, além de ser criado por ele, é percorrido pelo seu
espírito e por isso lhe é afim, e também ao próprio tempo, igualmente
imperfeito em tantos aspectos" (Ib., 11, p. 645). O pressuposto romântico da
identidade entre finito e infinito é assim acentuado por Meinecke, mas
limitado no que respeita ao infinito, no sentido de que este transcende o
finito, isto é, a história: um sentido que, no entanto, o romantismo tinha
conhecido na sua segunda fase e que constitui, como se viu, o fundamento do
retorno romântico à tradição (§ 613).

§ 743. WEBER: INDIVIDUALIDADE, SIGNIFICADO, VALOR

Em 1936, como a publicação do Nascimento do historicismo de Meinecke, pode


considerar-se findo o ciclo histórico do historicismo alemão, entendido como
corrente ou manifestação da filosofia contemporânea. Mas a sua influência
sobre a metodologia historiográfica, sobre a sociologia, a ética e, em geral,
todo o domínio das chamadas ciências do espírito, continua ainda depois
daquela data, sobretudo através da obra de Weber; é por isso que esta é aqui
examinada em último lugar apesar de ser cronologicamente anterior à de alguns
dos filósofos já referidos.

Max Weber (1864-1920) foi historiador, economista e político; e os problemas


metodológicos fo-
239

ram-lhe sugeridos precisamente por esta actividade. Os seus escritos


fundamentais são os seguintes: Sobre a história das sociedades mercantis na
Idade Média (1889); O significado da história agrária romana para o direito
público e privado (1891); As relações entre os trabalhadores agrários na
Alemanha oriental (1892); A ética protestante e o espírito do capitalismo
(1904-1905); As seitas protestantes e o espírito do capitalismo (1906) As
relações agrárias na

Antiguidade (1909) e Economia e sociedade (póstuma, 1922). Para a metodologia


das ciências histórico-sociais são muito importantes os ensaios: Roscher e
Knies e o problema lógico da economia político-histórica (1903-06); A
objectividade dos conhecimentos das ciências sociais e da política social
(1904); Estudos críticos sobre a lógica das ciências da cultura (1906); Sobre
algumas categorias do estudo sociológico (1913); O significado da avaliação
das ciências sociológicas e económicas (1917) e A ciência como vocação (1919).

No campo da economia e da historiografia, a

posição de Weber caracteriza-se: pela critica da escola histórica da economia


que via em todo o sr, tema económico a manifestação do "espírito de um povo";
pela crítica do materialismo histórico que, segundo Weber, esquematiza de
forma dogmática as relações entre as formas de produção e de trabalho e as
outras manifestações de vida em sociedade, isto quando tais relações, em sua
opinião, se iriam esclarecendo progressivamente, de acordo com os aspectos
particulares da sua evolução, e pelo reconhecimento da influência que podem
ter as for-
240

mas culturais, a religião por exemplo, sobre a estrutura económica. Este


último ponto é esclarecido na obra sobre A ética protestante e o espírito do
capitalismo, na qual Weber mostra como a ética calvinista foi favorável ao
capitalismo, à procura do lucro como fim. em si mesmo, independentemente da
sua utilidade, e à consciência do dever profissional como dever moral.

No campo -da investigação metodológica, Weber aceita álbuns dos resultados


fundamentais do historicismo alemão, principalmente o reconhecimento do
carácter individual do objecto das ciências histórico-sociais. "Um ponto de
partida de grande interesse nas ciências sociais, afirma, é sem dúvida a
configuração real, portanto individual, dia vida social que nos rodeia, se é
verdade que, considerada como um

todo, ela é universal, não é menos verdade que ela só pode ser atingida
individualmente e a partir de outros níveis sociais de cultura, os quais, por
sua

vez, também só podem ser atingidos individualmente" (Gesammelte Azifsãtze zur


Wissenschaftslehre, p. 177). Mas a individualidade do objecto histórico é,
para Weber, o resultado da opção individualizante que se encontra na origem da
investigação histórico-social. A individualidade não pertence nem à substância
nem à estrutura do objecto em si; ela é o resultado da escolha do objecto
feita pela própria investigação, isolando-o num conjunto de outros objectos,
considerados relativamente "insignificantes". Ora aquilo que dá significado a
um objecto e que o individualiza ao propô-lo como tema de investigação, é o
valor que &e é atribuído. Weber

241

aceita aqui a tese de Wckert segundo a qual a

historicidade de um objecto é constituída pela sua relação com o valor (§


728). Mas corrige esta tese ao afirmar que a relação entre objecto e
valor depende do investigador; não se trata, como pretendia Rickert, de
uma conexão necessária de uni certo objecto com um certo valor
transcendente. Isto implica a relatividade dos critérios de escolha do
conhecimento histórico e ainda a **imilateí-alidade da pesquisa histórica que,
conforme se orienta para um ou outro

valor, assim vai delimitando o seu campo. Deste ponto de vista, toda a
disciplina constitui o seu próprio objecto, orientando as escolhas que efectua
para os

valores que correspondem aos seus interesses. É por isso que "são as ligações
conceptuais do problema que se encontram na base do campo de trabalho das
ciências, e não as conexões objectivas entre as coisas: quando se estuda um
novo problema usando novos métodos, e desse modo se descobrem verdades que dão
lugar a novos pontos de vista significantes, surge uma 'ciência'" (Ges.
Aufsülre z. Wiss., p. 166). O conhecimento histórico é portanto assistemático,
no sentido de que não pode dar lugar a
um sistema total **def"tivo das ciências da cultura. E a própria cultura não
constitui um único campo de investigação mas sim um conjunto de campos
autónomos cuja coordenação depende do diferente desenvolvimento de cada um
desses campos.

