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Coronavírus: o que podemos aprender

com as pandemias da ficção?


Sobrevivência, isolamento, senso de comunidade e amor são temas
explorados em livros que parecem prescientes. A autora americana Jane
Ciabattari escreve sobre os romances que nos dizem que 'já passamos por
isso antes'.

Contos de Canterbury, clássico da literatura inglesa, escrito por Chaucer, tem


como pano de fundo a peste negra

Em tempos incertos e estranhos como estes, em que cumprimos nosso


isolamento social para achatar a curva de contágio, a literatura fornece
escapismo, alívio, conforto e companhia. Porém, o apelo da ficção pandêmica
também aumentou. Muitos títulos pandêmicos parecem guias para a situação
de hoje. E muitos desses romances descrevem epidemias numa progressão
cronológica realista, dos primeiros sinais de problema aos piores momentos,
e o retorno à "normalidade". Eles nos mostram que já passamos por isso antes.
Um Diário Do Ano Da Peste, de Daniel Defoe, publicado em 1772, que narra a
peste bubônica de 1665 em Londres, conta uma série de eventos sinistros que
lembram nossas próprias respostas ao choque inicial e à propagação voraz
do novo vírus.
Defoe começa sua história em setembro de 1664, quando circulam rumores
sobre o retorno da 'pestilência' à Holanda. Em seguida, vem a primeira morte
suspeita em Londres, em dezembro, e depois, na primavera, Defoe descreve
como os avisos de morte publicados nas paróquias locais tiveram um aumento
sinistro. Em julho, a cidade de Londres impõe novas regras - regras que estão
se tornando rotineiras em 2020, como "que todas as festas públicas, jantares
em tabernas, cervejarias e outros locais de entretenimento comum sejam
suspensos até novas ordens".
Em agosto, Defoe escreve, a peste estava "muito violenta e terrível"; no início
de setembro, atingiu o seu pior, com "famílias inteiras, ruas inteiras de
famílias... desaparecendo juntas". Em dezembro, "o contágio estava
esgotado, e também o clima do inverno acelerava, e o ar estava limpo e frio,
com geadas fortes... a maioria dos que haviam adoecido se recuperou e a
saúde da cidade começou a voltar". Quando finalmente as ruas foram
retomadas, "as pessoas andavam dando graças a Deus por sua libertação".
O que poderia ser mais dramático do que um retrato de uma peste em
andamento, quando as tensões e emoções são intensificadas e os instintos de
sobrevivência surgem? A narrativa pandêmica é natural para romancistas
realistas como Defoe e, mais tarde, Albert Camus.
A Peste, de Camus, em que a cidade de Oran, na Argélia, fica fechada por
meses enquanto uma doença dizima seu povo (como de fato aconteceu em
Oran no século 19), é um livro também repleto de paralelos com a crise de
hoje. Os líderes locais relutam a princípio em reconhecer os sinais precoces
que vêm dos ratos morrendo pela doença. "Os pais de nossa cidade estão
cientes de que os corpos em decomposição desses roedores constituem um
grave perigo para a população?", pergunta um colunista no jornal local. O
narrador do livro, Dr. Bernard Rieux, reflete o heroísmo silencioso dos
trabalhadores médicos. "Não faço ideia de o que me espera ou do que
acontecerá quando tudo acabar. No momento eu sei disso: há pessoas doentes
e elas precisam de cura", diz ele. No final, há a lição aprendida pelos
sobreviventes da peste: "Eles sabiam agora que, se há uma coisa que sempre
se pode desejar e, às vezes, alcançar, é o amor humano".
A gripe espanhola de 1918 reformulou o mundo, levando à morte de 50
milhões de pessoas, após 10 milhões de mortos na Primeira Guerra Mundial.
Ironicamente, o dramático impacto global da gripe foi ofuscado pelos eventos
ainda mais dramáticos da guerra, que inspiraram inúmeros romances.
Enquanto as pessoas praticam agora o 'distanciamento social' e as
comunidades ao redor do mundo se retêm, a descrição de Katherine Anne
Porter da devastação criada pela gripe espanhola em seu romance Cavalo
Pálido, Pálido Cavaleiro, de 1939, soa familiar: "É terrível... Todos os teatros e
quase todas as lojas e restaurantes estão fechados, e as ruas estão cheias de
funerais o dia todo e ambulâncias soam a noite toda", diz o amigo da heroína
Miranda, Adam, logo após ela ser diagnosticada com a influenza.
Porter retrata a febre e os tratamentos de Miranda, e semanas de doença e
recuperação, até o despertar para um novo mundo remodelado pelas perdas
da gripe e da guerra.
Porter quase morreu da gripe. "Eu mudei de uma forma estranha", ela disse à
revista literária The Paris Review em uma entrevista de 1963. "Levei muito
tempo para sair e viver no mundo novamente. Eu estava realmente 'alienada'
no sentido puro."
Bastante plausível
As epidemias do século 21 - a síndrome respiratória aguda grave (Sars, na
sigla em inglês), em 2002, a síndrome respiratória do Oriente Médio (Mers,
