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Jean Clandinin
Dilma Mello
University Federal de Uberlândia
Shaun Murphy
University of Saskatchewan
D. Jean Clandinin
University of Alberta
Revista Brasileira de Pesquisa (Auto)Biográfica, Salvador, v. 01, n. 03, p. 565-583, set/dez. 2016 565
Introduzindo a investigação narrativa nos contextos de nossas vidas: uma conversa sobre nosso trabalho como investigadores narrativos
aspects of narrative research that often create difficulties for new re-
searchers in this relational form of research. We begin by reminding
readers that narrative inquiry is the study of the experience unders-
tood in the narrative. Thus, we draw attention to narrative research as
a phenomenon under study and methodology for the study. This by it-
self often creates confusion for those who are new to narrative inquiry.
We highlight three particular tensions that often cause difficulties for
researchers. Engaging at the beginning of the autobiographical narra-
tive, shifting from field texts to research texts and conducting narrative
investigations made purposive for personal, theoretical/practical and
social justifications were the three tensions we selected. Drawing on
ongoing and recently completed narrative investigations, Dilma, Shaun
and Jean have made explicit the ways in which they have moved from
interim field texts to final research texts.
Keywords: Narrative investigation. Research experiments. Research
Conversation. Relational ethics.
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Dilma Mello; Shaun Murphy; D. Jean Clandinin
Nós três estamos engajados em investiga- eventos pessoais e existenciais que se desen-
ção narrativa há muitos anos. Cada um de nós rolam), e de lugar (os espaços geográficos, to-
participou de vários estudos, com professores, pológicos, onde os eventos, incluindo os even-
jovens, crianças, médicos, estagiários, médicos tos de investigação, acontecem) (CLANDININ;
residentes, administradores, famílias e profes- CONNELLY, 2000).
sores universitários. Aprendemos a trabalhar Durante muitos anos, aprendemos bas-
a partir da seguinte definição de investigação tante, em nossos estudos sobre investigação
narrativa: narrativa, particularmente sobre o que signifi-
ca viver relacionalmente com os outros, quan-
Investigação narrativa é uma maneira de en-
tender a experiência. É uma colaboração en- do nos engajamos em investigação narrativa
tre pesquisador e participantes por um tempo, (CLANDININ; CAINE; STEEVES, 2013) e o que sig-
em um lugar ou série de lugares e na interação nifica viver na fronteira com outras metodo-
social com o meio. Um investigador adota esta logias de pesquisa (CLANDININ; ROSIEK, 2007).
matriz como central e continua com o mesmo
Frequentemente, o que aprendemos chama
espírito, concluindo a investigação ainda cen-
trado no viver e contar, revivendo e recontando
nossa atenção para as tensões com as quais
as histórias das experiências que compõem a vivemos, enquanto nos engajamos na investi-
vida das pessoas, tanto individual quanto so- gação narrativa.
cial. (CLANDININ; CONNELLY, 2000, p. 20)
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Introduzindo a investigação narrativa nos contextos de nossas vidas: uma conversa sobre nosso trabalho como investigadores narrativos
res que nos fazem perguntar a nós mesmos: o ção aos participantes, bem como com a área
que está acontecendo aqui? de pesquisa, foi um estudo junto aos jovens
Neste artigo, delineamos três tensões que que saíram da escola antes de se formarem
parecem particularmente relevantes para nos- (CLANDININ; CAINE; STEEVES, 2013). Organiza-
so trabalho mais recente: as tensões em tor- mos o quebra-cabeças da pesquisa em torno
no do início da narrativa autobiográfica, para das experiências de alunos que abandonam a
situar nosso trabalho; as tensões em torno escola precocemente, incluindo suas histórias
da passagem de textos de campo para textos sobre o que aquela escola representava em
de pesquisa, e as tensões em torno de justi- suas histórias de desistência, bem como suas
ficar cada estudo para responder às justifica- histórias a respeito de abandonar a escola
vas pessoais, práticas e teóricas, que lhes são precocemente, isto é, sem um diploma, e de
inerentes. Estas tensões surgem, em parte, como isso influenciava suas vidas.
das considerações do projeto da investigação Dilma – Meu trabalho atual está relaciona-
narrativa. As considerações do projeto são ba- do principalmente com a área de ensino para
seadas em doze medidas de investigação nar- alunos com alguma necessidade especial, es-
rativa (CLANDININ; CAINE, 2013). Para tratar as pecificamente alunos com problemas visuais
tensões, cada um de nós baseia-se em recen- (cegos e/ou com pouca visão). Estou particu-
tes investigações narrativas com as quais está larmente interessada na experiência relacio-
envolvido. nal entre professores e alunos, mas também
considero o contexto escolar e o meio. Como
Situando nossos contextos de uma investigadora narrativa, e também como
pesquisa avó de um menino com pouca visão, pensei
Shaun – Atualmente, estou realizando uma in- que seria mais fácil realizar esta investigação
vestigação sobre a construção de currículo em e escrever o início da narrativa. No entanto,
uma escola rural, assim intitulada – Vida em fiquei surpresa pela tensão pela qual passei,
uma escola rural: uma investigação narrativa enquanto escrevia o início da minha narrativa.
em construção de identidade e construção de
currículo na educação rural. Nesta investiga- Tensão 1: Escrevendo o início
ção, estou atentando para as experiências de da narrativa: engajando-se
crianças, famílias e professores, no encontro nas investigações narrativas
de suas vidas em lugares educacionais rurais.
autobiográficas, no início, e em
Minha maior dúvida é: como as experiências
dentro e fora da escola moldam a construção toda a investigação
de currículo e a construção da identidade, para Engajar-se na investigação narrativa autobio-
crianças, famílias e professores? Meu interesse gráfica é muito mais do que participar de qual-
surge de minhas próprias experiências, como quer investigação narrativa. Não é fácil traba-
uma criança rural, e de experiências de traba- lhar, mas é importante que comecemos cada
lho em escolas rurais. Uma tensão que tenho investigação narrativa com esta tarefa, como
em relação a esta dúvida é o papel de observar Clandinin (2013, p. 36) a descreveu:
o lugar, quando se ensina em escolas rurais.