Tudo isto significa que o conhecimento da realidade cultural é sempre um


conhecimento desde um ponto de vista particular. "Seria ias ideias de valor do
próprio investigador, diz Weber, não haveria ne-
242

nhum princípio para a escolha da matéria e nenhum conhecimento significativo


do real na sua individualidade; e como sem a fé do investigador no significado
de qualquer conteúdo cultural perde imediatamente sentido toda a tentativa de
conhecimento da realidade individual, também a direcção em que se manifesta a
sua fé pessoal, ou seja, a refracção ,dos valores no espelho da sua alma,
indicará a direcção do seu trabalho" (Ib., p. 181). É da escolha subjectiva
dos valores que depende, portanto, a

decisão sobre os objectos que têm ou não -valor, quer dizer, daquilo que é ou
não significativo, daquilo que é " importante" ou não. A investigação não pode
ser iniciada e conduzida sem este factor decisivo que é a escolha do
investigador, mas por outro lado, segundo Weber, este factor não torna
subjectiva ou arbitrária toda a investigação, não limita a sua validade ao
investigador que a efectuou. Com efeito, qualquer que seja o valor que guiou o

trabalho do investigador, os resultados da sua pesquisa devem ter uma validade


objectiva, isto é, devem ser válidas "para todos quantos queiram a

verdade", e tal validade pode ser conseguida devido à dIsciplina própria da


investigação, disciplina que, segundo Weber, é de natureza causal.

§ 744. WEBER: A POSSIBILIDADE OBJECTIVA

O recurso à explicação causal, considerada própria não só das ciências


naturais como também das historico-sociais, é o ponto fundamental em que

243

Weber se distancia da tradição do historicismo alemão. Este último considerava


que a explicação causal era aplicável apenas às ciências da natureza; por esta
razão, contrapunha-lhe, como procedimento próPrio das ciências do espírito, a
compreensão imediata, intuitiva e sentimental do objecto individual. Weber
abandona esta antítese e considera que o próprio "compreender", longe de ser
um procedimento intuitivo e emotivo, dá origem a unia interpretação que é
constituída essencialmente por uma explicação causal. "Para ia história, em
particular, ,afirma Weber, a forma da explicação causal deriva do seu
postulado como "interprete inteligente. A interpreta-ção do histórico não se !
dirige, no entanto, à nossa capacidade de subordinar os "factos", tidos como
exemplares, a conceitos de espécie e a fórmulas, mas sim à nossa confiança na
tarefa, que se nos apresenta quotidianamente, de 'compreender' o agir humano
individual nos seus motivos" (1b., p. 136). A explicação causal apresenta-se
portanto com um carácter próprio no domínio das ciências histórico-sociais. Em
primeiro lugar, trata-se de escolher. entre a infinidade de factores que
determinam um objecto histórico, uma série finita desses factores que
constitua um campo específico de investigação;
e a possibilidade de tal escolha baseia-se uma vez mais nos valores que
orientam essa mesma investigação. Em segundo lugar, trata-se de determinar,
**In,

enti*c os elementos de uma série causal assim individualizada, um esquema de


relações que seja susceptível de verificação ou de controle. A esta segunda
exigência corresponde o uso da noção de pos-
244

sibilidade objectiva, que Weber considera fundamental na explicação histórica.

O recurso a esta noção faz-se isolando num processo histórico uma ou mais
componentes causais objectivas, supondo que essas componentes se modificam e
verificando-se se, com tal modificação, o

processo histórico se teria mantido igual àquele que nós conhecemos ou, se
assim não acontecesse, qual seria a nova forma que revestiria (1b., p. 273).
Como ilustração deste modo de proceder, Weber apresenta um exemplo tirado da
Geschichte des Altertums de Edward. Mayer, sobre o significado histórico da
batalha de Maratona. Aqueda batalha foi a decisão entre duas possibilidades:
de um lado, o prevalecimento de -uma cultura religioso-,teocrática, de outro a
vitória do mundo espiritual helénico, de cujos valores culturais sornos, ainda
hoje, herdeiros. Em Maratona prevaleceu esta segunda possibilidade; foi esta a
condição preliminar de um curso de acontecimentos bastante importantes na
história universal. Ora o nosso interesse histórico por aquele acontecimento
baseia-se precisamente, segundo Weber, no

papel decisivo que ele desempenhou relativamente às duas possibilidades que se


defrontavam. "Sem a valoração de tais possibilidades, acrescenta, e dos

insubstituíveis valores culturais entre os quais se verificou aquela decisão,


seria impossível determinar o significado; e seria portanto impossível
compreender porque razão não consideramos esse acontecimento como sendo
equivalente a uma escaramuça

245

entre duas tribos cafres ou indianas" (Ges. Aufsã!ze z. Wiss., p. 274). Por
outros termos, a explicação causal não consiste, segundo Weber, em reconhecer
um acontecimento como sendo necessariamente determinado pela série causal (que
é, no entanto, necessária) dos acontecimentos precedentes, mas sim em

isolar, numa situação histórica determinada, uni

campo de possibilidades,- em mostrar as condições que tornaram possível,


naquela situação, a decisão

a favor de uma determinada possibilidade; e, finalmente, em esclarecer o


significado de tal decisão mediante o confronto com as outras possibilidades
que constituíam, do mesmo modo, a situação histórica considerada. Todo este
esquema se move, portanto, sobre a noção de possibilidade ou, mais
especificamente, de possibilidade objectiva. Webor adverte que a categoria da
possibilidade não deve ser entendida numa forma negativa, isto é, enquanto
expressão de uma ignorância ou de um saber imperfeito (corno ao afirmar "é
possível que o comboio já tenha passado", em que não se sabe se o comboio já
passou ou não), mas no seu sentido positivo, ou
seja, enquanto designa uma antecipação, previsão ou prospectiva com uma base
real controlável.

Mas para que a possibilidade possa ser reconhecida, neste sentido, como sendo
objectiva, ela deverá ser, por um lado, baseada em "factos" que possam ser
averiguados e que pertençam à situação histórica considerada, e.. por outro
lado, deverá estar de acordo com **"ro,,ras empíricas ,crais", ou

246

com um determinado saber nomológico. No caso

da batalha de Maratona, por exemplo, as duas possibilidades que se defrontam


não só deviam resultar de suficientes dados documentais como, também, deveriam
estar-mesmo a possibilidade que foi posta de parte-de acordo com as regras
gerais da experiência e, em primeiro lugar, com as que regem a motivação do
comportamento humano. O saber nomológico não é, portanto, excluído do
conhecimento histórico, mas antes utilizado instrumentalmente, como critério
para a autenticação das possibilidades objectivas. E para satisfazer a esta
tarefa, ele deverá constituir conceitos de tipos ideais, ou seja, "quadros
conceptuais uniformes" que acentuem ou levem ao extremo a uniformidade que se
pode encontrar num grande número de fenómenos empíricos, podendo
consequentemente servir como termos de confronto a fim de atingir o
significado dos próprios fenómenos (1b.,p. 194). São, segundo Weber, conceitos
típico-ideais de objectos históricos particulares, como, por exemplo, o
cristianismo, o capitalismo, etc., ou de espécies de objectos tais como

o conceito de Estado, de Igreja ou os conceitos de

economia política que nunca são realizados na sua

"pureza ideal" na realidade empírica, mas que servem como meio para a entender
e para explicar os

seus condicionamentos. De qualquer modo, os conceitos típicos ideais


constituem uniformidades-limite que são indispensáveis à investigação
histórica para a determinação da individualidade dos seus objectos.