em inglês), em 2012 e o ebola, em 2014 - inspiraram romances sobre
desolação e colapso pós-peste, cidades desertas e paisagens devastadas.
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O Ano do Dilúvio (2009), de Margaret Atwood, mostra-nos um mundo pós-
pandêmico com humanos quase extintos, após a maioria da população ter
sido exterminada 25 anos antes pelo 'Dilúvio sem Água', uma peste virulenta
que "viajava pelo ar como se tivesse asas, queimando cidades como fogo".
Atwood captura o extremo isolamento sentido pelos poucos sobreviventes.
Toby, uma jardineira, olha o horizonte do jardim da cobertura de um spa
deserto. "Deve haver mais alguém ... ela não pode ser a única no planeta.
Deve haver outros. Mas amigos ou inimigos? Se ela vir um, como vai saber?".
Ren, que foi dançarina de trapézio e "uma das mais limpas entre as sujas da
cidade" está viva porque estava em quarentena por uma possível doença
transmitida por um cliente. Ela escreve seu nome repetidamente. "Você pode
esquecer quem você é se estiver sozinho demais", diz.
Por meio de flashbacks, Atwood explica como o equilíbrio entre os mundos
natural e humano foi destruído pela bioengenharia patrocinada por grandes
empresas e como ativistas como Toby reagiram. Sempre atenta aos
problemas que tecnologia pode trazer, Atwood baseia seu trabalho em
premissas plausíveis, tornando o Ano do Dilúvio terrivelmente presciente.
O que torna a ficção pandêmica tão envolvente é que os humanos se unem na
luta contra um inimigo que não é um inimigo humano. Não existem 'mocinhos'
ou 'bandidos'; a situação é mais sutil. Cada personagem tem uma chance igual
de sobreviver ou não. A variedade de respostas de cada personagem às
circunstâncias terríveis torna a história interessante para quem escreve - e
para quem lê.
Severance (A Separação, em tradução livre - livro indisponível no Brasil), de
Ling Ma (2018), que o autor descreveu como um "romance apocalíptico de
escritório" com uma história de imigração, é narrada por Candace Chen, uma
moça que trabalha em uma empresa de publicação da Bíblia e tem seu
próprio blog. Ela é uma das nove sobreviventes que fogem da cidade de Nova
York durante a pandemia fictícia da febre de Shen em 2011. Ma descreve a
cidade depois que "a infraestrutura ... entrou em colapso, a internet caiu em
um buraco, a rede elétrica foi fechada".
Candace se junta a um grupo numa viagem em direção a um shopping em um
subúrbio de Chicago, onde o grupo planeja se estabelecer. Eles viajam por
uma paisagem habitada pelos "febris", que são "criaturas de hábitos, imitando
velhas rotinas e gestos" até morrerem. Os sobreviventes são imunes
aleatoriamente? Ou "selecionados" pela orientação divina? Candace logo
descobre que em troca da segurança de estar em grupo precisa demonstrar
uma estrita lealdade às regras religiosas estabelecidas pelo líder do grupo
Bob, um ex-técnico de TI autoritário. É apenas uma questão de tempo até que
ela se rebele.
Nossa própria situação atual é, obviamente, nem de longe tão extrema quanto
a prevista em Severance. Ling Ma explora o pior cenário que, felizmente, não
estamos enfrentando. Em seu romance, ela analisa o que acontece em seu
mundo imaginário após a pandemia desaparecer. Depois do pior, quem está
encarregado de reconstruir uma comunidade, uma cultura? Entre um grupo
aleatório de sobreviventes, o romance pergunta: quem decide quem tem
poder? Quem define as diretrizes para a prática religiosa? Como os
indivíduos retêm poder de agência?
As vertentes narrativas do romance Estação Onze, de Emily St John Mandel,
de 2014, ocorrem antes, durante e depois de uma gripe ferozmente
contagiosa originária da República da Geórgia "explodir como uma bomba
de nêutrons na superfície da terra", destruindo 99% da população da
população global. A pandemia começa na noite em que um ator que
interpreta o rei Lear, personagem de Shakespeare, sofre um ataque cardíaco
no palco. Sua esposa é autora de histórias em quadrinhos de ficção científica
ambientadas em um planeta chamado Estação Onze. O livro tem ecos
dos Contos de Canterbury, clássico da literatura inglesa, escrito por Chaucer,
o prototípico e irreverente ciclo de histórias do século 14, que tem como pano
de fundo a peste negra.
Quem e o que determina a arte, pergunta Mandel? A cultura de celebridades
importa? Como vamos reconstruir as coisas depois que o vírus invisível nos
sitiar? Como a arte e a cultura mudarão? Sem dúvida, existem romances sobre
nossas circunstâncias atuais em andamento. Como os contadores de histórias
nos próximos anos retratarão essa pandemia? Como eles irão narrar a onda
de espírito solidário, os inúmeros heróis entre nós? Essas são questões a
serem ponderadas à medida que aumentamos o tempo de leitura e
preparamos o surgimento do novo mundo.
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