Primeiramente, é importante investigar como
Jean – Um dos estudos em que eu apren- você se vê, e se torna, dentro da investigação.
di muito sobre tensões e sobre ficar acordado, Sem ter o entendimento do que traz cada um
para a minha vida e minha pesquisa, em rela- de nós para nossos quebra-cabeças, nós corre-
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Introduzindo a investigação narrativa nos contextos de nossas vidas: uma conversa sobre nosso trabalho como investigadores narrativos
lias e administradores, em uma cidade peque- mente, ela tinha sido moldada por vários es-
na, rapidamente aceitei. Ainda estou tentando tudos, bem como por suas experiências como
descobrir o que significa ensinar em escolas criança, na escola, como professora e conse-
rurais. Ainda estou tentando descobrir o que lheira, nas escolas, e por seu trabalho como
o rural realmente significa nas vidas das pes- formadora de professores. As dúvidas que se
soas. Imagino como a atenção para com a edu- desenvolveram, a partir do trabalho anterior
cação baseada no lugar pode apoiar a apren- moldaram o estudo dos alunos que abando-
dizagem de crianças e o ensino de professores. naram a escola cedo. Nós (CLANDININ; HUBER;
HUBER; MURPHY; MURRAY-ORR; PEARCE; STEE-
Dúvidas sobre o início da minha VES, 2006) tínhamos completado uma inves-
narrativa tigação narrativa, em uma escola, junto com
crianças, professores e administradores es-
Minha experiência como um menino de fazen-
colares. Nós também tínhamos tido conversas
da, vivendo em dois mundos, molda quem eu
com alguns pais e membros de família. Embo-
sou, em minha investigação atual. Sei que o
ra o foco fosse sobre as maneiras pelas quais
meu interesse neste trabalho vem da minha
as identidades dos professores e das crianças
origem em uma fazenda perto de uma cida-
se entrelaçam nas escolas, ficamos cientes de
dezinha, na parte norte rural de Alberta (uma
que algumas crianças tinham começado a se
província no Canadá). Sei que o meu interes-
desengajar das escolas, já no nível primário.
se na educação rural vem da minha infância, a
No último capítulo do nosso livro, nos basea-
carreira de ensino em escolas rurais, o traba-
mos no estudo de Smyth et al (2004), de de-
lho de pesquisa sobre os mundos das crianças,
sistentes da escola, e começamos a imaginar
e meus pensamentos sobre a construção do
a experiência de jovens que deixaram a escola
currículo. Quando escrevo artigos, estou ciente
antes de se formar. As dúvidas, moldadas no
de que isso me molda e, enquanto eu não es-
estudo com crianças e professores, na Escola
crevo, em um artigo, o início de uma narrativa,
Elementar Ravine, permaneceram, e começa-
frequentemente, acho que isso é entremeado
mos a desenhar um novo estudo, uma inves-
em todo o artigo de maneira que eu espero
tigação narrativa em que aprendemos através
mostrar ao leitor que estou conectado com o
das experiências e das histórias dos jovens que
trabalho, além de apenas demonstrar interes-
abandonaram a escola, antes de se formar.
se acadêmico. Em um curso recente, notei, na
Fomos lembrados da importância de in-
escrita de meus alunos, que eles acham que
vestigar as nossas próprias histórias de es-
“tendência” é algo ruim, mas tendência é um
cola, histórias que moldaram nossas suposi-
termo neutro e está sempre presente no nosso
ções, entendimentos e experiências, dentro e
trabalho. É algo para prestar a atenção e vale a
fora da escola. Isso foi importante para nós,
pena notar que eu tenho uma inclinação pes-
uma vez que nos ajudou a reconhecer as ra-
soal em relação à educação rural.
zões para nos envolvermos neste trabalho,
A narrativa inicial de Jean: que crescia de nossas experiências, dentro e
fora da escola. Enquanto havia múltiplos pon-
investigação narrativa sobre a
tos iniciais para a pesquisa, tais como inves-
saída precoce da escola tigações narrativas anteriores, as agências
Quando Jean se envolveu, na pesquisa narrati- de financiamento da pesquisa e os requisitos
va, com alunos que deixam a escola precoce- éticos da universidade, cada investigador nar-
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rativo começou com uma investigação narrati- Vivendo sempre as memórias incorporadas
va autobiográfica para nos ajudar a entender De viverem dois mundos
A cada dia, cada semana, cada ano.
mais profundamente quem cada um de nós
era, na pesquisa, e o que nos atraiu para a pes- IV. Tornando-se um investigador narrativo.
quisa. Começamos nossas investigações narra- Complexidades
tivas autobiográficas em relação a quem cada vividas com o passar do tempo
vividas em múltiplos lugares
um de nós era na pesquisa. Nossos propósitos
em múltiplos relacionamentos
eram menos sobre contar nossas próprias his- do que significa conhecer múltiplos mundos
tórias, de maneira abrangente, e mais sobre o de crianças e famílias
modo como entramos nos relacionamentos de que são vistas como outros,
investigação; quem nós éramos e estávamos cujas histórias não se adaptam
a enredos dominantes. (CLANDININ; CAINE;
nos tornando em relação aos jovens que aban-
STEEVES, 2013, p. 7-10)
donaram a escola cedo, bem como com quem
estávamos e no que estávamos nos tornando, Estas histórias não eram fáceis para eu es-
em relação às histórias de escola. crever nem fáceis de serem compartilhadas
No que se segue, compartilho segmentos com outros. Para facilitar, chamo a atenção
da representação de uma imagem de palavra que eram histórias que eu ainda não tinha es-
de alguns inícios da minha narrativa molda- crito antes e eram histórias que eu não tinha
da em quatro seções temporais: área inicial/ disponibilizado para a investigação narrativa.