247

§ 745. WEBER. A SOCIOLOGIA INTERPRETATIVA

A investigação histórica, devido ao seu carácter ,individualizante, não pode


deixar, segundo Weber, de utilizar conceitos universais ou gerais que são
próprios das ciências que têm como fim a formulação de leis. Entre as ciências
nomológicas consideradas como instrumentos da indagação historiográfica, Weber
considerou principalmente a sociologia, podendo considerar-se como um dos
resultados mais importantes da sua obra a determinação da natureza e :da
tarefa da sociologia.

Dilthey tinha feito notar que ia psicologia constituía a ferramenta principal


da historiografia: o

compreender histórico estava para ele, intrinsecamente ligado à experiência


vivida, isto é, à penetração puramente interior do espírito pelo próprio
espírito. A posição de Weber é, neste ponto, oposta à de Dilthey: o
compreender histórico deve realizar-se sobre a dimensão objectiva do mundo
espiritual o

não sobre a sua dimensão subjectiva. Ora esta dimensão objectiva é o objecto
específico da sociologia,
* qual -se torna deste modo, e em lugar da psicologia,
* ciência auxiliar fundamental da historiografia. No entanto, a sociologia não
é apenas isto: ela é primordialmente uma ciência autónoma que encontra o seu
objecto específico na uniformidade existente nas acções humanas, isto é, na
atitude (Verhalten). "A atitude humana, afirma Weber, apresenta conexão e
regularidade de desenvolvimento relativamente a qualquer devir. Aquilo que é
próprio, pelo menos

248

MAX WEBER

em sentido lato, da **qMMhumana são as conexões e regularidades cujo **iaMMe


ol@vimento pode ser interpretado pelo M- (1b., p. 429). A
sociologia tem em comum com historiografia a sua forma de proceder, ou seja,
a "compreensão interpretativa; mas tal processo, na -.**ioiti(sir*Igia,
aplica-se às uniformidades que poderneizucm =se no agir humano devido a este
ser um agir social, "u seja, referindo-se constantemente ao agir dos sintros.
Portanto, enquanto objecto específico da <**oiõi(ologia, a atitude humana
caracteriza-se do seguinte modo: 1) é intencionalmente referida por parte
iólaquele que age, às atitudes dos outros; 2) é @.<;,wnére determinada por
essa referência; 3) pode ser w4%Ikada partindo apenas do sentido de tal
referência W., p. 429). Considerando a distinção estabelecida Or4 Tõnnies
(Comunidade e sociedade, 1887) entre -4 "comunidade", na qual as irelações
humanas estão kitrínseca e orgânicamente integradas, e a na qual
ias rolações são externas ou impessoais, MÉber distingue o ag,;r em comunidade
que é id~elo às atitudes dos outros homens segundo um *44reio que está nas
intenções daquele que age, e o agir >m sociedade no qtial os

actos são rereridos a iessi sentido próprio a unia

ordem já estabelecida. Em -imbos os casos essa referência aos actos alheios


*welui uma expectativa de uma determinada atitude iossível de outros
inctivíduos e orienta-se pelo @w.IMhlo das diversas possibilidades que é
necessário ter em conta como possíveis consequências do seu IUúe U@o agir. "Um
fundamento significativo e "~ ~-Mite importante do agir, afinna Weber, é a
maior ou menor probabilidade,

Z196

expressa por um juizo de possibilidade objectiva, de que tal expectativa tenha


razão de ser" (Ges. Aufsãtze z. Wiss., p. 441). Por outras palavras, é
possível compreender e explicar uma atitude individual a partir da
possibilidade objectiva de que a

expectativa de quem a assume !tenha um eco nas atitudes dos outros. Podemos
compreender, por exemplo, a atitude de um batoteiro partindo apenas da
possibilidade objectiva -de que os outros participantes no jogo observem, de
acordo com a expectativa do batoteiro, as regras do jogo. É deste modo que a
noção de possibilidade objectiva que Weber tinha considerado como fundamento
do compreender historiográfico, acaba por assumir uma função dominante na
própria "sociologia interpretativa". Unia atitude que se baseia no cálculo
(mesmo subjectivo) das possibilidades oferecidas pelas atitudes de outrem é,
segundo Weber, uma atitude "racional", ou seja, que atinge os seus fins. Com
efeito, esta atitude "orienta-se exclusivamente a partir dos meios que se
considera (subjectivamente) adequados aos fins concebidos (subjectivamente) de
forma precisa" (Ib., p. 428).

No primeiro capítulo de Economia e Sociedade, no qual Weber expôs


sistematicamente os conceitos fundamentais da sua sociologia, estão
diferenciados quatro tipos do agir social: 1) a atitude racional relativamente
aos fins que é determinada pela expectativa. da posição dos objectos do mundo
externo e da atitude dos outros homens; expectativa essa que vale como
condição ou meio de alcance dos fins pretendidos; 2) a atitude racional
relativamente

250

aos vetores que é condicionada pela crença no valor ilimitado le um


comportamento. independentemente das suas consequências; 3) a atitude
afectiva, determinada pelas emoções; e 4) a atitude tradicional que é
determinada pelos hábitos adquiridos (Wirtschaft und Gesellschaft, 1, 1, § 2).
Estas atitudes, faz notar Weber, constituem no entanto "tipos conceptualmente
puros" que se encontram mais ou menos combinados na realidade social, mas que
são indispensáveis para a interpretar. Por outro lado, do ponto de vista da
racionalidade relativamente ao fim, a racionalidade relativa dos valores
encontra-se num outro plano: "e isto porque ela se preocupa tanto menos com as
consequências do agir quanto mais assumir como incondicionado o valor em si (a
intenção pura, a beleza, o bem absoluto, o respeito absoluto dos deveres)".
Por outro lado, também a

absoluta racionalidade relativamente aos fins é apenas um caso limite, uma


construção ideal.

