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Em texto publicado por ÉPOCA, autor descreve em 'A dama de branco' a contemplação de uma
mulher em tempos de isolamento ao som de 'Gnossiennes'
Sérgio Sant’Anna
10/05/2020 - 09:50 / Atualizado em 10/05/2020 - 09:51
Sérgio Sant'anna, de 78 anos, morreu com sintomas da Covid-19 Foto: Bárbara Lopes / Agência O Globo
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11/05/2020 Leia aqui o último conto do escritor Sérgio Sant'Anna, morto por coronavírus - Época
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Mas o que me leva a vir para a sacada de madrugada, mais do que as estrelas, é
contemplar a dama de branco, que circula pelo estacionamento a céu aberto do
edifício, sempre às três da manhã. Todos estão dormindo e fico contente com
isso, pois, com ninguém mais a contemplá-la, é como se a dama de branco me
pertencesse exclusivamente.
Entendi por que ela sempre vem a essa hora. É porque não há ninguém a
importuná-la, reclamar que ela não está usando máscara, como se tornou
obrigatório fora de casa. Imagino ver as suas feições, reparar como é bonita.
Uma beleza singular, que não consigo descrever. É compreensível que ela queira
caminhar a céu aberto, e ao mesmo tempo protegida pelos porteiros, que
permanecem em seus abrigos nos portões do condomínio. As ruas de noite são
sempre perigosas e confrangeria meu coração se algum mal acontecesse com a
dama de branco.
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Com minha imaginação solta, penso na dama de branco como uma sílfide, que
parece levitar acima do solo, com o seu vestido comprido, esvoaçante. Penso
nela como uma mulher pura, inclusive porque nestes tempos de isolamento até
os namorados não dormem mais juntos, nem se encontram. Não consigo
imaginá-la na cama com homens, esses seres brutos. Com outra mulher, talvez,
mas agora deve dormir sozinha, quero crer.
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Para mim ela está em outra dimensão. Não tenho propriamente uma religião,
mas como guardo dois bons livros de astronomia, que volta e meia releio, penso
na grandeza para mim incalculável do universo. Trilhões de astros, bilhões de
anos-luz. Mas penso que, se houver um Deus, Ele não é bom, como dizem, mas
indiferente à sorte humana, isso se houver um pensamento de Deus.
Mas o nada também não me angustia. Penso nele como uma espécie de barato
como o produzido pelo ópio, que experimentei duas vezes na Meca que é Nova
York, onde, com as informações certas, pode se experimentar um pouco de
tudo. Mas para conseguir o ópio tinha de digitar uma senha no celular, ora
vejam só. Nem sei o que aconteceria comigo se continuasse naquela cidade.
Experimentava a droga com uma mulher que eu não amava nem desejava,
como ela também não a mim, mas, depois que eu a pagava, gostava de se deitar
comigo, drogada, ambos silenciosos.
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Não consigo deixar de pensar na dama de branco deitada comigo, quem sabe
nua, com seu corpo esguio, mas isso me parece um sacrilégio. A dama vem à
minha mente como uma pessoa solitária como eu, não imaginando que a
possam observar em sua caminhada, nesta hora tão deserta. Nem
transaríamos, pois já estou com setenta e nove anos.
Crio para a dama de branco uma história. Ela me conta sobre sua infância. De
como gostava de passear em sua rua de Botafogo de mãos dadas com uma
amiga muito especial. De como ela amava essa amiga que morreu muito jovem,
de uma doença misteriosa. Mas antes teve tempo de falar que a esperaria. Não
foi egoísta a ponto de pedir que a dama de branco também a esperasse ou
partisse logo para se juntar a ela. Então a dama de branco teria experimentado
várias relações, sempre com um sentido de incompletude, até que chegou este
tempo da peste e ela está em isolamento como eu. Às vezes, penso que a dama
de branco é a própria morte. Sei que isso é um modo de prendê-la e logo me
penitencio e sei que em outro momento pensarei outra coisa. A morte não
passa de uma obsessão minha.
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Pelo menos é isso que imagino neste momento. Noutra hora posso pensar que
ela fora casada com um pianista, um jovem amável e sensível. Depois apago,
por ciúmes, esse pianista. Então é ela a pianista e eu a escuto embevecido. Não,
sou eu o pianista e toco para ela. Tento compor no pensamento uma melodia,
mas logo me vem à cabeça as Gnossiennes, de Satie, que eu escutava
compulsivamente na sala, antes de vir para a varanda para acompanhar a
dama de branco indo e voltando na área do estacionamento, com a leveza de
uma bailarina. Será ela uma bailarina? Satie anotou que as Gnossiennes
deviam ser tocadas com convicção e uma tristeza rigorosa. Eu tenho essa
tristeza rigorosa, que me faz feliz. Os títulos de Satie são tão interessantes
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quanto suas obras: Três peças em forma de pera, Prelúdios flácidos, Desespero
agradável.
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Ah, mas como eu gostaria de deitar com a dama de branco numa cama,
consumindo ópio. Como não tenho ópio, vai este baseado mesmo. Seria como se
nos beijássemos, misturando nossas salivas em sua seda.
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