áreas anteriores, formatura do ensino médio, Enquanto falava com eles, eu já tinha falado
tornando-se um professor e tornando-se um deles para mim mesmo, citando-os em novos
investigador narrativo. Compartilho um seg- estudos. Eu não as tornei públicas, exceto em
mento de cada seção: lugares seguros, em áreas de conhecimento
I. Áreas anteriores.
profissionais (CLANDININ; CONNELLY, 1995); lu-
As tensões e contradições gares onde eu poderia me tornar vulnerável,
vividas a cada dia, cada semana, cada mês. para aprender a partir das tensões que eu
Deixando um mundo estava vivenciando. Ao escrevê-las e investi-
Entrando em outro mundo. gá-las narrativamente, elas permitiam que eu
Cada dia
me posicionasse no estudo maior das expe-
Cada semana
Cada ano. riências de jovens que abandonaram a escola
cedo, bem como me posicionasse em relação
II. Formatura do Ensino Médio.
aos dois jovens participantes, com quem con-
Nenhuma história de graduação na família
Histórias de formar uma vida como esposa de vivi no estudo.
um fazendeiro
casamento, filhos A narrativa inicial de Dilma:
uma vida em uma fazenda
trabalho duro,
ensinando e vivendo em relação
não ter coisas suficientes, muito trabalho com pessoas com necessidades
os padrões intergeracionais.
especiais
III. Tornando-se um professor.
Logo que Dilma decidiu realizar uma investi-
Tornando-se um professor
Professores pertencem a escolas.
gação sobre as experiências de ensinar alunos
Deixando um mundo com problemas de visão, ela achava que os
Entrando em outro. inícios de sua narrativa poderiam estar rela-
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cionados com a sua própria prática, como pro- ignorei, porque eu não conseguia usar aque-
fessora, que ela tinha de ser em relação aos la linguagem. Logo percebi que era eu a de-
alunos com problemas de visão. Lembrou-se safiada naquela situação. Daquele momento
de uma criança que ela tinha ensinado, há al- em diante, decidi que eu construiria pontes de
guns anos antes, enquanto trabalhava para linguagem. Minha ideia era que eu precisava
uma faculdade pequena. Imaginando que era ser capaz de usar diferentes maneiras de co-
sua primeira experiência em relação a pessoas municar.
com necessidades especiais, Dilma tentou o Novamente, Dilma percebeu que não era a
início de uma narrativa. primeira situação em que ela tinha estado em
Há alguns anos, como professora, planejei relação com pessoas diferentes, e lembrou-se
minha aula pensando nos meus alunos, espe- de outra experiência: seu irmão ficou cego por
rando que eles aprendessem facilmente. Pre- um ano, durante a infância, no Brasil. Ela se
parei slides com palavras, em cores diferen- perguntou como poderia não estar ciente, em
tes: verbos em preto, adjetivos em vermelho, relação ao quebra-cabeça de pesquisa, daque-
substantivos em amarelo, cognatos em azul, la parte da sua história de família, relacionada
e assim por diante. Todo mundo parecia estar à diferença. Dessa vez, (re)começou o início de
tão atento e satisfeito, mas, depois que a aula suas narrativas com a experiência que teve da
acabou, um menino veio até mim e me disse experiência de seu irmão.
que ele não conseguia entender as diferenças Meu irmão ficou cego por um ano, quando
com base nas cores. Ele era daltônico. E apesar eu tinha cerca de cinco anos, e ele tinha sete.
das minhas preocupações em relação à inclu- Não entendi a razão por que isso aconteceu,
são, reconheci que eu estava muito distante de mas eu costumava ajuda-lo a ir à escola. No
estar ciente de algumas diferenças. entanto, algumas vezes, eu era malvada e fa-
Logo que Dilma terminou parte da sua pri- zia piadas sobre sua situação. Lembro-me de
meira tentativa de início da narrativa, ela com- uma vez, quando o guiei até um muro, em fren-
partilhou esta parte com alguns outros profes- te à nossa casa. Nós dois rimos, e logo eu o
sores, que também estavam trabalhando com levei para casa. Provavelmente, como criança,
o início da narrativa. Enquanto lia sua história eu estava tentando investigar esta nova si-
para o grupo, ela logo percebeu que aquela tuação. Estava tentando entender o que era,
experiência não tinha sido sua primeira expe- e não conseguia fazer sentido disso. Também
riência em relação a pessoas com necessida- me perguntava qual era o meu papel, naque-
des especiais, e lembrou-se de outra situação la experiência, como irmã de um menino cego.
que tinha vivido, quando era uma universitá- Naquela época, me disseram que ele precisava
ria. Ela finalmente descobriu que tinha acha- de vitamina A, e ele tinha que comer muitas
do a sua história inicial e que sua história de cenouras, todos os dias, para que pudesse en-
aluna universitária a ajudaria a discutir como e xergar novamente. Finalmente, depois de um
quando despertou para as diferenças. longo ano, sua visão retornou. Esta foi minha
Quando estava voltando para casa, da primeira experiência com cegueira.