§ 746. WEBER: DESCRIÇÃO E VALORAÇÃO

A intenção fundamental das indagações metodológicas de Weber foi a de


encontrar as bases duma autonomia das ciências da cultura dum modo
correspondente, a-pesar de não ser análogo, ao modo como tal autonomia fora já
atribuída às ciências da natureza. Como vimos, Weber não aceitou a antítese
radical que outros historiadores (a começar por Dilthey) tinham estabelecido
entre os dois grupos

251

de ciências: reconheceu a explicação causal como

própria de ambos os grupos. Por outro lado, esclareceu o carácter específico


que a explicação causal assume no domínio idas ciências da cultura; e serviu-
se do conceito de possibilidade objectiva como base para o esclarecimento
;deste problema. Mas apesar da diversidade específica dos instrumentos de que
dispõem, os dois grupos de ciências têm em

comum, segundo Weber, a sua tarefa fundamental: a descrição dos fenómenos. Se


bem que Weber entenda o termo "descrição" no sentido restrito de simples
registo dos factos, polemizando contra a validade de qualquer outro sentido
desse termo e preferindo ater-se a palavras como "constatação" e similares, é
do ideal da descrição (no sentido mais geral que serviu às ciências da
natureza, do século XVII até aos primeiros decénios do nosso século, para se
distinguir da velha ciência aristotélica, libertar-se das suas sobrevivências
e esclarecer quais as suas efectivas possibilidades de investigação) que Weber
se utiliza para atingir os mesmos fins no campo das ciências da cultura. Mas
se no campo das ciências da natureza a "descrição" se opunha à "explicação" ou
"hipótese" metafísica, no das ciências da cultura a "descrição" opõe-se à
"valoração".

Pode-se encontrar esta oposição em toda a obra de Weber, mas onde ela se
encontra melhor expressa é num ensaio de 1917 sobre a "avalorabilidade"
(Wertfreiheit) da sociologia e da economia. Estas ciências, na opinião de
Weber, podem exclusivamente constatar ou descrever a realidade empírica e for-
252

necer respostas a questões deste género: "como se

desenvolve um determinado facto concreto, qual a

razão de o seu conteúdo concreto surgir com uma

dada configuração; se é possível estabelecer uma

regra do devir dos conteúdos, de tal modo que a um

deles se sucede um outro; qual a probabilidade de aplicação dessa regra". Fora


do campo -dessas ciências, o juízo valorativo propor-se-á questões de um

outro género: "0 que se deve fazer numa dada situação concreta e de que ponto
de vista é que essa situação pode ser considerada ou não satisfatória"
(Gesammelte Aufsãtze zur Wissenschftslehre, p. 495). É óbvio que Weber não
nega que a ciência possa e

deva ocupar-se dos valores e das valorações, que são factos. do mesmo modo que
quaisquer outros; mas observa que "quando, aquilo que vale normativamente se
torna objecto duma investigação empírica perde, como objecto, o carácter
normativo: é considerado como existente, não como válido" (1b., p. 517). O
que, neste caso, a ciência assume legitimamente como objecto de investigação
não é a validade dos valores mas a sua realização: ou melhor os meios para os
realizar e os conflitos a que tal realização dá origem. Por outros termos, e
segundo uma fórmula que Weber já tinha ilustrado no ensaio sobre a
objectividade das ciências sociais, a consideração científica diz respeito à
técnica dos meios e não à valoração dos fins (1b., págs. 149 e segs.). A
valoração é uma tomada de posição prática, uma

decisão que respeita a cada homem e à qual nenhum homem se pode subtrair, mas
que não é satisfeita pela tarefa descritiva da ciência. Mesmo questões

253

relativamente simples como, por exemplo, a da medida em que um fim pode


legitimar os meios indispensáveis, a de ter-se ou não em conta as suas
possíveis consequências indesejáveis ou o poder-se diminuir os conflitos entre
fins diferentes -todas elas são objecto de opção ou -de compromisso, não de
ciência. "A nossa ciência, diz Weber, que é rigorosamente empírica, não pode
pretender tirar ao

indivíduo esta possibilidade de opção e não pode sequer suscitar a aparência


de ser capaz de o fazer".

No entanto, faz parte do trabalho descritivo da

ciência a consideração dos conflitos a que pode conduzir a opção dos fins e
que são conflitos entre valores ou entre esferas de valores. Weber acentua a
importância destes conflitos. "Entre os valores Oxiste, em última análise (e
em quaisquer condições), não uma simples alternativa mas sim uma luta mortal,
sem possibilidades de conciliação como, por exemplo, entre "Deus" e o
"Demónio". Entre eles não é possível nenhuma conciliação ou compromisso; e não
é possível, bem entendido, devido àquilo que cada um deles significa" (Ib., p.
493). A relatividade dos valores, entendida como conexão orgânica entre os
valores e a sua época ou o seu ambiente cultural, é excluída, segundo Weber,
pela presença inevitável do conflito entre os valores: conflito que coloca o

homem, como afirmava Platão referindo-se à alma, na situação de dever escolher


o seu próprio destino, ou seja, "o sentido do seu agir e do seu sem.

Este conflito manifesta-se sobretudo no campo da ética: como conflito entre a


ética da intenção ou do "querer puro" e a ética da responsabilidade

254

que julga a acção partindo das consequências previstas como possíveis ou como
prováveis. As regras de conduta de ambas as éticas manifestam-se imediatamente
em contradição, contradição essa que não pode ser resolvida pela própria
ética. Ã ética da responsabilidade interessa essencialmente considerar a
relação entre meios e fins e a situação, de facto em que deve ser explicada. a
acção humana-, mas

mesmo essa não nos oferece um meio de orientação na luta política, na qual
existe uma inesgotável contradição entre valores. Concluindo, do mesmo modo
que as ciências naturais nos dizem o que devemos fazer se quisermos dominar
tecnicamente a vida, sem, no entanto, nos dizerem se tal domínio tem algum
sentido, também as ciências da cultura nos permitem compreender os fenómenos
políticos, artísticos, literários e sociais a partir das condições em

que surgiram, sem nos -dizerem, no entanto, se tais fenómenos têm ou tiveram
algum valor ou mesmo

se valerá a pena tentarmos conhecê-lo. Neste sentido, a própria ciência é uma


"vocação" (Beruf): a vocação da clareza, isto é, do conhecimento que o homem
pode ter dos fins das suas próprias acções e dos meios para os realizar (Ib.,
p. 592).

§ 747. TOYNBEE

Está relacionado com Spengler, directa e polemicamente, o historiador inglês


Arnold J. Toynbee (nascido em Londres em 1889), autor de uma grande obra em 10
volumes intitulada Um esiudo da his-
255

toria, a génese da civilização (1934-54), e de dois volumes, A civilização


posta à prova (1949) e O mundo e o ocidente (1953).

Toynbee concorda com Spengler ao assumir como unidade mínima da indagação


histórica a civilização (ou cultura), e ao considerar esta indagação como
tendo por fim a formulação de uma morfologia da civilização, isto é, uma
ciência das "leis" que presidem ao seu desenvolvimento; mas opõe-se
polemicamente a Spengler quando efectua esta indagação, como ele próprio
declarara, recorrendo ao método empírico da tradição inglesa e não ao método
apriorístico da tradição alemã (Civilization ou Trial, p. 10). Por
conseguinte, a civilização não é para Toynbee um organismo sobreposto às
necessidades do determinismo biológico mas sim uma totalidade de relações não-
necessárias entre indivíduos que encontram nela uma forma de comunicarem, mas
que conservam a sua capacidade de iniciativa e um certo grau de liberdade.
Deste ponto de vista, é possível uma comparação entre as civilizações, as
quais não são (como pensava Spengler) mundos absolutos fechados sobre si
mesmo. A ciência empírica da história consiste precisamente em comparar as
diferentes civilizações e em encontrar no desenvolvimento de cada uma delas os
traços que lhes sejam comuns

ou uniformes: que, por um lado, permitam a compreensão das conexões causais


que se verificam no âmbito de uma mesma civilização ou na relação entre
diferentes civilizações e que, por outro lado, consistam na formulação, a
partir destas conexões, de urna previsão provável sobre o desenvolvimento

256

de uma determinada civilização. Tudo isto, segundo Toynbee, não permite que se
reduza o desenvolvimento das diferentes civilizações a um único esquema, já
que tais civilizações conservam linhas de desenvolvimento independentes e
processos evolutivos diversos (A study of History, 1, págs. 149 e segs.).

Deste ponto de vista não se podem encontrar factores que determinem,


necessariamente a génese e o desenvolvimento das civilizações. Os dois
factores a que mais frequentemente se atribui este poder determinante, o
ambiente físico-social e a raça, são ambos criticados por Toynbee ao afirmar
que se

tais factores fossem rigorosamente determinantes, a

sua acção deveria ser sempre uniforme e conduziria sempre aos mesmos efeitos;
o que na realidade não acontece. Por outro lado, isto não significa que a
acção dos homens na história seja independente de quaisquer condições que a
limitem, ou seja, absolutamente livre; Toynbee elabora sobre este assunto a
sua mais famosa doutrina, a da provocação e

resposta. Uma civilização surge, diz Toynbee, quando um grupo de homens


consegue fornecer uma resposta eficaz a uma provocação do ambiente físico e

do ambiente social que o rodeia. Todo o ambiente físico-social, toda a


situação em que os homens se encontrem, coloca-os perante uma provocação; mas
a natureza da resposta que elos derem a tal provocação não pode ser previsível
de forma rigorosa, dependendo por isso dos próprios homens (A Study of
History, 1, págs. 271 e segs.). O reconhecimento de um certo grau de liberdade
no agir humano é indispensável, segundo Toynbee, para compreender

257

a diferente génese e o diferente desenvolvimento que tiveram as civilizações


humanas quando se encontraram perante condições objectivas uniformes e
constantes-Mas, por outro lado, este grau de liberdade não é infinito: a
situação em que os homens se encontram actua como limite condicionante.
Podemos dizer, para exprimir o ponto de vista de Toynbee, que a

provocação consiste sempre num problema ao qual os homens dão uma solução: o
problema condiciona a solução mas admite, em si mesmo, várias soluções,
pertencendo aos homens a opção entre estas diferentes soluções. Isto explica a
diversidade recíproca das civilizações e, ao mesmo tempo, a uniformidade que
elas apresentam e que as torna confrontáveis.

É sobre esta base que Toynbee nega a legitimidade da pretensão, defendida por
Spengler, de prever infalivelmente a morte da civilização ocidental. Esta
civilização encontra-se certamente em crise; mas a

sua sorte não pode ser determinada antecipadamente, visto depender do modo
como os homens que nela vivem possam responder a esta provocação. Toynbee
pensa, no entanto, que a sorte de uma civilização está necessariamente
relacionada com um reforço do espírito religioso. Neste ponto, a sua doutrina
resulta estéril, acentuando-se tal situação nos últimos livros que escreveu.
Como resultado dever-se-ia concluir que a génese e o desenvolvimento de todas
as civilizações ocorrem segundo determinadas linhas que só podem ser
encontradas empiricamente, e que a comparação entre elas exige a determinação
de tais linhas mediante critérios metodológicos precisos; mas Toynbee dá

258

mais importância a este último aspecto, elaborando um conjunto de 21


civilizações sem que tal número seja suficientemente justificado e escolhendo
certas determinações constitutivas dessas civilizações sem

obedecer a um critério justificado ou justificável. Por outro lado, atribui ao


cristianismo uma função extremamente importante na conservação e no progresso
das civilizações, fazendo dele o fim de tal progresso, já que " as
civilizações têm a sua raison d'être na sua contribuição para o progresso
espiritual" e

que o desenvolvimento das várias religiões deve conduzir a "um mútuo


reconhecimento ida sua unidade essencial apesar da sua diversidade" (1b., VII,
p. 448). Esta doutrina torna-se assim uma espécie de teologia da história e um
anúncio profético do êxito místico final da história humana.