Universidade, eu me deparei com uma garota De início, minhas narrativas acabaram sen-
no ônibus. Ela era surda e não conseguia fa- do escritas, ao mesmo tempo, porque minhas
lar usando sua voz, como fazemos. Eu não sei três tentativas iniciais criaram uma oportu-
por que razão ela decidiu “falar” comigo. Ela nidade para eu perceber que minhas expe-
me tocou e insistiu em ter uma conversa. Eu a riências relacionais com pessoas com neces-
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sidades especiais eram muito mais intensas, ças e dos professores e tirou fotografias, em
e frequentes, na minha vida, do que eu tinha todo o processo. Os textos de campo compos-
percebido. Tinha planejado apontar para a tos começaram a moldar os textos de pesqui-
minha falta de conhecimento sobre contex- sa. Os formatos iniciais dos textos de pesqui-
tos educacionais inclusivos, mas percebi que sa eram uma proposta para uma conferência
eu sabia muito menos do que imaginei; acha- e um artigo para posterior publicação. Shaun
va que sabia muito mais. Minhas tentativas de foi ensinado por Jean, que conferências nunca
inícios narrativos me mostraram quão cega eu são um ponto final para artigos, mas um lugar
era em minha “relação” com pessoas com ne- para refinar a escrita e buscar o insumo de ou-
cessidades especiais, embora veja agora a fre- tros. Um outro aspecto importante da escrita
quência dos meus relacionamentos. Só acordei de textos de pesquisa é o envolvimento dos
realmente para o ensino de alunos diferentes, participantes. A escrita foi compartilhada com
quando meu neto nasceu com visão congênita várias pessoas envolvidas na pesquisa e suas
baixa. Minha atenção para a diferença do alu- dúvidas moldaram mais textos. Foi importante,
no está principalmente baseada nestas três enquanto os textos de pesquisa eram escritos,
experiências. pensar sobre os textos de campo, como uma
maneira de representar a experiência, e de
Tensão 2: Tensões de mudar de como eram investigados através do espaço de
textos de campo para textos de investigação narrativa tridimensional (CLAN-
DININ; CONNELLY, 2000). Esse espaço é ligado
pesquisa
pelos aspectos comuns da narrativa: de socia-
Shaun bilidade, de temporalidade e de lugar (CON-
Na investigação narrativa de Shaun, a respeito NELLY; CLANDININ, 2006), e uma atenção para
da construção do currículo, em uma escola ru- dentro, para fora, para trás e para a frente,
ral, ele começou com uma dúvida aberta sobre à experiência da pesquisa e do pesquisador.
o que as crianças, famílias, professores, mem- Clandinin e Connelly (2000) explicaram estas
bros da comunidade e administradores podem quatro direções:
vivenciar, na construção de seu currículo esco-
[...] para dentro, queremos dizer em relação a
lar. Ele queria que a investigação fosse molda- condições internas, tais como sentimentos, es-
da, em parte, pelos interesses das pessoas na peranças, reações estéticas e disposições mo-
escola. Embora tivesse clareza sobre o aspecto rais. Para fora, queremos dizer em relação a
da pesquisa de construção de currículo, estava condições existenciais, isto é, o meio. Para trás
feliz de deixar a escola moldar o possível foco e para a frente, nos referimos à temporalidade
— passado, presente e futuro. (2000, p. 50)
da pesquisa. O que surgiu foi um interesse em
jardinagem escolar. Shaun começou com con- Jean
versas com o administrador, fez anotações de Na investigação narrativa com alunos que
campo sobre experiências nas classes de 5º e abandonam a escola cedo, nos engajamos em
6º anos, enquanto eles aprendiam sobre jar- mudanças interpretativas diferentes, de textos
dinagem, fez um passeio a um complexo de de campo para textos de pesquisa. A primeira
idosos, com as crianças, e o professor ajudou mudança envolvia trabalhar dentro do espaço
a construir o espaço real do jardim, conversou da investigação narrativa tridimensional, de
com as famílias (pais e avós), teve conversas temporalidade, de sociabilidade e de lugar,
com as crianças, coletou artefatos das crian- com os textos de campo, para cada partici-
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Introduzindo a investigação narrativa nos contextos de nossas vidas: uma conversa sobre nosso trabalho como investigadores narrativos
pante. Nós colocamos para a frente as linhas nossa intenção não era dissecar vidas, mas,
narrativas, aqueles enredos narrativos que ao invés disso, oferecer uma representação de
discernimos sobre a vida de qual participante narrativas de experiência.
poderia ser contada. Entrelaçamos aquelas li- Nosso segundo movimento interpretativo
nhas narrativas em um texto de pesquisa pro- envolvia examinar os dezenove relatos nar-
visório, que chamávamos de relato narrativo rativos, para discernir linhas narrativas que
(CLANDININ; CONNELLY, 2000). Baseamo-nos pareceriam ecoar em todos os relatos. Com o
nos textos de campo (transcrições, notas de objetivo de preparar um texto de pesquisa fi-
campo, artefatos), e trabalhamos dentro do nal, para a agência financiadora, trabalhamos,
espaço de investigação narrativa tridimensio- colaborativamente, como uma equipe de 11
nal, enquanto escrevíamos esses relatos. membros, para examinar os 19 relatos narra-
Estávamos conscientes de que eram as his- tivos, e destacamos seis tópicos ressonantes
tórias dos participantes, compartilhadas em ou padrões que discernimos, enquanto exami-
relação a nós, que estavam sendo escritas nos návamos os relatos narrativos dos alunos que
relatos narrativos. Já que a investigação nar- abandonaram a escola prematuramente.
rativa é relacional, sabíamos que estávamos
compondo os relatos narrativos junto com os Dilma
participantes. Enquanto alguns participantes Junto com meu participante de pesquisa,
estavam mais envolvidos nos processos de decidimos contar e recontar suas próprias ex-
mudar de textos de campo para os textos de periências, na escola, e nossas conversas em
pesquisa, nós negociamos cada relato nar- que estávamos tentando resolver como pode-
rativo junto a cada participante, com apenas ria a educação inclusiva ser entendida, con-
uma exceção. Um jovem tinha indicado que ele siderando a perspectiva de uma pessoa com
queria que sua história fosse contada, mas nós necessidades especiais. Juntos, nós tentamos
não conseguimos contatá-lo, para negociar o compor o significado das experiências vividas,
relato narrativo. Nós pedimos a cada partici- tendo em mente particularmente os movimen-
pante para selecionar um pseudônimo para tos, para dentro e para fora, relacionados à in-
eles mesmos. Nos relatos narrativos, descre- vestigação narrativa, como proposta por Clan-
vemos comunidades do lar e informação de- dinin e Connelly (2000).