§ 748. HISTORICISMO: CORRENTES METODOLóGICAS

Resulta evidente do que foi dito neste capítulo que o historicismo (como,
aliás, todas as correntes filosóficas) não constitui no seu conjunto uma
doutrina única e coerente que se fosse diversificando, em cada pensador, por
aspectos particulares. A unidade do historicismo (como de todas as outras
correntes) é a unidade do problema que ele enfrenta: o do conhecimento
histórico, do seu objecto e dos

N. dos T. - Em francês no texto original.

259

seus métodos. Pode-se sem dúvida estabelecer uni balanço dos resultados
obtidos por esta corrente pondo em evidência os pontos em que haja acordo
unânime, ou quase unânime, de todos os seus defensores: dela resulta, por
exemplo, o reconhecimento do carácter individual do objecto histórico e, por
outro lado, o do carácter específico do instrumento de que se serve o
conhecimento histórico, isto é, o da compreensão ou da interpretação
historiográfica. Mas, para além da constatação da existência destes pontos,
que foram, aliás, atingidos e justificados diferentemente por cada um dos
pensadores, e da unidade do problema, não se pode falar do "historicismo" como
tratando-se de uma doutrina única e simples que possa ser examinada, discutida
e refutada na sua totalidade. Mas até mesmo esta tentativa, que foi realizada
por muitos escritores contemporâneos, revela, na disparidade dos alvos que
cada um -deles pretendia atingir com a sua crítica, o erro de tal atitude. Com
efeito, estabelece-se por um lado a equação entre historicismo e relativismo e
objecta-se precisamente ao historicismo a sua incapacidade de garantir o
carácter normativo dos valores e a obra da razão, como fez Leo Strauss
(Natural R!-*ght and History [Direito natural e história], 1953); ou a sua
incapacidade de dar um sentido total à história, como fez Jaspers (Vom
Ursprung und Ziel der Geschichte [A origem e o fim da história], 1949); ou a
tentativa de substituir uma fé fictícia à autêntica fé religiosa, como fez
Karl Lõwith (Meaning in His- tory [Significado da história], 1949). Ou então
negu-se aquela identificação e vê-se no historicismo a
')60

defesa dos valores humanos, como fez Theodor Litt (Die Wiedererweckung des
geschichtlichen Bewusstsein [0 despertar da consciência histórica], 1956)-, ou
ainda urna manifestação ido "essencialismo", isto é, da metafísica
tradicional e, parcialmente, o recurso a esquemas científicos superados por
esse carácter metafísico, como fez Karl Popper (The Poverty of Historicism
[A pobreza do historicismol,
1944). Em todas estas interpretações e críticas descuram-se precisamente as
manifestações mais salientes do historieismo, isto é, os resultados obtidos
por Dilthey e Weber.

A sequência do historicismo alemão contemporâneo deve, portanto, ser


procurada, mais do que nesta literatura polémica, na continuação do trabalho
metodológico que o historicismo iniciou no campo das ciências da cultura: ou
seja, na discussão, na experimentação e na rectificação dos resultados a que
ele chegou. Deste ponto -de vista, o problema mais importante continua a ser o
da natureza e limites do instrumento cognoscitivo, de que dispõem essas
ciências, ou seja, o do esquema explicativo a que recorrem. Podem-se então
distinguir duas direcções fundamentais: a que tende a relacionar o esquema
explicativo próprio destas ciências com o das ciências naturais e a reconhecer
na explicação causal a única

explicação possível em todo o campo do saber, e a

que tende a esclarecer a natureza de uma explicação condicional, considerada


específica das ciências da cultura.

A primeira direcção foi a adoptada pelo Círculo de Viena (§ 808) e,


especialmente, por Otto Neurath

261

(Empirische Soziologie [Sociologia empirical, 1931), tendo surgido mais tarde


na Enciclopédia internacional da ciência unificada através de um ensaio do
próprio Neurath (Foundations of the Social Sciences [Fundamentos das
ciências sociais], 1944); foi defendida por Carl G. Hempel (The Functions of
General Laws in History [A função das leis gerais na

história], e por Patrick Gardiner (The Nature of Historical Explanation [A


natureza da explicação histórica], 1952). Deste ponto de vista, a explicação
histórica é uma explicação causal no sentido clássico: consiste em determinar
a causa (C) de um acontecimento (A) e esta determinação pode ser feita
mostrando apenas como é que o acontecimento A pode ser "logicamente deduzido"
de certas leis gerais segundo as quais um conjunto de acontecimentos da
espécie C é acompanhado regularmente de um acontecimento da espécie A (Hempel,
in Readings in Philosophical Analysis, 1949, págs. 459 e segs.). A explicação
causal é aqui entendida no sentido mais rigoroso (substancialmente
aristotélico), como possibilidade de deduzir o efeito a partir da causa pela
aplicação de uma lei geral que exprima precisamente a

acção da causa. E a explicação histórica distinguir-se-ia da verdadeira e


propriamente dita explicação, quando muito, por ser um esboço de explicação,
isto é, uma explicação imperfeita ou aproximada.

A outra direcção metodológica é defendida sobretudo por historiadores de


profissão, os quais procuram esclarecer a natureza dos instrumentos com que
operam, e releva principalmente do conceito de Weber da possibilidade
objectiva. Podemos encon-
262

trá-la na obra de Raymond Aron (Introduction à la Philosophie de Vhistoire


[Introdução à filosofia da história], 1938); La philosophie critique de
l'histoire [A filosofia crítica da história], 1938); em Mare Bloch (Apologie
pour l'histoire [Apologia da história], 1954); em Butterfield (History and
Human Relations [A história e as relações humanas], 1951; em Pietro Rossi (Lo
storicismo tedesco contemporaneo [0 historicismo alemão contemporâneo], 1956,
em William Dray (Laws and Explanation in history [Leis e explicação
históricas], 1957); em H. Stuart Hughes (Consciousness and Society
[Consciência e sociedade], 1958); em John H. Randall (Nature and Historical
Experience [A natureza e a experiência histórica], 1958); tendo si-do ainda
defendida por historiadores e filósofos americanos em dois volumes colectivos
(Theory and Practice in Historícal Study [Teoria e prática nos estudos
históricos], 1946; The Social Sciences in Historical Study [As ciências
sociais no estudo histórico], 1954). Deste ponto de vista, insiste-se no
carácter individualizante e selectivo do conhecimento histórico; nega-se,
consequentemente, que este conhecimento tenha por objecto uma totalidade
absoluta, o chamado "mundo histórico"; e recorre-se sobretudo à noção -de
possibilidade rectrospectiva na explicação histórica insistindo no carácter
condicional de tal explicação, no

sentido de que esta consiste em individualizar, num campo de possibilidades,


as relações que unem a

possibilidade decisiva às outras.

Pode-se dizer, em apoio desta segunda corrente metodológica, que o esquema


explicativo de que se
263

servem as ciências naturais (e, em primeiro lugar, a


física) actualmente, já se afastou bastante da explicação causal clássica ou,
pelo menos, já se afastou tanto,dela quanto esta corrente metodológica,
iniciada por Weber, se afastou do esquema explicativo, proposto na primeira
fase do historicismo, da compreensão intuitiva (§ 736). A polémica
metodológica entre ciências do espírito e ciências da natureza perdeu muito da
sua força com esta aproximação; e o
esquema explicativo condicional, que ela tende a

esclarecer, pode considerar-se igualmente afastado do necessitarismo a que


recorria a ciência clássica da natureza e do indeterminismo a que recorreu,
nas suas polémicas iniciais, o historicismo.

NOTA BIBLIOGRÁFICA

§ 735. Sobre o historicismo alernão, podem-se considerar fundamentais as


seguintes obras: PIETRo Rossi, Lo storicismo tedesco coni6mporaveo, Turim,
1936; RAYMOND ARON, La philosophie critique de Ilhistoire, Pariis, 1950.

§ 736. U@ Dilthey, existe uma bibliografia completa das suas obras em "Archiv
für Geschichte, der Phil.", 1912, págs. 154-61. Os escritos destle autor foram
recrlhidos em Gc_,avi~Ite Schriften, 12 vols., Leipzig, 1923-36. Critica della
ragione storica, antologia de escritGs de Dilthey com introwdução e,
bíbliografia do Pietro R(ssi, Turim, 1954.

Sobre Dilthey: L. LANDGREBE, W. Ws Theoric der Geiste~i,ssenschaften, Halle,


1928; G. MiSCH, 1,ebensphilo,sophie und Phãnomenologie, Leipzi.-Berlim, 1931;
D. BISCHOFF, W. Ws geschichtliche Lebensphilosorhie,

264

Leipzig-Berlim, 1935; O. F. BOLLNOW, Dilthey, Le@,pzig-Berlim, 1936; H. A.


HODGES, W. D., an Introduction, Londres, 1944; The Phil. of W. D., Londres,
1952; P. Rossi, in "Riv. crit. L,@toria filos.", 1952-53.

§ 739. De Simmel, além dos. iescritos citados: Zur Philosophie der Kunst,
Potsdam, 1923; Vorlesungen iiber Schulpãdagogíe, Osterwiedik, 1922; Fragmente
und Aufsãtze, Munique, 1923. os problemas fundamentais da filosofia foram
trauduzidos para italiano lyo;r A. Banfi, Florença, 1922. O artigo a que se
alude no

texto foi publicado em "A@rchiv für systemati,<@iche Philosophile", 1895, :e


depois em Zur Philosophie der Kunst, págs. 111 e @segs.

Sobre Simmel: A. MAMELET, Le relativisme philosophique chez G. S., Paris,


1914; M. ADLER, G. S.'8 Bedeutung für die Geistesgeschichte, Vilena-lieipzig,
1919; N. J. S~MAN, The Social Theory of G. S., Chicago, 1925; H. WOLFF, The
Sociology of G. S., Glenco,e, 111, 1950; A BANFI, in. Filasofi contemporanei,
Milão, 1961, pá.-s. 161-212.

§ 740. De Spengller, Der Untergang des AbendIandes vem citado na edição


definitiva, 2 võls, Munique, 1918-22. Trad. italiana de J. EVolia, Milão,
1957.

Sobre Spengler: A. MESSER, O. S. als Philosoph, Stuttgart, 1924; A. FAUCONNET,


O. S., Paris, 1925; E. GAUliE, S. und die Romantik, Berlim, 1937; H. S.
HUGHES, O, S., Nova Iorque, 1952; PIETRo Rossi, Storia e storicismo nella
filosofia Milão,
1960, págs. 68-89. Bibliografia in M. SCHROETER, Metaphysik des Untergangs,
Munique, 1949.

§ 741. De Tro,eltsch, Gesammelte Schriften, 4vo,ls., Tübingen, 1922-25;


Gesammelte aufsãtze Geistesgeschichte und Religionsoziologie, Tübingen, 1925.
Sobre,, Troeltseb.: E. VERMEIL, La pensée religieuse de T., Paris, 1922; W.
KOKLER, E. T., Tübingen, 1941.

§ 742. De Meinecke, além das obras citadas lio texto, os ensaios recolhidos em
Vop geschiclitliehcn

265

Sinn und vom Sinn der Geschichte, Leipzig, 1939; trad. italiana, Nápoles,
1948.

Sobre Meinecke: CROCE, La storia come pensiero e come azione, Bari, 1938,
págs. 51-73; W. HOFER, Geschicht8chreibung und Weltan-schauung, Munique,
1950; CHABOD, in "Rivista Storica Italiana", 1955, págs.
272-88; W. STARK, Introdução à tradução inglesa da Ide'a da razão de Estado,
publicada sob o titulo MacMavellism, New Haven, 1957.

§ 743. De Weber, Gesammelte, Aufsãtze zur Reiigionsoziologie, 3 vols.,


Tübingen, 1920-21; Gesammeite Aufsãtze zur Sozial-und Wirtschaftgsechichte,
Tübingen, 1924; Gesammelte Aufsãtze zur Wissenschaftslehre, Tübingen, 1925.
Traduções italianas: Lletica protestante e lo spirito del capital@smo, Roma,
1945; Il lavoro intellettuale come professione, Turim, 1948;
11 metodo delle seienze storico-sociali, Turim, 1958 (contém os ensaios
metodológicos fundamentais); Econonzia e società, 2 vols., Milao, 1961.

Sobre Weber: MARIANNE WEBER, M. W., ein, Lebensbild, Tübingen, 1921; K.


JASPERS, M. W., Oldenburg, 1932.