mográfica, quando era importante para as ex- Primeiro de tudo, conversamos, e meu par-
periências dos participantes. Não demos no- ticipante compartilhou experiências vividas na
mes às cidades grandes, pequenas, ou escolas, escola, com professores e colegas de classe.
para garantir o anonimato dos participantes. Fiz o papel de tutora, responsável por criar um
Ocasionalmente, quando mencionamos esco- lugar seguro para o participante compartilhar
las e lugares, criamos pseudônimos para eles. suas experiências, e também responsável por
Quando mudamos de textos de campo para atender alguns dos requisitos da escola, e ten-
escrever os textos de pesquisa provisórios, tar falar com os professores sobre as preocu-
isto é, os relatos narrativos, formamos grupos pações do meu participante, tendo em mente
de trabalho contínuos, o que nos permitiu res- suas experiências vividas e compartilhadas em
ponder às interpretações, uns dos outros, nos nossas seções de conversa. Segundo, escreve-
relatos narrativos. Em todo texto, permanece- mos algumas narrativas e enquanto as compu-
mos respeitosos, no que concerne às vidas dos semos, como textos de campo, o participante
participantes. Tínhamos consciência de que escolheu um pseudônimo para ele mesmo e,
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como pesquisadora, honrei a escolha. Ele tam- que a investigação importa para cada um de
bém compôs narrativas diferentes, usando nós. “Nossos interesses na pesquisa vêm de
fotos, que ele tinha tirado na escola, e alguns nossas próprias narrativas de experiência e
poemas que ele tinha escrito sobre a sua expe- moldam nossos enredos de investigação nar-
riência na sala de aula. Finalmente, eu trans- rativa” (CLANDININ; CONNELLY, 2000, p. 121).
formei os textos de campo em textos de pes- Como notamos na seção intitulada Tensão 1,
quisa, escrevendo alguns relatos narrativos so- nós sabemos quão difícil é engajar-se na in-
bre as experiências vividas e compartilhadas. vestigação narrativa autobiográfica e entender
Nós dois passamos a entender as histórias dos a complexidade de compreender quem somos
meus participantes, junto com aquelas da es- na investigação e, ao fazer isso, passar a en-
cola, em relação a quem ele era, como aluno, e tender nossos propósitos e justificativas para
quais eram suas necessidades. Aquelas foram o engajamento na investigação. Enquanto não
algumas das linhas que eu consegui compor, podemos nos engajar na investigação narra-
em relação ao participante, enquanto pres- tiva, sem considerações sobre quem somos
tando atenção ao contexto escolar e nas duas e estamos nos tornando, na investigação, e o
perspectivas sobre Educação Inclusiva. que nos traz para a investigação, justificativas
pessoais de cada investigação narrativa não
Tensão 3: tensões para justificar são suficientes.
nossas investigações narrativas, Considerações de justificativas práticas
também são importantes, já que pensamos
de maneira pessoal, prática e
sobre como nosso trabalho será assumido por
social outros, no ensino, na enfermagem, na elabo-
Escrevemos em outro texto sobre a necessida- ração de políticas, na educação do professor,
de de imaginar o fim da investigação e como e assim por diante. Quando escrevemos sobre
responderemos a questões de ‘e daí?’ e ‘quem nossos estudos, nos textos de pesquisa finais,
se importa?’ – questões que todos os pes- perguntas de como nós justificamos nosso
quisadores precisam responder (CLANDININ; trabalho praticamente são particularmente
CONNELLY, 2000; CLANDININ, 2013). Enquanto, importantes. Isso também é, frequentemente,
normalmente, estas questões são feitas no fi- um empreendimento difícil.
nal de um estudo de pesquisa, na investigação Considerações sobre justificativas pes-
narrativa, foi no início de nossas investiga- soais e práticas são frequentemente consi-
ções narrativas que nós primeiro encontramos deradas não importantes para a literatura
as questões de: “e daí e quem se importa” – acadêmica. Como Clandinin e Connelly (2000)
questões que nos levaram em direção à ne- escreveram:
cessidade de justificar nossas investigações
[…] embora encorajemos a justificativa de in-
narrativas, de três maneiras: as justificativas teresse na investigação em termos pessoais,
pessoais, práticas e sociais/teóricas. Em parte, as normas de investigação consideram que as
o trabalho de investigação narrativa autobio- pessoas devem somente justificar a investiga-
gráfica e de atenção especial à literatura aca- ção em termos sociais [...] Nós precisamos estar
preparados para escrever ‘eu’, enquanto faze-
dêmica são maneiras de começar a responder
mos a transição de textos de campo para textos
a estas questões.
de pesquisa. Quando escrevemos ‘eu’, precisa-
Considerações de justificativa pessoal nos mos transmitir um sentido de significância so-
levam a entender mais profundamente por cial. (2000, p. 122)
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Introduzindo a investigação narrativa nos contextos de nossas vidas: uma conversa sobre nosso trabalho como investigadores narrativos
No entanto, notamos que é crucial que to- no desfile contínuo da experiência, as investi-
dos os três tipos de justificativa estejam em gações narrativas também estão. Situado em
evidência, nas investigações narrativas, até relação a investigações narrativas anteriores,
mesmo se as justificativas pessoais são algu- estas também moldam investigações narrati-
mas vezes não totalmente evidentes, em tex- vas futuras. Tanto a pesquisa quanto a meto-
tos de pesquisa públicos. dologia são moldadas pela nossa pesquisa.
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Introduzindo a investigação narrativa nos contextos de nossas vidas: uma conversa sobre nosso trabalho como investigadores narrativos
cam nossa atenção nas escolas, nas políticas Dilma: justificando investigações
e procedimentos que afetam a juventude. Fo-
car no evento de transição obscurece nossa com experiências de alunos com
visão de jovem vivendo nas e das transições. necessidades especiais
Os entendimentos narrativos das histórias de
vida sempre em movimento, abertas para mo- Justificativas pessoais
vimentação e mudança, levou-nos a recon- Como indicado na primeira parte deste artigo,
siderar a composição da vida de jovens que comecei meu trabalho atual dando atenção
abandonaram a escola cedo, uma transição para a área de educação inclusiva, junto a alu-
fora da escola. Prestando atenção cuidadosa-
nos com necessidades especiais, focando nas
mente nas vidas dos jovens, nosso entendi-
mento mudou de maneira coerente com uma pessoas que tinham pouca visão. No entanto,
conceitualização narrativa de transição. Pas- quando comecei a escrever minhas histórias
samos a entender de maneira mais comple- iniciais, ficou claro para mim que, como pro-
xa como histórias de vida são moldadas por, fessor, eu precisava começar comigo mesmo
e moldadas em momentos incorporados de
e minhas próprias experiências, junto com os
transição.
meus alunos e membros da família. Então, meu
Ao atentarmos para a vida dos jovens à me- neto nasceu com visão congênita baixa, causa-
dida que eles ficavam visíveis nas histórias da por degeneração macular e, mais tarde, eu
contadas sobre eles, nós atentávamos para o
fiquei com pouca visão. Minha experiência de
que eles sabiam e para os contextos ou áreas
de conhecimento nas quais eles tinham vivido vida mudou completamente a maneira como
dentro e fora das escolas. Como as áreas de eu concebia a educação inclusiva. Por razões
conhecimento institucional ofereciam a eles pessoais, precisei e senti que tinha que reali-
cada vez menos possibilidades para continuar zar estudos sobre a Educação Inclusiva, con-
a compor as identidades de suas vidas, as
siderando a perspectiva daqueles frequente-
suas histórias de vida, não ficaram paralisa-
dos. Eles se basearam no conhecimento que
mente excluídos. Depois de passar por muitas
tinham de si mesmos, que foi formado du- experiências difíceis, com meu neto, na esco-
rante anos, e em outros múltiplos contextos la, e comigo mesma, no trabalho, decidi que
e relacionamentos, para mudar suas histórias estava na hora de trazer minhas experiências
de vida. Acordando para seguir em outras di- para a minha vida profissional, como uma in-
reções que moldaram suas áreas de conheci-
vestigadora narrativa, afinal, vida e educação é
mento, eles improvisaram maneiras de fazer
com que suas vidas fizessem sentido. Algumas um caminho que vai e vem e se aprende consi-
vezes, eles escolheram mudar de escola ou derando os dois aspectos, como sugerido por
sair da escola por um curto espaço de tempo, Dewey (1938: 1997).
ou trocar alguns relacionamentos por outros.
Eles fizeram essas mudanças atentos a sempre
Justificativas práticas
buscar maneiras de fazer sentido com as suas
Minha justificativa prática está muito re-
histórias de vida, que ligavam seus conheci-
mentos e seus contextos de história. Ligados lacionada a minha justificativa pessoal. Não
dentro das múltiplas áreas de história, os jo- poderia, sozinha, ser uma investigadora narra-
vens nos mostraram como eles improvisaram tiva que realiza investigações sobre educação
algo novo, que permitia que fossem em frente, inclusiva, sem considerar tensões relaciona-
para continuar a composição da vida dentro
das à área de ensino, como uma educadora de
das escolas, tentando fazer a escola funcionar
para eles até que a única maneira de alcan- professores. Estava e ainda estou desejosa de
çar a coerência narrativa fosse sair da escola. tentar entender este caminho e criar condi-
(CLANDININ; CAINE; STEEVES, 2013, p. 327) ções para meus alunos graduados, e ainda os
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Dilma Mello; Shaun Murphy; D. Jean Clandinin
que estão na graduação, meus colegas na Uni- Além disso, situo minha justificativa so-
versidade com quem eu trabalho, para ficarem cial e a necessidade de investigar a educação
cientes desse mundo de diferenças. Escolas e inclusiva, levando em consideração o traba-
alunos de todos os níveis merecem ensino di- lho de Lugones (1987), considerando a via-
ferente, atendendo a diversidade. gem pelo mundo e as percepções que mol-
Há também tantas famílias no Brasil, meu dam como nós entendemos e vemos aqueles
país natal, tentando entender seus filhos com mundos. Lugones (1987) escreveu que há duas
deficiência para poder ajudá-los. Gostaria de percepções que podem chamar nossa aten-
saber se meu trabalho de educação, como pro- ção para mundos diferentes, a percepção
fessora, poderia ser de alguma ajuda para eles. arrogante e a amorosa. A Educação Inclusiva
Crianças vão para a escola e todas merecem tem sido principalmente investigada olhando
aprender. Tento ajudar professores na gradua- para o desafio da posição e perspectiva de
ção, e já formados, para saber se há muitas um estranho. Eu estava e ainda estou interes-
perspectivas diferentes de ser entendido e de sada em tentar estar ciente e entender outras
entender educação e vida. perspectivas possíveis.