§ 744. Sobre a metodologiade, Weber: B. PFISTER, -Die Entwicílung zum


Idealtypus (Ei-ue A1ethodolog@sche Untersuchung über das Verhã1tnis von
Theorte und Geschichte bei Menger, Schmoller und M. W.), Tübingen, 1928; W.
BIENFAIT, M. W.Is Lehre vom

geschichtUchen Elkennen, Berlim, 1930; A. VON SCHELTING, M. W.18


Wissenschaftslehre, Tübingen, 1934; T. PARSONS, The Structure of Social
Action, 1937; 2.1 edi~ ção, Glencoe, 111., 1949; PIETRO Rossi, Storia e
storicismo nella filosofia contemporanea, cit. págs. 93-132.

§ 745. Sobre a sociologia de Weber: T. PARSONS, Op- cit.,; R. ARON, La


sociologie allemande contemporaine, Paris, 1950.

§ 746. Sobre o conceito de aval,,>rabilidade: A. VON SCHELTING, Op. cit.; R.


ARON, La phil. critique

266

de Phistoire, Cit.; PIETRO ROSSI, 1,o storicismo tedesco contemporaneo, cit.

§ 747. De Toynbee: foram traduzidos para italiano os dois primeiros volumes da


sua obra principal sob o titulo Panorami della storia, Milão, 1954; Civiltà al
paragone, trad. italiana de G. Paganelli e A. Pandolfi, Milão, 1949; Il mondo
e Poccidente, @trad. italiana de G. Cambon, Milão, 1956.

Sobre Toynbee: P. GEYL, The Pattern of the Past, Boston, 1949; E. F. J. ZAHN,
T. und das Problem der Geschichte, Kõln und OppIaden, 1954; PIETRo Rossi, in
"Filosofia", 1952, págis. 207-50; Storia e storicismo nella filosofia
contemporanea, cit., págs. 333-60; O. ANDERLE, Das universalhistorische System
A. J. T., Frankfurt am. Main, 1955 (inclui uma bíbliografia).

§ 748. Sobre os autores citados na última parte do capitulo, consultar PIETRo


Rossi, Storia e storicismo nella filosofia contemporanea, cit., e as
indicações bibliográficas nele incluídas.

267

íNDICE

III - BERGSON ... ... ... ... 7

§ 692- Vida e Obra ... ... ... ... ... 7 § 693. A duração
real ... ... ... ... 9 § 694. Espírito e corpo ... ...
... ... 13 § 695. O impulso vital ... ... ... ... 17 §
696. Instinto e inteligência ... ... ... 20 § 697. A intuição
... ... ... ... ... 24 § 698. Gênese ideal da
matéria ... ... 27 § 699. Sociedade fechada e sociedade

aberta ... ... ... ... ... . 1. 30 § 700. Religião estática e


religião dinâmica ... ... ... ... ... ... 32 § 701. O
possível e o virtual - . ... ... 36

Nota bibliográfica ... ... ... ... 40

IV-0 IDEALIS1W0 INGLÊS E NORTE-


AMERICANO ... ... ... ... ... ... ... ... 43

§ 702. Características do idealismo ... 43 § 703. As origens do


idealismo inglês e

norte-americano ... ... ... ... 45

269

§ 704. Bradley ... ... ... ... ... ... 53 § 705.


Desenvolvimento do idealismo inglés ... ... ... ... ... ... ... 59
§ 706. MeTaggart ... ... ... ... ... 61 § 707.
Royce ... ... ... ... ... ... 68 § 708. Outras manifestações
do idealismo inglês e norte-americano 77

Nota bibliográfica ... ... ... ... 81

V -0 IDEALISMO ITALIANO ... ... ... ... 85

§ 709. Características e origens do idealismo


italiano ... ... ... ... ... 85 §710. Gentile: Vida e
Obra ... ... ... 90 §711. Gentile: o acto
puro ... ... ... 92 §712. Gentile: a dialéctica -do concreto e

do abstracto ... ... ... ... ... 96

§713. Gentile: a arte ... ... ... ... 102 §714. Gentile: a
religião ... ... ... ... 105 §715. Gentile: o direito e o estado
... 107 §716. Croce: Vida e Obra ... ... ... 111
270

§ 717. Croce: a filosofia do espírito ... 113 § 718. Croce: a


arte ... ... ... ... ... 116 § 719. Cr(>ce: a ciência, o erro e a
forma

económica ... ... ... ... ... 123

§ 720. Croce: direito e estado como

acções económicas ... ... . --- ... 126

§ 721. Croce: história e filosofia ... ... 130

Nota bibliográfica ... ... ... ... 137

VI -0 NEO-CRITICISMO ... ... ... ... ... 139

§ 722. Caracteres do neo-criticismo ... 139 § 723. Origens do


neo-criticismo na Alemanha ... ... ... ... ... ... 140

§ 724. Renouvier: a filosofia critica ... 146 § 725. Renouvier: o


conceito da história 151 § 726. O criticismo inglês ... ...
... 155 § 727. A flcxsofia dos valores Windelband 163 § 728.
Rickert ... ... ... ... ... ... 168 § 729. Outras manifestações
da filosofia

dos valores ... ... ... ... ... 174

271

§ 730. A escola de Marburgo: Cohen ... 176 § 731.


Nato.rp ... ... ... ... ... ... 184 § 732. Cassirer ... ...
... ... ... ... 189 § 733. Brunschvieg ... ... ... ... ...
194 § 734. Banfi ... ... .1 . ... ... ... 200

Nota bibliográfica ... ... ... ... 203

VII -0 HISTORICISMO ... ... ... - ... 207

§ 735. A filosofia e o mundo histórico 207 § 736. Dilthey: a


experiência vivida e o

ecmpre,ender ... ... ... ... ... 210 § 737. Dil'hoy: as


estrutura-- do mundo

histórico ... ... ... ... ... ... 215 § 738. Dilthey: o
c,)nceito da filosofia 219 § 739. Simmel - ... ... ... ...
... 222 § 740. Spengler ... ... ... ... ... ... 227 § 741.
Troeltsch ... ... ... ... ... ... 231 § 7-12. Meinecke ... ...
... ... ... ... 236 § 743. Weber: 4ndividualidade, significado, valor
... ... ... ... ... 239

272

§ 744. Weber: a possibilidade objectiva 243 § 745. Weber: a


sociologia interpretativa 248 § 746. Weber: descrição e valoração
... 251 § 747. Toynbee ... ... ... ... ... - 255

§ 748. Correntes metodológicas ... - 259

Nota bibliográfica .. ... ... - 264

(fim)

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