Finalmente, planejarei e realizarei minha
Justificativa social investigação tentando entender maneiras di-
Uma vez mais vejo como minha justifica- ferentes de pertencer à sala de aula, enquanto
tiva social está bem interconectada a minhas lidando com as diferenças, segundo minha lei-
justificativas pessoais e práticas. Pensamento tura de Wenger (1998), que propõe que a sala
acadêmico é geralmente conduzido através de de aula pode ser vivida como uma comunidade
lentes objetivas e, como resultado, uma inves- de aprendizagem e prática, significando que a
tigação autobiográfica ou uma investigação, aprendizagem é uma experiência vivida, ne-
em que alguém tem um parente como partici- gociada nos ambientes escolares (CLANDININ;
pante, pode algumas vezes ser mal-entendida CONNELLY, 1995).
ou não muito bem considerada. Murphy, Huber Antes de nos dirigirmos aos pensamentos
e Clandinin (2012) compartilham e discutem de conclusão, queremos enfatizar a importân-
seu ponto de vista sobre currículo, atendendo cia de nossas responsabilidades éticas, em
aos dois mundos de construção de currículo. uma investigação narrativa. Estas responsabi-
Eles entendem que o currículo é feito e vivido lidades são um dos aspectos mais salientes de
em contextos familiares e de casa, e uma outra nossa pesquisa, e moldam nossas investiga-
construção de currículo é construída e vivida ções do início ao fim.
na escola. Os autores notam que é importante
prestar atenção ao que acontece entre os dois Responsabilidades éticas: a
mundos e o movimento e a negociação para
ética relacional de engajar-se na
crianças, enquanto elas viajam entre estes
dois mundos. Frequentando estes dois mun-
investigação narrativa
dos, como um investigador narrativo, eu jus- Embora não discutido em seções anteriores
tifico minha pesquisa socialmente, conside- desse trabalho, há um sentido em nossa con-
rando que existem muitas investigações rea- sideração inicial, nas narrativas, a mudança
lizadas a respeito de currículo, na escola, mas de textos de campo para textos de pesquisa
não muitas atentas à construção de currículo e as justificativas que moldam uma investi-
vivido em casa, entre os membros da família. gação da centralidade do relacionamento en-
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Introduzindo a investigação narrativa nos contextos de nossas vidas: uma conversa sobre nosso trabalho como investigadores narrativos
tre os participantes e o pesquisador. Temos mos lembrando aos leitores que a investigação
mostrado como nossas investigações surgem narrativa é o estudo da experiência entendi-
de nossa experiência em relação com os ou- da narrativamente. Dessa forma, chamamos a
tros, como nossos textos de campo moldam atenção para a investigação narrativa, como
os textos de pesquisa, em relação aos par- um fenômeno sob estudo e metodologia para
ticipantes, e como nossas justificativas são o estudo. Isso, por si só, já cria confusão para
situadas em relação com a metodologia, o aqueles que se iniciam na investigação narra-
trabalho teórico e, o mais importante, as pes- tiva. Nós também quisemos destacar que há
soas. “O relacionamento é a chave do que os múltiplas tensões em engajar-se na investi-
investigadores narrativos fazem” (CLANDININ; gação narrativa. Destacamos três tensões par-
CONNELLY, 2000, p. 189). ticulares que, normalmente, causam dificul-
A importância da relação cria uma respos- dades para os pesquisadores. Engajando no
ta ética, que vai além do processo ético que início da narrativa autobiográfica, mudando
precisamos engajar, em nossas universida- de textos de campo para textos de pesquisa, e
des, e atende as obrigações que temos com as conduzindo investigações narrativas tornadas
pessoas com quem nós trabalhamos em uma propositais para justificativas pessoais, teóri-
investigação. Questões éticas são centrais ao cas/práticas e sociais.
longo da investigação narrativa e enquanto es- Os inícios narrativos são fundamentais
tas podem mudar e movimentar “nunca estão para se engajar na investigação narrativa, e as
longe de nossas investigações, não importa experiências que moldam investigações nar-
onde estamos no processo de investigação” rativas diferentes, de cada pessoa, precisam
(CLANDININ; CONNELLY, 2000, p. 170). Connelly ser empreendidas em cada nova investigação
e Clandinin (1988) escreveram sobre a nego- narrativa. Como Dilma ilustrou, há muitas ex-
ciação contínua das narrativas de experiências periências nas quais podemos nos basear para
realizadas entre pesquisadores e participantes escrever nossos inícios narrativos, em uma in-
envolvidos na investigação, a “negociação das vestigação; ela demonstrou, de forma compe-
unidades narrativas de duas pessoas” (1988, tente, a complexidade de situar seu trabalho
p. 281). Para eles, “este foi um processo expe- em relação a suas experiências, no desenvolvi-
riencial profundo que vive no centro dos rela-
mento de sua vida. Escreveu a respeito de mui-
cionamentos em que o pesquisador e o parti-
tas experiências que moldaram sua maneira de
cipante negociam. Dessa forma, as narrativas
pensar sobre a investigação narrativa na inclu-
de suas experiências moldam a investigação”
são educacional. Enquanto considerava por-
(CLANDININ; CAINE; STEEVES, 2013, p. 64). Obri-
que estava interessada e quais entendimentos
gações éticas é o aspecto que mais pressiona
ela trouxe para a sua investigação narrativa,
uma investigação narrativa.
ela continuou no seu trabalho como professo-
ra, suas interações em lugares públicos, suas
Concluindo pensamentos conexões familiares, e sua experiência pessoal
Iniciamos este trabalho com a intenção de sobre a questão da pouca visão. Jean trouxe
usar nossas experiências como investigadores um entendimento da complexidade de suas
narrativos para destacar aspectos da investi- experiências, enquanto compunha suas histó-
gação narrativa que frequentemente criam di- rias de vida, enquanto ela vivia os mundos da
ficuldades para aqueles novos investigadores escola e da casa, e enquanto se movia entre
nesta forma relacional de pesquisa. Começa- estes dois mundos. Shaun narrou sua expe-
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Dilma Mello; Shaun Murphy; D. Jean Clandinin
riência, como menino vivendo em uma área contextos sociais em que eles estão posicio-
rural, e suas experiências de ensino, em sua nados. Amiúde, fazemos perguntas sobre ensi-
carreira, que moldaram um interesse profundo no, cuidado ou práticas sociais. Como parte da
na educação rural. justificativa prática, os investigadores narra-
Pesquisadores iniciantes em investigação tivos consideram questões de justiça social e
narrativa passam seguidamente por tensões equidade. Nós imaginamos, junto com os par-
enquanto lutam para entender o movimen- ticipantes, como suas e nossas experiências
to de estar no campo, para compor textos de podem ser moldadas de maneiras diferentes
campo, e compor textos provisórios e textos fi- no futuro (CLANDININ; CAINE, 2013, p. 174).
nais de pesquisa (CLANDININ; CONNELLY, 2000). É na justificativa prática que o social “e
Baseando-se em investigações narrativas con- daí” começa a tomar forma. Consideramos a
tínuas e recentemente completadas, Shaun, dimensão social da experiência e, dessa ma-
Dilma e Jean tornaram explícitas as maneiras neira, contribuímos para os contextos sociais.
como eles mudaram de textos de campo provi- A justificativa teórica/social junta estas duas
sórios para textos finais de pesquisa. preocupações. Ao fazê-lo, percebemos que o
O terceiro conjunto de tensões envolveu social informa o teórico e o teórico informa o
a necessidade de justificar as investigações social. Nesta justificativa, consideramos como
narrativas, justificativas que são moldadas nossa pesquisa molda a metodologia. Que no-
por questões de significado e significância vas revelações trazemos para a investigação
social. Estas justificativas convocam investi- narrativa? Como a metodologia é colocada em
gadores narrativos para perceber as maneiras primeiro lugar? Dessa maneira, nossas inves-
como seus estudos contribuem para maiores tigações ajudam as pessoas a entender as ex-
conversas e diálogos, na pesquisa de ciência periências de outros. Nós contribuímos para o
social. Novamente, baseando-se nas experiên- conhecimento de nossas disciplinas (ensino,
cias de Dilma, Shaun e Jean, nós destacamos medicina, trabalho social, línguas etc.) e con-
como justificamos as investigações narrativas versas políticas.
em estudos recentes. Evidenciamos, no texto, que as três justi-
O pessoal está situado em relação aos ficativas estão intimamente conectadas. Não
inícios narrativos do pesquisador e tornados obstante tenha sido possível descrevê-las, se-
mais claros na abertura de tais processos de paradamente, entendemos que essas são di-
pesquisas. Dessa maneira, mostramos, como mensões justapostas.
investigadores narrativos, o que trazemos para Conseguimos destrinchar três linhas para
esta pesquisa e como nos posicionamos para investigadores narrativos considerarem que é
empreender nossas investigações. Na justifica- evidente que, ao interligar nosso trabalho, es-
tiva pessoal, investigamos a respeito de nosso tamos levando em conta quem somos, o que
próprio conhecimento e consideramos como investigamos e por que conduzimos investiga-
este conhecimento nos ajuda na investigação. ções narrativas. No centro de uma investiga-
Frequentemente, é uma maneira de localizar ção narrativa está a experiência, tanto a nossa,
nossa paixão para o tópico em estudo. pessoal, e a dos participantes, quanto a ex-
Uma justificativa prática, normalmente, periência em si de conduzir uma investigação
nos aproxima das experiências de outros e dos narrativa.
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Introduzindo a investigação narrativa nos contextos de nossas vidas: uma conversa sobre nosso trabalho como investigadores narrativos
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Dilma Mello é mestre em Linguística Aplicada e Estudos da Linguagem, pela Pontifícia Universidade Católica de São
Paulo, e Doutora em Linguística Aplicada e Estudos da Linguagem, pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo,
com passagem pela Universidade de Alberta-Canadá, para a realização de doutorado sanduíche, com bolsa CAPES
(2003-2004), e para Pós-doutoramento, com bolsa CAPES (2012-2013). Atualmente, é professora Associado II da Universi-
dade Federal de Uberlândia e líder do GPNEP (Grupo de Pesquisa Narrativa e Educação de Professores). e-mail: mello.
dilma@gmail.com.
Universidade Federal de Uberlândia, Instituto de Letras e Linguística. Av. João Naves de Ávila, 2121 bl U sala 1U206 -
Santa Mônica. Uberlândia, MG, Brasil, CEP: 38408-100.
Shaun Murphy, PhD, is an Associate Professor in Curriculum Studies at the University of Saskatchewan. He was a primary
schoolteacher for 20 years. Shaun co-authored Composing Diverse Identities: Narrative Inquiries into the Interwoven
Lives of Children and Teachers (Routledge, 2006) and Places of Curriculum Making: Children’s Lives in Motion (Emerald,
2011). His current research interests are in mathematics education, curriculum, familial curriculum making, and teacher
and student identity. Email: shaun.murphy@usask.ca
D. Jean Clandinin is Professor and Director of the Centre for Research for Teacher Education and Development at the
University of Alberta. She is a former teacher, counselor, and psychologist. She co-authored with F. Michael Connelly
four books and many chapters and articles. Their most recent book is Narrative Inquiry: Experience and Story in Qua-
litative Research. Jean also coauthored Composing Diverse Identities: Narrative Inquiries into the Interwoven Lives of
Children and Teachers (Routledge, 2006) and Places of Curriculum Making: Children’s Lives in Motion (Emerald, 2011).
Jean is currently working on a narrative inquiry with youth and families of Aboriginal heritage as well as on a narrative
inquiry with teachers who leave teaching within the first five years of teaching. She is past Vice President of Division B of
AERA and is the 1993 winner of AERA’s Early Career Award. She is the 1999 winner of the Canadian Education Association
Whitworth Award for educational research. She was awarded the Division B Lifetime Achievement Award in 2002 from
AERA. She is a 2001 winner of the Kaplan Research Achievement Award, the University of Alberta’s highest award for
research and a 2004 Killam Scholar at the University of Alberta. Email: jean.clandinin@ualberta.ca
Revista Brasileira de Pesquisa (Auto)Biográfica, Salvador, v. 01, n. 03, p. 565-583, set/dez. 2016 583